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Uma ponte entre colonialismo e ambientalismo

MALCOM, Ferdinand. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Mei, Letícia. Davis, Angela. Fagundes, Guilherme Moura. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320p

Resumo

O livro do Dr. Malcom Ferdinand “Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho” surge em momento oportuno e preenche uma lacuna histórica na literatura sobre o colonialismo e ecologia. Provocantes e ousadas, as seções abordam com maestria os temas das relações étnico-raciais, de gênero e de vulnerabilidades. O livro é um convite vital para entender as inter-relações de gênero, raça e classe na busca por justiça e como essas inter-relações se manifestam. O compêndio de informações fornecidas fortalece a coalizão multidimensional de interesses para entender melhor a injustiça ambiental e a desigualdade social generalizada, associadas a uma ecologia colonial.

Palavras-chave:
Colonialismo; ambientalismo; desigualdade de gênero; justiça ambiental; racismo ambiental

Abstract

Dr. Malcolm Ferdinand’s book “Decolonial Ecology: thinking from the Caribbean World” comes at an opportune time and fills a historical gap in the literature on colonialism and ecology. Provocative and daring, the sections masterfully address the themes of ethnic-racial relations, gender, and vulnerabilities. The book is a vital invitation to understand the interrelationships of gender, race, and class in the pursuit of justice and how these interrelationships manifest themselves. The compendium of information provided strengthens the multidimensional coalition of interests to better understand environmental injustice and widespread social inequality associated with a colonial ecology.

Keywords:
Colonialism; environmentalism; gender inequality; environmental justice; environmental racism

Resumen

El libro del Dr. Malcom Ferdinand “Una ecología decolonial: pensar desde el mundo caribeño” surge en un momento oportuno y llena un vacío histórico en la literatura sobre el colonialismo y la ecología. Las secciones provocadoras y audaces abordan con maestría los temas de las relaciones étnico-raciales, de género y de vulnerabilidades. El libro es una invitación vital para comprender las interrelaciones de género, raza y clase en la búsqueda de justicia y cómo se manifiestan estas interrelaciones. El compendio de información proporcionada fortalece la coalición multidimensional de intereses para entender mejor la injusticia ambiental y la desigualdad social generalizada, asociadas a una ecología colonial.

Palabras-clave:
Colonialismo; ecologismo; desigualdad de género; justicia ambiental; racismo ambiental

Introdução

O desenvolvimento de pesquisas voltadas para a discussão das inter-relações de gênero, raça e classe ganhou notoriedade nos últimos anos, principalmente pelo descaso com as políticas governamentais que favorecem grupos marginalizados, historicamente segregados e invisibilizados. Apoiadas no cerne do sistema capitalista racista, muitas dessas políticas definiram diferentes formas de sociedade e modos de vida.

É justamente nessa lacuna que o Dr. Malcom Ferdinand em seu livro “Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho” se insere ao propor o fortalecimento desse debate a partir de um resgate histórico da dupla fratura colonial e ambiental. O debate proposto pelo autor revela através do “dilúvio ecológico” os problemas envoltos nas complexidades da contemporaneidade e a sua contribuição para a formação das sociedades atuais.

Para cobrir anos de debates a respeito do ambientalismo e do colonialismo, Ferdinand lança mão de uma profusão de referências e ilustrações, as quais amparam sua narrativa e seus insights. Denso e cirúrgico, o livro promove uma mudança de lentes ao longo de pouco mais de trezentas páginas. Brevemente, a obra é dividida em quatro partes, discutida metaforicamente a partir da tempestade moderna, a arca de Noé, o navio negreiro e um navio mundo. Essas partes estão associadas à dupla fratura que perpassa toda a extensão do livro. O enfoque proposto pelo autor é oportuno e traz uma contribuição social extremamente importante diante da atual lacuna acerca do tema.

Ferdinand disserta sobre o habitar colonial para definir a ecologia colonial, a ecologia decolonial e a ecologia-do-mundo, com fartas evidências da experiência caribenha. A partir do diálogo contínuo com a realidade atual, o livro torna-se agradável e estimulante. Durante a leitura é impossível não identificar traços do habitar colonial ainda hoje, como discutido, por exemplo, pelo movimento da justiça ambiental ou vivenciado pelos migrantes modernos no Mar Mediterrâneo.

O ponto de partida e elemento catalisador é o colonialismo de exploração que marca a história, passada e presente, das nações colonizadas e colonizadoras. Na crítica à visão dominante da modernidade - antropocêntrica, dualística (contrapondo humanos a não humanos) e confiante nas soluções científicas dos problemas socioambientais, o autor propõe uma mudança de olhar e resgata a experiência caribenha que passa a ser um exemplo universal.

Após um contundente resgate, o autor escreve sobre as lutas causadas pelos cenários racistas, misóginos e coloniais que se enraizaram em nossa sociedade desde 1492. Inicialmente, o livro traz uma crítica ao colonialismo, condenando a usurpação das terras, o massacre dos ameríndios, a dominação das mulheres negras, o comércio transatlântico de pessoas escravizadas e a exploração de milhões de negros ao longo de anos. A escravidão colonial e o comércio transatlântico de pessoas escravizadas estão entre as formas mais brutais e intensas de conquistas impostas pela colonização europeia das Américas.

Como se não bastasse o passado sombrio narrado por Ferdinand, muitos desses traços persistem como “ervas daninhas” na sociedade ano após ano, principalmente após a Revolução Industrial, - deixando marcas de mudanças vertiginosas no planeta. Diversos desastres ambientais já mataram milhares de pessoas em todo o mundo e, desde o final da década de 1960, há evidências da necessidade de reformar os sistemas de produção e consumo (POTT; ESTRELA, 2017POTT, C. M.; ESTRELA, C. C. Histórico ambiental: desastres ambientais e o despertar de um novo pensamento. Estudos Avançados, v. 31, n. 89, p. 271-283, 2017.) pelos impactos nocivos sobre os grupos mais vulneráveis da sociedade. Mas, como aponta Ferdinand, os danos afetam quem se encontra “no porão do mundo moderno” (Ibid., p. 209).

Em outras palavras, as consequências dos danos ambientais, sociais e econômicos são seletivas. A crítica ambiental destaca a extensão da destruição do ecossistema, a perda de biodiversidade causadas pela colonização europeia das Américas. Artaxo (2020ARTAXO, P. As três emergências que nossa sociedade enfrenta: saúde, biodiversidade e mudanças climáticas. Estudos Avançados, v. 34, n. 100, p. 53-66, 2020.) frisa que após a Revolução Industrial o planeta adentrou numa nova era geológica, o Antropoceno, em que a busca desenfreada pelo crescimento econômico é a principal força motriz de mudança ambiental global e, para além do Antropoceno, Ferdinand propõe o Negroceno.

A dupla fratura proposta pelo autor deleta o continuum em que humanos e não humanos se confundem como recursos que alimentam o mesmo projeto colonial, a mesma concepção de terra e mundo. Em suma, é proposta a correção dessa dupla descontinuidade voltando ao gesto principal do colonialismo, o ato de habitar. O colonialismo modela o habitar ao impor aos habitantes humanos e não humanos violências e dominações que modificam as relações entre seres. O habitar colonial é caracterizado por três dimensões principais: subordinação geográfica (países europeus-colônias, centro-periferia); exploração da terra e da natureza; e o altericídio, ou seja, o habitar-sem-o-outro.

Nesse contexto, é importante trazer a expressão da Necropolítica cunhada pelo filósofo Achille Mbembe (2016MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, v. 32, p. 123-151, 2016.). Pensar na Necropolítica no contexto das injustiças ambientais é relevante para a interpretação dessa realidade, visto que a história do racismo estrutural no desenvolvimento das sociedades levanta questões sobre os exercícios do poder institucional, os quais atuam na estratificação das pessoas segundo classe, gênero, status, tipo de trabalho, área onde residem, dentre outros.

Além disso, a trindade do racismo estrutural, institucional e ambiental expõe uma parte desproporcional da sociedade a ecossistemas poluídos. O racismo é um fenômeno multidimensional que constantemente se inter-relaciona, com a intersecção entre o gênero (misoginia), classe social (capitalismo racial) e etnia-raça (colonialismo), originando o racismo patriarcal heteronormativo experienciado nos dias atuais. Abolicionismo e ambientalismo estão no mesmo meio colonial, patriarcal, cristão e racista, servindo aos interesses do colonialismo ambiental - onde o Estado ou potenciais grupos impõem um uso da terra que usurpa os bens comuns com fins lucrativos privados e degradam o meio de vida dos habitantes locais.

A crise ecológica reforça as dominações e as opressões coloniais, - os eventos climáticos, por exemplo, promovem a manutenção dos grupos que podem ser atingidos, além de recriar diferentes formas da colonialidade, - o aquecimento global será bem-vindo para se livrar de maneira lucrativa do povo negro. Há séculos as diversas formas de desenvolvimento das sociedades contrapõem Norte Global e Sul Global, mulheres e homens, brancos e pretos, humanos e não humanos, nativos e não nativos, poder e subserviência. Ou seja, há grupos historicamente privilegiados em detrimento de outros, como relatado: “meu mundo às custas do mundo dos outros” (Ibid., p. 107). De modo geral, nem todos contribuem para a poluição dos ecossistemas da mesma forma, nem todos sofrem as mesmas consequências ou não têm as mesmas formas de se proteger. Além disso, basear-se no discurso que os vulneráveis sociais e econômicos são os grandes responsáveis pela poluição, desmatamento e contaminação do planeta é injusto, e fortalece a ecologia colonial.

O sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman (2004BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2004.) aponta que a comunicação e coordenação entre as políticas de vida realizadas pelo indivíduo e a ação política do coletivo humano são o retrato da negligência adotada pelas autarquias que se beneficiam do fruto da coletividade. Na obra em questão, as minorias sociais são tratadas meramente como fim comercial.

A solidariedade humana é a primeira vítima do triunfo do mercado de consumo, em síntese, não há como um pequeno grupo selecionar seu lixo ou optar pela compra de bens duráveis quando o que impera é a lei da obsolescência onde nada foi feito para durar (BAUMAN, 2004BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2004.), nem mesmo as vidas negras. Essa ideia individualista não anula a composição social em questão, uma vez que a sociedade é composta por pessoas que não tem opção de escolha quanto ao que comer ou vestir, mas vestem-se e alimentam-se do que tem. Sob essa ótica, percebe-se a insuficiência dos esforços de uma pequena classe cujo poder de escolha é um privilégio. A saída consiste na mudança direta e eficiente nas engrenagens do sistema de produção e consumo, do contrário é experienciar a resposta hostil do planeta às ações do homem.

É difícil sintetizar todo o arcabouço que perpassa os temas, estudos, referências, ilustrações, analogias e metáforas. Contudo, a sagacidade de Ferdinand costura sua obra com o fio da urgência - das lutas políticas, científicas, jurídicas e filosóficas. Este esforço urgente visa desmantelar as estruturas coloniais e os paradigmas coloniais que sustentam a convivência em um planeta dominado por racistas, misóginos e plutocratas. Afinal, está relacionado ao todo, mas não permite que as pessoas pensem na composição do todo, e nem mesmo nas questões de igualdade e justiça.

Nesse sentido, se fosse possível resumir a obra de Malcom Ferdinand com uma frase, certamente seria “A crise ecológica é uma crise de justiça” (Ibid., p. 267). Esta declaração é um denominador comum na análise histórica do desenvolvimento de Ferdinand, bem como uma crítica da formulação predominante de desenvolvimento sustentável publicada pela Organização das Nações Unidas.

De fato, as políticas ambientais muitas vezes “esquecem” as populações mais vulneráveis, obrigadas a viver em locais degradantes e insalubres e que as colocam em perigo. Essas consequências afetam a qualidade de vida, a fome, os níveis de educação, a renda e outras questões. O processo de alocação de perigos e riscos diferencia grupos expostos e não expostos a riscos ambientais. Nesse sentido, os negros são alvo de grupos historicamente privilegiados dentro da hierarquia criada pela sociedade de risco. É salutar destacar, que nessa hierarquia, existe um abismo entre o homem branco (topo da pirâmide) da mulher negra (base da pirâmide). A mulher negra ocupa uma posição extremamente desprivilegiada em detrimentos do homem negro, da mulher branca e do homem branco.

Mulheres e pessoas racializadas são grupos-chave no movimento contra o aquecimento global e na busca por justiça ambiental. Com base nisso e na clara contribuição da igualdade de gênero para a justiça climática e social, Rainard, Smith e Pachauri (2023RAINARD, M.; SMITH, C. J.; PACHAURI, S. Gender equality and climate change mitigation: Are women a secret weapon? Frontiers in Climate, v. 5, p. 1-17, 2023.) discutem como a maior igualdade revela os elementos essenciais para organizar uma sociedade mais justa para alcançar um futuro sustentável. Nesse sentido, as perspectivas ecofeministas podem ser uma direção a seguir. A desigualdade de gênero e outras formas de desigualdade são destacadas como herdadas do Iluminismo e fundamentais para auxiliar a superar a crise climática.

Políticas ambientais e de igualdade foram e são guiadas majoritariamente por homens brancos. Isso significou que os negros foram afastados das arenas públicas, onde de fato ocorre a organização do mundo. Principalmente as mulheres e, sobretudo, as mulheres negras foram silenciadas com o não direito ao voto a ocuparem cargos de poder em conselhos e tribunais soberanos ou a apossarem de cargos no governo. Essa caracterização misógina e racista silencia as vozes de grupos que precisam ser ouvidos e os transforma em objetos da vontade de outros. Para Ferdinand, essa abordagem possibilita um ambiente que nega o mundo e exacerba a discriminação colonial e a desigualdade social, ou seja, a ecologia colonial.

A obra apresenta não só o papel sistemático que o racismo exerce na vida dos grupos mais vulneráveis às questões ambientais, mas também como o colonialismo fomentou o processo de degradação ambiental. Nesse sentido, Ferdinand propõe a partir da tripartite antiescravismo, anticolonialismo e ambientalismo o escape do Antropoceno como sendo a mensagem da ecologia decolonial.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

References

  • ARTAXO, P. As três emergências que nossa sociedade enfrenta: saúde, biodiversidade e mudanças climáticas. Estudos Avançados, v. 34, n. 100, p. 53-66, 2020.
  • BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2004.
  • MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, v. 32, p. 123-151, 2016.
  • POTT, C. M.; ESTRELA, C. C. Histórico ambiental: desastres ambientais e o despertar de um novo pensamento. Estudos Avançados, v. 31, n. 89, p. 271-283, 2017.
  • RAINARD, M.; SMITH, C. J.; PACHAURI, S. Gender equality and climate change mitigation: Are women a secret weapon? Frontiers in Climate, v. 5, p. 1-17, 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2023
  • Aceito
    08 Ago 2023
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