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Considerações médico-psicológicas sobre o mal-estar psíquico

CONFERÊNCIAS

Considerações médico-psicológicas sobre o mal-estar psíquico

Enzo Azzi

Diretor do Instituto de Psicologia Experimental e Aplicada da Universidade Católica de São Paulo (Brasil)

O mal-estar psíquico, como fenômeno individual e social, constituiu objeto do interesse de muitos estudiosos, nem sempre médicos, que fizeram, explícita ou implicitamente, as mais variadas propostas terapêuticas a esta nossa pobre humanidade, a esta nossa civilização que, há alguns decênios, apresenta, em seu caminho, um acelerar de ritmos e um acentuar de desequilíbrios sempre mais evidentes.

Contraste entre a civilização como vida voltada para o exterior e a cultura como vida dirigida para o interior; desequilíbrio entre o progresso mecânico e o moral; revezamento de raças e de grupos sociais; fatal extinguir-se e começar de ciclos culturais; desvios de meridianos da civilização; dilatação do mundo apertado do Mediterrâneo para o espaço mais amplo do Atlântico e aquele máximo do Pacífico; influências do fator quantitativo sobre o qualitativo; descobertas, invenções, teorias físico-químicas e matemáticas subversoras de posições teóricas consideradas irremovíveis durante milênios; nomenclaturas novas e novas interpretações do eterno conflito entre o bem e o mal, entre o instinto e a exigência ética; acontecimentos exteriores que verificam e parecem submergir religiões e filosofias - eis, bem demarcados por Banissoni (de cujas idéias nos servimos valiosamente para o presente estudo), alguns dos aspectos do quadro em que se coloca o mal-estar psíquico individual e social, ao qual, pelos modos mais diversos, atrás da preparação, das tendências e da sensibilidade específica dos autores, quer-se dar interpretação e remédio.

Com pretensões mais simples, desejamos fazer apenas algumas observações sobre o mal-estar psíquico como quadro psicopatológico e como problema médico e psicológico da adaptação psíquica. Dentro do âmbito da missão médica contra a dor, não é, de fato, pretensioso ou excepcional verificar objetivamente que, neste período atormentado, grande quantidade de pessoas de qualquer ideologia, de qualquer nação, pelos motivos mais diversos e freqüentemente opostos, é sofredora, descontente, inquieta; isto em relação, antes de tudo, com situações de ambiente quase sempre facilmente objetiváveis, mas, também, com fatores individuais que fazem com que o mesmo encargo de ambiente seja vivido diferentemente pelos indivíduos isolados, com os mais variados sinais psíquicos e somáticos.

De qualquer modo, tendo-se mesmo diferenças individuais notáveis, é lícito falar de uma "sindrome de mal-estar psíquico", na qual parecem mais freqüentes os seguintes sintomas objetivos: abolição ou diminuição do rendimento social, modificação da conduta etico-social, do comportamento, do tono e do equilíbrio nervoso, do apetite, da digestão, dos processos de assimilação e de compensação, do sono, de cada função fisiológica. Os sintomas subjetivos mais freqüentemente acusados são: dor psíquica, sentimento de desprazer, desorientação, perturbação, apatia, distúrbios cenestésicos, hiper-excitabilidade, fraqueza, estados ansiosos ou excito-depressivos, sem que seja transposto o limite da normalidade psíquica e que se tenha definido um quadro psiquiátrico verdadeiro e próprio.

Reservando-nos de falar mais adiante sobre a adaptação ou inadaptação do mal-estar como reação a estímulos ambientais do ponto de vista teleologico, notamos, entretanto, que o caráter patológico do mesmo é atribuído, além de ao sintoma dor ou desgosto, quase que exclusivamente ao fator tempo, isto é, ao seu persistir por longo período, ao tornar-se crônico e ao acompanhamento de fenômenos secundários que lhe aumentam a gravidade; algo análogo temos nos estados emotivos, "normais" enquanto estejam em relação adequada com o estímulo e enquanto limitados por um breve tempo, "patológicos' se continuados por um longo período.

Quando, por fatores hereditários ou por traumas anteriores, tem-se uma sensibilidade anormal e quando os desequilíbrios do ambiente são de notável intensidade, duração e freqüência, o mal-estar psíquico pode ser prodrômico ou causa desencadeante de enfermidades quase sempre de atribuição psiquiátrica de que não nos ocupamos aqui, ou, diminuindo a capacidade inibidora, de comportamentos e de ações criminosas ou anti-sociais. E a vida psíquica está influenciada e diminuída em seu poder de resistência pelo pauperismo que, hoje, infelizmente, se vai acentuando cada vez mais. especialmente por causa das aglomerações das grandes cidades, pelo ritmo vertiginoso da vida moderna através da rapidez dos meios de comunicação, pela mecanização de toda forma de vida, pela sôbre-excitação dos nervos, pelo abuso dos remédios anestésicos, pelo desejo prepotente e insaciável de prazeres, gozos, de divertimentos, pela imoralidade e irreligiosidade. sempre mais crescentes. Sem falar da guerra, que, com seus grandes incômodos físicos e psíquicos, com as profundas e duráveis excitações emotivas, grava intensamente sobre o sistema nervoso e a psique não apenas dos que dela viveram os trágicos momentos, mas também, infelizmente, das gerações subseqüentes. Mas, o mal-estar psíquico pode também constituir um parêntese relativamente breve num fluir normal da vida, um quadro de passagem ràpidamente desfeito, do qual não nos conviria ocuparmos se, em alguns períodos históricos, êle não fòsse pandèmico, conseguindo importância social por somatória, por simultaneidade de fases depressivas de inumeráveis ciclos individuais, e se, freqüentemente, mesmo não conduzindo ao "refúgio na enfermidade" ou a reações criminosas, êle não se tornasse crônico, levando a conseqüências finais de notável importância individual e social.

Nos indivíduos isolados, as conseqüências finais do mal-estar psíquico prolongado, podem ser verificadas nas condições físicas, por causas primárias ou secundárias, e nas psíquicas, no patrimônio de noções, na experiência da vida, nas ideologias, no caráter (que nós consideramos como uma estruturação psicológica de natureza reativa ao ambiente), na auto-avaliação, nos hábitos, na "plasticidade" e na "estabilidade" psíquica, no determinar novos interesses e novas metas, no estabelecer e fixar atitudes de pessimismo, rebelião, indiferença, renúncia, na interferência em processos eventualmente em curso (crise pubertária, crise involutiva, etc.). Naturalmente, tudo isso repercute no comportamento individual, na vida familiar, profissional, social, econômica.

No que concerne ao grupo social, as conseqüências finais de um mal-estar psíquico prolongado podem ser conseguidas na eficiência objetiva, global, do grupo, econômica, ideológica, política, militar (em relação também com a entidade do grupo social em mal-estar), na chamada opinião pública, no prevalecer do descontentamento, da desconfiança, da apatia, do hedonismo. E seria interessante, a esse respeito, se o tempo nô-lo permitisse, examinar, pois é um problema de atualidade, o mal-estar psíquico causado pela pobreza, como condição psicológica e social. Todas as lutas são abordadas pelo pobre na desigualdade, em condições de subordinação e, às vezes, infelizmente, de humilhação social; o pobre conhece, quando a pobreza fica em limites humanos, a maravilhosa solidariedade da miséria. Senão, êle é solicitado a ficar entre duas atitudes: o áspero combate, junto aos seus semelhantes, contra sua magra herança comum, ou a dura solidariedade do ressentimento e do espírito coletivo de revolta. Demonstra-o a psicologia do proletariado, sobretudo nas nações européias.

Outras conseqüências têm-se no arranjo interior, na valorização de energias e de possibilidades latentes no grupo e nos seus componentes, no estabelecer mais ou menos claro de "linhas" de força para o futuro, nos sistemas de convivência e no costume. Tudo isso influi, direta e indiretamente, sobre o grupo social, resultando, objetivamente, dos quadros de força dos vários partidos e, nestes, do prevalecer das várias tendências (extremistas, moderadas, neutras, etc), da produção artística (e certos movimentos, chamados de extrema vanguarda, no campo da literatura e da arte contemporânea, são bem expressivas do mal-estar psíquico característico da nossa época), das listas de preços da bolsa, dos câmbios, do número de delitos, de suicídios, de matrimônios, de divórcios, de nascimentos, de emigrantes, de repatriados, de turistas, do número vendido de bilhetes de ingresso nas casas de diversões, do consumo de inebriantes, narcóticos, etc. E, em relação a estes últimos, não é possível deixar de fazer um breve aceno às intoxicações chamadas voluptuárias, como o cocainismo, o canabismo, pois - através da miséria, ou do excessivo trabalho, ou do defeito de sãs e honestas distrações, ou dos prejuízos, ou do contágio moral, ou, enfim, da necessidade de esquecer, ao menos por um momento, as dores, as injúrias e as injustiças que a existência proporciona - elas estão intimamente relacionadas com o problema do mal-estar psíquico. Bali dizia: "Entra-se na morfinomania pelas portas do sofrimento, do mal-estar e da volúpia". E Chambard, numa forma muito literária mas outro tanto realistica: "O escravo moderno que olvida sua miséria rojando-se sob as mesas duma ta-berna. o condenado que fuma raivosamente esperando a hora, o gaudente que contempla o mundo através do prisma dourado dum cálice de champanhe, o literato chinês, cujos pensamentos vagueiam nas nuvens azuis do fumo do ópio, o turco sexual ao qual uma colher de "madioum" faz povoar os sonhos de brancas uris, o ambicioso desiludido que se consola com a morfina, a amàsia à qual a seringa de Pravaz faz esquecer o amante infiel - todos procuram alcançar, por vias diversas, a mesma finalidade: o esquecimento das dores passadas, presentes e futuras, a substituição pelo sono ou pelo sonho, das tristes realidades da vida". Será transitória a ação excitadora que o álcool exerce sobre a termogênese, a força muscular, sobre a vivacidade da inteligência; será efêmera, cheia de conseqüências danosas, mas é certo que tal ação que exalta, que conforta, que faz esquecer, que dá, ainda que por pouco, o prazer de viver, existe; e o trabalhador, aos extremos de sua resistência, mal alimentado, sedento pelas altas temperaturas tropicais, entristecido pelo ambiente de seu trabalho freqüentemente privado de ar, de luz e de conforto, recorre ao álcool como ao supremo bem, ainda que este esconda a mais atroz insidia contra a integridade de suas artérias, de seu fígado, de seu cérebro, de todo o seu organismo.

O mal-estar psíquico deveria ser mais freqüente nos indivíduos de sexo masculino, em relação com as maiores responsabilidades e com os maiores interesses político-sociais que, em geral, têm os homens em comparação às mulheres. Nas primeiras fases da idade evolutiva, êle não se apresenta senão raramente, pelo menor volume dos interesses e da afetividade e pela maior "plasticidade" própria daquela idade. Na crise pubertária, há um aumento do mal-estar psíquico também pelo sinergismo das duas roturas de equilíbrio, pelo qual, ao distúrbio causado por dificuldades de ordem individual próprias da idade crítica, acrescenta-se o imposto por uma situação externa. Tal sinergismo pode levar a reações inconsideradas de tipo exaltado ou mesmo deter em situações depressivas a crise pubertária e pós-pu-bertária, perturbando-lhe o desenvolvimento regular e comprometendo-lhe o arranjo definitivo. E aqui desejamos lembrar - e isto especialmente para as adolescentes - como, numa época na qual as necessidades da vida imprimem um ritmo assim apressado às nossas atividades, o ambiente familiar, também, vai, infeliz e inevitavelmente, perdendo a sua principal característica de oásis de paz e de serenidade, no qual a moça precisa refugiar-se pela natural necessidade de compreensão e de ternura. Hoje, freqüentemente, a moça não acha a mãe paciente que a convide a lhe confiar dúvidas, receios, esperanças, desejos, que a guie e a compreenda; freqüentemente, no próprio pai vê o homem irascível, preocupado, ou o homem que se afana no trabalho, que não tem outro objetivo senão o de aumentar as comodidades materiais da família, o homem que não tem tempo a perder em sentimentalismos, sempre ansioso de resolver situações nas quais está em jogo, prevalentemente, o interèsse e a ambição; e cresce como uma isolada, obrigada a conter e dissimular os próprios sentimentos. D^sso resulta uma evolução psíquica forçada, incompleta e, sobretudo, desarmoniosa. Nem a religião supre mais a aridez sentimental da família: hoje a religião vem sendo interpretada como uma norma de vida exterior, da qual se observam só os preceitos menos graves, porque falta o guia e, muitas vezes, o exemplo. Hoje, o cinema, a literatura à maneira dos semanários ilustrados, as transmissões radiofônicas, enriquecem as noções das adolescentes de modo desolador, pois dispersam o que há de mais precioso no ânimo feminino: o sentimento, a pudicícia, os afetos familiares; numa palavra, dissipam nas adolescentes e nas moças a "feminilidade". Nem apareça protesto de retrógrados, a indicar, com Ottonello, entre os fatores mais perniciosos pela sua influência ubiquitària, o predomínio que assuniram, nas transmissões radiofônicas e nos locais públicos, certas composições musicais que adaptam as frases mais insulsas ao ritmo de orquestrações que traem, da maneira mais completa, a função educadora da música.

De menor importância social, mas de muita importância humana, pois largamente penetrado pela dor, aparece o mal-estar psíquico na idade involutiva, quando o sentimento de insuficiência derivado da decadência das próprias forças e do aproximar-se, mesmo subjetivo, da morte, é agravado por situações de ambiente que podem acarretar renúncias sem esperança e melancólicos estados depressivos definitivos. Se não, justamente nessa idade da plasticidade diminuída, manifesta-se em cheio a amplitude das possibilidades que a adaptação psíquica apresenta em confronto com outra qualquer adaptação biológica. A vida subjetiva é projetada e vivida sobre planos superiores e além das contingências do eu, e manifesta-se, com toda evidência, a possibilidade de compensação entre a vida representativa e a perceptiva. Artistas intuíram-no e expressaram-no; recordemos, entre os não católicos, Tolstoi e Shaw que, em "Coração Desesperado", faz com que um dos seus personagens afirme: "0 fim da felicidade é o princípio da paz". Filósofos e teólogos podem responder àqueles porquês que a ciência afirma, sem ter, ela mesma, competência para responder.

No momento atual, merecem, por razões óbvias, particular menção, nos campos nacionais e internacionais, em relação ao mal-estar psíquico, os chamados vencidos, isto é, aqueles que, com ou sem razão, se sentem danificados ou em perigo por novas situações de ambiente; sobretudo no primeiro momento o mal-estar psíquico faz-se sentir dolorosamente. Não deve,- porém, ser esquecido que também os chamados vencedores podem viver situações de mal-estar psíquico pela não correspondência entre o que na vigília foi sonhado com cores vivas, em uma atmosfera quase mágica, e o que é depois oferecido pela realidade concreta. 0 contraste entre o ser ideal amado e o ser que se revela, depois de conquistado, humanamente não privado de defeitos e imperfeições, o contraste entre o domingo ideal sonhado no sábado e o domingo real, entre a realidade mágica representativa e concreta perceptiva, o sentimento de desproporção entre o empenho afetivo, o risco afrontado para a vitória e o aspecto concreto da vitória mesma, criam, freqüentemente, situações desilusórias que são tanto mais conspícuas, quanto mais alto e perfeito fora o ideal sonhado. Muitos poetas deram expressão a tal situação de mal-estar, que merece consideração em si, enquanto fere os melhores, isto é, aqueles com maiores exigências interiores.

Qual é a causa imediata do mal-estar psíquico? Por vezes, ela não é bem clara ao interessado; por vezes, é claramente testemunhada. Freqüentemente, é feita uma acusação ao ambiente humano, aos acontecimentos históricos e sociais, às bruscas ou inesperadas modificações do ambiente social imediato ou do mais vasto. Ou o interessado, em vez de acusar o ambiente, acusa a si mesmo de "não conseguir", de não poder mais "engrenar", de "não entender mais nada", de não encontrar-se, de não ter feito bastante, etc. Qual o significado destas reações diferentes? Reentramos no quadro dos problemas da adaptação psíquica. Há sempre uma dificuldade de reação entre o indivíduo e o ambiente, maior quando indivíduo ou ambiente têm modificações insòlitamente conspícuas ou insòlitamente rápidas, sobretudo quando tais modificações são sustentadas, contemporàneamente, pelo indivíduo e pelo ambiente: por exemplo, crise evolutiva ou involutiva em "momentos históricos". E, segundo a morfopsicologia contemporânea, seria do maior ou menor equilíbrio entre essas duas forças antagônicas - as hereditárias, individuais, pessoais, e as ambientais, impessoais - que resultariam os indivíduos como se apresentam na realidade da vida cotidiana, também no que diz respeito à conformação facial exterior: os dilatados e os retraídos, com todas suas numerosas variedades, desde a retração ltteral dinamizante e frontal interiorizante, até a retração extrema basal, na qual o organismo e a psique se defendem, com um verdadeiro isolamento, contra um ambiente ao qual não conseguem absolutamente se adaptar.

O problema da adaptação psíquica apresenta, portanto, um aspecto intra-individual e um inter-individual, isto é, se se pode falar assim, problemas de política interna e problemas de política externa. Todos os dois aspectos são sempre observáveis. 0 desequilíbrio maior pode ser vivido entre a exigência interior e a força subjetivamente à disposição, e tal desequilíbrio pode ser acentuado pelo fato de que a modificação do ambiente requer, com urgência, a adequação à própria exigência interior. Disto deriva, falando em termos freudianos, uma sistematização de agressividade voltada prevalentemente contra si mesmo: remorsos, auto-deploração, etc. Ou mesmo, considerando que haja certo equilíbrio entre as próprias forcas e as exigências interiores, tem-se que o desequilíbrio não seja mais devido a causas internas, mas às modificações de ambiente, sobretudo improvisadas; a própria insuficiência é atribuída, portanto, não a uma falta, mas ao fato de que o encargo do ambiente é excessivo; a agressividade pode ser dirigida, ao menos em palavras ou representativamente, contra o ambiente, ou mesmo ser retida ou contida.

Em ambos os casos, prevalência subjetiva do desequilíbrio intraindi-vidual ou do inter-individual, entrariam em jogo o sentimento de culpa, a agressividade e todo o complexo dinâmico dos instintos, como também o aspecto caracteriológico da personalidade (introversão, extroversão, etc.), a rapidez dos processos psíquicos (taquipsiquismo ou bradipsiquismo), as condições estáveis ou transitórias do chamado tono nervoso, as disponibilidades energéticas gerais, e assim por diante.

Mas, vejamos um pouco mais de perto esses dois elementos, um fruto do outro, um indispensável ao outro, assim mesmo continuamente em contraste um com o outro, cujos conflitos constituem a maior parte dos dramas que entristecem a vida humana: o indivíduo e o grupo social.

Por um lado, temos o indivíduo, o homem social, com sua personalidade fruto da hereditariedade e do ambiente, cujo comportamento não se limita à satisfação de necessidades físicas, mas se estende à satisfação de desejos, de necessidades espirituais, intelectuais e afetivas, à explicação de tendências inatas ou adquiridas, conscientes ou inconscientes, etc, indivíduo que, por todos esses motivos, é obrigado ou atraído a participar da vida de vários grupos sociais.

Por outro lado, temos o grupo social, com suas exigências e com suas possibilidades de satisfazer às exigências individuais. Quê é um grupo social? Howard Warren, em seu "Dicionário de Psicologia", o define como um conjunto de organismos, geralmente seres humanos, que vivem, na maioria, um próximo ao outro, ou respondem um ao outro ou respondem a um estímulo comum. Também deixando de lado o primeiro desses três casos, que se refere a especiais grupos, às multidões, aparece logo a vastidão do conceito de grupo social e o grande número de diversos tipos que respondem à mesma definição, desde o grupo constituído por apenas dois indivíduos, como, por exemplo, o grupo mãe-lactante, para não citar o grupo biológico da vida pré-natal, ou o grupo marido-mulher, até aos mais extensos, como os de nação e de povo, com numerosíssimos intermediários. Os grupos, ademais, diferem um do outro, não somente pela extensão e complexidade, mas também em dependência do estímulo, da necessidade, da aspiração que os criaram: desde a tribo primitiva surgida para escopo de defesa, à família que responde a numerosos requisitos, à escola, ao clube esportivo, à associação cultural ou política, à academia dos sábios e assim por diante; grupos correspondentes às necessidades, aptos a satisfazer desejos, a secundar tendências.

Portanto, aparecem, claros, dois fatos: antes de tudo, o homem não pertence sempre a um grupo social apenas, mas, necessariamente, pertence a vários desses grupos, cada um dos quais corresponde a uma diversa manifestação de sua personalidade; em segundo lugar, os grupos sociais são profundamente diversos entre si, mas não independentes; os mais vastos, geralmente, fazem sentir sua influência sobre os mais limitados, e os que respondem a um estímulo mais potente, sobre os outros.

Nesses dois fatos, encerra-se sempre a causa das divergências, contrastes, conflitos, que, pelos elementos entre os quais surgem, se podem chamar de divergências, contrastes, conflitos psicossociais, cujos principais tipos são: contrastes ou conflitos entre o indivíduo e seu grupo social; contrastes ou conflitos no indivíduo devidos à existência contemporânea de mais grupos; contrastes ou conflitos no indivíduo devidos a grupos não coexistentes ou aos quais o indivíduo não pertence contemporàneamente; contrastes e conflitos que não se desenvolvem no indivíduo, mas entre os dois grupos. Todos esses contrastes são, geralmente, causados pelos mesmos motivos fundamentais, e, essencialmente, traços da personalidade, falta de adaptabilidade, força dos hábitos e das tradições e, freqüentemente, ação do subconsciente. São as primeiras duas variedades as mais interessantes para o nosso caso.

Antes de tudo, o indivíduo dissente ou se acha em contraste com o grupo ao qual pertence: é, esse, um fato freqüentíssimo, que, se se realizar num indivíduo em circunstâncias esporádicas e excepcionais, pode também passar inobservado; se, pelo contrário, tomar forma habitual, dá lugar a comportamentos que, conforme os casos, caracterizam o excêntrico ou o melancólico. Há indivíduos nos quais a mentalidade ou o comportamento não coincidem com a mentalidade e o comportamento sociais; nos quais, portanto, o estímulo social não provoca a reação prevista pelo grupo social; disso origina-se uma divergência que se pode traduzir em conflito e que se manifesta sob formas diversas, segundo a diversa personalidade do indivíduo ou do diverso grupo social. No tímido, no introvertido, no fraco, no disposto à submissão, temos, em geral, fenômenos de melancolia, nos casos mais graves, de neurose, podendo-se até chegar à impossibilidade, para o indivíduo, de viver num grupo social, com o qual êle se sente absolutamente impossibilitado de harmonizar. Nos tipos opostos aos que acabei de citar, manifestam-se casos de excentricidade, de firme oposição ou de revolta. Em todo caso, o fato de que a adaptação, também sob forma de compensação, nem sempre é suficiente, nem sempre é possível, faz refletir sobre a grande importância da adaptabilidade. A maior parte dos crimes comuns, o que é senão o resultado de conflitos entre indivíduos e sociedades? E, especialmente, quais poderão ser as conseqüências dum conflito entre o menino, o adolescente e a sociedade? A resposta a esses quesitos não pode ser dada senão através do estudo' de dois entre os mais graves problemas, respectivamente da criminologia e da pedagogia, e de um comum às duas ciências quando se refere à criminalidade juvenil. Nestas breves considerações sobre o mal-estar psíquico não é possível" demorarmos sobre assuntos tão vastos, mas, por outro lado, teria sido igualmente impossível ao menos não mencioná-los, pois é só através do estudo deles que se poderá alcançar a maneira para eliminar ou diminuir muitos daqueles fatos de "crônica negra", cujas profundas causas se acham, freqüentemente, num conflito do homem com a sociedade, conflito que, talvez, tivesse sido possível evitar.

Em segundo lugar, como dissemos, todos os indivíduos pertencem a mais grupos sociais que - e isso é o importante - embora muito diversos entre si em amplitude, nos fins e nos estímulos, não são independentes e, às vezes, são antagônicos, o que pode levar o indivíduo a situações verdadeiramente dramáticas. Todos sabemos, pelas experiências provadas nas circunstâncias normais de vida, como é, por vezes, penosa a dúvida, trabalhosa a escolha. Qra, devemos reconhecer que muitas das dúvidas que nos atormentam, muitas das decisões que somos forçados a tomar contra a vontade, são conseqüências de contrastes e conflitos devidos à existência de mais grupos sociais. Mas, no caso de que estamos nos ocupando, não temos, como na primeira variedade, a solução ao conflito apresentada por um tímido, por um submetido, ou por um sugestionável, que foge à luta com uma rendição incondicional; nem temos a possibilidade da compensação; aqui, geralmente, a decisão requer uma forma de rebelião, e, quanto mais tímido, submetido ou sugestionável fôr o indivíduo, tanto mais penoso será o conflito. E a vida nos oferece numerosíssimos exemplos de conflitos desse gênero, nos quais o indivíduo, para se conformar às normas estabelecidas por um dos grupos, é forçado a operar e a julgar em oposição a princípios fundamentais de um outro grupo ao qual também pertence: o pai que se sente necessário ao sustento da família e deve arriscar a vida para a defesa da pátria; o operário que necessita, naquele momento, do salário, talvez para providenciar a cura dum filho doente, e que, por solidariedade, deve entrar em greve; e temos numerosos outros casos de contrastes entre elevados sentimentos sociais, amor e dever, afetos familiares e patriotismo, necessidade da vida e solidariedade, religiosidade e ideologias políticas, e assim por diante.

Dado que, pelos motivos lembrados, e por outros ainda, há interdependência entre arranjos psíquicos intra e inter-individuais, é lícito, sem distinguir um mal-estar por desequilíbrio intra-individual, de um mal-estar por desequilíbrio inter-individual, considerá-lo, unitàriamente, como sentimento de desgosto, por vezes vago, derivado de uma insuficiência subjetiva (coincidente ou não com uma insuficiência objetiva) relativa à capacidade individual de adaptação psíquica a exigências interiores e a condições e modificações de ambiente. 0 mal-estar psíquico é, por isso, como dissemos, um problema da adaptação psíquica, esta entendida como capacidade ou possibilidade de rápida modificação do próprio arranjo em relação a exigências exteriores e interiores, sem que, nesta modificação, se deforme e se anule a sua estrutura, as características individuais, etc, isto é, a possibilidade de explicar a própria personalidade e de vivê-la na sua eficiência e na sua dignidade, quaisquer que sejam as exigências e os danos do ambiente.

Naturalmente, nesta relação entre indivíduo e ambiente, além desse último e de suas modificações objetivas (que podem ter um aspecto quantitativo em extensão, em profundidade, um aspecto temporal, um qualitativo prevalentemente político, econômico, militar ou ideológico), tem muita importância, também, as modificações subjetivas em relação ao aspecto caracteriológico e em particular ao assento geral da personalidade (otimismo, pessimismo, hipervalorização, hipovalorização, intensidade da tendência à repressão de experiências desagradáveis, etc), à avaliação da própria capacidade de adaptação, à avaliação subjetiva das condições precedentes à modificação atual, à previsão das conseqüências que futuramente derivarão da modificação atual (melhora ou piora próxima ou remota das condições de vida individuais e do grupo ao qual se pertence), ao ambiente "ideal" postulado, etc.

Referindo-me ao que mencionei há pouco, chamo novamente a atenção sobre dois fatores importantes da capacidade de adaptação psíquica: plasticidade e estabilidade. A plasticidade está em relação com fatores hereditários (incluídos aqui o tipo e o "biótipo" psicológico: introvertido, extrovertido, esquizotímico, ciclotímico, etc.), com a idade (inversamente proporcional), com o exercício da plasticidade mesma, que pode ser induzido passivamente (experiências de vida vividas por força das circunstâncias: por exemplo, a guerra), ou procurado ativamente (viagens, estudos, transferências, emigrações, campanhas como voluntários de guerra, etc). A estabilidade, durante os processos de adaptação, está também em relação, além das condições físicas, com fatores hereditários, com o biótipo, com a idade (diretamente proporcional) e, no mais, com o arranjo individual afetivo, cognoscivo, ideológico (ético, filosófico, político, religioso), com o ambiente familiar, o ambiente de trabalho, o ambiente social mais vasto, etc.

Na estabilidade, ocupa lugar especial a assim chamada "situação de fé". Quem está em condições de manter uma situação de fé, quaisquer que sejam as modificações de ambiente, encontra-se nas melhores condições para superar, sem danos essenciais, cada vicissitude. Mas, além da situação de fé, também o conteúdo objetivo, isto é, eficiência real, permite, do melhor modo, o continuar da favorável situação subjetiva de fé. Um conteúdo de fé que, também em tempos como os hodiernos, em que tudo parece abalar-se, dê o conforto de una ponto de referência inabalável, mas, no mais, o conforto de uma relação pessoal com tal ponto de referência, apresenta-se de grande importância na adaptação psíquica e na luta contra a dor, luta de geral interesse humano e de específico interesse médico. "L'onda freme e rumoreggia minacciosa?", escreveu metafòricamente Pietro Maffi, "non dubitate. In cielo sono musica anche il sibilo dei venti e lo stridere delle tempeste e lo schianto delle folgori ed il fremere dei tuoni. Dio li accorda ad armonia, Lui, che un'armonia concesse all'impeto delle cascate e d'iridi dipinse anche i minuscoli aghi di ghiaccio; Lui che, se gli elementi scatena talvolta e lascia liberi ad infuriar nell'universo, con un girar di ciglio, però, tosto e sempre li richiama e li fa proni ai suoi piedi, quando piaccia alla sua volontà...". A fé em - Hima providência (que pode ser variàvelmente denominada) dá, a quem a possui inteiramente, quaisquer que sejam suas outras condições, uma estabilidade específica tal e uma conseqüente capacidade de adaptação psíquica, capaz de torná-lo incólume àquele estado doloroso que é o mal-estar psíquico e, em geral, a todas as dores de causa subjetiva. Isto advém segundo uma lei que pode ser formulada com exatidão matemática como se segue: o mal-estar psíquico é inversamente proporcional à fé. Assim considerada, de um ponto de vista àridamente técnico, a falta de confiança em uma providência divina resulta em ser uma culpa que requer castigo imediato, aliás uma auto-punição que é imediatamente aplicada em relação quantitativa direta e quase automática com a própria desconfiança. Tudo isto pode naturalmente ser expresso em termos como: super-eu, justiça interior, princípio de autoridade, complexo paterno, agressividade, sentimento de culpa, tendência auto-punitiva, sentimento de inferioridade, etc, sem que os fatos mudem e sem impedir o caminho à discussão no seu significado filosófico e religioso. E' certo, em todo caso, que a religião, por si mesma, especialmente a cristã, é, hoje mais do que nunca, a única âncora de salvação para os náufragos da vida, para os deserdados da fortuna, para os deprimidos, para os cansados, etc E com isso, evidentemente, não queremos repetir a acusação (baseada sobre fatos parasitas que se desenvolvem nas épocas de religiosidade débil) que, depois de Nietzche, foi freqüentemente feita ao Cristianismo - de servir apenas para a defesa dòs vencidos, para divinizar as necessidades dos fracos e dos neu-rastênicos; quem fèz a experiência duma religião mais viril e mais ofensiva, bem sabe que o Cristianismo não se reduz apenas a essas funções de hospital.

Permanecendo no universalmente admitido teleologismo biológico, parece-nos que se possa dizer, com Banissoni, que o mal-estar psíquico, como todo outro estado doloroso, serve para chamar a atenção sobre uma situação de perigo, contra a qual é necessária uma reação adequada determinando novo arranjo interno da personalidade, melhoramento do seu ambiente e da sua relação de ambiente, para o término ou diminuição da situação de perigo objetivo ou subjetivo; cada esforço seria efetuado para que esse fim fosse atingido com a mínima dor, com o menor tempo, com o menor dispèndio possível de forças.

Nessa interpretação, resulta mais claramente do que da consideração do único fator "tempo", o caráter patológico que pode assumir o mal-estar psíquico quando este perdure sem que seja atingida nenhuma de suas finalidades. Por isso, também não estamos num mal-estar psíquico patológico quando o homem sofre, mas eleva-se pela nostalgia, pela aspiração por uma pátria, por um clima ideal, por algo de transcendente. Pelo contrário, às vezes deve preocupar a ausência e não a presença do mal-estar psíquico: em tempos agitados, creio seja de assinalar-se, entre os fenômenos mais lastimáveis, depois de reações criminosas ou de atos de fanatismo, o ceticismo, a indiferença, a apatia, a passividade, o refúgio em indolente, egocêntrico edonismo, sobretudo nos jovens. E, a esse último respeito, é certo que o materialismo invadiu os espíritos e a atmosfera social hodierna de tal maneira que a educação é comprometida desde a idade mais inocente, pois é o ambiente mesmo que está intoxicado; e materialismo não tanto teórico - concepção de vida que resulta de uma metafísica que nega os valores espirituais e morais - quanto prático, mamonismo ou concepção mercantil das relações sociais, aumento desmedido das preocupações econômicas sob o estímulo de necessidades vitais exacerbadas. O espírito de lucro não data, certamente, de nosso tempo, mas nunca o interesse foi exaltado assim como no mundo moderno, que o considerou, quase, como o único motor da ação humana e o fim mesmo do Estado. Julgou-se do nível de civilização alcançado por uma nação segundo a capacidade de sua produção industrial; produzir para chegar à riqueza e à potência tornou-se a regra das atividades privadas e públicas. Conseqüência, ou melhor, origem disso: a depreciação das noções de honra, de trabalho, de economia. Hoje, o bom curso dos negócios depende mais de uma legislação hipertrofiada, do acaso ou da fortuna cega, do que da prudência, da inteligência, da experiência; e é natural que a juventude não se importe com a aplicação ao trabalho e com a consciência profissional e se dedique, antes, ao "entregent", como dizem os franceses, e aos equívocos meios para chegar rapidamente ao sucesso. "Francamente", li num recentissimo semanário italiano, "aos jovens não sabemos que conselho dar. Devem, esses coitados, estudar a própria profissão ou estudar a arte de fazer carreira para fazer carreira? Olhemos em redor de nós: a maioria dos lugares mais importantes, e não apenas na política - na qual a arte de fazer carreira é, afinal, a profissão mesma - mas sobretudo nas grandes organizações privadas, nas artes, no cinema, na cirurgia, no jornalismo, onde a competição deveria fazer sobreviver o melhor, o mais capaz, o mais forte; vemos que os lugares são, quase invariavelmente, dados aos que conhecem a profissão de maneira apenas adequada, mas são mestres na arte de se apresentarem. Devemos, portanto, convidar os jovens a se ocupar de uma coisa só, de se fazerem conhecer, de darem publicidade, de se tornarem simpáticos, de prestarem favores e homenagens aos poderosos, de entrarem para a corte dos magnatas? Esse cético, mas sábio e verdadeiro quesito eu mesmo mo propus muitas vezes: é o mérito ou a astúcia ou coisas piores que se deve instilar no ânimo dos jovens para ajudá-los a subir as trabalhosas escadas, não do saber, mas sim do arrivismo? E a resposta que freqüentemente se lhe dá não é, de certo, das mais confortantes e respeitáveis: mas a que vale, a que presta consumir-se o ânimo? A vida é assim, e temos que tomá-la como é. A vida é bonita: é apenas questão de saber acertá-la; a vida é uma comédia na qual constantemente vence o reais astuto. E não nos resta senão sorrir, se rir propriamente não se pode. E', porém, um sorriso amargo. E' inútil determo-nos em demonstrar como essa situação é uma causa, e não das menores, de mal-estares psíquicos, sobretudo em naturezas nobres, delicadas e honestas. Mas, estamos certos de que, cedo ou tarde, a razão retomará os direitos e as velhas regras confundirão as falsas máximas da época. Cabe, entretanto, à educação denunciar èsse materialismo difundido por toda a parte, a fim de que as consciências advertidas não con fundam o caminho da moralidade com o dos êxitos momentâneos que conferem a riqueza

Mas, perguntar-se-á por fim: o que tem a ver o médico nesse problema do mal-estar psíquico?

Antes de tudo, sem poder empreender terapias específicas, o médico tem o seu papel no que diz respeito à cura sintomática, à insônia, à inapetência, aos distúrbios da assimilação, ao hipotono, aos distúrbios cenestésicos, etc. E o médico deve observar se o mal-estar psíquico constitui um mal por si ou se é prodrômico de uma forma psiquiátrica ou de uma reação criminosa. 0 medico deve também, como é sabido, além de curar os doentes, providenciar porque melhorem as condições do são; se as boas condições somáticas não determinam a solução de conflitos psíquicos e o cessar de estados psíquicos dolorosos, elas dão, em geral, uma premissa melhor para afrontá-los e resolvê-los. A contribuição curativa e profilática do médico e do higienista é aqui indireta, mas nem por isso menos preciosa.

Mas o médico pode e deve influir também diretamente sobre a situação psíquica dos seus doentes, de suas famílias, de cujo ambiente social èie é um dos expoentes de caráter ativo, junto aos educadores, políticos, cientistas, artistas e sacerdotes. Conscientemente ou não, o médico exerce, de fato, uma obra social de educador e psicoterapeuta e pode dar valiosa contribuição, além de ao saneamento físico, ao saneamento espiritual da nação.

As conseqüências que o médico pode tirar dessas considerações são um aumento de consciência da sua missão e das exigências dirigidas a si mesmo para o enriquecimento e a melhora de sua personalidade: o médico que não tiver personalidade eficiente, que não souber achar, para si mesmo, o arranjo de um seu eventual mal-estar psíquico, não poderá, embora cumprindo suas tarefas técnicas, exercer plenamente sua alta missão humana. Mas, são, também, uma concepção clara daquela que é a personagem central desses dramas, por nós sumariamente delineados, que estão à origem do mal-estar psíquico. Refiro-me à "pessoa humana". 0 problema da pessoa humana, isto é, não do homem em geral, do homem-espécie genericamente considerado, mas sim do homem concreto, que é um indivíduo, com suas características corpóreas e psíquicas que o distinguem dos outros homens, com sua individualidade e personalidade psicossomática, ou, como Pende prefere exprimir-se, com seu biótipo, é o problema que hoje, na trágica hora que a humanidade está vivendo, se reveste do mais fundamental, prático interesse; interesse que investe em primeiro lugar, além do educador, o médico-biólogo-psicólogo, ou seja, os dois missionários da conservação e da defesa da saúde física e moral da humanidade quando esta se encontra ameaçada de completa ruína nos corpos, nos corações, nos cérebros. São o médico, com o educador, de fato, que têm as maiores possibilidades de ache-gar-se e de penetrar nas profundidades dos indivíduos humanos, de ver a nu as feridas do corpo e as da psique da pessoa que sofre. Infelizmente, a concepção justa, equilibrada, completa da pessoa humana, na qual concordam ciência médica e filosófica cristã, concepção que deve guiar em sua missão de bem, não apenas o médico e o educador, mas o sociólogo, o filósofo, o homem político, foi demais esquecida e submergida por aquelas correntes de pensamento que dominaram, desde mais de um século, até hoje, quer na biologia e medicina, quer na filosofia e sociologia. E', portanto, imprescindível neste tempo de perversão espiritual, reagir contra esta sub-mersão da pessoa humana, querida pelo positivismo científico, pelo sociologismo materialistico, pelo idealismo absoluto, e proclamar a necessidade da volta ao respeito de seus direitos originários, quais os recebeu de Deus, e a reconstrução da pessoa na família, no Estado, na sociedade. Reconstrução que é hoje mais urgente do que a das casas e das riquezas materiais destruídas pela guerra, onde a guerra passou. Pois é esse "capital humano", de valores biológicos e espirituais, o mais indispensável e o mais inalienável para todas as nações.

Faculdade de Medicina da Universidade Católica. Sorocaba (São Paulo) Brasil

Nota do autor - Apraz-me agradecer às Srtas. Bruna Pardini, Vera Pastana Ferrari e Maria Isabel Moraes Pitombo, pela ajuda que prestaram para a redação em português.

Conferência pronunciada nas Faculdades Campineiras, em 1 de setembro 1950.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1951
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