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Pode a foto capturar o gesto?

Can the photograph capture the gesture?

RESUMO

Este artigo reflete sobre a possibilidade da fotografia apreender o gesto, tal como tomado por Jean Galard no texto “A beleza do gesto: uma estética das condutas”. A pergunta parte do argumento de que um ato só pode tornar-se gesto quando observado − e, se assim for, poderia a câmera tomar a função de observador e fotografá-lo como gesto? Para pensar a fotografia, adota-se como base o ensaio “A câmara clara: notas sobre fotografia”, de Roland Barthes, além de outros autores que integram a discussão. Ao final, é analisada uma fotografia da coleção Francisco Rodrigues sob a luz da pergunta “pode a foto capturar o gesto?”.

palavras-chave:
fotografia; gesto; apreensão

ABSTRACT

This article reflects on the possibility of photography to apprehend gesture as proposed by Jean Galard in the text “A beleza do gesto: uma estética das condutas”. Its start point is the argument that an act can only become a gesture when it is observed - and, if it is so, could the camera play the role of observer and photograph it as a gesture? In order to establish a theoretical approach on the subject of photography, we will invoke Roland Barthes’ essay “Camera Lucida: reflections on photography” as well as other secondary authors. At the end, a photo from Francisco Rodrigues collection will be analyzed under the light of the question “can the Photograph capture the gesture?”.

keywords:
photograph; gesture; apprehension

É muitíssimo improvável que alguém passe uma vida toda sem praticar um único gesto. Devemos notar bem a palavra improvável pois, de acordo com a concepção que tomamos de gesto, não podemos dizer que é, em absoluto, impossível. Isso porque não identificamos o gesto como qualquer ato ou tipo de movimento. A bem da verdade, muitas vezes ele não está ligado a movimento algum. Para defini-lo, tomamos a concepção de Jean Galard no texto “A beleza do gesto”. O ponto central desse conceito parece pousar na percepção1 1 É claro que a complexidade do gesto descrita por Jean Galard não se resume simplesmente a “ato observado”. Há diversas nuances, que serão tratadas no decorrer do texto; porém, é inegável que a percepção é fundamental para caracterizá-lo e que não há como falar sobre gesto sem mencioná-la. Isso fica claro quando Galard diz que “o gesto nada mais é do que o ato considerado na totalidade de seu desenrolar, percebido enquanto tal, observado, captado” GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética das condutas. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Edusp, 1997. p. 27. : para algo tornar-se gesto, deve ser percebido - caso contrário, este algo se encerra apenas como ato. Por este motivo, ações ou comportamentos corriqueiros que passam despercebidos são excluídos do nosso conjunto. Um gesto é gesto pois é observado, captado; não só olhado, mas também notado. É, então, improvável que alguém passe a vida sem praticar um só gesto, mas não impossível: imaginemos o caso de alguém que leva uma vida reclusa, na qual não há olhos para percebê-lo que não os dele próprio.

É este pequeno dado a respeito da definição de gesto que torna possível pensar sobre a sua relação com a fotografia e, como perguntamos no título, pensar se a foto é capaz de capturá-lo. Entendemos capturar no sentido de apreender; pode então a foto apreender o gesto em sua totalidade, o gesto pelo gesto? Ou ainda: pode a foto congelar o gesto? Sendo um pré-requisito à sua definição o fato de ser observado, vale pensar se a câmera pode assumir a função de observador e, por meio da foto, assimilá-lo como gesto. Para tratar da fotografia, tomamos primordialmente o texto “A câmara clara”2 2 BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. . É em grande parte baseado nele que explicaremos o conceito de fotografa e a que a distingue de outras áreas (o que lhe confere especificidade, distinguindo-a de qualquer outra forma de expressão). Usaremos, ainda, outros textos de apoio, na medida em que for preciso. O que queremos, aqui, é circunscrever a pergunta da qual partimos de forma não exaustiva, mas satisfatória. Cremos ser essa uma pergunta importante e interessante: importante porque pensá-la é pensar sobre os limites da fotografia e sobre a natureza3 3 A palavra natureza, aqui, é usada em sentido fraco: não pretendemos estabelecer uma ontologia do gesto; usamos tal palavra como se disséssemos “do que se trata”, ou seja, pensar na pergunta “pode a foto capturar o gesto?” nos permite pensar “do que se trata o gesto”. do gesto; interessante porque ela, por ela mesma, suscita interesse. Como dissemos de início, todos (ou ao menos quase todos) praticamos gestos e isso faz com que a pergunta “pode a foto capturar o gesto?” diga respeito à possibilidade da fotografia captar expressões que nos são próprias. Advertimos de antemão, para evitar grandes decepções, que nosso objetivo não é o de encontrar uma resposta categórica à pergunta feita. Consideramos mais importante entender o que realmente está em jogo quando proferimos tal questão do que respondê-la explicitamente.

Em “A beleza do gesto”, Galard diz logo de início que “o gesto é a poética do ato”4 4 Cf. GALARD, Op. cit., p. 27. . Na tentativa de habilitar o gesto como um tipo de arte, é imputada a ele função estética. A observação, que mencionamos ser imprescindível ao gesto, parece agora não ser simples observação, simples ver: há de haver nela também um viés estético, ou seja, ela tem de apreender o gesto em sua totalidade, em sua possível significação, em sua poética. Mas que poética seria essa? Bem, é claro que não é possível listar características que conferem valor poético ao gesto (até porque a própria categoria de gesto é móvel5 5 Diz Galard que “como não existe, ao que parece, qualquer movimento que se encontre sempre em posição semanticamente neutra, e tampouco existe algum que esteja definitivamente à margem do processo de dessemantização, deve-se esperar que, no conjunto dos usos corporais, a classe dos gestos seja móvel”. Cf. GALARD, Op. cit., p. 32. ); o ineditismo, por exemplo, pode ter grande impacto na poética do gesto, e claramente não se pode catalogar o que é inédito. Assim, não podemos dizer que a poética está necessariamente na estranheza ou espalhafato do ato, nem mesmo em sua grandiosidade (é óbvio que pode haver gestos espalhafatosos, mas não é imprescindível a um ato que seja espalhafatoso para tornar-se gesto). Em verdade, muitas vezes ocorre o contrário: frequentemente, é o comedimento que dá a um ato o estatuto de gesto; a própria pequenez do ato enche-o de sentido, de modo que ele é observado, captado e tornado gesto. É por isso que Jean Galard nos traz a imagem do dândi quando afirma que

Esse efeito, de que os dândis fizeram seu ideal, exerce um fascínio que se encontra em paragens bem distantes do dandismo: nos autores de ready-made, por exemplo. Pois, contentando-se com uma mudança na orientação de um objeto, com um leve deslocamento, com uma transformação de nome, Marcel Duchamp talvez satisfizesse sua preguiça; ele talvez perseguisse uma empresa de derrisão; mas, ao mesmo tempo, aplicava um projeto consertado das energias ínfimas. Nessa chave da economia dos meios, o mutismo do gesto terá um alto rendimento. A parcimônia de linguagem é sempre bela. O gesto silencioso e medido, desencadeando por si só a transformação de sentido de uma situação, representará, portanto, um caso notável do efeito estético, pelo menos como ele é aqui encarado.6 6 Cf. GALARD, Op. cit., p. 51.

A estética do dandismo é um ótimo exemplo do grande efeito exercido por gestos discretos: o imperativo da busca pela suprema elegância converte-se na busca pelo comportamento e movimento perfeitos, sendo que, muitas vezes, tal perfeição só é atingida com comedimento e sobriedade. D’Aurevilly, no texto “O dandismo e George Brummel”, diz que o dandismo, além de ser “a arte da aparência”, é também “uma maneira de ser inteiramente composta de nuances”7 7 BAUDELAIRE, Charles.; BALZAC, Honoré de.; D’AUREVILLY, Jules Barbey. O dandismo e George Brummel. In: D’AUREVILLY, Jules Barbey. Manual do dândi: a vida com estilo. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 130. . Ora, é difícil pensar numa descrição mais poética de certos gestos do que uma maneira composta de nuances. No caso do dândi, é, portanto, menos a magnitude do gesto que lhe dá sentido do que suas múltiplas camadas possíveis de interpretação e significado. Fica claro que não podemos tomar como valor estético do gesto simplesmente sua amplitude, sua estranheza ou espalhafato. O personagem do dândi mostra que a beleza do gesto é muito mais complexa do que simples exagero: o ato deve ser medido; a linguagem, parcimoniosa; e a aparência deve ser arte.

Apesar de não se encerrar em espalhafatos, não podemos separar o gesto de uma certa intenção: a intenção de mostrar ou parecer, “por onde já se introduz, ainda que discretamente, a ideia de espetáculo”8 8 Cf. GALARD, Op. cit., p. 63. . Para ser gesto, o ato tem que querer ser captado; isso pode dar-se em grande escala (um happening, por exemplo, tem a intenção de ser captado por muitos) ou em escala menor (o gesto do dândi, comedido, quer ser captado pelos que o cercam justamente por sua sobriedade e sutileza). É importante notar que, quando falamos de intenção, não falamos do propósito interno que envolve um ato - pois não há dúvida de que todo ato carrega uma intenção circunscrita no espaço e tempo ao qual pertence (quando estendo a mão a alguém, tenho intenção de cumprimentar); do contrário, se não houvesse nenhum propósito no ato que estivesse de acordo com a situação que o compreende, a própria comunicação seria intolerável. Mas não é desse propósito que falamos, e sim do propósito do gesto mostrar-se a si mesmo como independente da dinâmica interna da situação; intenção que começa e termina no gesto. Este sempre tem a intenção de mostrar-se, e digamos mais: em todo gesto, tal intenção vem antes do propósito do ato em si. Para que um cumprimento seja gesto, minha primeira intenção deve ser fazer com que meu cumprimento seja entendido como tal. O gesto, então, toma caráter de mensagem, na qual a primeira preocupação é ela própria, não o que nela é dito.

Sob este prisma, a fotografia parece ser a ferramenta perfeita para apreender o gesto. Se a intenção dele é mostrar-se, quem melhor do que a câmera, que capta justamente o que aparece9 9 A palavra aparecer nos faz lembrar de Jacques Derrida, quando o autor diz que a “fotografia faz aparecer na luz do phainesthai”. Na tradução inglesa: “photography makes appear in the light of the phainesthai” (DERRIDA, Jacques. Athens, Still Remains. Tradução Pascale Anne Brault e Michael Naas. New York: New Fordham University Press, 2010. p. 27.) A fotografia, portanto, faz aparecer na luz do que aparece (do que se mostra). A frase pode assemelhar-se a uma tautologia, mas seu significado é muito mais profundo: segundo Derrida, a foto faz com que o que aparece se mostre no âmbito do fenômeno. Se o gesto nos aparece, por que então não poderia ser captado pela câmera? Parece óbvio que a foto pode apreender o gesto (e, no léxico de Derrida, fazê-lo aparecer na luz do phainesthai), mas já adiantamos que serão expostas controvérsias a isso. , para capturar o gesto? Em “A câmara clara”, Roland Barthes identifica dois elementos que fundam o interesse na fotografia de modo geral: o primeiro seria uma certa vastidão, uma apreensão por vezes vaga dos elementos que compõem uma foto, um afeto médio − a isso, Barthes dá o nome de studium. É simplesmente o reconhecimento dos componentes de uma foto como presenças, uma tentativa de entender as intenções do fotógrafo e olhar os elementos de forma harmônica. Pela descrição que até agora fizemos do gesto, é evidente que este não pode ser apreendido pelo studium − o gesto, como dissemos, tem que ser percebido, e não apreendido como simples presença, como um dos muitos elementos que compõem um todo. Não é de forma harmônica que o gesto se mostra: afinal, ele só pode ser chamado gesto por revelar-se de forma não harmônica10 10 Usamos “não harmônica” para explicar que o olhar dirigido ao gesto não pode ver os eventos como um todo harmônico − o gesto tem que se destacar para tornar-se gesto. Podemos dizer que o gesto introduz um desvio em uma situação. , de forma passível de observação e que seja observado por si próprio (e não como mais um pequeno evento de uma situação). Se há algum elemento no interesse da fotografia que pode apreender o gesto, este há de ser o punctum. O punctum é o que abre uma brecha no tecido do studium: é algo que não procuro, mas que vem até mim (que, como o gesto, aparece a mim); é justamente aquilo que salta da harmonia do studium e me transpassa. Nas palavras de Barthes, “o punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”11 11 Cf. BARTHES Op. cit., p. 29. − é um elemento que, mesmo que eu quisesse, não poderia deixar de perceber12 12 É interessante citar a definição completa de punctum dada por Barthes. Diz ele: “o segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo, é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete também à ideia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis; essas marcas, essas feridas são precisamente pontos. Esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte - e também lance de dados. O punctum de uma foto é aquele acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (Cf. BARTHES Op. cit., p. 29). .

Não é obscura a semelhança entre punctum e gesto: os dois são percebidos; ou melhor: os dois se mostram13 13 Talvez mostrar não seja o melhor termo para tratar do punctum. Não é ponto pacífico dizer que o punctum se mostra. O autor explicita isso quando diz que “quer esteja delimitado ou não, [o punctum] trata-se de um suplemento: é o que acrescento à foto e que todavia já está nela” (Cf. BARTHES Op. cit., p. 52). Assim, de certa perspectiva parece que o punctum se mostra: não é algo que noto como mais um elemento do todo, algum detalhe que tenho que forçar os olhos para perceber; é algo que me transpassa, que vem até mim. Por outro lado, porém, ele é um suplemento, algo que acrescento à foto. Então há, inequivocamente, atuação dos olhos que vêem a foto na criação e identificação do punctum. Ele me aparece, mas eu o coloco lá. O jogo é duplo, e por isso é insuficiente dizer, sem mais explicações, que o punctum se mostra. de modo que o observador não possa deixar de percebê-los. A diferença está no fato de que estão em planos diferentes: um está no plano da imagem e outro, no mundo (no “plano da vida”, se preferir). Resta investigar se a transposição entre os planos é possível − se é possível que o gesto no mundo passe para o gesto na foto sem perder seu valor enquanto tal. Se verificarmos que não há entraves a isso, temos já uma resposta positiva à pergunta que deu título ao nosso texto.

Para falar da Fotografia sob o modo como Roland Barthes a concebe, não podemos deixar de mencionar que o noema da foto é “isso foi”. O que há de mais imediato quando olhamos certa fotografia − a saber, o sentimento, impressão ou espanto de perceber que aquilo fotografado um dia já foi, já ocorreu − é justamente seu noema, sua concepção. Bem, temos aí certamente mais uma pista: quando uma foto retrata um ato, está embutida nela a verdade de que aquele ato foi praticado. Tal parece ser outro vestígio de resposta positiva à pergunta “pode a foto capturar o gesto?”, já que, fotografando-o, ela nos mostra que aquilo foi, que aquele gesto realmente ocorreu. Ainda assim, não podemos dizer que o noema da fotografia responde nossa pergunta base: afinal, é possível que certa foto nos diga que um gesto foi em algum momento praticado, mas que ela não o retrate como gesto em si. Ou seja, a foto pode mostrar que o gesto foi sem congelá-lo, pará-lo no tempo, arrancá-lo do mundo à imagem.

Não podemos continuar o texto sem antes expor outra característica do ato: que ele está sempre na iminência de tornar-se gesto ou de apagar-se sem deixar rastros. Está sempre na iminência de tomar um significado ou outro, ou significado nenhum. Galard deixa isso claro quando usa como exemplo a conduta da sedução: no contexto de seduzir, um gesto pode ser implementado com intenção amorosa mas, caso a resposta recebida do outro não seja a esperada, o gesto pode rapidamente anular-se como ato (um gesto de carinho pode tornar-se um ato casual, de amizade) (Galard, 1997GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética das condutas. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Edusp, 1997.). A questão está justamente no fato de que, se anulado pela situação, o gesto nunca foi: não é como se tivéssemos dito algo que, no momento seguinte, perdeu o sentido − mesmo tendo perdido o sentido, no caso da fala, temos que admitir que tais e tais palavras foram proferidas. Não é o mesmo com o gesto, pois ele só é efetivamente gesto por ter adquirido sentido, por ter sido semantizado. No momento em que é dessemantizado, ele nunca foi. É por isso que está sempre na iminência de efetivar-se como gesto ou desaparecer: pois é proferido tendo sempre no horizonte sua própria aniquilação. É como se o gesto, ao ser praticado, fosse perseguido pelo espectro de seu duplo, do oposto de si mesmo, do não-gesto (e tal espectro estivesse sempre prestes a insurgir-se sobre ele)14 14 Dissemos que não era nosso intuito postular aqui qualquer tipo de ontologia do gesto. É lícito, porém, que, a partir do que foi descrito, perguntemos: seria de todo modo possível postular uma ontologia ao gesto? Pelo que foi descrito, fica difícil pensar no ser do gesto. Se ele está sempre sob ameaça de apagar-se do mundo, como podemos dizer que o gesto é? E como, portanto, pensar numa ontologia do gesto se já não sabemos se o gesto efetivamente é? Reflexões mais profundas sobre isso ficam para outro momento, mas consideramos importante enunciá-las. . Galard explicita isso bem quando diz que “ele [o gesto] diz perfeitamente o que quer dizer, mas, de repente, cala-se, apaga-se, não é preciso nele deter-se, nunca foi um gesto15 15 Cf. GALARD, Op. cit., p. 33. ”.

Nosso caminho, antes reto, torna-se agora tortuoso. Parecíamos andar rumo a uma resposta positiva à pergunta “pode a foto capturar o gesto?”, mas o dado de que o gesto está sempre na iminência de anular-se como tal nos obriga a pensar melhor. Dissemos antes que uma fotografia traz a concepção de que isso foi e que talvez, por essa razão, ela pudesse representar o gesto, congelá-lo em imagem, de modo a mostrar-nos que ele foi. Essa possibilidade precisa agora ser revista − como podemos transpor o gesto do mundo à imagem se, no próprio mundo, ele pode rapidamente anular-se? Em outras palavras, como pode um gesto ser na foto se, no mundo, não sabemos efetivamente se ele é? Ainda assim, não podemos de pronto assumir que a foto é destituída de poder para capturar o gesto. Lembremos do punctum da fotografia: ora, ainda há algo na foto que me punge e este pungir é estranhamente semelhante ao efeito do gesto! Mesmo que um certo comportamento possa tornar-se gesto e também anular-se, quando tomo-o por gesto ele me obriga a observá-lo − tal como o punctum, ele me transpassa.

É preciso mencionar ainda outra característica do gesto: o fato de que este não tem fronteiras. Quando um ato torna-se gesto, isso acontece sempre partindo da situação na qual ele se encaixa e, para tal situação, não é possível estabelecer com precisão início ou fim. Tomemos novamente como exemplo a conduta da sedução: se pratico um gesto amoroso com minha ou meu amante e ele é entendido como tal, semantizado como gesto de amor, o gesto não se encerra no movimento de meu corpo, uma vez que eu não poderia aplicar o mesmo movimento em outras situações e ser entendido da mesma forma (se eu aplicar o mesmo movimento em um contexto no qual não caiba sedução, serei certamente tomado por estranho ou louco). O gesto também não se encerra no meu movimento e na reação da(o) amante, já que não poderíamos ser transplantados para qualquer situação e conservar o mesmo sentido do gesto. O gesto, portanto, decerto encerra-se na própria situação que o constitui e isso leva em conta: a mim, meu movimento, a(o) amante, sua reação, o lugar no qual estamos, o espaço que nos envolve e o tempo no qual estamos inseridos. O gesto encerra-se na situação e não há limite entre onde começa e onde termina determinada situação − assim, não há limite claro entre gesto e não gesto. Seria realmente penosa a tarefa de atribuir fronteiras ao gesto. Pois onde ele começaria? No próprio movimento? Antes dele, porém, há a intenção, e sem intenção não há gesto. Começaria então quando surge no pensamento a intenção do gesto? Mas como demarcar este início? Enfim, o esforço seria hercúleo e inútil.

Na contramão disso está a fotografia. Não posso, de forma alguma, ignorar que há limites à fotografia e que os limites estão dados. Uma foto começa e termina no campo que o olho da câmera é capaz de perceber. Como diz Susan Sontag em sua obra On photography, “a fotografia é uma fatia fina de espaço, bem como de tempo”16 16 SONTAG, Susan. On photography. New York: Rosetta Books, 2005. p. 17, tradução nossa. No original: the photograph is a thin slice of space as well as time. . O termo fatia expressa bem as fronteiras entre foto e não foto: uma fatia é algo delimitado, ao qual é estabelecido um início e um fim; no caso da foto, esses limites são dados por características espaciais e temporais. Devemos pensar então se algo com fronteiras definidas pode captar algo sem limites − nem espaciais e nem temporais. Pensar nisso é pensar no poder de condensação da foto: se ela for capaz de apreender o gesto em sua totalidade, ela é capaz de condensar espaço e tempo e conservar suas características próprias. Se é capaz de capturar o gesto, a foto consegue compendiar espaço e tempo ilimitados em um só momento17 17 Vale a pena tomar nota do que diz sobre isso Vilém Flusser, no texto Filosofia da Caixa Preta: “na realidade, porém, o fotógrafo somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está inscrito no aparelho. E para que algo seja fotografável, deve ser transcodificado em cena. O fotógrafo não pode fotografar processos” (FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985. p. 19). O fotógrafo, portanto, não fotografa processos. O que, afinal, seria o gesto, além de um processo no qual não há início nem fim decodificáveis? .

Usamos a figura do dândi no início de nossa análise como exemplo de um personagem para o qual o gesto não está no espalhafato, e sim nas nuances; não está na estranheza exacerbada, e sim na elegância. Falemos agora daquele que tanto dissertou sobre o dândi, daquele cuja elegância nenhum dândi pode ignorar e cuja pena capta a mais enigmática das nuances: Charles Baudelaire. Ainda é preciso ouvir de Baudelaire algumas asserções sobre a fotografia. Na carta “Salão de 1859”, enviada ao diretor da Revista Francesa, o autor tece duras críticas (como não é raro) à fotografia e ao que chama de pintura e poesia naturais (realistas). É dito que a fotografia, se entendida como arte − como criação artística −, age como aniquiladora de faculdades. Diz ele que o “gosto exclusivo pelo Verdadeiro (tão nobre quando limitado a suas verdadeiras aplicações) reprime e sufoca o amor pelo belo. Onde seria necessário ver tão somente o belo (…), nosso público busca apenas o Verdadeiro”18 18 BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. In: COELHO, Teixeira (ed.). A modernidade de Baudelaire. Tradução Suely Cassal. São Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 70. . É claro que buscar o Verdadeiro não é uma tarefa indigna, mas é claro também que, se à arte só sobra a busca pelo Verdadeiro, reina a mais maléfica das mediocridades. A arte deve ser sobre o possível, sobre o sonhado e, nela, deve sempre reinar a imaginação (à qual Baudelaire dá o singelo apelido de rainha das faculdades). A “guinada ao real” descrita pelo autor, dada pela pintura natural19 19 Baudelaire designa por pintura natural aquela que tenta representar fielmente a natureza, preservando todos os seus detalhes e proporções. Dois exemplos que se adequam à categoria de pintores naturais são Ingres e Courbet, ambos contemporâneos de Baudelaire. No ensaio intitulado “Ingres”, o poeta medita sobre os dois pintores e, embora reconheça inegável talento, diz que os dois sofreram da morte da imaginação (Baudelaire, 1981). e muito impulsionada pelo advento da fotografia, aniquila a faculdade da imaginação ao debruçar-se apenas sobre uma reprodução (imitação?) precisa da natureza, mirando a tal da realidade (ou ao menos o que se entende por realidade). O público, crente na verdade da natureza, recebe a nova guinada de braços abertos e repete que a arte é somente o real e que a fotografia, portanto, é a única arte.

É trivial dizer que Baudelaire daria resposta negativa à pergunta “pode a foto capturar o gesto?”. Tomar a fotografia como arte leva certamente à extinção da faculdade da imaginação − o que, por sua vez, é sinônimo de apequenamento do espírito artístico. Se Baudelaire aceitasse a descrição de Jean Galard de gesto − basicamente, ato observado ao qual é embutido valor estético −, não haveria como dizer que a fotografia, destituída de valor artístico, pudesse captar plenamente um ato tomado do ponto de vista estético, um ato poético. Baudelaire (se concordasse com Galard) talvez dissesse que a foto empobrece até o próprio gesto e que o confina ao universo do simples arquivado (documentado). É sem dúvida preciso ficar atento a exageradas (por vezes inequívocas) especulações, mas não parece ser demasiado especulativo assumir, partindo de sua crítica à fotografia, que Baudelaire diria que a foto não pode apreender o gesto.

Ainda na carta “Salão de 1859”, Baudelaire, irritado com a índole dos artistas de sempre copiarem a natureza e tentarem fazê-lo com o máximo de detalhes (pois, afinal, a eles não há maior prazer do que uma boa cópia da natureza), pergunta em tom provocativo se esses artistas “estão convencidos da existência da natureza externa ou, se essa questão lhes tivesse parecido bem-feita demais para lhes acender a causticidade, se estão de fato certos de conhecer toda a natureza, tudo o que está contido na natureza”20 20 Cf. BAUDELAIRE, 1981. p. 71. . É mais seguro assumir que Baudelaire aí estivesse referindo-se à pintura (ao estilo que pretende reproduzir o real) do que à fotografia. Parece, porém, que tal pergunta pode ser estendida também à foto − aliás, Susan Sontag responde tal pergunta na obra On photography, quando diz que “não é a realidade que as fotografias tornam imediatamente acessível, mas imagens”21 21 Cf. SONTAG, Op. cit. p. 128, tradução nossa. No original: it is not reality that photographs make immediately accessible, but images. . Temos, aí, claramente uma resposta negativa à possibilidade da foto capturar o gesto, já que ela está atestando precisamente que não, não é possível transpô-lo como gesto no plano da imagem, pois este não é mais o plano da realidade. Sontag não parece estar lutando contra o noema da fotografia descrito por Barthes − ela não parece estar negando o fato de que aquilo que é fotografado um dia foi −, mas contra a crença de que o mundo possa ser transposto na imagem como mundo em si. Aplicando a pergunta de Baudelaire à fotografia, vê-se que caímos em mais imbróglios com relação à questão que aqui pensamos.

É interessante traçar um contraponto entre Baudelaire e o teórico André Bazin sobre a questão da foto e entre esta e a pintura22 22 É preciso notar o perigo de fazer comparações, principalmente tratando-se de um autor do século XX e outro do século XIX: não queremos de modo algum cair em anacronismos. Admitimos que a comparação entre Bazin e Baudelaire tem inescapáveis limitações - talvez a maior delas seja que, enquanto, na época de Bazin, a fotografia já era algo conhecido e estabelecido (era menos uma novidade do que um artefato do mundo), na época de Baudelaire ela dava seus primeiros passos. A bem da verdade, a primeira foto, atribuída a Joseph Nicéphore Niépce, foi tirada apenas cinco anos após o nascimento do poeta. Isso torna a comparação um pouco mais complexa; ainda assim, não parece comprometê-la: afinal, os dois autores falam dos mesmos objetos (fotografia e pintura), e eles próprios os comparam mutuamente. Às vezes, parece mais frutífero enfrentar os perigos de uma comparação inadequada do que resumir a análise a um único e restrito período de tempo. . No ensaio “A ontologia da imagem fotográfica”, Bazin vê na fotografia a redenção da pintura de ansiar por reproduzir a realidade (o que Baudelaire chamaria de busca por somente o Verdadeiro). O que, para o poeta, é maléfico e que não pode ser tomado como arte, para Bazin é a própria solução para a pintura, que a livra das amarras de reproduzir fielmente o real - esse papel é concedido à foto, que o desempenha com inegável superioridade, deixando que a pintura persiga outros fins23 23 Talvez, por outro lado, possamos traçar uma certa semelhança entre os dois autores, na medida em que Bazin admite que o elemento criativo e subjetivo é muito menor na fotografia do que na pintura. A primeira tem caráter objetivo e concede ao fator humano unicamente a liberdade de escolher o objeto a ser fotografado. Portanto, apesar de não “aniquilar faculdades”, a fotografia recorre menos a recursos “artísticos” do que a pintura. Mas isso, segundo Bazin, está longe de ser um demérito, afinal, “todas as artes se baseiam na presença do homem, apenas a fotografia tira vantagem em sua ausência” (BAZIN, André. What is cinema? v. I. Tradução Hugh Gray. Berkeley: University of California Press, 1967. p. 13, tradução nossa). Na tradução inglesa: “all the arts are based on the presence of man, only photography derives an advantage from his absence”. . Podemos, ainda, contrapô-lo também à Susan Sontag: no ensaio Teatro e Cinema, Bazin coloca que “em nenhum sentido ela [a Fotografia] é a imagem de um objeto ou pessoa, mais corretamente ela é seu traço”24 24 Cf. BAZIN, Op. cit. p. 96, tradução nossa. Na tradução inglesa: “in no sense is it the image of an object or person, more correctly it is its tracing”. . Não são, portanto, como queria Sontag, imagens que a fotografia torna disponível ao observador, mas um traço do fotografado. Há, assim, um componente identitário entre o objeto no mundo e na foto: o objeto na foto não reproduz o objeto no mundo, mas compartilha com ele uma mesma identidade - o objeto fotografado, de certo modo, é o objeto em si. Bem, é claro que disso emerge novamente a questão do gesto e, de novo, a possibilidade de respondê-la positivamente: se a fotografia é um traço do objeto fotografado que carrega sua identidade, por que não carregaria o gesto praticado no momento da foto? Se é este o caso, então uma foto que parece conter a cópia de um gesto traz, em verdade, seu traço, o traço do gesto em si.

Resta analisar um último fator que pode, se não resolver a questão, ao menos conceder à possibilidade de apreender o gesto pela fotografia um tom mais otimista. No ensaio Teatro e Cinema, Bazin diz que a tela do cinema tem o privilégio - que, a princípio, a foto não tem - de ir além de si mesma: “Quando um personagem sai de cena, nós aceitamos o fato de que ele está fora do nosso campo de visão, mas continua a existir segundo sua própria capacidade em algum outro lugar do cenário, escondido de nós”25 25 Cf. BAZIN, Op. cit. p. 105, tradução nossa. Na tradução inglesa: “when a character moves off screen, we accept the fact that he is out of sight, but he continues to exist in his own capacity at some other place in the decor which is hidden from us”. . Isso significa que a tela do cinema ultrapassa sua aparente fronteira por nos mostrar algo que, em parte, esconde - ela nos mostra, ou nos leva a intuir, que o personagem existe para além dela, que ela apenas o ocultou. A princípio, a fotografia não teria essa capacidade por ser imóvel: seus limites espaciais estão muito bem definidos, tal como a fatia de tempo (momento) em que se situa (já observamos tais características quando falávamos de Susan Sontag). Portanto, não parece haver esconderijo, como há na tela do cinema - a foto, ao contrário, à primeira vista mostra tudo que mostra e não mostra o que está além dela. Mas isso, como frisamos, dá-se à primeira vista: uma foto olhada a partir do studium é incapaz de produzir esse fenômeno. Quando, porém, há na foto um punctum, a questão muda de figura: o punctum, ao obrigar-nos a percebê-lo e ao coagir nosso interesse, transpassa-nos e nos leva para além do frame, tal como pode fazer a tela do cinema. O punctum faz com que o objeto extravase a foto, pois, percebendo-o, imaginamos sua história, sua vida e, assim, sua existência (e não apenas sua reprodução).

Barthes irá atribuir ao punctum a criação de um ponto cego na foto26 26 Cf. BARTHES, Op. cit., p. 105. , essa janela de imaginação que nos leva para fora do fotografado. Talvez seja, portanto, precisamente essa a absorção possível do gesto: como ponto cego do punctum da fotografia. Este nos leva do campo limitado do frame ao campo ilimitado do gesto - como já foi dito, um gesto não tem começo nem fim, pode ser pelo ponto cego da fotografia que apreendamos, assim, o gesto sem fronteiras.

Chegamos, por fim, ao desfecho de nossa breve reflexão acerca do possível poder da foto de capturar o gesto. Não parece haver opção melhor do que terminá-la com uma fotografia, já que a foto desempenha o papel de consumação própria dessa análise (Fig. 1).

Fig. 1
[Sem título]. Fonte: Coleção Francisco Rodrigues.

A foto é de autoria desconhecida e faz parte da Coleção Francisco Rodrigues. Ela retrata Antônio Epaminondas de Barros Correia (o Barão de Contendas), Cícero de Barros Correia, Ageleu Domingues da Silva e um amigo não identificado. Não sabemos a data exata em que a foto foi tirada, mas estimamos que tenha sido entre os anos de 1860 e 1870, pois esses são os anos de juventude do Barão de Contendas. Trata-se, em suma, de um retrato da alta sociedade pernambucana do século XIX. A foto, que não tem, à primeira vista, nenhum elemento extravagante ou incomum, decerto causa-nos algum interesse histórico: os chapéus cobrindo as cabeças dos três primeiros jovens, os bigodes, a bengala e os ternos todos iguais nos fazem lembrar de filmes de época e fazem com que se imponha sobre nossa imaginação um rápido pout-pourri de imagens do que pensamos ter sido aquele tempo: ruas não asfaltadas, vestidos bufantes, bailes monárquicos e carros que mais pareciam carruagens. Tudo isso é parte do studium da foto. Mas há nela também um punctum: a pose do segundo jovem apoiado sobre o que parece ser uma mureta, mais relaxado do que os outros, segurando frouxamente a bengala com uma das mãos, deixando a outra também frouxa como se estivesse à espera de algo para segurar e olhando longe um vazio qualquer, produz uma reação difícil de descrever e mais difícil ainda de se ignorar. Ela punge, de modo que a foto aos poucos desaparece e vai se tornando somente a pose, as mãos, a bengala e o olhar do segundo jovem. Seria isso produzido pela inadequação do homem ao espírito da foto? Ou seja, a foto exala um tom grave e cerimonioso e a pose despreocupada do jovem contraria esse tom? Ou seria o punctum produzido por seu olhar longínquo e melancólico, que inspira melancolia também ao observador? Bem, é inútil perguntar, pois não é possível saber (e o inexplicável é um dos caráteres do punctum). Resta, porém, uma pergunta talvez mais interessante (a esta altura, o leitor já deve tê-la adivinhado): é o comportamento do segundo jovem da fotografia um gesto? Já sabemos por intermédio de Galard que o comedimento e a discrição podem ser caráteres do gesto (sendo a figura do dândi seu expoente próprio): poderia, portanto, esse pequeno ato - o olhar, as pernas, as mãos e a bengala - insurgir-se ao observador como gesto? Com certeza parece ser o caso. Mas o gesto talvez tenha sido mais robusto, complexo e mais significativo do que podemos inferir pela foto! Talvez tenha causado grande reação às pessoas ao redor, talvez seus colegas tenham percebido o caráter daquele gesto muito mais do que nós! Somos, enfim, abandonados com a frustrante e irreprimível sensação de que nunca saberemos, de que o que a foto nos mostra é por inteiro indecodificável. Mas, pensando no que discutimos há pouco, é preciso perguntar: não seriam, afinal, essas elucubrações a própria apreensão do gesto? Não seria esse “imaginar o que há por trás da câmera” o exercício que nos joga para além da foto, ao ponto cego - ponto que vai diretamente de encontro ao gesto? Quando imaginamos o modo como o gesto do segundo jovem reverberou entre os demais, ou qual poderia ter sido o movimento completo daquele ato que lhe confere caráter de gesto, parece que estamos de certo modo capturando sua plenitude. Resta saber, é claro, se o que capturamos é o vestígio do gesto ou gesto em si mesmo. Enfim, terminamos aqui nossa pequena análise, à qual sobrevive − nós sabemos − a dúvida.

Bibliografia

  • BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
  • BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. In: COELHO, Teixeira (ed.). A modernidade de Baudelaire. Tradução Suely Cassal. São Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 39-79.
  • BAUDELAIRE, Charles.; BALZAC, Honoré de.; D’AUREVILLY, Jules Barbey. O dandismo e George Brummel. In: D’AUREVILLY, Jules Barbey. Manual do dândi: a vida com estilo. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
  • BAZIN, André. What is cinema? v. 1. Tradução Hugh Gray. Berkeley: University of California Press, 1967.
  • DERRIDA, Jacques. Athens, Still Remains. Tradução Pascale Anne Brault e Michael Naas. New York: New Fordham University Press, 2010.
  • FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.
  • GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética das condutas. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Edusp, 1997.
  • SONTAG, Susan. On photography. New York: Rosetta Books, 2005.
  • 1
    É claro que a complexidade do gesto descrita por Jean Galard não se resume simplesmente a “ato observado”. Há diversas nuances, que serão tratadas no decorrer do texto; porém, é inegável que a percepção é fundamental para caracterizá-lo e que não há como falar sobre gesto sem mencioná-la. Isso fica claro quando Galard diz que “o gesto nada mais é do que o ato considerado na totalidade de seu desenrolar, percebido enquanto tal, observado, captado” GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética das condutas. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Edusp, 1997. p. 27.
  • 2
    BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
  • 3
    A palavra natureza, aqui, é usada em sentido fraco: não pretendemos estabelecer uma ontologia do gesto; usamos tal palavra como se disséssemos “do que se trata”, ou seja, pensar na pergunta “pode a foto capturar o gesto?” nos permite pensar “do que se trata o gesto”.
  • 4
    Cf. GALARD, Op. cit., p. 27.
  • 5
    Diz Galard que “como não existe, ao que parece, qualquer movimento que se encontre sempre em posição semanticamente neutra, e tampouco existe algum que esteja definitivamente à margem do processo de dessemantização, deve-se esperar que, no conjunto dos usos corporais, a classe dos gestos seja móvel”. Cf. GALARD, Op. cit., p. 32.
  • 6
    Cf. GALARD, Op. cit., p. 51.
  • 7
    BAUDELAIRE, Charles.; BALZAC, Honoré de.; D’AUREVILLY, Jules Barbey. O dandismo e George Brummel. In: D’AUREVILLY, Jules Barbey. Manual do dândi: a vida com estilo. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 130.
  • 8
    Cf. GALARD, Op. cit., p. 63.
  • 9
    A palavra aparecer nos faz lembrar de Jacques Derrida, quando o autor diz que a “fotografia faz aparecer na luz do phainesthai”. Na tradução inglesa: “photography makes appear in the light of the phainesthai” (DERRIDA, Jacques. Athens, Still Remains. Tradução Pascale Anne Brault e Michael Naas. New York: New Fordham University Press, 2010. p. 27.) A fotografia, portanto, faz aparecer na luz do que aparece (do que se mostra). A frase pode assemelhar-se a uma tautologia, mas seu significado é muito mais profundo: segundo Derrida, a foto faz com que o que aparece se mostre no âmbito do fenômeno. Se o gesto nos aparece, por que então não poderia ser captado pela câmera? Parece óbvio que a foto pode apreender o gesto (e, no léxico de Derrida, fazê-lo aparecer na luz do phainesthai), mas já adiantamos que serão expostas controvérsias a isso.
  • 10
    Usamos “não harmônica” para explicar que o olhar dirigido ao gesto não pode ver os eventos como um todo harmônico − o gesto tem que se destacar para tornar-se gesto. Podemos dizer que o gesto introduz um desvio em uma situação.
  • 11
    Cf. BARTHES Op. cit., p. 29.
  • 12
    É interessante citar a definição completa de punctum dada por Barthes. Diz ele: “o segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo, é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete também à ideia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis; essas marcas, essas feridas são precisamente pontos. Esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte - e também lance de dados. O punctum de uma foto é aquele acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (Cf. BARTHES Op. cit., p. 29).
  • 13
    Talvez mostrar não seja o melhor termo para tratar do punctum. Não é ponto pacífico dizer que o punctum se mostra. O autor explicita isso quando diz que “quer esteja delimitado ou não, [o punctum] trata-se de um suplemento: é o que acrescento à foto e que todavia já está nela” (Cf. BARTHES Op. cit., p. 52). Assim, de certa perspectiva parece que o punctum se mostra: não é algo que noto como mais um elemento do todo, algum detalhe que tenho que forçar os olhos para perceber; é algo que me transpassa, que vem até mim. Por outro lado, porém, ele é um suplemento, algo que acrescento à foto. Então há, inequivocamente, atuação dos olhos que vêem a foto na criação e identificação do punctum. Ele me aparece, mas eu o coloco lá. O jogo é duplo, e por isso é insuficiente dizer, sem mais explicações, que o punctum se mostra.
  • 14
    Dissemos que não era nosso intuito postular aqui qualquer tipo de ontologia do gesto. É lícito, porém, que, a partir do que foi descrito, perguntemos: seria de todo modo possível postular uma ontologia ao gesto? Pelo que foi descrito, fica difícil pensar no ser do gesto. Se ele está sempre sob ameaça de apagar-se do mundo, como podemos dizer que o gesto é? E como, portanto, pensar numa ontologia do gesto se já não sabemos se o gesto efetivamente é? Reflexões mais profundas sobre isso ficam para outro momento, mas consideramos importante enunciá-las.
  • 15
    Cf. GALARD, Op. cit., p. 33.
  • 16
    SONTAG, Susan. On photography. New York: Rosetta Books, 2005. p. 17, tradução nossa. No original: the photograph is a thin slice of space as well as time.
  • 17
    Vale a pena tomar nota do que diz sobre isso Vilém Flusser, no texto Filosofia da Caixa Preta: “na realidade, porém, o fotógrafo somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está inscrito no aparelho. E para que algo seja fotografável, deve ser transcodificado em cena. O fotógrafo não pode fotografar processos” (FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985. p. 19). O fotógrafo, portanto, não fotografa processos. O que, afinal, seria o gesto, além de um processo no qual não há início nem fim decodificáveis?
  • 18
    BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. In: COELHO, Teixeira (ed.). A modernidade de Baudelaire. Tradução Suely Cassal. São Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 70.
  • 19
    Baudelaire designa por pintura natural aquela que tenta representar fielmente a natureza, preservando todos os seus detalhes e proporções. Dois exemplos que se adequam à categoria de pintores naturais são Ingres e Courbet, ambos contemporâneos de Baudelaire. No ensaio intitulado “Ingres”, o poeta medita sobre os dois pintores e, embora reconheça inegável talento, diz que os dois sofreram da morte da imaginação (Baudelaire, 1981BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. In: COELHO, Teixeira (ed.). A modernidade de Baudelaire. Tradução Suely Cassal. São Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 39-79.).
  • 20
    Cf. BAUDELAIRE, 1981BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1859. In: COELHO, Teixeira (ed.). A modernidade de Baudelaire. Tradução Suely Cassal. São Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 39-79.. p. 71.
  • 21
    Cf. SONTAG, Op. cit. p. 128, tradução nossa. No original: it is not reality that photographs make immediately accessible, but images.
  • 22
    É preciso notar o perigo de fazer comparações, principalmente tratando-se de um autor do século XX e outro do século XIX: não queremos de modo algum cair em anacronismos. Admitimos que a comparação entre Bazin e Baudelaire tem inescapáveis limitações - talvez a maior delas seja que, enquanto, na época de Bazin, a fotografia já era algo conhecido e estabelecido (era menos uma novidade do que um artefato do mundo), na época de Baudelaire ela dava seus primeiros passos. A bem da verdade, a primeira foto, atribuída a Joseph Nicéphore Niépce, foi tirada apenas cinco anos após o nascimento do poeta. Isso torna a comparação um pouco mais complexa; ainda assim, não parece comprometê-la: afinal, os dois autores falam dos mesmos objetos (fotografia e pintura), e eles próprios os comparam mutuamente. Às vezes, parece mais frutífero enfrentar os perigos de uma comparação inadequada do que resumir a análise a um único e restrito período de tempo.
  • 23
    Talvez, por outro lado, possamos traçar uma certa semelhança entre os dois autores, na medida em que Bazin admite que o elemento criativo e subjetivo é muito menor na fotografia do que na pintura. A primeira tem caráter objetivo e concede ao fator humano unicamente a liberdade de escolher o objeto a ser fotografado. Portanto, apesar de não “aniquilar faculdades”, a fotografia recorre menos a recursos “artísticos” do que a pintura. Mas isso, segundo Bazin, está longe de ser um demérito, afinal, “todas as artes se baseiam na presença do homem, apenas a fotografia tira vantagem em sua ausência” (BAZIN, André. What is cinema? v. I. Tradução Hugh Gray. Berkeley: University of California Press, 1967. p. 13, tradução nossa). Na tradução inglesa: “all the arts are based on the presence of man, only photography derives an advantage from his absence”.
  • 24
    Cf. BAZIN, Op. cit. p. 96, tradução nossa. Na tradução inglesa: “in no sense is it the image of an object or person, more correctly it is its tracing”.
  • 25
    Cf. BAZIN, Op. cit. p. 105, tradução nossa. Na tradução inglesa: “when a character moves off screen, we accept the fact that he is out of sight, but he continues to exist in his own capacity at some other place in the decor which is hidden from us”.
  • 26
    Cf. BARTHES, Op. cit., p. 105.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2019
  • Aceito
    10 Jun 2019
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