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“Sob a capa espessa da amnésia”: apagamentos visuais em Dora Bruder (1997), de Patrick Modiano

“Beneath this thick layer of amnesia”: visual erasure in Patrick Modiano’s Dora Bruder (1997)

Resumo

Este artigo objetiva buscar no romance Dora Bruder (1997), de Patrick Modiano, o significado e a relevância do apagamento visual como recurso narrativo, materializado na ausência das imagens fotográficas e no uso da écfrase para tratar do trauma deixado pela perseguição e morte de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. A opção do autor por negar ao leitor a exposição da menina judia desaparecida em Paris durante a ocupação alemã é a metáfora da eliminação, do apagamento, do silenciamento e da morte da memória social de um povo. Em resposta a essa amnésia imposta, a memória é usada como meio de interrogar um passado que se transforma em narrativa para permitir a reelaboração de experiências dolorosas tornadas mais compreensíveis porque dizíveis.

Palavras-chave:
fotografia; memória; écfrase; apagamento; Patrick Modiano

Abstract

This article aims to seek in the novel Dora Bruder (1997), by Patrick Modiano, the meaning and relevance of visual erasure as a narrative resource, materialized in the absence of photographic images and in the use of ekphrasis, to deal with the trauma inflicted by the persecution and murder of Jews during World War II. The author's choice to deny the reader the exposure of the Jewish girl who disappeared in Paris during the German occupation is a metaphor for the elimination, erasure, silencing and death of the social memory of a people. In response to this imposed amnesia, memory is used as a means to interrogate a past that is transformed into a narrative to allow the re-elaboration of painful experiences made more comprehensible because they can be told.

Keywords:
photography; memory; ekphrasis; erasure; Patrick Modiano

Résumé

Cet article vise à rechercher dans le roman de Patrick Modiano, Dora Bruder (1997), le sens et la pertinence de l'effacement visuel comme ressource narrative, matérialisée dans l'absence d'images photographiques et dans l'utilisation de l’ekphrasis, pour faire face au traumatisme laissé par la persécution et la mort des Juifs pendant la Seconde Guerre mondiale. L'option de l'auteur de refuser au lecteur l'exposition de la jeune fille juive disparue à Paris pendant l'occupation allemande est une métaphore de l'élimination, de l'effacement, du bâillonnement et de la mort de la mémoire sociale d'un peuple. En réponse à cette amnésie imposée, la mémoire est utilisée pour interroger un passé qui devient récit afin de permettre la réélaboration d'expériences douloureuses rendues plus compréhensibles parce qu'elles peuvent être dites.

Mots-clés :
photographie; mémoire; ekphrasis; effacement; Patrick Modiano

Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado

deve agir como um homem que escava.

Walter Benjamin (1997BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997., p. 239)

Tout se confondait par un phénomène de surimpression - oui tout se confondait et devenait d’une si pure et si implacable transparence... La transparence du temps…

Patrick Modiano (1989MODIANO, Patrick. Vestiaire de l’enfance, Paris, Gallimard, 1989. 156 p., p. 151)

Pessoas que não deixam vestígios atrás de si

Se considerarmos as relações entre literatura e fotografia, dar-nos-emos conta de que cada linguagem, a seu modo, resgata o tempo, em uma ação que François Soulages (2018SOULAGES, François. Le temps, entre néant & absolu. In: D’ANGELO, Biagio; SOULAGES, François (éds.). Temps Photographie & littérature: Écrits parisiens 2017-2018, 2. Paris: L’Harmattan, 2018. p. 12-55., p. 21) define sugestivamente como algo “impossível de doar, irrepresentável, indefinível, não fotografável”: “Literatura e fotografia, prova do início dos tempos que, após este sentimento de absurdo, de não-sentido e de não tempo, é vivida como uma interpretação dos vestígios colocados no espaço fotográfico e no espaço escritural”1 1 No original: “Littérature et photographie, épreuve du commencement du temps qui, après ce sentiment d’absurdité, de non-sens et non-temps, se vit comme interprétation des traces posées dans l’espace photographique et dans l’espace scripturaire". .

No livro Dora Bruder, de Patrick Modiano, publicado em 1997, o narrador revisita sua memória a partir do destino fugidio de Dora Bruder, uma menina desaparecida aos 15 anos de idade, em Paris. O narrador encontra a notícia do desaparecimento publicada num jornal local do dia 31 de dezembro de 1941 muitos anos depois e, a partir daí, inicia a busca histórica de Dora. Modiano parece se encarregar de resgatar a memória da menina, vítima do Holocausto. Esse propósito, porém, não resulta em um texto biográfico nem em uma crônica sobre Dora, a exemplo de produções literárias da segunda metade do século XX na Europa, mas em um texto lírico que se desenvolve a partir de motivações psicológicas do narrador, afetadas pela memória traumática deixada pela ocupação alemã na França ao longo de praticamente todo o período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

A vida e a obra de Modiano serão influenciadas por esse cenário. Tem razão, nesse contexto histórico, Eric Hobsbawm (1995HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: breve século XX - 1914-19191. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 632 p.), quando, ao considerar a guerra e os acontecimentos advindos dela, afirma que a Segunda Guerra Mundial, em específico, tornou-se um eixo de problematização e compreensão do século XX em todos os setores da vida humana, incluindo as abundantes produções em âmbito literário e das artes visuais.2 2 Lembramos que, no início da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha ocupou a França, que passou a ser controlada pelo regime nazista. A ocupação durou de 1940 a 1944. Ao longo desse tempo, as milícias francesas, sob as ordens alemãs, prenderam todos que se opunham ao regime e entregaram judeus aos nazistas, conforme a política de segregação racial do Terceiro Reich. Paris se encontrava no centro da zona ocupada. O sul do país era, teoricamente, livre, mas servia aos interesses germânicos. Por outro lado, houve movimento de resistência à ocupação, tanto no exterior, apoiado pelo General De Gaulle, que convocou a população francesa a se mobilizar ao lado dos Aliados e a resistir ao invasor, quanto dentro da França, organizado por grupos que não aceitavam o domínio germânico e organizaram células de resistência responsáveis por ações de sabotagem. Ao término da guerra, Paris foi libertada pelas Forças Aliadas e pela Resistência Francesa.

Patrick Modiano, judeu, nascido francês em 1945, portanto no fim da Segunda Guerra Mundial, herdou a morte e o sofrimento de um povo. O acerto de contas com a história, tanto do povo judeu quanto a sua própria, materializou-se na sua vasta produção literária.

Dora Bruder não é uma história biográfica. O romance entretece histórias individuais e coletivas de todo um povo que foi perseguido e sacrificado durante a Segunda Guerra Mundial. Alguns indivíduos destacados - Dora e seus pais, o narrador e seu pai - assumem o papel simbólico de exemplos da complexidade das guerras e dos traumas que a fábula literária, a posteriori, se encarrega de indagar e testemunhar. Como já mencionamos, motivado pela descoberta fortuita do anúncio do desaparecimento de uma menina, o narrador inicia uma investigação sobre ela, reconstruindo ficcionalmente sua vida e seu itinerário fragmentado, durante a ocupação alemã em Paris até chegar a Auschwitz, em 1942, a partir de documentos oficiais e fotografias que compõem o palimpsesto ficcional do romance.

Ao se envolver com a história cheia de lacunas de Dora, o narrador reelabora sua história pessoal na relação sofrida com o pai, no contexto mais amplo de toda uma geração de vítimas do nazismo, de “pessoas que não deixam vestígios atrás de si” (MODIANO, 2014MODIANO, Patrick. Dora Bruder. Rio Janeiro: Editora Rocco, 2014. 144 p., p. 25).

A memória evocada no romance é o exercício que o narrador desenvolve, mesclando os tempos e identificando no passado um tempo que age sobre o futuro e o leva à tarefa urgente de confrontar uma história que é de Dora, mas que também é sua e precisa encontrar, pela escrita, uma forma de resgate e redenção laica. Não se trata de “curar” um trauma, de esquecê-lo; ao contrário, a literatura de Modiano é um apelo pela vida e contra o esquecimento, como também reconheceu a Academia Sueca ao outorgar a Modiano o Prêmio Nobel da Literatura em 2014: “Para a arte da memória com a qual tem evocado os destinos humanos mais inexplicáveis e descoberto o mundo da vida durante o tempo da ocupação”.3 3 The Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021. Tal é o que move o narrador a esse exercício de memória que parte da vida anônima de uma menina para alcançar a coletividade do povo judeu.

O jogo com o tempo e o espaço ao longo do romance é, enfim, a estratégia adotada para, ao mesmo tempo, deixar entrever como desliza, de uma geração para outra, o trauma do extermínio e as possibilidades de elaborar a tragédia da guerra por meio do tempo que dá forma a uma narrativa em que as experiências dolorosas se organizem e se tornem mais compreensíveis, passíveis de compartilhamento.

A representação do tempo é o grande desafio utópico que, com certa presunção, apreende cada artista. Se existem técnicas utilizadas para a representação do tempo imaginário, todas estão ligadas, mais uma vez, ao tempo: memórias, esquecimentos, múltiplas temporalidades sobrepostas, lacunas de memória, objetos empoeirados, criaturas vazias e transparentes, mortas. O tempo é representado pela morte das coisas naturais, isto é, pela própria passagem do tempo.

Em sua palestra para o Prêmio Nobel de Literatura, Patrick Modiano cita Proust, denunciando que hoje uma hipotética busca do tempo perdido “não pode mais ser feita com a força e a franqueza de Marcel Proust”.4 4 The Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021. Para Modiano, a sociedade que Proust descreveu ainda era uma sociedade estável, mesmo que na encruzilhada de grandes mudanças políticas, culturais e intelectuais. “A memória de Proust dá vida ao passado nos mínimos detalhes, como uma pintura viva. Tenho a impressão de que a memória hoje é muito menos segura de si mesma e deve lutar constantemente contra a amnésia e o esquecimento”.5 5 The Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021. Sem dúvida, a luta contra a amnésia e o esquecimento, ou melhor dizendo, a ressurreição da memória, responde à capacidade da arte de salvar memórias coletivas e de testemunhos silenciosos de sujeitos sem voz. Nesse sentido, Modiano caminha para o mesmo objetivo que a estética proustiana: salvar, resgatar o sujeito dessas memórias escondidas, desses traumas, ressentimentos e decepções que a história oficial tem assumido a tarefa de explorar, às vezes tragicamente, e censurar.

Patrick Modiano é o herdeiro de um longo caminho, percorrido por letras francesas até a grande obra proustiana. É uma tradição que erigiu um enorme monumento à memória: de Madame de Sévigné (1626-1696) ao Cardeal de Retz (1613-1679) e ao Duque de Saint-Simon (1675-1755), a linha memorialista francesa participou da recuperação do sentido vital e, por vezes, trágico da memória. O eco de Proust na obra de Modiano, declarado, mais uma vez, no discurso do Nobel, é uma verdadeira afirmação poética. Modiano conclui sua leitura reconhecendo a impossibilidade de o artista atingir a totalidade da memória, uma reconstrução satisfatória do passado. Pelo contrário, afirma Modiano, “só conseguimos captar fragmentos do passado, rastros interrompidos, destinos humanos fugazes e quase elusivos,6 6 The Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021. dominados e sobrecarregados por um esquecimento gigantesco que cobre coisas, seres e memórias. Mesmo nessa impotência, eis para Modiano a extraordinária vocação de romancista, de artista, poder-se-ia acrescentar, em face da catástrofe do esquecimento (“esta grande página em branco do esquecimento”):7 7 The Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021. “fazer ressurgir algumas palavras a meio apagados, como aqueles icebergs perdidos que flutuam na superfície do oceano”.8 8 The Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021. Essa sensível afirmação, que não pode renunciar à esperança do caráter redentor da escrita e da arte, aproxima-se da intenção quase programática de Proust (1990PROUST, Marcel. Le Temps retrouvé. Paris: Gallimard, 1990. 447 p., p. 412) que jamais deixaria de descrever os homens, “se pelo menos me restasse tempo para realizar meu trabalho, não deixaria de marcá-lo com o selo deste Tempo, cuja ideia me foi imposta com tanta força hoje”.9 9 The Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021. A obra de Proust e a escrita de Modiano situam-se em um tempo infinito, prolongado, paradoxalmente, por esquecimentos e distrações. Porém, se Proust redescobre o tempo e a memória, Modiano questiona e segue apenas rastros do passado. Esse trabalho do artista, que parte em busca de vestígios perdidos, foi apropriadamente denominado “processo investigativo” (CAMPOS, 2008CAMPOS, Laura Barbosa. Itinerários identitários em Voyage de noces e Dora Bruder, de Patrick Modiano. 2008. Dissertação (Mestrado em Literaturas Francófonas) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, 2008., p. 48). Para tanto, as pistas que Modiano utiliza em sua escrita podem ser consideradas restos, vestígios, e só um olhar aguçado e curioso poderá contemplá-los e catalogá-los. Todo o excesso de material que pode ser descartado, como catálogos telefônicos, páginas e pedaços de jornal, e sobretudo um conjunto de fotografias antigas, como um álbum particular, desvendado para o mundo, resulta fundamental na obra de Modiano. Os objetos, descrições e reflexões que dominam o estilo magmático e desconcertante dominavam as páginas de Proust. Aqui temos, ao contrário, um acúmulo discricional e ainda lacunar de objetos, descrições e reflexões que Modiano elege como continuação ideal e fragmentária da obra proustiana. Por meio dessa poética do detalhe, Modiano constrói uma verdadeira “mitologia das origens” (CAMPOS, 2008CAMPOS, Laura Barbosa. Itinerários identitários em Voyage de noces e Dora Bruder, de Patrick Modiano. 2008. Dissertação (Mestrado em Literaturas Francófonas) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, 2008., p. 48), capaz de reter a memória e devolver à História uma história silenciosa.

Sob a capa espessa da amnésia: a ausência em Dora Bruder

Bergson (2011BERGSON, Henri. Matéria de memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 304 p.) considera a memória um fenômeno idêntico à duração temporal. Deleuze (1966DELEUZE, Gilles. Le Bergsonisme. Paris: PUF, 1966. 144 p., p. 59-61) resume: “A memória é apresentada ali como meio de preservar e acumular o passado no presente. Verdade seja dita, a duração é essencialmente uma continuação do que não está mais no que é. A memória os conecta uns aos outros”10 10 No original: “La mémoire y est présentée comme un moyen de conservation et d’accumulation du passé dans le présent. À vrai dire, la durée est essentiellement une continuation de ce qui n’est plus dans ce qui est. La mémoire les relie l’un à l’autre”. . Na passagem do presente, o que fica é a marca efêmera dessa lacuna entre o passado e o presente que está desaparecendo. Essa lacuna, que é a tentativa de apreender o elusivo, é apenas a articulação do tempo no espaço-tempo. O que acontece se a impressão for feita de marcas de esquecimento, de lacunas ou de uma escolha de não memória? A impressão, então, opera sobre uma “impressão de ausência”, como diz Pierre Fédida (2005FÉDIDA, Pierre. L'absence. Paris: Gallimard, 2005. 528 p., p. 369), “como ambiente sugerido pelo jogo ambíguo de imagens, cujo signo sempre remete a um lugar onde não há nada a ver”.11 11 No original: “comme d’un environnement suggéré par le jeu ambigu des images dont le signe renvoie toujours à un lieu où il n’y a rien à voir”.

A data do desaparecimento da menina localiza o fato na Paris ocupada pelos nazistas, o que determina toda a sucessão de eventos narrados. O narrador começa a investigar a curta vida de Dora e descobre que se tratava de uma menina judia, cujo pai era austríaco e a mãe era húngara. Vinham, portanto, do extinto Império Austro-húngaro e viviam uma vida miserável em Paris. Ao longo da narrativa, o narrador evoca memórias pessoais e registros históricos que o levam - e também ao leitor - a idas e vindas no tempo, sempre aproximando a “reconstruída” trajetória de Dora com a sua própria vida e história, marcada pela relação tensa com o pai, por sua vez influenciada por fatos históricos traumáticos - a ocupação alemã na França durante a Segunda Guerra Mundial.

Mesmo tratando de tema tão potencialmente dramático, o narrador evita carregar nos detalhes, sobretudo nos horrores da perseguição e do extermínio de judeus, o que resulta na construção de um texto em que o leitor vai encontrar muitas informações impessoais, extraídas de documentos oficiais. De todas as semelhanças que ele traz à tona entre Dora e ele próprio, a origem judaica é a mais relevante, embora estejam distantes no tempo, o que torna ser judeu na década de 1940, na França, uma experiência muito diferente de ser judeu nascido em 1945, também na França - que é o caso do narrador. A diferença desses tempos coloca uma reflexão sobre o lugar da história em que cada personagem está inserido e o fio que os liga: o narrador avança de forma obsessiva na tarefa investigativa como se não tivesse outra opção - ele investiga porque só assim sua própria história fará sentido.

Confrontado com o desaparecimento de Dora, o narrador faz, ao longo de todo o texto, um exercício de ativação da memória, de imaginação, de pesquisa e, principalmente, de empatia. O anúncio desse desaparecimento funciona na narrativa como a tomada de consciência de um mal-estar que até então o narrador experimenta sem conseguir nomear.

O estilo de escrita de Modiano é mínimo, sóbrio e melancólico. O leitor é surpreendido o tempo todo com as descobertas que o narrador faz, numa temporalidade “atrapalhada”, em que nada é explicado sobre as informações encontradas, nem sobre os tropeços do trabalho investigativo. A passagem de um tempo para outro é uma constante e se revela como a engrenagem necessária para contar a história das duas personagens que são a razão de ser do livro: Dora e a própria biografia, entre ficção e documento, mais central até do que a personagem que dá título ao livro. A todo momento, o leitor se depara com datas, mas sem que sejam apresentadas em ordem cronológica. Da década de 1990, o leitor acompanha o narrador num retorno temporal até a última década do século XIX, para então focar nas décadas de 1910 e 1920, quando nasceram os componentes da família Bruder. Em seguida, voltamos com o narrador às décadas finais do século XX, quando ele encontra o anúncio do desaparecimento de Dora - fato desencadeador da sua memória. Novamente nos encontramos na década de 1940, quando desaparecem todos os membros da família Bruder, mas também quando o narrador nasce na mesma cidade em que Dora nasceu, viveu e encontrou seu fim tão prematuro. O “fim” de Dora é exemplo da barbárie causada pelo delírio xenófobo que resultou num genocídio coletivo que a História se responsabilizou de registrar.

Esse bloco de desconhecimento e silêncio

Ao tom biográfico da personagem de Dora, acompanha a presença de uma conspícua matéria autobiográfica, uma vez que o foco narrativo em primeira pessoa traz para o centro da trama um narrador impreciso, tão fugidio quanto Dora.

Com o avançar das páginas, porém, a narrativa envolvente desfaz as fronteiras entre ficção e realidade, e o leitor se vê diante de um narrador que mistura gêneros com a mesma desenvoltura com que mescla realidade e ficção e com que mostra e esconde o objeto de sua investigação - é Dora que ele busca para, ao encontrá-la, também se encontrar. Até o fim, o que ele reúne sobre Dora e até sobre si mesmo são fragmentos, traços, lacunas, os quais reforçam uma condição permanente de desconhecimento e silêncio e até de frustração.

O cruzamento da história de Dora com a do narrador acaba por revelar que este carrega o fardo característico da segunda geração de sobreviventes do extermínio, herdeiro dos efeitos de longo prazo dos que foram vítimas da tragédia e se apoiam na memória para superar o trauma da perda da família, do lar e do sentimento de pertença e de segurança que desliza de uma geração para outra (HIRSH, 2008HIRSH, Marianne. The Generation of Postmemory. Poetics Today, v. 29, n. 1, p. 103-128, 2008.).

Assim, o narrador vai em busca das pegadas de Dora, reconhecendo na trajetória da menina um passado que também é seu. Enquanto investiga, elabora uma história; ao concluir a busca, é preciso escrever “essa” história. É um trabalho lento, que avança e para no mesmo ritmo em que surgem e desaparecem os vestígios de Dora. Trata-se de algo imprevisível. Mesmo assim, é um trabalho que, de alguma forma, se conclui. Veena Das (1999DAS, Veena. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. New Deli: Oxford University Press, 1999. 240 p.) chama a esse processo de “trabalho do tempo”, em que as experiências dolorosas se organizam narrativamente e tornam a experiência violenta mais compreensível, porque dizível, passível de compartilhamento. Não é um processo rápido, exige distanciamento temporal, pois, eventos violentos raramente são interpretados e reelaborados no calor dos acontecimentos.

Se “a memória parte do presente, de um presente ávido pelo passado” (BOSI, 2003BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: Ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. 219 p., p. 19-20), parece indispensável pensar na proposta de Walter Benjamin (1997BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997., p. 239): “A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio”.

Modiano convida-nos a acompanhá-lo na busca profunda e exigente da literatura: a redenção por meio da escrita. Não se trata de ingenuidade estética, nem que a literatura tenha a capacidade de resolver os problemas humanos, mas é certo que dá oportunidade de reelaboração de traumas,12 12 CARUTH, Cathy. Unclaimed Experience: Trauma, Narrative and History. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996. HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble. Durham, North Carolina: Duke University Press, 2016. LEYS, Ruth. Trauma: A Genealogy. Chicago: University of Chicago Press, 2000. WHITEHEAD, Anne. Trauma Fiction. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004. num trabalho que envolve a linguagem.

É o anúncio do desaparecimento da menina judia que permite que o narrador reaja e ative sua memória. A partir da investigação que localiza documentos oficiais, fontes primárias das informações objetivas, e dos fragmentos achados, compõe um relato frio, plano, que se limita a informar um dado por meio de data e local. Nada além de uma aparente “letra morta”, telegráfica. Mais lacunas que dados. Para além da frieza e das inquietudes enigmáticas dadas pela documentação alcançada, as reflexões do narrador são cheias de hipóteses, de perguntas imaginativas, de possibilidades reconstrutoras. Lembrando Santo Agostinho, poderíamos dizer que a memória opera com e na liberdade de cada sujeito, de cada eu.

Entre os documentos oficiais encontrados, há um conjunto pequeno de fotografias: o narrador apresenta, então, Ernesto e Cecília Bruder, além da própria Dora. Colocadas junto com documentos obtidos na Chefatura de Polícia, essas fotografias assumem a forma de prova “alternativa”, de caráter precário, que, por si só, não merece credibilidade por parte daqueles que os perseguiram. É uma prova excessivamente efêmera. A estrela de Davi é o que interessa. Ao leitor não é possível ver essas fotografias. Mas aqui, na lida com a memória e a história, assumem importância suprema. Na senda de Roland Barthes (1984BARTHES, Roland. A câmara clara. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 114), essas duas situações em que se inscrevem as fotos de Dora e seus pais são as duas vozes da imagem fotográfica: “a da banalidade (dizer o que todo mundo vê e sabe) e a da singularidade (salvar essa banalidade de todo o ardor de uma emoção que pertencia só a mim)”. O narrador, tal como o leitor, entende a segunda voz das fotografias de Dora.

Em Dora Bruder, o tempo é “assombrado”. A marca registrada pelo tempo é apenas um espectro, um fantasma do passado. E o tempo também é um espectro, porque foi ele mesmo que criou a marca. Mesmo assim, é uma impressão produtiva de material estético. O que resta é, em última instância, a obra de arte, a pesquisa existencial e autobiográfica, a escrita que luta pela sobrevivência em um espaço feito de buracos negros e resíduos. E, por fim, a imagem fotográfica que se imprime, vestígio de uma possível verdade sobre o passado, inscreve-se no silêncio da descrição: “uma imagem é, ontologicamente, aquilo que não se pode (nada) dizer” (BARTHES, 2003BARTHES, Roland. Proust et la photographie. In: BARTHES, Roland. La préparation du roman I et II. Cours et séminaires au Collège de France (1978-1979 et 1979-1980). Paris: Seuil-Imec, 2003. p. 326-336., p. 391). Sobre essa impossibilidade de dizer algo, que Barthes destacou, Modiano toca profundamente a questão proustiana da memória fotográfica. A paixão de Proust pela fotografia é um fascínio e, ao mesmo tempo, uma “embriaguez”. Intoxicado de quê?, pergunta-se Roland Barthes (2003, p. 392): “Do acúmulo desses rostos, dessas figuras, dessas roupas; um sentimento de amor por alguns; de saudade (viveram, morreram todos)”. A fotografia descrita em Dora Bruder também é um acúmulo de nostalgia e morte. Modiano compartilha esse acúmulo de vestígios como uma embriaguez de vestígios do passado e uma ausência de presente.

Fotos como têm todas as famílias

É na fotografia que Modiano reconhece o meio poiético capaz de funcionar como pilar da escrita e da memória. A fotografia nunca mais volta como presença; pelo contrário, revela a ausência, o desaparecimento. Ela é apenas um vestígio de morte. A imagem é o que resta, diz François Soulages (1998SOULAGES, François. Esthétique de la photographie. La perte et le reste. Paris: Nathan, 1998. 334 p.). E, parodiando o título da exposição do Centre Pompidou, em 1985, a fotografia nada mais é do que “a arte de acomodar restos”, de acomodar vestígios. São estes últimos que permitiriam, portanto, a “fotograficidade”, segundo a bela expressão de Soulages (1998SOULAGES, François. Esthétique de la photographie. La perte et le reste. Paris: Nathan, 1998. 334 p.). É sobre o que é “fotograficidade” em fotografia. “Fotograficidade é, portanto, essa articulação surpreendente do irreversível e do inacabado” (SOULAGES, 1998SOULAGES, François. Esthétique de la photographie. La perte et le reste. Paris: Nathan, 1998. 334 p., p. 115).13 13 No original: “La photographicité est donc cette articulation étonnante de l’irréversible et de l’inachevable”. O que a fotografia designa não é traço, resto, quase nada. Mesmo que a fotografia nasça dos restos de algo, Modiano sabe que seus objetos (ou assuntos) fotografados agora estão perdidos. O tempo não os traz mais de volta à vida, ao presente. É uma perda irreparável e irreversível. Modiano oferece suas páginas a uma estética da lacuna e do apagamento visual. Parece-nos estar diante de uma forma completamente nova de pensar sobre a escrita, de pensar sobre as imagens. As imagens são sempre formas da linha, traços do que já foi desenhado. No sentido que Soulages dá em sua obra principal, essa estética é, em Modiano, uma busca pelo inacabado e pelo lacunar. O traço que Modiano persegue incansavelmente em Dora Bruder e os labirintos mnemônicos que se abrem e descarrilam parecem revelar que a imagem é apenas um vestígio apagado, ou uma “impressão”,14 14 Traduzimos assim o termo “empreinte”, utilizado por Georges Didi-Huberman, no fim de nossas páginas. Ver: DIDI-HUBERMAN, 1997, p. 15-192. segundo o título sugestivo da exposição dirigida por Georges Didi-Huberman e Didier Semin no Centre Georges Pompidou, em Paris, em 1997.

Tal “impressão” é apenas uma exploração de todos os fios inacabados e enigmáticos que produzem a imagem. Como se a própria imagem se depreendesse de seu próprio apagamento. Modiano não se interessa pela antropologia ou pela arqueologia da imagem e sua marca. As fotografias que descreve em seus textos nunca são mostradas, representadas, publicadas, como nos romances de W. G. Sebald. A imagem de Modiano ainda não está completa, ainda não é “trabalho”. Mesmo em sua página detalhada, quase uma écfrase repleta de objetos e discussões, às vezes, aparentemente insignificantes ou indignos da marcação historiográfica, o trabalho proposto por Modiano é obediente aos traços e aos detalhes, no sentido de sua “lacunaridade”. O “devir” da obra de Modiano provém justamente dos apagamentos visuais que o leitor é obrigado a aceitar. Assim, Dora Bruder é um documento ficcional formado apenas por meio de impressões, vestígios, ausências, lacunas, desaparecimentos visuais (não apenas humanos). Os desaparecimentos ou apagamentos são misteriosos, como pistas de um crime para o qual procuramos desesperadamente o culpado. O apagamento de indícios forma a imagem e permite que a esta seja “semelhança”, proximidade com a realidade e com o passado. Tal como acontece com a Verônica evangélica e o Sudário, a estética do apagamento problematiza a relação com o passado porque se trata não de um cancelamento, mas de um retorno arqueológico à realidade, a um gesto incompleto, impossível a ser “reoferecido” em sua integralidade, em uma, gostaríamos de dizer, “não obra” por excelência. Retomaremos esse conceito ao final destas páginas.

Ora, a impossibilidade de ver as fotografias em Dora Bruder implica alguns importantes questionamentos. O primeiro é de ordem temporal. Para Modiano, o tempo é a memória: impuro, sem organização em sequência, fragmentado, sem respeitar ordem. Como o tempo, a memória é um recurso que se ativa por meio da ferramenta da fotografia.

As fotografias de Dora e de sua família chegam às mãos do narrador, que as transforma em imagens-texto e não as inclui no livro. A decisão de não as incluir é mais um sintoma da indefinição e da ambiguidade intencionais de que o romance está impregnado. A ausência das imagens, substituídas pelo recurso da écfrase, coroa o desconhecimento e o silêncio. No afã de lidar com a frustração de não lhe ser dado o direito de ver Dora, o leitor lê a descrição que dela faz o narrador e envereda pelo caminho da imaginação, com a liberdade que ela traz. O narrador cumpre, então, seu propósito de levar o leitor a experimentar o vazio da amnésia. Parece-nos interessante citar, em seguida, um conjunto de trechos em que Modiano oferece uma écfrase das fotografias em Dora Bruder. A écfrase nessas páginas não reenvia a uma série de registros fotográficos que o leitor pode observar e julgar. Ao contrário, a écfrase substitui a fotografia. À diferença da sua própria natureza, a écfrase é aqui apagamento visual.

Algumas fotos dessa época. A mais antiga, do dia do casamento. Estão sentados, e se apoiam num consolo. Ela está envolta num grande véu branco, que parece prender no lado direito do seu rosto, e que se arrasta até o chão. Ele está de casaca, e usa uma gravata-borboleta branca.

Uma foto com a filha Dora. Estão sentados, Dora de pé no meio: ela só tem uns 2 anos.

Uma foto de Dora, feita com certeza por ocasião de uma distribuição de prêmios. Ela tem em torno de 12 anos, está de vestido e meias soquetes brancas. Tem um livro na mão direita. Seus cabelos estão presos num delicado arco, com pequenas flores brancas. Sua mão esquerda está pousada em cima de um grande cubo branco, enfeitado de barras pretas, com motivos geométricos, que deve lá estar como objeto de decoração.

Outra foto tomada no mesmo lugar, na mesma época, e talvez no mesmo dia: é possível ver os quadrados feitos pelo sol no chão, e o grande cubo branco enfeitado com motivos geométricos pretos, em cima do qual se senta Cecília Bruder. Dora está de pé à esquerda, com vestido de gola, o braço esquerdo dobrado à frente, de forma a conseguir colocar a mão no ombro da mãe.

Mais uma foto de Dora e de sua mãe: Dora tem em torno de 12 anos, os cabelos mais curtos que na foto anterior. Elas estão de pé diante do que parece ser uma parede, mas que deve ser o painel do fotógrafo. Ambas de vestido preto, com gola branca. Dora está um pouco à frente de sua mãe, à sua direita.

Uma foto de forma oval na qual Dora está um pouco mais velha - 13, 14 anos, os cabelos mais compridos -, e os três formam fila indiana, com o rosto virado para a objetiva: agora Dora e sua mãe, as duas com um chemise branco, e Ernesto Bruder, de terno e gravata.

Uma foto de Cecília Bruder diante do parece ser um pavilhão de subúrbio. Em primeiro plano, à esquerda, grande quantidade de hera cobre o muro. Ela está sentada na beirada de três degraus de cimento, e usa um vestido leve, de verão. No fundo, a silhueta de uma criança de costas, pernas e braços nus, com um suéter preto, de tricô, ou um maiô. (MODIANO, 2014MODIANO, Patrick. Dora Bruder. Rio Janeiro: Editora Rocco, 2014. 144 p., p. 28-30).

Em quase todas a fotos, o narrador destaca um detalhe na cor branca: um véu, uma gravata-borboleta, meias soquetes, pequenas flores, cubo, blusa de gola, chemise. No outro polo, destaca alguns poucos objetos pretos: vestido, suéter, maiô. À época, embora já existisse a possibilidade de fazer fotos coloridas, as fotografias eram feitas, predominantemente, em preto e branco, técnica capaz de materializar uma abstração impressionante na imagem. Mesmo depois da popularização da fotografia colorida, a fotografia em preto e branco manteve sua importância graças à sua dramaticidade e tragicidade e à capacidade do claro-escuro de aumentar a expressividade, o que a torna sempre uma opção de registro carregada de sentidos.

A temporalidade em uma foto, diferentemente numa série de imagens, é um corte no tempo, é sincrônica. Ainda assim, estão presentes níveis temporais diversos, entrevistos pelas pistas que dão os objetos, o claro e o escuro (MAUAD, 2008MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes: Ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Editora da UFF, 2008. 261 p.): o véu do casamento, Dora aos dois anos de idade, aos nove, aos 10 e mais velha, aos 14 anos... os cabelos de Dora mais curtos, mais compridos, os quadrados feitos pelo sol no chão, vestido leve de verão, criança de maiô, coisas que não se podem ver porque já está escuro.

O narrador escolhe não nos mostrar as fotografias e se limita a ocultá-las. Nesse processo de ocultamento e apagamento do visível e da fotografia, inscreve-se, definitivamente, o ponto-chave da obra de Modiano: a “capa espessa da amnésia”, como o próprio autor a denomina, fica evidente na ausência das imagens e nos apagamentos promovidos nos nomes de ruas e números de edifícios da cidade de Paris ocupada que atende as ordens nazistas na perseguição aos judeus: “Foi tudo aniquilado, para que se construísse uma espécie de cidade suíça, da qual não se pudesse colocar em dúvida sua neutralidade. [...] E os números dos edifícios e os nomes das ruas não correspondem mais a coisa alguma” (MODIANO, 2014MODIANO, Patrick. Dora Bruder. Rio Janeiro: Editora Rocco, 2014. 144 p., p. 130).

Na busca de apagar vestígios da tragédia, queimando arquivos das delegacias de polícia, reconstruindo prédios e redefinindo o traçado das ruas, o narrador se insurge contra a História, partindo de personagens fugazes, tal como os Bruder e ele próprio.

Para conduzir o leitor a essa tomada de consciência, o autor o submete a uma espécie de trauma ao negar-lhe as imagens de Dora e de seus pais, forçando-o a experimentar a sensação da eliminação, do apagamento, do silenciamento e da morte da memória social de um povo. Em troca, demonstra como a memória é o meio fundamental com que se pode interrogar o passado para permitir, narrativamente, a reelaboração de experiências dolorosas tornadas mais compreensíveis porque dizíveis.

Iconoclastia de Dora Bruder: reflexões conclusivas

Dora Bruder, escrevíamos antes, é um romance “não romance”, uma obra “não obra”. Consiste em documentos e fotos, além da busca pelas impressões digitais de Dora e sua família; um dossiê-romance, quase uma paródia da história de detetive, que determina o réquiem real, o ir além e a impossibilidade de se tornar um romance policial tradicional, dado que a verdade - qualquer verdade - é interpretável e está longe de ser descoberta. Porém, se a presença dos documentos escritos for, por assim dizer, legível, as fotografias não são visualizadas. Sem reproduções, escolhendo o apagamento visual, as imagens são escritas e transcritas. A operação de transcrição questiona a visibilidade e também a legibilidade de uma fotografia e, em geral, da imagem. Modiano parece ir contracorrente: no apagamento visual, propõe, em vez de ver, ler e contar uma foto. Ao longo do romance, o narrador apresenta a écfrase das imagens encontradas e selecionadas, incluindo fotos da família de Dora e seus retratos. Sua descrição ocupa um capítulo separado. Por que não se entregar à reprodução de uma imagem fotográfica? É imperativo descrever a imagem? Voltamos à questão da impressão, do traço, da natureza da imagem. A imagem fotográfica é apenas uma impressão. Está em algum lugar nos arquivos e não tivemos a experiência de vê-lo. O próprio olhar cega o leitor e o observador. Mas a foto está aí, ela nos foi transmitida pelo tempo e por muito tempo; sua duração nos surpreende, porque não poderíamos pensar que pudesse ser tão cheia de significado. Tudo é descoberto por causa de sua extraordinária “sobrevivência”, conforme a célebre expressão de Aby Warburg. A imagem sobrevive porque seu destino é variável, não se esquematiza com um valor e interpretação inequívocos. Ela se impõe ao olhar e à memória, mas é bem possível que o Tempo modifique sua forma de ser, pois “a força considerável desse efeito de sobrevivência [...] é um trabalho de memória realizado constantemente pelo artista em cada momento de sua decisão formal, em cada frase de sua invenção processual” (DIDI-HUBERMAN, 1997DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance par contact. Archéologie, anachronisme et modernité de l’empreinte. In: DIDI-HUBERMAN, Georges (dir.).L’Empreinte. Paris: Centre Georges Pompidou, 1997. p. 15-192., p. 15-192).

Dora Bruder é uma obra que poderíamos dizer “iconoclasta”. Contudo, sua iconoclastia não tem nada a ver com uma resposta agressiva ou altamente ideológica, mas consiste justamente no uso da impressão contra o pó, na reflexão sobre o tempo contra o aniquilamento de pessoas, objetos e memórias. Na caducidade e na finitude de cada ser caído no esquecimento, as obras de Modiano reencontram o tempo sob o eterno paradoxo da arte. As formas e as imagens ressurgem: as letras são imagens; um capítulo é um arquivo de fotos; a busca do tempo coincide com a busca de si mesmo. Dora Bruder é uma construção narrativa a partir do apagamento, da ausência. Nas obras de Modiano, as personagens estão previamente mortas: é o caso de Dora, de Raphaël Schlemilovitch (de La Place de l'Etoile), de Guy Roland (de Rue des Boutiques obscures). A ausência “nos obriga a pensar na destruição com seu remanescente, a renunciar às purezas do nada” (DIDI-HUBERMAN, 2001DIDI-HUBERMAN, Georges. Génie du non-lieu: Air, poussière, empreinte, hantise. Paris: Editions de Minuit, 2001., p. 55).15 15 No original: “nous oblige à penser la destruction avec son reste, à renoncer aux puretés du néant”. A impressão não é oferecida ao Nada: “Ela pede para ser pensada para além de toda metafísica, de toda absolutização da ausência” (DIDI-HUBERMAN, 2001DIDI-HUBERMAN, Georges. Génie du non-lieu: Air, poussière, empreinte, hantise. Paris: Editions de Minuit, 2001., p. 55).16 16 No original: “Elle demande à être pensée par-delà toute métaphysique, toute absolutisation de l’absence”. A impressão é a resistência e o pigmento que permite a formação da imagem da obra de arte. Portanto, os rastros, as marcas, são materiais imprecisos que constroem a materialidade da obra de arte, ou seja, algo de extrema fragilidade, que qualquer sopro de tempo poderia destruir e aniquilar. Essa materialidade não pode ser confundida com materialismo a-espiritual. Pelo contrário, a impressão, como elemento essencial da matéria, evolui. De certa forma, sua evolução é uma obra de arte. Essa é uma metamorfose de evolução porque coisas, pessoas, memórias, arquivos, documentos, fotografias, tudo sobrevive, perdura, persiste no tempo. Assim, Dora Bruder é um exemplo de uma sobrevivência (mais uma vez, como propõe Warburg) estranha, no tempo. No fundo, ninguém pode resistir ao fluxo do tempo, exceto personagens de ficção, como Dora Bruder, ou imagens e obras de arte. Trata-se, então, de uma sobrevivência melancólica, em que a sombra da História, que Modiano se propôs a buscar, é apenas uma questão que questiona as sombras.

O tempo opera, então, de forma misteriosa, sobre a memória das coisas e das pessoas, sobre o aparecimento de memórias e arquivos, sobre a matéria, sobre o desaparecimento de seres e coisas, sobre o luto e sobre o desejo “demasiado humano”.

Em Modiano, o testemunho dado pelas imagens apagadas não assume, naturalmente, nenhuma virtude romântica, nem tem o poder de reconfigurar o tempo perdido. Trata-se de uma narração que está em construção e tem consciência de colidir com sua impossibilidade. Modiano parece indicar que o tempo só pode se encontrar na escrita. Contudo, e por sua vez, a escrita só se constitui como morte e desaparecimento, traço e impressão de uma purificação incerta, de uma estranha forma de catarse, uma escrita em que a falta de fotos e o apagamento de imagens se tornam a trágica ilusão da História.

Referências

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  • WHITEHEAD, Anne. Trauma Fiction Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004. 192 p.
  • 1
    No original: “Littérature et photographie, épreuve du commencement du temps qui, après ce sentiment d’absurdité, de non-sens et non-temps, se vit comme interprétation des traces posées dans l’espace photographique et dans l’espace scripturaire".
  • 2
    Lembramos que, no início da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha ocupou a França, que passou a ser controlada pelo regime nazista. A ocupação durou de 1940 a 1944. Ao longo desse tempo, as milícias francesas, sob as ordens alemãs, prenderam todos que se opunham ao regime e entregaram judeus aos nazistas, conforme a política de segregação racial do Terceiro Reich. Paris se encontrava no centro da zona ocupada. O sul do país era, teoricamente, livre, mas servia aos interesses germânicos. Por outro lado, houve movimento de resistência à ocupação, tanto no exterior, apoiado pelo General De Gaulle, que convocou a população francesa a se mobilizar ao lado dos Aliados e a resistir ao invasor, quanto dentro da França, organizado por grupos que não aceitavam o domínio germânico e organizaram células de resistência responsáveis por ações de sabotagem. Ao término da guerra, Paris foi libertada pelas Forças Aliadas e pela Resistência Francesa.
  • 3
    The Nobel PrizeThe Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/ . Acesso em: 10 maio 2021.
    https://www.nobelprize.org/prizes/litera...
    . MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021.
  • 4
    The Nobel PrizeThe Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/ . Acesso em: 10 maio 2021.
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    . MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021.
  • 5
    The Nobel PrizeThe Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/ . Acesso em: 10 maio 2021.
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  • 6
    The Nobel PrizeThe Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/ . Acesso em: 10 maio 2021.
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    . MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021.
  • 7
    The Nobel PrizeThe Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/ . Acesso em: 10 maio 2021.
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    . MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021.
  • 8
    The Nobel PrizeThe Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/ . Acesso em: 10 maio 2021.
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    . MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021.
  • 9
    The Nobel PrizeThe Nobel Prize. MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/ . Acesso em: 10 maio 2021.
    https://www.nobelprize.org/prizes/litera...
    . MLA style: The Nobel Prize in Literature 2014. 10 oct. 2022. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2014/summary/. Acesso em: 10 maio 2021.
  • 10
    No original: “La mémoire y est présentée comme un moyen de conservation et d’accumulation du passé dans le présent. À vrai dire, la durée est essentiellement une continuation de ce qui n’est plus dans ce qui est. La mémoire les relie l’un à l’autre”.
  • 11
    No original: “comme d’un environnement suggéré par le jeu ambigu des images dont le signe renvoie toujours à un lieu où il n’y a rien à voir”.
  • 12
    CARUTH, CathyCARUTH, Cathy. Unclaimed Experience: Trauma, Narrative and History. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996. 168 p.. Unclaimed Experience: Trauma, Narrative and History. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996. HARAWAY, DonnaHARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham, North Carolina: Duke University Press, 2016. 312 p.. Staying with the Trouble. Durham, North Carolina: Duke University Press, 2016. LEYS, RuthLEYS, Ruth. Trauma: A Genealogy. Chicago: University of Chicago Press, 2000. 326 p.. Trauma: A Genealogy. Chicago: University of Chicago Press, 2000. WHITEHEAD, AnneWHITEHEAD, Anne. Trauma Fiction. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004. 192 p.. Trauma Fiction. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004.
  • 13
    No original: “La photographicité est donc cette articulation étonnante de l’irréversible et de l’inachevable”.
  • 14
    Traduzimos assim o termo “empreinte”, utilizado por Georges Didi-Huberman, no fim de nossas páginas. Ver: DIDI-HUBERMAN, 1997DIDI-HUBERMAN, Georges; SEMIN, Didier. Faire une empreinte... Texte extrait du catalogue publié aux Editions du Centre Pompidou, Paris, Centre Georges Pompidou, 1997, p. 15-192., p. 15-192.
  • 15
    No original: “nous oblige à penser la destruction avec son reste, à renoncer aux puretés du néant”.
  • 16
    No original: “Elle demande à être pensée par-delà toute métaphysique, toute absolutisation de l’absence”.
  • 400
    Parecer Final dos Editores Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com