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Editorial

Editorial

Em um mundo em que as distâncias geográficas tendem cada vez mais ao desaparecimento, um dos debates mais complexos e fecundos gira em torno das relações entre culturas. Nesse âmbito, evidentemente, por seu papel mediador, a tradução vem ganhando uma atenção cada vez maior nas pesquisas acadêmicas, em diversos domínios do conhecimento. Foi com o intuito de constituir uma amostra do que se vem fazendo mais especificamente nesse campo na perspectiva dos estudos literários e linguísticos que propusemos para este número o tema "Crítica, cultura e identidade: questões de tradução", que agora trazemos a público.

Para efeito de organização do volume, dividimos os textos que compõem a rubrica "Artigos" em dois blocos. Num primeiro grupo, os ensaios mantêm o foco no problema da linguagem e em questões predominantemente literárias, ao passo que, num segundo grupo, o problema da tradução é tratado por meio de abordagens mais explicitamente voltadas para a questão do embate entre culturas.

Abre o primeiro grupo de ensaios a reflexão de Philippe Marty, que, a partir do exercício de tradução de um poema de Joseph Eichendorff, e passando por autores como Aristóteles, Deleuze, Levinas e Agamben, expõe e discute a irremovível tensão entre original e o que ele pretende definir como "versão", em oposição a "tradução". Logo a seguir, Marcelo Diniz reflete sobre a relação da escrita tradutora com a escrita tout court com base em sua própria tradução de dois sonetos do século XVI - Au lecteur, de Nicolas de Herberay, que o poeta Jacques Roubaud apresenta numa antologia como o primeiro soneto francês, e Au segneur des Essars, N. de Herberay, em que o poeta Mellin de Saint-Gelais rende homenagem ao poeta renascentista como o primeiro tradutor de Amadis de Gaule. Maria Elisa Rodrigues, por sua vez, nos traz de volta ao século XX com a explicitação das reflexões sobre a tradução que se delineiam nos textos ficcionais de Jorge Luis Borges e Italo Calvino, no intuito de ponderar sobre seus desdobramentos no âmbito da crítica e da teoria literária modernas. Já Claudia Faveri reconstitui as sucessivas traduções da obra de Guimarães Rosa na França desde 1961, buscando avaliar, com base na análise de algumas traduções, em que medida esse processo de recepção a transforma. Marie Hélène Torres, por outro lado, reflete sobre a circulação cada vez maior dos best-sellers internacionais, procurando entender criticamente o papel da tradução nesse crescimento.

Num ensaio que faz a ponte para o segundo grupo de textos, Maurício Mendonça Cardozo parte da problematização da oposição entre cultura "primitiva" e cultura "civilizada", tal como apresentada por Alfred Döblin em sua trilogia sulamericana Amazonas, para fundamentar um projeto de tradução dessa obra para o português do Brasil. A seguir, Eduardo de Oliveira Batista mostra como os textos produzidos por tradutores e viajantes desde o início da colonização do Brasil, bem como sua releitura por etnógrafos e acadêmicos ao longo dos séculos XIX e XX, contribuíram para a construção e a sedimentação de uma representação cultural eurocêntrica e homogeneizante dos povos retratados, servindo antes de qualquer outra coisa à sustentação de um discurso de dominação. Consuelo Alfaro, por sua vez, discute, a partir da ação evangelizadora da administração colonial na América hispânica, as políticas de tradução explicitadas pelos Concílios e seus efeitos na produção de gramáticas, dicionários bilíngues e propostas ortográficas para as línguas gerais. José Ribamar Bessa Freire encerra a rubrica "Artigos" discutindo o papel da tradução na circulação das narrativas orais das mais de 180 línguas indígenas faladas no Brasil.

Na rubrica "Traduções", apresentamos três textos inéditos em língua portuguesa que constituem contribuições bastante diversas entre si. Primeiramente o ensaio em que Antoine Berman, certamente um dos mais importantes teóricos franceses da tradução no século XX, propõe a constituição da "tradutologia" como um domínio autônomo de reflexão crítica e teórica. Em seguida, a psicanalista brasileira radicada na França Angela Jesuino Ferretto parte de sua experiência de tradução da obra de Jacques Lacan para refletir sobre o bilinguismo do tradutor e sua relação com a escrita e com a voz. Por último, Gleiton Lentz propõe uma tradução do poema Os Sepulcros (Dei Sepolcri), de Ugo Foscolo, que publicamos em versão bilíngue.

Para concluir este amplo espectro de reflexões teóricas e práticas sobre a tradução, publicamos ainda uma conferência e uma entrevista. Na primeira, apresentada em francês, a ensaísta, professora e tradutora Inês Oseki-Depré expõe criticamente a composição de sua tradução brasileira do livro Quelque chose noir, do poeta francês Jacques Roubaud. Na segunda, o escritor e tradutor francês Didier Lamaison responde, entre outras, a questões sobre sua experiência como tradutor do poeta Carlos Drummond de Andrade.

Agradecemos aos que nos permitiram montar este volume que, esperamos, contribuirá para estimular a interlocução neste campo de reflexão que, salvo as honrosas exceções que confirmam a regra, começa agora a encontrar algum espaço nas universidades brasileiras.

Os Editores

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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