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Miotonias. Alfredo Lanari

ANÁLISES DE LIVROS

Miotonias. Alfredo Lanari. 1 volume com 277 páginas. Editorial "El Ateneo". Buenos Aires, 1942

Lanari observou 14 doentes cujo quadro clínico se caracterizava pela predominância do sintoma miotonia. Os resultados desses estudos, acrescidos de cuidadosa revisão bibliográfica, são condensados nesta monografia. Foi dada atenção especial ao problema da hereditariedade. Ao que parece, a transmissão se efetua com carácter dominante simples e autosômico. Aceitando-se esta conclusão, como explicar a existência de doentes, filhos de pais indenes? Alguns admitem uma eventual predominância do alelo são sobre o doente, o que equivaleria a aceitar um carácter apenas circunstancial na dominância da transmissão das doenças miotônicas. Outros explicam tais falhas de transmissão pela chamada "anteposição", segundo a qual a moléstia se manifesta cada vez mais precocemente no suceder das diferentes gerações. Compreende-se, então, não somente o desaparecimento de famílias miotônicas como também a existência de membros afetados descendentes de pais aparentemente sãos. Tal conceito é, todavia, muito discutível. Frequentemente a lei da homocronia é observada; todavia, a homocronia, apesar de diretamente dependente do gen patológico, é também subordinada à influência dos gens restantes, bem como de fatores diversos dependentes do meio. Uma das famílias miotônicas examinadas apresentava interessante heterofenia constituída pela existência do quadro neurológico da doença de Friedreich e do estado disráfico em alguns dos descendentes. Essa família serviu como ponto de partida para o estudo da relação da miotonia e estado disráfico. Esta última condição foi encontrada em ascendentes, por vezes sem tradução sintomatológica; ao que parece, o estado disráfico é transmissível segundo o carácter dominante, podendo acompanhar a linhagem miotônica e passível de se exteriorisar por sinais neurológicos.

Ao lado das miotonias hereditárias, devem ser consideradas as adquiridas, cuja existência real é discutível. Não seriam simples miotonias hereditárias com sintomatologia de aparecimento tardio? Os casos descritos isoladamente carecem de uma verificação cuidadosa nos ascendentes e descendentes, sendo admitida a indenidade destes pelas informações anamnésticas, cujo valor é precário. Por outro lado, causas diversas, principalmente endócrinas (hipotireoidismo), podem desencadear sintomatologia muito semelhante à da miotonia de Thomsen; muito judiciosamente julga Lanari que tais causas peristásicas são, por si só, insuficientes para determinar a síndrome miotônica. O exame dos miotônicos "isolados" que o autor observou, revelou a existência de estado disráfico o qual constitui ambiente genotípico que, unido a fatores peristásicos (em geral o hipotireoidismo), condicionaria o aparecimento das miotonias adquiridas. Tais doentes, mesmo depois de clinicamente curados pela medicação iódica ou opoterápica, apresentavam uma resposta do tipo miotônico à injeção intra-arterial de acetilcolina.

Estudando a semiologia das enfermidades miotônicas, aborda primeiro o setor dos músculos estriados por residirem na alteração da função muscular os fenômenos essenciais das miotonias. O trofismo dos músculos é variável, segundo as formas clínicas. Na enfermidade de Thomsen, nota-se um desenvolvimento acentuado e harmônico da musculatura, conferindo ao paciente um aspecto atlético e bem conformado. Essa hipertrofia miotônica sóe ser mais acentuada nas raízes dos membros e na musculatura do tronco; em geral, são respeitados os músculos da face. Por outro lado, as distrofias miotônicas (ou miotonia atrófica) são caracterizadas por atrofias predominantes em certos músculos (orbicular e elevador das pálpebras, esterno-cleido-mastoideo, longo supinador, etc.), embora possam se atrofiar todos os outros grupos musculares do organismo, inclusive no tronco. A presença de atrofias ou de hipertrofias musculares na distrofia miotônica e na enfermidade de Thomsen, respectivamente, não tem, porém, valor absoluto na separação destas duas formas de miotonia. Realmente são frequentes os casos de distrofia miotônica desacompanhados de amiotrofias evidentes, ou mesmo, com hipertrofias localizadas em pequenos grupos musculares. Dois dos casos apresentavam nítidas hipertrofias musculares, sugerindo o diagnóstico de doença de Thomsen e, no entanto, a presença de distúrbios endócrinos, de cataratas e o estudo dos membros restantes da família levaram ao diagnóstico de distrofia miotônica.

A contração miotônica, foi registrada em gráficos. A dificuldade da descontração muscular, mais evidente nos primeiros movimentos e talvez mais acentuada por fatores emotivos, está em relação direta com a energia da contração muscular precedente. Em certos doentes, não se dá o fenômeno durante a execução dos atos normais. A miotonia tem predileção por alguns determinados grupos musculares. Por meio de traçados ergográficos, Lanari comprovou as conclusões de Ravin, relativas à dupla contração na gênese do fenômeno miotônico. Os músculos miotônicos reagem de modo singular à percussão das massas musculares obtendo-se uma contração idiomuscular prolongada, traduzida por sulco ao longo das fibras musculares percutidas; tal fenômeno é determinado por duplo mecanismo, reflexo e muscular. Ainda à excitação mecânica, observa-se frequentemente mioedema, de origem exclusivamente muscular. Lanari considera a exaltação do reflexo idio-muscular um dos principais sintomas da miotonia de Thomsen, enquanto que o mioedema não teria outro valor que o de um achado eventual e contingente. A diferença de comportamento das manifestações da excitabilidade muscular nos doentes portadores do quadro clínico da "hypertrophia musculorum vera" condicionada à insuficiencia tireoidea e nos pacientes hipotireoideos comuns constitui forte argumento à tese relativa à necessidade de um terreno genotípico para o desencadear das alterações musculares.

Ao lado da reação muscular aos estímulos mecânicos é estudada a reação ao excitante elétrico, isto é, a síndrome elétrica do músculo estriado miotônico. Nas doenças miotônicas, é excepcional a verificação da síndrome de degeneração, mesmo nos músculos mais atingidos pela atrofia, nas formas da distrofia miotônica. Na maior parte dos casos, observa-se apenas diminuição da excitabilidade farádica ou bipoexcitabilidade farádica e galvânica. O estudo eletrodiagnóstico dos casos de Lanari foi registrado graficamente pelo método do miógrafo de botão, sendo empregadas a corrente farádica em excitações simples, a farádica tetanizante e a excitação galvânica bipolar. Foi descrita dupla cronaxia no músculo miotônico: uma rápida com valor proximo ao normal no ponto motor, a qual progressivamente se eleva, afastando-se do mencionado ponto, até atingir valores assaz elevados. Lanari teve o cuidado de verificar em seus doentes a influência exercida por drogas diversas (prostigmina injetada intra-arterialmente, adrenalina) sobre o comportamento da resposta ao excitante elétrico e sobre a cronaxia. Infelizmente na parte referente ao eletrodiagnóstico de seus doentes, o autor não especifica a miliamperagem com que obteve o limiar de excitação nos diferentes músculos pesquizados, o que seria de interesse para um estudo comparativo.

A influência de diferentes drogas na contração do músculo miotônico mereceu longo e documentado estudo. Lanari observou a ação de drogas que a experiência ou razões teóricas sugeriam ter influência na contração do músculo estriado. Com a acetilcolina, injetada intra-arterialmente, obteve prolongada e dolorosa contração dos músculos das extremidadas, nos doentes miotônicos. A prostigmina agravou sensivelmente o fenômeno miotônico. Pelo contrário, a adrenalina produzio uma diminuição nítida da miotonia, durável até duas horas após a injeção, não se acompanhando do relativo aumento da força muscular ou da atenuação da miotonia mecânica. Análogo efeito produziram a efedrina e a efetonina. A atropina, em doses moderadas produzio alteração apreciável, enquanto que com doses elevadas, o estado muscular pareceu apresentar melhoras, embora a ingestão da droga provocasse graves transtornos mentais e sensoriais. O sulfato de magnesio e a quinina melhoraram sensivelmente o estado miotônico; a última dessas drogas, por não se acompanhar de sintomas desagradáveis, deve ser o medicamento de escolha nas miotonias puras. Nenhum resultado sensível foi obtido com a injeção endovenosa de álcool etílico e de lactato de sódio.

Os casos de Lanari confirmam o pouco valor do tipo constitucional em função das doenças miotônicas. Realmente, os pacientes estudados se distribuíam igualmente pelos três biotipos fundamentais (lepto, normo e pícnico). Pelo contrário, o estado disráfico parece constituir ambiente genotípico adequado para o aparecimento das doenças miotônicas. A concomitancia ou as eventuais relações causais com as diversas disendocrinias têm interesse, pois essas disfunções glandulares são encontradiças nas doenças miotônicas, constituindo mesmo parte integrante dos seus complexos sintomáticos. Assim, as atrofias testiculares e sinais de hipofunção suprarenal são sintomas da distrofia miotônica. À insuficiência das paratireoides tem sido atribuída função etiológica desta última entidade mórbida; outros responsabilizam a mesma molestia à disfunção hipofisária. O hipotireoidismo influe no desencadear da "hypertrophia musculorum vera". Entre outras manifestações mórbidas constitutivas dos quadros das miotonias, é ressaltada a importância das alterações oculares, principalmente na doença de Steinert, na qual se evidencia uma catarata cujo aspecto é descrito, por muitos oftalmologistas, como patognomônico.

O estudo das lesões anátomo-patológicas forma um dos mais interessantes e completos capítulos da monografia, sendo ilustrado com numerosas microfotografias. Mereceram maior destaque as alterações dos músculos esqueléticos, por serem as mais importantes e mais frequentes. Ao estudo da patogenia das síndromes miotônicas é dedicado substancioso capítulo no qual é revista a evolução do conceito da natureza íntima do fenômeno miotônico. Analisados os diversos sintomas e sinais constitutivos das doenças miotônicas, Lanari tenta sua classificação. A divisão clássica das miotonias congênitas em duas entidades, a de Thomsen e a de Steinert, é muito discutível. O próprio Steinert considerava a miotonia de Thomsen como fase inicial, da miotonia atrófica. Investigações recentes tendem a agrupar ambas as formas em uma mesma entidade.

Rapidamente são estudadas a evolução e o diagnóstico diferencial para considerar, no capítulo final, o problema terapêutico. Evidentemente, todo tratamento terá que se limitar às manifesações sintomáticas. Como regra geral, aconselha-se a eliminação de focos de infecção e a colocação dos enfermos em adequadas condições higieno-dietéticas. Na "hypertrophia musculorum vera" vinculada ao hipotiroidismo, a terapêutica deverá consistir no emprego da medicação tireoidea cujos resultados são espetaculares. Na miotonia atrófica de Steinert, é recomendável o uso do proprionato de testosterona associado à glicocola. Quanto ao tratamento do fenômeno miotônico, Lanari preconisa o uso de adrenalina injetável e, principalmente, da quinina por via bucal. Como fecho são apresentadas as observações minuciosas de 14 doentes. Excelente e vasta bibliografia sobre o assunto encerra esta monografia cuja leitura recomendamos aos especialistas.

R. MELARAGNO FILHO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1944
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