Acessibilidade / Reportar erro

ARTE INDÍGENA CONTEMPORÂNEA: APONTAMENTOS PARA UMA PERSPECTIVA NÃO EUROCÊNTRICA DA HISTÓRIA DA ARTE NO BRASIL

INDIGENOUS CONTEMPORARY ART, NOTES FOR A NON-EUROCENTRIC VIEW OF ART HISTORY IN BRAZIL

ARTE INDÍGENA CONTEMPORÁNEO: APUNTES PARA UNA PERSPECTIVA NO EUROCÉNTRICA DE LA HISTORIA DEL ARTE EN BRASIL

RESUMO

Este artigo visa a demonstrar como a cultura indígena há muito tempo passa ao largo do pensamento visual brasileiro e avalia as possibilidades de se pensar sua história a partir de artistas indígenas. Apresenta revisão teórica e documental acerca das formas como a História da Arte e o pensamento visual desenvolvido no Brasil tratam a produção estético-artística dos povos originários. Propõe a possibilidade de se revisar a história da arte, incorporando o pensamento de artistas indígenas, haja vista a necessidade de uma virada epistemológica na História da Arte para dar conta das diferenças existentes no Brasil e na América Latina.

PALAVRAS-CHAVE
Arte indígena contemporânea; História da arte; Arte contemporânea

ABSTRACT

This article demonstrate how indigenous culture has long been absent from Brazilian visual thinking and evaluates the possibilities of thinking about its history from indigenous artists point of view. It presents a theoretical and documentary review of the ways in which art history and visual thinking developed in Brazil deal with the artistic aesthetic production of the indigenous peoples. It proposes the possibility of revising the history of art, incorporating the thought of indigenous artists, given the need for an epistemological turn in the History of Art to account for the differences that exist in Brazil and Latin America.

KEYWORDS
Indigenous Contemporary Art; Art History; Contemporary Art

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo demostrar cómo la cultura indígena ha sido passada por alto durante mucho tiempo en el pensamiento visual brasileño y evalúa las possibilidades de pensar su historia a partir de artistas indígenas. Presenta una revisión teórica y documental sobre cómo la Historia del Arte y el pensamiento visual desarrollado en Brasil abordan la producción estético-artística de los pueblos originarios. Propone la posibilidad de revisar la historia del arte, incorporando el pensamiento de artistas indígenas, dada la necesidad de un cambio epistemológico em la Historia del Arte para dar cuenta de las diferencias existentes en Brasil y América Latina.

PALABRAS CLAVE
Arte indígena contemporáneo; Historia del arte; Arte contemporáneo

INTRODUÇÃO

Segundo Benjamin ( 2014BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk, 2014. ), há um processo de revolvimento 1 1 O texto citado neste artigo utiliza a tradução de revolvimento ao invés de revolução: “Umwälzung, que é formado a partir do verbo umwälzen [revirar, revolver]; na forma substantivada significa revolução, num sentido mais neutro, ou transformação radical, por isso, optou-se aqui pelo termo correspondente em português, ‘revolvimento’. O termo Revolution foi traduzido por ‘revolução’, e revolutionär por ‘revolucionário’” (Benjamin, 2014 , p. 10-11). comum a todas as sociedades, no qual a superestrutura 2 2 Na teoria marxista entende-se a divisão entre base ou estrutura e superestrutura, que, grosso modo, corresponde a todos os sistemas político e jurídico que determinam muito da vida em sociedade (De Mello; Malta, 2017 ). muda muito mais lentamente do que a estrutura. Tendo como análise as mudanças na sociedade europeia que levaram ao surgimento das formas de arte reprodutíveis, o autor afirmou que essas alterações levaram mais de meio século para se fazerem valer em todo o domínio da cultura. O filósofo frankfurtiano tinha a esperança de que os conceitos desenvolvidos em seu ensaio pudessem ser “utilizados para a formulação das exigências revolucionárias na política da arte” (Benjamin, 2014BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk, 2014. , p. 11).

O propósito deste artigo é argumentar acerca da arte indígena contemporânea 3 3 Jaider Esbell, artista indígena do povo Macuxi, defende que apesar de fazer arte desde sempre, a produção contemporânea tem propósitos atuais socializando “com o mundo a visão do artista que carrega em suas obras referências ancestrais no contexto da contemporaneidade”. Dessa forma, coloca a arte indígena contemporânea nos debates mundiais, seja sobre a arte em si, a arte ativismo ou a causa ambiental e os direitos indígenas (Esbell, 2016 ). produzida por artistas como Jaider Esbell (Normandia, RR, 1979), Ge (Índio Loru), Emerson Pontes/Uýra Sodoma, Daiara Tukano e Denilson Baniwa, dentre outros, e de como as expressões dos vários povos originários mostram o incipiente revolvimento das artes e, consequentemente, da História da arte. Entende-se a necessidade de inclusão dessa produção estético-artística no pensamento sobre a arte brasileira, e também latino-americana, porque, como apontam Els Lagrou e Lucia Hussak van Velthem ( 2018LAGROU, E., & VELTHEM, L. H. van. (2018). As artes indígenas: olhares cruzados. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, (87), 2018, 133–156. ), os avanços dos últimos 30 anos a respeito dessa discussão ainda se mostram tímidos. É de se imaginar que o Brasil está, no mínimo, atrasado no revolvimento do campo da arte, no que diz respeito à produção estético-artística dos povos indígenas após mais de 500 anos da invasão do território de Pindorama.

Buscam-se elementos para o entendimento de cultura e suas relações com os povos originários a partir da concepção de Manuela Carneiro da Cunha ( 2017CUNHA, Manuela Carneiro da. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais. In Cultura com aspas e outros ensaios: Manuela Carneiro da Cunha. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 304-369. ) sobre cultura com aspas, da perspectiva de arte popular de Ticio Escobar ( 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. ) e da discussão sobre a necessidade de um pensamento visual latino-americano, defendida por Andrea Giunta ( 1996GIUNTA, Andrea. América latina en disputa: apuntes para una historiografía del arte latinoamericano. Presentado en el International Seminar Art Studies from Latin America, Instituto de Investigaciones Estéticas, UNAM and The Rockefeller Foundation, Oaxaca, 1-5 fev. 1996. ), de forma a situar a proposição em uma postura teórica decolonial, assentada em bases que pensam a realidade brasileira e a latino-americana a partir de uma reflexão pautada no contexto, que dialoga com as realidades da arte aqui encontradas. A proposição discute as visões do colonizador e da História da arte dos povos originários em paralelo ao conceito de “colonialidade”, de Aníbal Quijano ( 1992QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Peru Indígena, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. ), e de antropologia da arte como define Alfred Gell ( 2018GELL, Alfred. Arte e Agência: uma teoria antropológica. São Paulo: Ubu Editora, 2018. ), que desenvolveu uma perspectiva para além do estudo da arte “primitiva”. Dessa forma, pretende-se encontrar parâmetros para compreensão da Arte Indígena Contemporânea, bem como situar a discussão dentro da História da arte para além dos lugares comuns da “arte primitiva”.

A CONSTRUÇÃO DAS MONSTRUOSIDADES DO NOVO MUNDO

A postura dos invasores/colonizadores acerca dos povos originários da América foi, por um lado, de deslumbramento com o fato de outros humanos serem encontrados no novo continente: Seriam eles filhos de Adão? Ou quem sabe uma linhagem perdida de Noé? Por outro, de repulsa, igualando alguns relatos medievais sobre as monstruosidades do Oriente com as descobertas do Novo Mundo: suas próprias monstruosidades, hábitos bárbaros, a antropofagia apresentada como um hábito comum na Lettera , de Vespucci, edição de Giovanni Battista Ramusio (1550-1559) para a coletânea Delle Navegatione et Viaggi . Ramusio representa os nativos num momento aparentemente corriqueiro – uma mãe amamentando, dois homens conversam no canto, um terceiro segura seu arco e flecha, ao fundo, um grupo se alimenta, alguém casualmente mordendo um braço –, no qual fica sugerido que a carne que está sendo preparada provém de corpos humanos, já que algumas partes de corpos aparecem penduradas ao fundo, como se fossem a caça comum aos lares europeus. O canibalismo é retratado como se esse constituísse o dia a dia de uma refeição em uma tribo (Beluzzo, 1994BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros; Salvador: Odebrecht, 1994. ). Por sua vez, o século XIX foi mais “brando”, ao colocar os nativos como coadjuvantes do processo colonizador, aspecto visível na pintura Primeira Missa no Brasil (1860), de Victor Meirelles, na qual os representantes dos povos originários estão dispostos na parte inferior, afastados dos colonizadores que participam do ritual, alguns aparentemente assustados, outros curiosos diante do que está acontecendo. 4 4 Imagem disponível em: < https://antigo.museus.gov.br/wp-content/uploads/2012/06/PrimeiraMissaBR_VictorMeirelles.jpg >. Acesso em: 13 dez. 2023.

O colonizador sustenta um olhar para o novo filtrado pela percepção que tem de outro lugar, de modo a assegurar alguma familiaridade e dominação . Esses novos humanos causam, num primeiro momento, espanto e admiração, mas essas sensações logo são substituídas pela ojeriza ante tais “monstruosidades”. A oposição entre as “monstruosidades” animais e corporais e a “descoberta” do Novo Mundo foi impactante para o homem adamita europeu, “habitante de um mundo delimitado por fronteiras orientadas por tradições religiosas” (Gondim, 2007GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. Manaus: Valer, 2007. , p. 13), e é vital para compreender como se renovam e ressignificam as imagens acerca dos povos originários, tanto do Brasil quanto de outras localidades da América Latina. Frequentemente, tal oposição é retomada na academia e na sociedade em geral com novos termos, via de regra, dualistas – selvagem versus civilizado, culto versus étnico/popular e daí por diante. Nenhuma dessas dualidades, no entanto, consegue dar conta da complexidade da experiência dos povos originários, porque constitui um reducionismo ocidental de uma realidade que não se organiza dessa forma. Entretanto, a colonialidade do saber funciona por exclusão, como Boaventura de Sousa Santos ( 2007SANTOS, Boaventura de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 79, nov. 2007. , p. 71) bem definiu ao caracterizar o pensamento abissal, ideia segundo a qual a experiência do colonizador descreve uma linha para além da qual “há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética”. Esse modo de construir o pensamento passa por todas as expressões da intelectualidade, inclusive a arte.

No campo da arte relações similares foram estabelecidas. Apesar de relatos históricos perceberem os indígenas como excelentes artesãos, é comum sua produção estética ser prioritariamente objeto de estudo da Antropologia e Arqueologia. No que concerne aos povos originários da Amazônia Brasileira, destacamos os trabalhos de Denise Pahl Schaan ( 2001SCHAAN, Denise Pahl. Estatuetas Antropomorfas marajoara: o simbolismo de identidades de gênero. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Série Antropologia, Belém, v. 17, n. 2, p. 437-477, 2001. , 2003SCHAAN, Denise Pahl. A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista Arqueologia, v. 16, p. 31-45, 2003. , 2007aSCHAAN, Denise Pahl. A arte da cerâmica marajoara: encontros entre o passado e o presente. Habitus, v. 5, n. 1, jan./jul., 2007a. , 2007bSCHAAN, Denise Pahl. Uma janela para a história pré-colonial da Amazônia: olhando além – e apesar – das fases e tradições. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 77-89, jan-abr. 2007b. e 2012 SCHAAN, Denise Pahl. Marajoara Iconography: a Structural Approach. Disponível em: http://www.marajoara.com/Marajoara_Iconography_Structural_Approach . Acesso em: 22 fev. 2024.
http://www.marajoara.com/Marajoara_Icono...
) e Lucia Hussak van Velthem ( 1992aVELTHEM, Lucia Hussak van. Das cobras e lagartas: a iconografia Wayana. In: VIDAL, Lux. Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel; EDUSP; FAPESP, 1992a. , 1992bVELTHEM, Lucia Hussak van. Arte Indígena: Referentes sociais e Cosmológicos. In: GRUPIONI, Luis D. B. (Org.) Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal da Cultura, 1992b. e 2003VELTHEM, Lucia Hussak van. O ocidente, a Antropologia e as Artes Indígenas: elementos de compreensão. In: VELTHEM, Lucia Hussak van. O Belo é a Fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio e Alvim; Museu Nacional de Etnologia, 2003. ), que apresentam pensamento relevante acerca das artes e estéticas aqui encontradas, dando subsídios para o campo da arte se aproximar dessa produção despido, mesmo que de forma preliminar, dos preconceitos arraigados sobre o tema. Os trabalhos dessas pesquisadoras esclarecem a complexidade e a riqueza da produção estético-artística dos povos originários, tanto os do passado arqueológico quanto do contemporâneo.

Entretanto, essa linha de pensamento não pode ser traçada sem um, ainda que breve, histórico da reflexão sobre a arte e os povos originários no Brasil. O trecho a seguir da Revista de História e Geografia exemplifica um pouco essa relação:

Já é tempo de dizermos alguma cousa da grande habilidade e aptidão dos Indios da America para todas as artes e oficios da republica, em que ou vencem, ou igualam os mais destros Europeos. E posto que entre si e nos seus matos não uzam, nem exercitam officio algum, como xastres, carpinteiros, sapateiros, e outros, de que não necessitam, segundo a sua vida brutal e desnudeza em que vivem; e só exercitam a pescaria e o caçar, em que são insignes, com as suas armas de arco e flexa, como tambem são insignes nadadores e mergulhadores: com tudo nos mesmos matos fazem algumas curtosidades de debuxos e embutidos so com o instrumento de algum dente de cotia, que não só são estimados dos Europeos, mas tambem claros indicios da sua grande habilidade. Onde porém realçam mais é nas missões e casas dos brancos, em que aprendem todos os officios que lhes mandam ensinar, com tanta facilidade, destreza e perfeição como os melhores mestres, de sorte que podem competir com os mais insignes do officio.

(Revista..., 1841Revista de História e Geografia. S/A. Parte segunda do Thesouro descoberto no Rio Amazonas. Revista Trimestral de História e Geografia. Rio de Janeiro, 1841. Tomo Terceiro, p. 39-52. , p. 39, grifos nossos)

Mesmo que alguma parte da intelectualidade do século XIX percebesse a habilidade e inventividade dos indígenas, estes não farão parte do pensamento artístico brasileiro pelo menos até o século XX. Apresenta-se, a seguir, mais percepções sobre os povos originários e o desenvolvimento do pensamento visual no Brasil.

O BRASIL COMO COMUNIDADE IMAGINADA, A HISTÓRIA DA ARTE E OS POVOS ORIGINÁRIOS

O parâmetro de comparação da citação anterior, obviamente, é o europeu, como é de se esperar de um texto do século XIX. Nesse mesmo século, temos autores como Manuel de Araújo Porto Alegre, Gonzaga Duque-Estrada e Félix Ferreira, todos preocupados com a definição de uma arte brasileira e a construção da nacionalidade nacional, mas que em momento algum se ocuparam da produção estético-artística dos povos originários. 5 5 Fernanda Pitta ( 2021 ) faz uma importante análise sobre o texto de Eduardo Padro de 1889, bem como da participação do Brasil na Exposição Universal de Paris. Fica claro no texto da autora que os povos originários ali foram relegados a um passado fundacional de Brasil, deslocados para fora do tempo. É importante destacar que eles tratavam de artes visuais, mas, no Brasil daquela época, o movimento Romântico, igualmente preocupado com a identidade nacional, destacou o indígena, em sua visão idealizada desse ator social, o protótipo do “bom selvagem” rousseauniano, como parte da constituição identitária brasileira (Linhares, 2015LINHARES, Anna M. A. Um grego nu: índios marajoaras e identidade nacional brasileira. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2015. ).

Há, portanto, um dissenso entre as distintas iniciativas acerca da construção de uma identidade nacional, dentre as quais o pensamento visual academicista defendido pelos primeiros historiadores da arte no Brasil aparentemente ignorava os povos tradicionais e a arte por eles produzida. Contudo, as artes visuais e a literatura exaltavam uma figura imaginada do índio como herói romântico, “uma bela história, na qual os índios, sublimes de caráter e de sacrifício, surgiam em imagens grandiosas” (Coli, 2013COLI, Jorge. Fabricação e promoção da brasilidade: arte e questões nacionais. Perspective – Actualité em histoire de l’art, 2, 2013, Brasil, p. 1-10. , p. 3).

O século XIX foi marcado também pela “era dos museus”, com a construção do Museu Paulista (São Paulo, 1894), o Museu Nacional (Rio de Janeiro, 1808), o Museu Paraense (Emílio Goeldi, Belém, 1866) e a montagem das primeiras coleções etnográficas, o que mostrava o interesse da intelectualidade acerca dos povos indígenas. A mentalidade da época conferiu especial atenção ao tema da raça, 6 6 Para pensar sobre como o darwinismo, o positivismo e o evolucionismo afetaram o cenário brasileiro do século XIX, Schwarcz ( 2009 ) faz um balanço das teorias do século XVIII, de um lado a visão humanista de Rousseau, que proclamava a igualdade humana, e do outro a perspectiva da maldade inata do selvagem, destacando as ideias de Buffon, a carência do americano, marcada pela debilidade e imaturidade da terra, e de Pauw, que introduziu o conceito de “degeneração”, para o qual há um desvio de origem patológica e inata ao americano. A autora destaca que a segunda perspectiva se tornou hegemônica no século XIX e a noção de raça nasce como uma categoria pressupondo a superioridade branco eurocêntrica. em grande parte pela preocupação com a mestiçagem e como ela seria prejudicial, por ser a causa da “inferioridade racial” brasileira (Schwarcz, 2005SCHWARCZ, Lilia K. M. A “Era dos museus de etnografia” no Brasil: o Museu Paulista, o Museu Nacional e o Museu Paraense em finais do XIX. In: FIGUEIREDO; Betânia G.; VIDAL, Diana G. (Orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidade à museologia moderna. Belo Horizonte: Argumentum; Brasília: CNPq, 2005. ). Se no cenário descrito por Gondim ( 2007GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. Manaus: Valer, 2007. ), referente ao período colonial, a “preocupação” europeia era com a origem do homem do novo mundo, se era filho de Adão ou de alguma linhagem perdida de Noé, se tinha alma ou não, no século XIX, já era admitida a humanidade desses habitantes, acrescida à população brasileira a dos escravizados africanos. O questionamento passa a ser sobre como essas raças, termo igualmente introduzido no século XIX (Schwarcz, 2009SCHWARCZ, Lilia K. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ), influenciam o homem brasileiro.

O Evolucionismo Social, apontado por Lilia Schwarcz ( 2005SCHWARCZ, Lilia K. M. A “Era dos museus de etnografia” no Brasil: o Museu Paulista, o Museu Nacional e o Museu Paraense em finais do XIX. In: FIGUEIREDO; Betânia G.; VIDAL, Diana G. (Orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidade à museologia moderna. Belo Horizonte: Argumentum; Brasília: CNPq, 2005. ), também estava presente para aqueles pensadores das artes visuais do século XIX, sempre preocupados em estar atualizados com o pensamento europeu. Para Gonzaga Duque Estrada ( 1995ESTRADA, Gonzaga Duque. A arte brasileira. Campinas: Mercado das Letras, 1995. , p. 67), o Brasil dispunha de todos os elementos adequados à produção artística, uma natureza exuberante, bom clima; porém, faltava-nos somente o homem. De certa forma, nessa perspectiva evolucionista acerca da sociedade e da arte, a mestiçagem era um problema, e não apenas parte constituinte da comunidade imaginada do Brasil.

As reflexões dos historiadores da arte do século XIX convergem em alguns pontos, como em sua adesão ao academicismo, o qual de forma alguma englobaria a produção estético-artística indígena. Primeiro, porque naquele momento pouco ou nada acerca dos povos originários como produtores de conhecimento era discutido nesses círculos. Além disso, a arte de povos originários simplesmente não se encaixaria em tais padrões academicistas, e o nacionalismo a eles subjacente, com sua busca por uma identidade da arte brasileira, deveria mirar nos parâmetros formais convencionais europeus da época, com os quais aqueles autores estavam afinados. Ainda quanto ao nacionalismo, é importante perceber que a intelectualidade da época buscava compreender a constituição do Brasil como um Estado-nação – ainda que fosse uma comunidade imaginada. 7 7 Benedict Anderson ( 2008 ) demonstra que a aspiração nacionalista moderna é um construto que muitas vezes passa pelo apagamento da diferença, na busca por uma comunidade de iguais que de forma alguma dá conta da complexidade do social. A arte era uma das instâncias definidoras daquela noção e desconsiderava os povos originários no seu processo de criação, a menos que estivessem no papel de coadjuvantes em alguma das obras de arte.

Contudo, há que se fazer a ressalva de que os historiadores da arte do século XIX, como homens de seu tempo, tinham como preocupação maior os ideais republicanos e abolicionistas, mesmo que seus textos ainda estivessem carregados pelo racismo que assola o Brasil até os dias atuais, e de que a História da arte nasceu no escopo das ciências da vida, que “pretendia nomear, descrever e classificar seus objetos como seres vivos, assimilando a criação artística a um processo natural e buscando compreender seu desenvolvimento” (Michaud, 2019MICHAUD, Eric. The Barbarian Invasions. Cambridge, MA: The MIT Press, 2019. , p. 13, tradução nossa).

Assim, por um longo tempo, e ainda hoje, houve um aspecto de negação do indígena na construção nacional de uma comunidade imaginada. 8 8 Anna Linhares ( 2015 ) demonstra alguns momentos da história brasileira em que houve a tentativa de usar a arte marajoara como expressão da identidade nacional, porém, apenas como uma espécie de mito fundacional, não necessariamente como um reconhecimento da relevância dos povos originários. De um lado, houve o pensamento do movimento romântico na literatura do século XIX que conferiu destaque aos indígenas, mas os colocou como espectadores da própria história, por outro, há um genocídio em curso há mais de 500 anos. Os esforços intelectuais e políticos ainda engatinham nesse sentido, haja vista as tentativas do governo federal – a saber, o presidente Jair Bolsonaro e a Câmara e o Senado do atual governo Lula – de reverter as conquistas da Constituição promulgada em 1988 9 9 Em 4 de setembro de 1987, Ailton Krenak discursou para a constituinte, que contou com a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. O ativista cobrou que a Constituição que estava sendo votada pudesse “Assegurar para as populações indígenas o reconhecimento aos seus direitos originários às terras que habitam (...) suas formas de manifestar a sua cultura…” (Krenak, 2015, p. 33). Essa Constituição entrou para a história pelos grandes avanços nos direitos sociais por ela garantidos, graças à pressão dos grupos sociais. e os ininterruptos embates do agronegócio e do garimpo com os povos indígenas.

No século XX, observou-se a tendência, comum na História da arte de outros países, de que a produção dos povos originários do Brasil fosse alocada no lugar de uma antiguidade que constitui a história do país, o que pode ser exemplificado pelos trabalhos de Pietro Maria Bardi ( 1975BARDI, Pietro M. História da arte brasileira: pintura, escultura, arquitetura e outras artes. São Paulo: Melhoramentos, 1975. , p. 13), para quem “o índio não era tão malicioso quanto o branco. Para ele a vida não passava de uma jogadinha”. Bardi trazia, ainda, exemplos da escultura, arte plumária e parietal, deixando claro que as compreendia em seu valor artístico (cf. Bardi, 1975BARDI, Pietro M. História da arte brasileira: pintura, escultura, arquitetura e outras artes. São Paulo: Melhoramentos, 1975. , p. 9). Na proposta de Flexa Ribeiro ( 1962RIBEIRO, Flexa. História Crítica da Arte. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962. Volume I – Antiguidade. ), em seu volume sobre Antiguidade, por sua vez, tem-se o termo arte “pré-cabralia”, no qual são incluídas escavações arqueológicas, habitação, mobiliária, indumentária, armas e cerâmica. Em um texto muito mais objetivo, Flexa Ribeiro se atém igualmente aos achados arqueológicos, nunca ao presente dos povos originários.

Um destaque deve ser feito para o modernismo e o panorama artístico da década de 1920. Na busca pelo que é “genuinamente” brasileiro, recaem no mito dos três povos, branco, indígena e negro, e no essencialismo ainda comum ao se tratar de cultura fora do âmbito acadêmico 10 10 No que concerne os povos originários o encontro 6 “ARTES INDÍGENAS: APROPRIAÇÃO E APAGAMENTO”, do evento “1922: Modernismo em debate”, promovido pelo Museu de Arte Contemporânea da USP, apresentou a perspectiva de pesquisadores e artistas, indígenas e não indígenas, cuja reflexão apresenta como o modernismo paulista se apropria de elementos da cultura de povos indígenas, num movimento que reforça sua importância na constituição da ideia do que seria o Brasil, mas ao mesmo tempo que gerou apagamentos e epistemicídio desses povos. . Tal marca do pensamento intelectual da época, inclusive, foi retomada e ressignificada por meio da crítica à noção de antropofagia na obra Reantropofagia , de Denilson Baniwa, e da recuperação do mito do Macunaíma, tema caro para Jaider Esbell.

Contudo, esse reconhecimento dos povos originários constitui apenas um passado que, no máximo, poderia ser repetido pelos remanescentes das 305 etnias que podem ser encontradas no Brasil atualmente, ou que seria visto como produção de artesanato, nesse caso, percebido em uma perspectiva hierarquizada, na qual ele representa uma arte menor ou um simples ofício repetitivo. Os povos originários, assim, ainda eram coadjuvantes da história oficial.

Darcy Ribeiro ( 1983RIBEIRO, Darcy. Arte Índia. In: ZANINI, Walter (Org.) História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. v. I. ) pontua exemplarmente a problemática do campo da arte com a arte dos povos originários:

Duas ordens de considerações prévias se impõem aqui para limpar o terreno em que pisamos. Primeiro, que os índios não são fósseis vivos, representativos de etapas prístinas da evolução humana. Segundo, que não há uma indianidade comum, porque cada tribo tem seu universo cultural próprio tão diferenciado dos demais como nós o somos de qualquer outro povo.

(Ribeiro, 1983RIBEIRO, Darcy. Arte Índia. In: ZANINI, Walter (Org.) História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. v. I. , p. 52)

Evidencia-se a “armadilha” da colonialidade. Para Quijano ( 1992QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Peru Indígena, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. ), o período colonial passou, mas ainda vivemos sob a égide da colonialidade, um sistema que perpetua o poder dos colonizadores sobre a colônia de forma mais sutil, a partir do poder simbólico, expresso muitas vezes pelos poderes político, econômico e até coercitivo. Um poder que se perpetua também a partir da sedução do colonizado, constantemente inspirado a fazer parte do grupo excludente. O colonizador mantém seu lugar como padrão, estético, cultural, político etc., preservando o lugar de subalternos dos previamente colonizados. A colonialidade é um poder global que articula o planeta, força o monopólio de recursos sob o controle e benefício da minoria colonizadora. Sua ação se sente de forma mais clara no continente Africano e na América Latina. Destaca-se no campo da cultura que:

Isso foi produto, no começo, de uma sistemática repressão não apenas de crenças, ideias, imagens, símbolos ou conhecimentos que não serviram para a dominação colonial global. A repressão recaiu, sobretudo, nos modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens e sistemas de imagens e símbolos, modos de significação, sobre os recursos, padrões e instrumentos de expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual.

(Quijano, 1992QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Peru Indígena, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. , p. 22, tradução nossa)

Logo, percebe-se que essa é uma das razões pelas quais a arte desses povos, um local do não hegemônico dentro da sociedade e do campo da arte, acaba marcada por aquilo que ela não é, ou não deveria ser, um passado ancestral imutável, ao invés de se pautar pelo que é: parte da História da arte brasileira, latino-americana e mundial.

A percepção a partir da colonialidade tem outro efeito na constituição dos Estados-nação da América Latina, processo no qual essas culturas são transformadas sob uma ótica essencialista, o que prejudicou a constituição de políticas públicas e do ideário sobre os indígenas. Esse processo afetou diretamente o desenvolvimento da disciplina História da arte nesses países 11 11 Autores como Matthew Rampley ( 2009 ) e Eric Michaud ( 2019 ) destacam como a gênese da História da Arte como disciplina esteve implicada nas construções de identidade nacional. , como está abordado no caso brasileiro mais à frente. Escobar ( 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. , p. 81, tradução nossa) faz uma importante análise sobre isso:

O nacionalismo joga sobre a história um olhar de medusa, um manto de lava que petrifica os atores e suas práticas, e os converte em monumentos. As obras se coisificam, o específico se torna típico; o próprio, folclórico. Esse é um bom mecanismo para banalizar a expressão popular e desativar suas possíveis ações políticas, reduzindo-a a uma versão tola e inadequada de si mesma e convertendo-a em mercadoria inofensiva e domesticada, em artesanato pitoresco. Mas também é um bom sistema para obscurecer a dependência e a dominação, para velar as contradições sociais que se sobressaem ao encarar o nacional e o popular concretos.

Para se observar a produção da arte indígena contemporânea, portanto, são necessários dois movimentos: o de pensar a arte fora da perspectiva eurocêntrica, de forma a trabalhar num conceito que abarque as experiências ligadas à diferença 12 12 Para Homi Bhabha ( 1989 , p. 25), “Mesmo que conheçamos perfeitamente o conteúdo de outra cultura, mesmo que o representemos, evitando o etnocentrismo, é sua situação de fechamento da grande teoria (a exigência de que, em termos analíticos, seja o correto objeto de conhecimento e não a instância rebelde da diferença) que reproduz uma relação de dominante para dominada e levanta as mais sérias suspeitas sobre os poderes institucionais da teoria crítica”. Portanto, deve-se procurar um novo raciocínio analítico para a representação/apresentação da cultura para além do “império moderno”, observando a diferença para além da mera “celebração da diversidade”, que pode mascarar as agruras desse processo. , e o de compreender os povos originários para além das marcações nacionalistas de identidade brasileira que os relegam a um passado idealizado, que não corresponde à realidade do país. É preciso também perceber sua existência em nossa temporalidade, para além do lugar atemporal de passado fundacional que a historiografia os relegou.

A colonialidade é algo que afeta a percepção da arte sobre os povos originários e sua produção estético-artística, porque, no momento em que se estabelece um padrão excludente para a arte – eurocêntrico na maior parte das vezes –, ou qualquer outra coisa na verdade, tudo que foge a esse padrão estará imediatamente condenado a status de objeto menor, ou, nesse caso, não será encarado como arte. A priori, isto está correto, um objeto advindo de povos originários não corresponde imediatamente à concepção de arte, porque o círculo vicioso da colonialidade o excluiu. É mister quebrar esse círculo. Discutem-se, a seguir, alguns caminhos possíveis.

JOVENS MONSTRUOSIDADES OU A ARTE DO NOVÍSSIMO MUNDO

Há muitos estudos realizados sobre o trabalho de brancos acerca dos indígenas, como o da extensa, dedicada e delicada produção da fotógrafa Claudia Andujar, mas pretende-se aqui tratar da arte produzida por artistas indígenas. Daiara Tukano 13 13 “Daiara Hori (1982), nome tradicional Duhigô, pertencente ao clã Iremiri Ãhusirõ Pãrãmerã, do povo Yepá Mahsã, mais conhecido como Tukano. Nascida em São Paulo, é artista, ativista dos direitos indígenas e comunicadora independente” (Terena, 2020 , p. 46). , na live “Mulheres artistas indígenas: questões de gênero na produção e reconhecimento” (Pinacoteca, 2021 PINACOTECA. Mulheres Artistas Indígenas: questões de gênero na produção e reconhecimento. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=MtuFcD2L9JE . Acesso em: 17 fev. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=MtuFcD2L...
), trouxe questões importantes ao ser perguntada sobre a originalidade na produção artística indígena. Quando questionada se faz arte, prefere afirmar que faz Hori , o mesmo nome de algumas das obras que ela apresenta na exposição, e não arte; esclarece que seu trabalho é “originário e original”. Reflexão semelhante foi feita por Jaider Esbell ( 2019ESBELL, Jaider. Jaider Esbell. Entrevista concedida a Nina Vincent e Sergio Cohn. In COHN, Sergio; KADIWÉU, Idjahure. Tembetá: conversas com pensadores indígenas. Rio de Janeiro: Azougue, 2019, p. 17-57. , p. 158): “E que nada nos impeça de nos banharmos na nossa própria origem. Porque ela pode ser sim acessada, ela pode ser invocada, inclusive e especialmente espiritualmente”. A relação entre originalidade e expressão artística por meio de tradições não constitui um problema para esses artistas, porque não se aplica à cultura dos povos originários. E nisso reside uma importante tensão que o pensamento indígena impõe para o campo da arte, a qual trataremos a seguir.

ENTRE O PENSAMENTO INDÍGENA E A ACADEMIA

Meneses ( 1983MENESES, Ulpiano Bezerra de. A arte no período pré-colonial. Vol. 1. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983, p. 19-44. ) esclarece que, no geral, os objetos produzidos nas sociedades indígenas não foram feitos para o desenvolvimento de algo que serve apenas para ser contemplado, como se espera de um objeto artístico:

Parece-nos que, nestes casos todos, a deficiência principal esteja em se considerar uma categoria à parte de objetos – definidos precisamente como objetos artísticos. Entre outros inconvenientes, cumpre apontar o estabelecimento de funções unívocas para objetos ou categorias de objetos. Ora, a transposição de significados e usos, detectada pelas relações de contexto, ou a associação freqüentemente (sic) comprovada, de objetos de “valor estético” a usos não só cerimoniais e ideológicos, mas também econômicos e tecnológicos, invalida tal postura. Assim, um machado de pedra é tanto um utensílio para o trabalho agrícola, p. ex., quanto uma oferta funerária, o que se explica apenas pelo contexto, sem o qual a significação efetiva do objeto é irrecuperável.

(Meneses, 1983MENESES, Ulpiano Bezerra de. A arte no período pré-colonial. Vol. 1. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983, p. 19-44. , p. 21)

Essa reflexão nos leva mais uma vez ao argumento de Escobar, para quem o próprio conceito de arte precisa ser revisto para dar conta da experiência artística na América Latina. Ao propor um pensamento visual latino-americano, o autor entende que não precisamos de um conceito de arte específico para a América Latina, mas que as formulações conceituais sobre o que é arte e o que a define precisam levar em conta as diferenças, ao invés de propor um falso universalismo que hierarquiza a experiência estético-artística a partir da arte europeia:

É que a extrapolação da dicotomia forma e conteúdo ao campo da cultura popular sempre leva à conclusão de que esta se encontra em falta com um dos dois termos dessa oposição, considerada de forma binária e fatal. E isto parece claro em certas análises mesmo se referindo estritamente ao contexto da cultura europeia. Assim, Mukarovsky argumenta que, como a arte requer a supremacia exclusiva da função estética e como na cultura popular essa função se confunde com as outras (sociais, religiosas etc.), então, as criações populares não alcançam ser artísticas.

(Escobar, 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. , p. 45, tradução nossa)

O desconforto de Daiara em usar o termo “arte”, mesmo tendo seu trabalho exposto em um lugar institucionalmente reconhecido como um “museu de arte”, ressoa o excerto acima de Escobar. Para o crítico, esses limites do campo da arte acabam por colocar as expressões populares 14 14 No escopo de arte popular, Ticio Escobar ( 2014 ) distingue a arte popular feita por mestiços, povos indígenas e toda forma de expressão de grupos compreendidos como subalternos, minorias excluídas de uma participação plena e efetiva. em uma zona residual e subalterna, um submundo da arte, termo que empresta de Eduardo Galeano. Além disso, o autor argumenta que a relação entre arte e vida, tão buscada pela arte contemporânea, remete à realidade da produção artística dos povos indígenas, que, contraditoriamente, não têm sua produção reconhecida justamente pela dificuldade do campo da arte em separá-la da vida.

Essa tensão entre o que faz um artista de origem indígena e o que se espera de um objeto artístico não se resolve tão facilmente. Contudo, a resposta acerca da originalidade do trabalho foi respondida prontamente e foi dada sem hesitação. A vivência dos povos originários com suas formas de expressão, como exposto, vai além do estético, está entremeada às vidas, histórias e tradições, sem que isso se choque com suas individualidades. Para Ailton Krenak ( 1994KRENAK, Ailton. Antes o mundo não existia. In NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 201-204. ), é preciso entender que a expressão estético-artística indígena, seja um adereço ou um gesto, remete a um sentido imemorial, sagrado, algo ligado a um movimento natural como o dos peixes na piracema 15 15 De acordo com o Instituto Estadual de Florestas, o termo piracema vem do tupi e significa: pira=peixe e cema=subida. É um período migratório no qual os peixes sobem os rios para reproduzir nas cabeceiras. Disponível em: < http://www.ief.mg.gov.br/pesca/piracema >. Acesso em: 16 mar. 2021. ou o dos astros: “Por isso que eu falei a você de um lugar que a nossa memória busca a fundação do mundo, informa nossa arte, a nossa arquitetura, o nosso conhecimento universal” (Krenak, 1994KRENAK, Ailton. Antes o mundo não existia. In NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 201-204. , p. 202).

As culturas dos povos originários não estão fundadas nas mesmas bases da cultura ocidental. Eduardo Viveiros de Castro ( 2020CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: UBU Editora, 2020, p. 299-346. ) destaca que a distinção entre natureza e cultura, especialmente entre os povos indígenas da Amazônia que o antropólogo estudou, não faz sentido para as cosmologias não ocidentais. Krenak ( 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. ) deixa isso claro ao se referir ao crime ambiental em Minas Gerais, afirmando que o Rio Doce, hoje contaminado com lama tóxica da barragem de Mariana, é Watu , avô dos Krenak.

Viveiros de Castro apresenta, ainda, categorias acerca da cultura dos povos originários que devem ser observadas na análise da arte: o perspectivismo, o xamanismo, o animismo, o etnocentrismo e o multinaturalismo. Essas são categorias recorrentes à maioria dos povos originários e, portanto, as reflexões sobre essas culturas e, consequentemente, sobre a arte produzida por elas, precisam levá-las em conta. Elas ajudam a perceber a relação desses povos com a natureza, para além da romantização do “índio protetor” e da sabedoria ancestral como fiel depositária das soluções para os problemas do mundo, e a relação com o outro, que desde o período das primeiras invasões foi de respeito e de tolerância à diferença, ao invés da ingenuidade que lhes foi atribuída. No caso da arte, faz-se necessário compreender como trabalhar as categorias da antropologia a partir da arte, de forma a incorporar esses avanços ao campo. Ainda que a antropologia não necessariamente se ocupe da historicização dos objetos que estuda, é na própria História da arte que o movimento deve ser feito.

Escobar ( 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. ) argumenta que, para compreender a arte indígena, é necessário que o conceito de arte seja flexibilizado a partir de “concessões”, em especial ao que se refere à autonomia formal e à originalidade. Assim, as formas artísticas devem ser compreendidas em suas possibilidades “de reforçar os muitos conteúdos coletivos e imaginar a unidade social. Como os mitos (mas também através dos mitos), essas formas atuam como significantes organizadores de identidade e endosso do contrato social” (Escobar, 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. , p. 61, tradução nossa).

Esse “problema” da arte já havia sido apontado por Ulpiano de Meneses ( 1983MENESES, Ulpiano Bezerra de. A arte no período pré-colonial. Vol. 1. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983, p. 19-44. ), ao relatar a dificuldade de lidar com o objeto artístico produzido por agentes dos povos originários (note-se que o autor ainda usa o termo “primitivo” para se referir a esse tipo de produção):

A primeira dificuldade no desenvolvimento do tema deste capítulo é a própria definição de seu objeto. É preciso evitar noções associadas ao fenômeno artístico na civilização ocidental, em que a produção intencional (ou a “conversão” de produção originada de outro contexto), a circulação e o consumo de certos bens obedecem a tal especificidade, que é possível falar em categorias como objetos artísticos, artista, colecionador de arte, marchand e assim por diante. Dentro dessa perspectiva, é totalmente inadequado presumir uma atividade artística para as culturas primitivas e, portanto, tentar identificar uma classe de produtos de arte ou buscar especialização na sua manufatura. Por outro lado, remeter, como solução alternativa, todos e quaisquer fenômenos formais relevantes, nessas culturas, a um contexto cerimonial e a conteúdos simbólicos é praticar outra forma de reducionismo que nada pode esclarecer

(Meneses, 1983MENESES, Ulpiano Bezerra de. A arte no período pré-colonial. Vol. 1. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983, p. 19-44. , p. 21).

Para além disso, Escobar ( 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. ) defende que o próprio conceito de arte precisa ser revisto, de forma a abarcar as formas de expressão que não correspondem à perspectiva eurocêntrica de arte. Entende-se então que um pensamento visual e uma História da arte latino-americanos não pressupõem uma exceção às disciplinas de Estética, Filosofia da Arte e História da arte, mas a revisão destas. Esse argumento se aproxima da proposta de Claire Farago ( 2018FARAGO, Claire. The “Global Turn” in Art History. In The Globalization of Renaissance Art: A Critical Review. Boston: Brillo, 2018, p. 297-313. ), que propunha a História da arte do mundo World Art History procurando compreender metodologicamente como tratar de experiências culturais das mais diversas que dizem respeito ao campo da arte. Sua tentativa de organização da disciplina História da arte a partir da premissa de World Art History foi frustrada por seus pares, que não levaram a proposta adiante. O caminho para alcançar o intento da autora é longo e depende da compreensão de que arte e História da arte são construtos europeus, e que arte e cultura visual não podem cair no eurocentrismo.

Para tanto, Farago ( 2018FARAGO, Claire. The “Global Turn” in Art History. In The Globalization of Renaissance Art: A Critical Review. Boston: Brillo, 2018, p. 297-313. ) destaca algumas coisas que devem ser evitadas: 1) “o uso de termos binários” (arte e artefato, centro e periferia etc.); 2) “o uso monolítico de Bizantino e Islâmico”, o que, a bem da verdade, pode ser aplicado a outras situações; 3) “História Hegeliana Universalista” leva a percepções como a de Gombrich ( 2008GOMBRICH, Ernst H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008. ), que afirma que podemos traçar uma História da arte dos egípcios aos gregos e dos gregos a todo o restante da arte europeia, e dos egípcios parece que só importou o passado que influenciou a Europa; 4) “Hierarquia dos gêneros”, baseada nas categorias europeias do que pode ou não ser arte. A emergência de uma nova História da arte é, portanto, uma necessidade para a construção de uma disciplina mais plural, que dê conta da diferença nas formas de expressão estético-artísticas. Ainda que a própria Farago tenha declarado que, embora, sua proposta não tenha sido levada à frente na universidade em que trabalhava, sua reflexão serve como possibilidade para se pensar uma História da arte fora do eurocentrismo. E também levanta a questão sobre: o que fazemos com os nossos currículos no ensino superior? O panfleto “A História da arte”, de Bruno Moreschi ( 2017 MORESCHI, Bruno. A História da arte. 2017. Disponível em: < https://brunomoreschi.com/Historia-da-arte >. Acessado em 15 jun 2023.
https://brunomoreschi.com/Historia-da-ar...
), faz um levantamento dos livros mais utilizados nas graduações de arte no Brasil, mostrando que das 11 literaturas mais comuns nos cursos de arte 9 são autores europeus, apenas 2 mulheres e todos são autores brancos.

Em outra perspectiva, Andrea Giunta ( 1996GIUNTA, Andrea. América latina en disputa: apuntes para una historiografía del arte latinoamericano. Presentado en el International Seminar Art Studies from Latin America, Instituto de Investigaciones Estéticas, UNAM and The Rockefeller Foundation, Oaxaca, 1-5 fev. 1996. ) traça um interessante caminho acerca do pensamento sobre arte na América Latina, como a especificidade geográfica se percebe numa história particular, a da arte, e se relaciona com a história geral do nosso continente. Afinal, o que significa América Latina? Pan-americana? Porque, sem compreender do que se fala quando nos referimos a esse território que compõe dois terços do continente americano, como poderíamos falar de sua arte?

Essa autora repassa alguns de nossos problemas históricos, como a “teoria” da dependência intelectual, a necessidade de resistência ao imperialismo dos Estados Unidos, o internacionalismo na arte e o que ele de fato representa às nossas culturas e expõe um problema de difícil, talvez impossível, solução: como dar conta da diversidade cultural do que entendemos como América Latina, algo tão abrangente, e pensar uma identidade cultural para realidades tão díspares?

Para situar todas essas questões, Giunta ( 1996GIUNTA, Andrea. América latina en disputa: apuntes para una historiografía del arte latinoamericano. Presentado en el International Seminar Art Studies from Latin America, Instituto de Investigaciones Estéticas, UNAM and The Rockefeller Foundation, Oaxaca, 1-5 fev. 1996. ) traz autores como Marta Traba, Tício Escobar e Frederico Moraes, contrapondo-os para construir uma “História das mentalidades” sobre a arte latino-americana. Dessa forma, começa a se delinear quais caminhos tomar para uma futura “História da arte latino-americana”. Talvez haja uma vantagem, para não dizer uma obrigação, na relativa juventude dos cursos de História da arte da América Latina e de uma “História da arte latino-americana”: estes podem ser pensados a partir de uma lógica que inclua as realidades latinas, ao invés de apenas repetir os modelos eurocêntricos de desenvolver conhecimentos acerca da arte, fugindo, como propõe Giunta, dos esquemas já conhecidos. Um caminho que, como afirma Escobar ( 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. ), não pode ser traçado sem levar em consideração a produção dos inúmeros povos originários da América Latina como um todo.

ARTE INDÍGENA, CULTURAS E IDENTIDADES

Outro aspecto a ser levantado é a própria pergunta feita a Daiara: se ela faz arte. A pergunta já introduz uma expectativa acerca da produção artística indígena – e qualquer forma de expressão popular em geral –, que inadvertidamente coloca a cultura e a arte dos povos originários em um lugar histórico de um passado imaginado, cujas práticas não podem ser reimaginadas e precisam se repetir exatamente da mesma forma, ignorando que as tradições têm a função de pensar, imaginar e ressignificar o que se passa no tempo presente de um povo, porque são elaborações de suas sensibilidades e formas de assegurar suas identidades.

Identidades estas que igualmente não são fixas; para Hall ( 1996HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, 1996, p. 68-75. ) elas não podem ser tomadas como um fato consumado, mas como uma produção que nunca cessa, que está sempre em processo, o que é válido tanto para ocidentais quanto não ocidentais. Essa premissa precisa ser percebida no que concerne à produção artística indígena, porque isso desloca o pensamento sobre elas para o lugar do contemporâneo e das formas que essas tradições lidam com as situações atuais, inclusive por meio da arte 16 16 Escobar ( 2014 ) trata das mudanças de material em alguns cocares de uma tribo que incluíram objetos tomados na luta contra o governo, uma tradição no fazer dessas peças. .

As práticas culturais não cessam, assim como as lutas, e o campo da arte é um terreno de disputa simbólica sobre como os povos originários vivem no contexto contemporâneo. Cunha lembra que a categoria cultura foi “emprestada”, pelo menos nas acepções que frequentemente utilizamos, porque a vivência de “esquemas interiorizados que organizam a percepção e a ação das pessoas e que garantem um certo grau de comunicação em grupos sociais, ou seja, algo no gênero do que se costuma chamar de cultura” (Cunha, 2017CUNHA, Manuela Carneiro da. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais. In Cultura com aspas e outros ensaios: Manuela Carneiro da Cunha. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 304-369. , p. 306) é comum a todas as sociedades conhecidas.

Entretanto, nem sempre esses esquemas coincidem com a categoria importada, que acabou por ser universalizada e adotada por todos, gerando a cultura e a performação da “cultura”, que muitas vezes se confundem e reforçam essencialismos que são prejudiciais à forma como os indígenas são percebidos pela sociedade não indígena, bem como gera problemas dentro da comunidade, em especial no que diz respeito às retomadas por indivíduos em contextos urbanos, como destacam em seus trabalhos as artistas Katú Mirim Merikaredo e Moara Tupinambá, pois nestes casos os indígenas precisam lutar por reconhecimento dentro e fora das comunidades indígenas. Isso constitui um problema que vai além das questões do campo da arte, porque as identidades indígenas pressupõem também o direito aos seus territórios.

Ainda sobre a categoria “cultura”, Cunha ( 2017CUNHA, Manuela Carneiro da. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais. In Cultura com aspas e outros ensaios: Manuela Carneiro da Cunha. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 304-369. , p. 307) faz o seguinte questionamento: “quais são os processos, as questões e as transformações implicadas no ajuste e na tradução da categoria importada de ‘cultura’ por povos periféricos?”. O que podemos/devemos desdobrar para pensar sobre a relação da arte com os povos originários? Como isso se traduz nas escolhas de curadoria? Ou mesmo de objetos de análise para a História da arte?

Como exemplo dessas tensões, a exposição “Véxoa: nós sabemos” marcou a Pinacoteca de São Paulo, que em seus mais de 100 anos de existência só em 2019 adicionou à coleção trabalhos de arte feitos por indígenas. Reunindo 24 artistas ou coletivos de variadas etnias, a exposição teve curadoria de Naine Terena, responsável também pela fala que deu o tom da exposição:

Nós sabemos que artistas de origem indígena sempre foram ativos e exploraram as mais diversas mídias artísticas. Não espero que os artistas indígenas digam onde e como eles gostariam de ser vistos. São museus como a Pinacoteca que precisam decidir se, e como, incluirão essas práticas em seus acervos e quais narrativas escolhem apresentar.

(Volz, 2020VOLZ, Jochen. Apresentação. In: TERENA, Naine (Curadoria). Véxoa: Nós sabemos. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020. , p. 7)

“Véxoa…” é de extrema importância, porque apresenta a arte indígena contemporânea num dos maiores museus do país e foi construída a partir do diálogo com pessoas indígenas, e algo de tal magnitude ainda era inédito à realidade brasileira. Mais recentemente, podemos citar também “Moquém Surari”, com curadoria de Jaider Esbell, e “Nakoada”, com curadoria de Denilson Baniwa e Beatriz Lemos.

A arte indígena não pode ser exceção ou ficar relegada apenas a exposições específicas, porque isso seria outra maneira de alocar a produção dos povos originários em algum essencialismo no qual não cabe a potência dessa produção. Os essencialismos levam às ideias de pureza étnica, que fatalmente caem nas mazelas de uma visão fascista e reacionária de mundo e, por consequência, de arte e cultura, que simplesmente não condizem com as cosmopercepções indígenas.

ARTE E ANTROPOLOGIA E A CATEGORIA DA ARTE “PRIMITIVA”

A ideia de “arte primitiva” foi discutida por Gell ( 2018GELL, Alfred. Arte e Agência: uma teoria antropológica. São Paulo: Ubu Editora, 2018. ), para quem a Antropologia da arte deveria olhar para um Picasso da mesma forma como olharia para um Hori. Ao invés de hierarquizá-los, ambos devem ser compreendidos como obras de arte, e não só o primeiro, o que resultaria em tomar o segundo como “o fruto de um filho da natureza tomado por instinto”, que não deveria figurar em museus de arte, a menos que seja nas coleções de antropologia ou etnografia. Afinal, como argumentado, nem tudo que é dos povos originários constitui somente cultura material, porém, o instrumental teórico de análise do campo da arte ainda tem dificuldade para perceber o que pode ser arte e o que constitui, unicamente, cultura material. Ademais, a separação arte versus cultura material não está pressuposta na concepção de arte indígena.

Para Sally Price ( 2000PRICE, Sally. Arte Primitiva em Centros Civilizados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. ), há clara distinção quando tratamos de objetos etnográficos e arte ocidental. O primeiro é quase sempre identificado por meio de atributos como as suas funções e técnicas, sociais ou religiosas, como se não pudessem se prestar à fruição estética, enfatizando o distanciamento cultural entre observador e objeto. É como se um objeto de um povo originário tivesse apenas a vocação para ser apreciado como obra de arte ou como exemplar de determinada cultura, o que influencia até mesmo o valor percebido e atribuído para o objeto, sendo o valor artístico superior, obviamente. De forma a superar a dicotomia, Gell propõe olhar para essa produção a partir das ideias de agência, intenção, causalidade, resultado e transformação: “Vejo a arte como um sistema de ação cujo propósito é mudar o mundo, e não codificar proposições simbólicas acerca dele” (Gell, 2018GELL, Alfred. Arte e Agência: uma teoria antropológica. São Paulo: Ubu Editora, 2018. , p. 31). Em outro texto, Gell ( 2001GELL, Alfred. A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, EBA, UFRJ, 2001, p. 174-191. ) contrapõe as críticas de Arthur Danto, mostrando como as concepções de obra de arte, artesanato e objeto são facilmente confundíveis, artificiais e construídas de modo a perpetuar a hierarquização na qual a obra de arte em seu modelo eurocêntrico, mesmo com os tensionamentos da arte contemporânea, está no topo.

Acredita-se na possibilidade de uma virada epistemológica no campo da arte. Para tanto, é preciso observar e desenvolver mudanças nos núcleos e princípios de pensamento da arte, tensionando o paradigma eurocêntrico que organiza as referências, as formas de olhar e de interpretar a arte, para dar conta da diferença na produção dos povos originários em sua evidente riqueza para a arte e para a sociedade. O protagonismo indígena de pensamento e tomada de decisão é necessário para essa virada de episteme na academia, uma vez que ela foi construída sobre o ideário eurocêntrico, e na sociedade como um todo, para que se possibilite a construção de um ambiente realmente plural para as próximas gerações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O campo da arte não se fecha mais em um reducionismo esteticista, porém, ainda não foi ultrapassada a relação colonialista entre a cultura e a arte dos povos originários. Percebidos como parte da construção das nações imaginadas, no máximo como um passado longínquo distante de um presente do qual não teriam direito de participar, os povos indígenas têm cada vez mais se apropriado das ferramentas e conhecimentos dos brancos para se fazer ouvir, o que inclui participar do circuito de arte do país, reforçando seus valores culturais e usando a arte como forma de resistência.

Da percepção das monstruosidades do novo mundo à construção do Brasil como comunidade imaginada, à inserção dos povos originários no imaginário modernista do século XX, à incipiente escuta e assimilação destes no campo da arte no Brasil, e à superação do ideário evolucionista do século XIX, impregnado da colonialidade, ressignificado e ainda ativo no século XXI. Há ainda um longo caminho a ser percorrido, especialmente na derrubada de preconceitos e desenvolvimento de instrumental de análise próprio para dar conta dessa produção, uma discussão que existe há certo tempo, mas não se encontra sistematizada, como esperamos ter demonstrado ao longo destas páginas. Deve-se diferenciar, por exemplo, os objetos dos povos tradicionais que não se dão necessariamente para apreciação estética, ainda que possamos fazê-lo por meio da Antropologia e da Arqueologia, dos objetos dos artistas indígenas, porque estes se dão à apreciação, ao mesmo tempo que reelaboram as tradições e apresentam reflexões sobre o contemporâneo. Mais que isso, deve-se questionar se essa separação ainda é necessária e qual o impacto disso para o campo da arte, porque, se tudo for arte, nada mais é arte.

A apropriação por parte dos indígenas das tecnologias e do conhecimento do(s) colonizador(es) auxilia ironicamente a preservação de suas tradições e a luta por seus direitos. Isso também permite repensar sua produção estético-artística para observá-la a partir de suas próprias perspectivas, ao invés de simplesmente tentar encaixá-la em padrões eurocêntricos. Recorre-se ao que já foi produzido pela Antropologia, em termos gerais e da arte, e ao que os representantes dos povos originários, como Ailton Krenak, Daiara Tukano e Jaider Esbell, têm abordado, refletido e escrito no campo da arte.

Revisar a história da arte a partir de uma postura decolonial e incluir a perspectiva indígena implica desenvolver um pensamento complexo que abarque a pluralidade da diferença no Brasil e na América Latina. É importante estabelecer que a arte dos povos originários é também a História da arte brasileira, para além dos achados arqueológicos e dos estudos antropológicos. Além disso, conforme afirmou a pesquisadora indígena Débora Tacana 17 17 Em conversa realizada com os autores do texto. Débora também gentilmente revisou a versão final deste texto, para o qual trouxe questões importantes. , o campo da arte precisa se questionar em que medida, de fato, têm sido feitos esforços acadêmicos e não acadêmicos para perceber a arte dos povos originários nesse outro e amplificado lugar, e até mesmo interrogar-se como e por quais agentes isso está sendo feito e quem está consumindo esse conteúdo. Algo que circula apenas entre os abastados, quase na categoria de “gabinete de curiosidades” do século XXI, em nada colabora para com o avanço social e científico do campo. Essa é uma virada epistemológica necessária para construir uma História da arte que consiga dar conta das distinções entre os diferentes países latino-americanos, porque não se trata de constituir uma história da arte particular, endereçada apenas àqueles interessados em contrapor a arte indígena do passado e a do contemporâneo, e sim de dar os primeiros passos para a reformulação da própria disciplina.

REFERÊNCIAS

  • ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • BARDI, Pietro M. História da arte brasileira: pintura, escultura, arquitetura e outras artes. São Paulo: Melhoramentos, 1975.
  • BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros; Salvador: Odebrecht, 1994.
  • BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk, 2014.
  • BHABHA, Homi K. Hybridité, hétérogénéité et culture contemporaine. In: Magiciens de la terre. Paris: Centre Georges Pompidou, 1989, p. 24-27.
  • CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: UBU Editora, 2020, p. 299-346.
  • COLI, Jorge. Fabricação e promoção da brasilidade: arte e questões nacionais. Perspective – Actualité em histoire de l’art, 2, 2013, Brasil, p. 1-10.
  • CUNHA, Manuela Carneiro da. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais. In Cultura com aspas e outros ensaios: Manuela Carneiro da Cunha. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 304-369.
  • DE MELLO, Lawrence Estivalet; MALTA, Maria de Mello. A relação entre base, superestrutura e consciência social em Marx. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, v. 46, jan./abr. 2017, p. 56-73.
  • FARAGO, Claire. The “Global Turn” in Art History. In The Globalization of Renaissance Art: A Critical Review. Boston: Brillo, 2018, p. 297-313.
  • ESBELL, Jaider. Artista apresenta conceito de arte indígena contemporânea em exposição itinerante. Entrevista concedida a Leandro Melito. Portal EBC, 8 jul. 2016. Disponível em: https://memoria.ebc.com.br/cultura/2016/07/artista-apresenta-conceito-de-arte-indigena-contemporanea-em-exposicao-itinerante# . Acesso em: 8 fev. 2024.
    » https://memoria.ebc.com.br/cultura/2016/07/artista-apresenta-conceito-de-arte-indigena-contemporanea-em-exposicao-itinerante#
  • ESBELL, Jaider. Jaider Esbell. Entrevista concedida a Nina Vincent e Sergio Cohn. In COHN, Sergio; KADIWÉU, Idjahure. Tembetá: conversas com pensadores indígenas. Rio de Janeiro: Azougue, 2019, p. 17-57.
  • ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014.
  • ESTRADA, Gonzaga Duque. A arte brasileira. Campinas: Mercado das Letras, 1995.
  • GELL, Alfred. A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, EBA, UFRJ, 2001, p. 174-191.
  • GELL, Alfred. Arte e Agência: uma teoria antropológica. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
  • GIUNTA, Andrea. América latina en disputa: apuntes para una historiografía del arte latinoamericano. Presentado en el International Seminar Art Studies from Latin America, Instituto de Investigaciones Estéticas, UNAM and The Rockefeller Foundation, Oaxaca, 1-5 fev. 1996.
  • GOMBRICH, Ernst H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
  • GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. Manaus: Valer, 2007.
  • HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, 1996, p. 68-75.
  • KRENAK, Ailton. Antes o mundo não existia. In NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 201-204.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • KRENAK, Ailton; COHN, Sérgio (org.). Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.
  • LAGROU, E., & VELTHEM, L. H. van. (2018). As artes indígenas: olhares cruzados. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, (87), 2018, 133–156.
  • LINHARES, Anna M. A. Um grego nu: índios marajoaras e identidade nacional brasileira. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2015.
  • MENESES, Ulpiano Bezerra de. A arte no período pré-colonial. Vol. 1. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983, p. 19-44.
  • MICHAUD, Eric. The Barbarian Invasions. Cambridge, MA: The MIT Press, 2019.
  • MORESCHI, Bruno. A História da arte. 2017. Disponível em: < https://brunomoreschi.com/Historia-da-arte >. Acessado em 15 jun 2023.
    » https://brunomoreschi.com/Historia-da-arte
  • PINACOTECA. Mulheres Artistas Indígenas: questões de gênero na produção e reconhecimento. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=MtuFcD2L9JE . Acesso em: 17 fev. 2021.
    » https://www.youtube.com/watch?v=MtuFcD2L9JE
  • PITTA, F. M. A ‘breve história da arte’ e a arte indígena: a gênese de uma noção e sua problemática hoje. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 5, n. 3, p. 223–257, 2021.
  • PRICE, Sally. Arte Primitiva em Centros Civilizados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Peru Indígena, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992.
  • RAMPLEY, Matthew. Art History and the Politics of Empire: Rethinking the Vienna School. The Art Bullet, Vol. 91, No. 4 (December 2009), pp. 446-462.
  • Revista de História e Geografia. S/A. Parte segunda do Thesouro descoberto no Rio Amazonas. Revista Trimestral de História e Geografia. Rio de Janeiro, 1841. Tomo Terceiro, p. 39-52.
  • RIBEIRO, Flexa. História Crítica da Arte. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962. Volume I – Antiguidade.
  • RIBEIRO, Darcy. Arte Índia. In: ZANINI, Walter (Org.) História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. v. I.
  • SANTOS, Boaventura de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 79, nov. 2007.
  • SCHAAN, Denise Pahl. Estatuetas Antropomorfas marajoara: o simbolismo de identidades de gênero. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Série Antropologia, Belém, v. 17, n. 2, p. 437-477, 2001.
  • SCHAAN, Denise Pahl. A ceramista, seu pote e sua tanga: identidade e papéis sociais em um Cacicado Marajoara. Revista Arqueologia, v. 16, p. 31-45, 2003.
  • SCHAAN, Denise Pahl. A arte da cerâmica marajoara: encontros entre o passado e o presente. Habitus, v. 5, n. 1, jan./jul., 2007a.
  • SCHAAN, Denise Pahl. Uma janela para a história pré-colonial da Amazônia: olhando além – e apesar – das fases e tradições. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 77-89, jan-abr. 2007b.
  • SCHAAN, Denise Pahl. Marajoara Iconography: a Structural Approach. Disponível em: http://www.marajoara.com/Marajoara_Iconography_Structural_Approach . Acesso em: 22 fev. 2024.
    » http://www.marajoara.com/Marajoara_Iconography_Structural_Approach
  • SCHWARCZ, Lilia K. M. A “Era dos museus de etnografia” no Brasil: o Museu Paulista, o Museu Nacional e o Museu Paraense em finais do XIX. In: FIGUEIREDO; Betânia G.; VIDAL, Diana G. (Orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidade à museologia moderna. Belo Horizonte: Argumentum; Brasília: CNPq, 2005.
  • SCHWARCZ, Lilia K. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • TAUREPANG, Macuxi et al. Makunaimã: o mito através do tempo. São Paulo: Elefante, 2019.
  • TERENA, Naine (Curadoria). Véxoa: Nós sabemos. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020.
  • VELTHEM, Lucia Hussak van. Das cobras e lagartas: a iconografia Wayana. In: VIDAL, Lux. Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel; EDUSP; FAPESP, 1992a.
  • VELTHEM, Lucia Hussak van. Arte Indígena: Referentes sociais e Cosmológicos. In: GRUPIONI, Luis D. B. (Org.) Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal da Cultura, 1992b.
  • VELTHEM, Lucia Hussak van. O ocidente, a Antropologia e as Artes Indígenas: elementos de compreensão. In: VELTHEM, Lucia Hussak van. O Belo é a Fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio e Alvim; Museu Nacional de Etnologia, 2003.
  • VOLZ, Jochen. Apresentação. In: TERENA, Naine (Curadoria). Véxoa: Nós sabemos. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020.

NOTAS

  • 1
    O texto citado neste artigo utiliza a tradução de revolvimento ao invés de revolução: “Umwälzung, que é formado a partir do verbo umwälzen [revirar, revolver]; na forma substantivada significa revolução, num sentido mais neutro, ou transformação radical, por isso, optou-se aqui pelo termo correspondente em português, ‘revolvimento’. O termo Revolution foi traduzido por ‘revolução’, e revolutionär por ‘revolucionário’” (Benjamin, 2014BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk, 2014. , p. 10-11).
  • 2
    Na teoria marxista entende-se a divisão entre base ou estrutura e superestrutura, que, grosso modo, corresponde a todos os sistemas político e jurídico que determinam muito da vida em sociedade (De Mello; Malta, 2017DE MELLO, Lawrence Estivalet; MALTA, Maria de Mello. A relação entre base, superestrutura e consciência social em Marx. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, v. 46, jan./abr. 2017, p. 56-73. ).
  • 3
    Jaider Esbell, artista indígena do povo Macuxi, defende que apesar de fazer arte desde sempre, a produção contemporânea tem propósitos atuais socializando “com o mundo a visão do artista que carrega em suas obras referências ancestrais no contexto da contemporaneidade”. Dessa forma, coloca a arte indígena contemporânea nos debates mundiais, seja sobre a arte em si, a arte ativismo ou a causa ambiental e os direitos indígenas (Esbell, 2016 ESBELL, Jaider. Artista apresenta conceito de arte indígena contemporânea em exposição itinerante. Entrevista concedida a Leandro Melito. Portal EBC, 8 jul. 2016. Disponível em: https://memoria.ebc.com.br/cultura/2016/07/artista-apresenta-conceito-de-arte-indigena-contemporanea-em-exposicao-itinerante# . Acesso em: 8 fev. 2024.
    https://memoria.ebc.com.br/cultura/2016/...
    ).
  • 4
  • 5
    Fernanda Pitta ( 2021PITTA, F. M. A ‘breve história da arte’ e a arte indígena: a gênese de uma noção e sua problemática hoje. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 5, n. 3, p. 223–257, 2021. ) faz uma importante análise sobre o texto de Eduardo Padro de 1889, bem como da participação do Brasil na Exposição Universal de Paris. Fica claro no texto da autora que os povos originários ali foram relegados a um passado fundacional de Brasil, deslocados para fora do tempo.
  • 6
    Para pensar sobre como o darwinismo, o positivismo e o evolucionismo afetaram o cenário brasileiro do século XIX, Schwarcz ( 2009SCHWARCZ, Lilia K. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ) faz um balanço das teorias do século XVIII, de um lado a visão humanista de Rousseau, que proclamava a igualdade humana, e do outro a perspectiva da maldade inata do selvagem, destacando as ideias de Buffon, a carência do americano, marcada pela debilidade e imaturidade da terra, e de Pauw, que introduziu o conceito de “degeneração”, para o qual há um desvio de origem patológica e inata ao americano. A autora destaca que a segunda perspectiva se tornou hegemônica no século XIX e a noção de raça nasce como uma categoria pressupondo a superioridade branco eurocêntrica.
  • 7
    Benedict Anderson ( 2008ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ) demonstra que a aspiração nacionalista moderna é um construto que muitas vezes passa pelo apagamento da diferença, na busca por uma comunidade de iguais que de forma alguma dá conta da complexidade do social.
  • 8
    Anna Linhares ( 2015LINHARES, Anna M. A. Um grego nu: índios marajoaras e identidade nacional brasileira. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2015. ) demonstra alguns momentos da história brasileira em que houve a tentativa de usar a arte marajoara como expressão da identidade nacional, porém, apenas como uma espécie de mito fundacional, não necessariamente como um reconhecimento da relevância dos povos originários.
  • 9
    Em 4 de setembro de 1987, Ailton Krenak discursou para a constituinte, que contou com a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. O ativista cobrou que a Constituição que estava sendo votada pudesse “Assegurar para as populações indígenas o reconhecimento aos seus direitos originários às terras que habitam (...) suas formas de manifestar a sua cultura…” (Krenak, 2015KRENAK, Ailton; COHN, Sérgio (org.). Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015., p. 33). Essa Constituição entrou para a história pelos grandes avanços nos direitos sociais por ela garantidos, graças à pressão dos grupos sociais.
  • 10
    No que concerne os povos originários o encontro 6 “ARTES INDÍGENAS: APROPRIAÇÃO E APAGAMENTO”, do evento “1922: Modernismo em debate”, promovido pelo Museu de Arte Contemporânea da USP, apresentou a perspectiva de pesquisadores e artistas, indígenas e não indígenas, cuja reflexão apresenta como o modernismo paulista se apropria de elementos da cultura de povos indígenas, num movimento que reforça sua importância na constituição da ideia do que seria o Brasil, mas ao mesmo tempo que gerou apagamentos e epistemicídio desses povos.
  • 11
    Autores como Matthew Rampley ( 2009RAMPLEY, Matthew. Art History and the Politics of Empire: Rethinking the Vienna School. The Art Bullet, Vol. 91, No. 4 (December 2009), pp. 446-462. ) e Eric Michaud ( 2019MICHAUD, Eric. The Barbarian Invasions. Cambridge, MA: The MIT Press, 2019. ) destacam como a gênese da História da Arte como disciplina esteve implicada nas construções de identidade nacional.
  • 12
    Para Homi Bhabha ( 1989BHABHA, Homi K. Hybridité, hétérogénéité et culture contemporaine. In: Magiciens de la terre. Paris: Centre Georges Pompidou, 1989, p. 24-27. , p. 25), “Mesmo que conheçamos perfeitamente o conteúdo de outra cultura, mesmo que o representemos, evitando o etnocentrismo, é sua situação de fechamento da grande teoria (a exigência de que, em termos analíticos, seja o correto objeto de conhecimento e não a instância rebelde da diferença) que reproduz uma relação de dominante para dominada e levanta as mais sérias suspeitas sobre os poderes institucionais da teoria crítica”. Portanto, deve-se procurar um novo raciocínio analítico para a representação/apresentação da cultura para além do “império moderno”, observando a diferença para além da mera “celebração da diversidade”, que pode mascarar as agruras desse processo.
  • 13
    “Daiara Hori (1982), nome tradicional Duhigô, pertencente ao clã Iremiri Ãhusirõ Pãrãmerã, do povo Yepá Mahsã, mais conhecido como Tukano. Nascida em São Paulo, é artista, ativista dos direitos indígenas e comunicadora independente” (Terena, 2020TERENA, Naine (Curadoria). Véxoa: Nós sabemos. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020. , p. 46).
  • 14
    No escopo de arte popular, Ticio Escobar ( 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. ) distingue a arte popular feita por mestiços, povos indígenas e toda forma de expressão de grupos compreendidos como subalternos, minorias excluídas de uma participação plena e efetiva.
  • 15
    De acordo com o Instituto Estadual de Florestas, o termo piracema vem do tupi e significa: pira=peixe e cema=subida. É um período migratório no qual os peixes sobem os rios para reproduzir nas cabeceiras. Disponível em: < http://www.ief.mg.gov.br/pesca/piracema >. Acesso em: 16 mar. 2021.
  • 16
    Escobar ( 2014ESCOBAR, Ticio. El mito del arte y el mito del pueblo: cuestiones sobre arte popular. Buenos Aires: Ariel, 2014. ) trata das mudanças de material em alguns cocares de uma tribo que incluíram objetos tomados na luta contra o governo, uma tradição no fazer dessas peças.
  • 17
    Em conversa realizada com os autores do texto. Débora também gentilmente revisou a versão final deste texto, para o qual trouxe questões importantes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2021
  • Aceito
    22 Fev 2023
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br