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Reabilitação de doentes neurológicos

NOTAS PRÁTICAS

Reabilitação de doentes neurológicos

João A. Caetano da Silva Júnior

Neurologista e Chefe do Serviço Médico do IAPC em São Paulo. Bolsista da International Cooperation Administration para estudar a organização de Centros de Reabilitação nos Estados Unidos da América do Norte (1957-1958)

Reabilitação, em seu sentido mais amplo e completo, tem sido definida como a restauração do máximo possível das capacidades físicas, psicológicas, sociais e econômicas em um incapacitado. Tal definição, sobre não ser completa nem perfeita, não indica as causas de incapacidade nem as características e extensão que ela assume. Restringindo mais o problema ao âmbito dos doentes portadores de seqüelas de doenças neurológicas, nem por isso se torna fácil uma definição mais adequada. O problema pode ser mais apropriadamente abordado considerando a necessidade de fazer alguma coisa em benefício de grande número de doentes que, pela incurabilidade ou irreversibilidade da lesão do sistema nervoso, têm a sua capacidade vital reduzida a um nível que pode variar desde um defeito apenas perceptível até uma incapacidade tão grande que permita apenas vida vegetativa.

Durante e após a segunda guerra mundial, a reabilitação tornou-se problema relevante e teve tal desenvolvimento que justificou a designação de terceira fase da medicina, após o diagnóstico e o tratamento. A reabilitação para o trabalho (reabilitação vocacional) já vinha sendo praticada há algumas décadas, com limitada e escassa participação dos médicos. Entretanto, nestes últimos anos tomou corpo, entre médicos, o ideal de levar avante o tratamento de casos até então considerados "incuráveis" ou em "período de estado", "crônicos" ou que outra denominação se lhes quisesse aplicar. Inúmeros processos, medidas e novas técnicas surgiram, espraiando-se logo por várias especialidades, de molde a permitir aos doentes uma vida pessoal mais agradável, adaptação familiar e social mais ampla e, em muitos casos, a recuperação para o trabalho e atividade produtiva. Como decorrência inevitável desse interêsse, todos os elementos necessários à sua consecução sofreram considerável impulso. Criou-se praticamente nova especialidade médica, a medicina física e reabilitadora (fisiatria), bastante diferente na sua extensão, maneira de agir e profundidade, da antiga e conhecida fisioterapia. Concomitantemente, o número de especialistas em profissões paramédicas - fisioterapeutas ou técnicos em fisioterapia e terapeutas ocupacionais - cresceu extraordinariamente, assim como se desenvolveram com mais objetividade as profissões correlatas de assistente social e de conselheiro vocacional no âmbito da reabilitação.

Lamentavelmente êsse impulso não teve, em nosso país, a repercussão que seria de desejar. Conquanto tenhamos já em funcionamento organizações meritórias no terreno da reabilitação, especialmente para crianças, ainda não dispomos de pessoal especializado em quantidade suficiente para as necessidades, tornando-se necessárias maior difusão e melhor coordenação dos programas existentes ou em elaboração. Idênticas ou mais graves conseqüências tem o relativo desinteresse da profissão médica pelo problema, pois só recentemente têm frutificado tentativas isoladas para incremento dos programas de reabilitação.

REABILITAÇÃO EM NEUROLOGIA

Na falta de outras, temos que nos basear nas estatísticas norte-americanas e, ainda que as oficiais e mais recentes não mencionem explicitamente as doenças neurológicas por utilizarem um sistema misto de classificação - etiológico e sindrômico - é indiscutível que os casos decorrentes de lesão primária ou secundária do sistema nervoso central ou periférico constituem a maioria da população dos centros de reabilitação existentes nesse país, sendo também os de resolução mais difícil. Embora os problemas da reabilitação devam ser sempre encarados sob um aspecto geral, por motivos de delimitação do assunto e pelo propósito de serem dirigidos aos especialistas, os comentários que se seguem serão limitados ao âmbito dos doentes portadores de seqüelas neurológicas.

Para abordar com critério o problema da reabilitação de doentes neurológicos torna-se necessário limitar a ação de um programa aos casos que realmente dela necessitem. Por óbvio que isso pareça, não é tarefa fácil conceituar exatamente um programa de reabilitação dentro de um programa de tratamento, quando ambos se iniciam simultânea e identicamente com a prescrição médica. A boa prescrição determina medidas iniciais que são o ponto de partida do programa de reabilitação. As medidas de proteção contra as úlceras de decúbito, contra as infecções urinárias, para impedir contraturas, que ocasionam deformidades, etc, são medidas preliminares obrigatórias desde a primeira hora e se incluem no programa de reabilitação. Os casos que exigirão medidas complementares em maior ou menor escala serão todos aqueles que, após o tratamento da fase aguda, deixarem seqüelas de qualquer natureza.

Sem o propósito de fazer uma classificação das doenças que levam com mais freqüência um doente neurológico a necessitar de um programa de reabilitação, podem ser destacadas as seguintes eventualidades: acidentes vasculares cerebrais causadores de diversas manifestações, predominando as hemiplegias e hemiparesias, com ou sem perturbação da linguagem; tumores cerebrais; parkinsonismo pós-encefalítico; epilepsia; doenças degenerativas do encéfalo; paralisia cerebral espástica infantil; mielopatias traumáticas causando quadri ou paraplegias; neuropatías múltiplas ou localizadas de variada natureza; mielites e poliomielites; mielopatias degenerativas; distrofias musculares progressivas; doenças congênitas e hereditárias do sistema nervoso.

Como pode ser visto, praticamente toda neuropatologia que não permite cura rápida e total leva o doente a necessitar obrigatoriamente de um programa de reabilitação mais ou menos extenso.

Objetivo - Importante em qualquer programa de reabilitação é o objetivo a alcançar. Não é absolutamente satisfatória para o doente nem para sua família e, até certo ponto, constitui uma frustração para o médico, a chamada alta de um tratamento instituído na fase aguda sem ter sido atingido o máximo de possibilidades que um programa de reabilitação pode proporcionar em seu aspecto médico, social, econômico e psicológico. Igualmente imperdoável parece ser a atitude passiva de impotência ante uma seqüela de remissão lenta e prolongada, acompanhada ou não de uma pouco consoladora advertência de que o paciente "melhorará aos poucos", "com o tempo", ou da recomendação de "fazer um pouco de exercício diariamente", ou, para a família, de "forçar os movimentos para apressar a volta dos mesmos". A existência de meios de ação ao alcance do médico em face de tais casos e a sua não aplicabilidade talvez justifique a classificação de negligente para essa atitude. Talvez pareça a muitos médicos não ser de sua responsabilidade direta cuidar das conseqüências cronifiçadas; entretanto o abandono do paciente em tais condições permitirá a desagradável conclusão de que o tratamento não foi terminado, sendo incompleto e inadequado, quando não insuficiente ou falho.

É responsabilidade do médico, direta ou indireta, possibilitar aos doentes, sempre que possível, um mínimo de independência doméstica, permitindo-lhes a execução de cuidados de higiene pessoal, barbear-se, vestir-se e despir-se, alimentar-se, levantar-se e deitar-se na cama, saber utilizar urna bengala, colocar um aparelho ortopédico, passar para uma cadeira de rodas, satisfazer sem auxílio as necessidades pessoais. Existem catalogadas talvez uma centena de pequenas atividades que podem ser desempenhadas por um doente portador de seqüela neurológica, sem auxilio, com pouco ou maior auxílio, numa variação difícil de definir e dependente da incapacidade. O valor que uma recuperação ainda que parcial representa para a personalidade do doente, para a sua reintegração familiar e social, para o ambiente doméstico, inclusive para as suas possibilidades econômicas, só pode ser devidamente avaliado com os resultados conseguidos após um bem orientado programa de reabilitação.

Esse objetivo, que precisa ser alcançado, tem que decorrer da iniciativa do médico. Por menor que seja a melhora ou o resultado que o programa obtenha, só depois de instituído e devidamente aplicado tem o médico o direito de dizer ao doente, à família ou a si próprio que todas as possibilidades ao alcance da sua profissão se esgotaram. Não é suficiente instituir medidas fisioterápicas ou treinar movimentos em um doente que não foi devidamente reensinado a desempenhar pequenos atos de todo o dia e que são geralmente fáceis de reaprender.

Sem entrar no terreno da reabilitação vocacional, que positivamente não pertence, como responsabilidade imediata, ao profissional da medicina, há amplas possibilidades, ainda pouco exploradas, de ir além do que é comumente prescrito aos pacientes. Essa atitude se reflete particularmente no trabalho do pessoal para-médico e, especialmente, faz com que se inverta totalmente o papel da enfermagem que, no caso de reabilitação, será paradoxalmente tanto melhor quanto menos fizer pelo doente no sentido de estimulá-lo a fazer o que puder por si, de ensiná-lo a cuidar-se e a desempenhar os atos da vida diária por sua própria iniciativa e de acordo com as próprias possibilidades.

Desse objetivo inicial e mais simples, passa-se ao que visa compensar ou corrigir a incapacidade dominante, no mais das vezes motora e de natureza paralítica. A deambulação é o objetivo mais freqüentemente visado nos hemiplégicos e paraplégicos, que constituem a maioria dos casos a reabilitar. Inicia-se, com o tratamento médico, a aplicação de medidas tendentes a possibilitar a mais rápida recuperação da marcha. Não visam outra finalidade as medidas tomadas para evitar a "queda do pé paralítico", a "rotação externa da coxa", a "prevenção de contraturas ou retrações", etc. É às vezes um longo e penoso processo o de reensinar um doente a andar, o que exige dedicação individual; mas é compensador saber que 9 entre 10 doentes hemiplégicos ou paraplégicos podem voltar a locomover-se, a maioria sem e outros com aparelhos de variada espécie.

A par desses objetivos cabe ao médico orientar o reajustamento social e psicológico da situação criada com a doença, recorrendo, sempre que se fizer necessário e com melhores resultados do que tomando isso a seu cargo, aos serviços dos profissionais especializados nesses campos.

PROGRAMA DE REABILITAÇÃO

A instituição de um programa de reabilitação envolve quatro fases principais : diagnóstico, prescrição, objetivo e desenvolvimento do programa. O diagnóstico do caso a reabilitar coincide com o diagnóstico funcional médico mas não se apresenta como uma conclusão final, porém como ponto de partida do programa a instituir. É a base do programa de reabilitação e não envolve necessariamente muitas especulações de caráter etiológico ou topográfico, ainda que nem sempre possam ser deixados de lado esses aspectos na progressão do programa a instituir. Para facilidade do diagnóstico e das diversas medidas a incluir no programa, a incapacidade deve ser classificada de acordo com suas manifestações principais. Como exemplo podemos citar: hemiplegias, hemiparesias (mencionando o lado), paraplegias, tetraplegias, ataxia, incoordenação cerebelar, paralisias (com a localização ou nervos envolvidos), parkinsonismo, etc. Deve, sempre que isso ocorrer, ser mencionado o caráter progressivo da incapacidade. Para efeito de consideração de prazo ou prognóstico, pode ser classificado o grau de incapacidade em grave ou severa, média ou leve. Outro aspecto a considerar é o grau de locomoção do doente, se ambulante com ou sem auxílio, ou não ambulante e, neste último caso, se acamado ou em cadeira de rodas. Qualquer programa deve ser precedido de uma orientação médica relativa às condições clínicas do doente que lhe permita encetar as atividades a serem prescritas sem correr qualquer risco. Não deve ser descuidada, nesta fase do programa, uma correta avaliação das condições sociais e econômicas do paciente em face da doença e as reações psicológicas passíveis de afetar a seqüência do programa.

A instituição do programa de reabilitação é feita à base do diagnóstico e se constituirá de um mínimo de atividades que podem ser condensadas, apenas para efeito descritivo, nos seguintes capítulos: 1 - atividades da vida diária; 2 - recondicionamento ou restauração física ou fisioterapia; 3 - deambulação; 4 - terapêutica ocupacional; 5 - recuperação psicológica; 6 - tratamentos especiais (linguagem, audição, escrita com a mão sã, etc); 7 - treinamento na utilização de acessórios e aparelhos (muletas, bengalas, aparelhos ortopédicos); 8 - ajustamento social e doméstico; 9 - medicação; 10 - diversas medidas inclusive as que digam respeito à reintegração econômica do doente e suas possibilidades de reemprêgo ou volta ao trabalho, sendo orientadas as medidas necessárias. A ordem em que as diversas partes são mencionadas não significa prevalência nem precedência de uma sobre outra, nem que seja obrigatória a utilização de todas elas, sendo apenas uma relação das possibilidades a serem determinadas em um programa. Inúmeras dessas partes são interdependentes e impossíveis de serem aplicadas individualmente, sendo até certo ponto artificial a sua separação.

Ressalta, à primeira vista, a impossibilidade do médico intervir pessoalmente em todas as fases do programa a encetar, resultando daí a necessidade do recurso ao especialista que, por sua vez, se cercará do pessoal necessário.

Outro aspecto a ser considerado é a viabilidade do programa e o seu propósito, devendo sempre que possível ser explicado ao doente ou à sua família o que se pretende e se pode esperar do tratamento e, como tentativa, estipular o tempo provável de duração ou o tempo após o que se poderá, depois de nova verificação, dar uma idéia mais precisa das possibilidades a atingir ou da inviabilidade de sua continuação.

Como complemento à prescripção, deve ser detalhada a seqüência ou as diversas partes em que se decomporá o tratamento e a necessidade ou não de periódicas revisões ou alterações.

CONCLUSÃO

O principal propósito deste comentário relativo à reabilitação de doentes neurológicos prende-se à necessidade de estimular a atenção dos neurologistas para um problema que está merecendo deles a devida atenção, mas que corre o risco de ser sobrepujado em outros ramos da Medicina. A reabilitação é uma medida em benefício de doentes portadores de afecções atinentes a todas as especialidades médicas, não sendo exclusivamente desta ou daquela especialidade a aplicação dos métodos de reabilitação. O programa de reabilitação para um doente portador de seqüelas neurológicas será melhor orientado por um neurologista ou por um especialista com suficiente formação neurológica.

Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 2651 - São Paulo, Capital.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2014
  • Data do Fascículo
    Mar 1958
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