Acessibilidade / Reportar erro

ENSSLIN, A.; BALTEIRO, I. (eds.). Approaches to Videogame Discourse: Lexis, Interaction, Textuality [Abordagens ao discurso do videogame: léxico, interação, textualidade]. New York: Bloomsbury, 2019. 320 p.

Enquanto forma de arte em desenvolvimento e mídia de comunicação e entretenimento, os videogames percorreram um longo caminho entre passatempo de um nicho específico e centralizado de pessoas — geeks e nerds — e uma indústria com capital social e cultural que já ultrapassa os ganhos das indústrias mundiais de cinema e música combinadas. O impacto dos games vai desde os jogos digitais comercializados por grandes conglomerados, pequenas e médias empresas, até o uso de recursos nativos dos games para a aplicação em contextos distintos, a gameficação (REGO, 2015REGO, I. DE M. S. Mobile Language Learning: How Gamification Improves the Experience. In: Handbook of Mobile Teaching and Learning. Berlin: Springer-Verlag, 2015.).

A pesquisa sobre a criação e circulação de games, com isto, reflete o escopo e a influência da mídia nos campos de Comunicação Social, da Pedagogia e das Humanidades (Digitais). Entretanto, a maior parte desses estudos se debruça sobre o videogame como um artefato, pensando os jogos digitais enquanto mídia e não como textos situados em um campo de atividade humana. Em específico, na Linguística Aplicada, a pesquisa sobre games é ainda tímida, apesar do número de jogadores que entram para a academia científica e trazem com eles suas experiências ao interagir com games enquanto cresciam.

Por isso é que recomendo a leitura de Approaches to Videogame Discourse: Lexis, Interaction, Textuality, que vem contribuir para a diminuição da lacuna de pesquisa sobre games como objeto de estudo da Linguística Aplicada e da Análise do Discurso (AD). Separado em três grandes partes, o livro trata do videogame, além da miríade de paratextos através dos quais interagem jogadores, criadores e produtores que trabalham com games. O volume reúne uma coletânea de artigos dedicados à pesquisa sobre videogames como texto e objeto de estudo de diferentes vertentes da AD, focando nos estudos de léxico, enquanto expande seu escopo para estudos sobre interação entre jogadores e multimodalidade. O livro é organizado pelas linguistas Astrid Ensslin e Isabel Balteiro.

Astrid Ensslin é professora de Humanidades Digitais e Estudos de Jogos na Universidade de Alberta, Canadá. Sua pesquisa em Linguística das Mídias, situada no campo da Sociolinguística, é focada na literalidade dos games e como ela pode ser estudada na compreensão das ideologias que cercam esta mídia. Ela liderou projetos de pesquisa sobre videogames através das culturas; leitura, curadoria e análise de ficção digital; variação linguística e ideologias de linguagem em videogames; além de Linguística de Corpus. Isabel Balteiro é professora sênior de Lexicologia Inglesa na Universidade de Alicante, Espanha. Os seus principais interesses de ensino e investigação centram-se no léxico e nos mecanismos de formação de palavras em inglês e em outras línguas. Sua pesquisa é situada nos campos da Lexicologia e Pragmática, com publicações em periódicos sobre Língua Inglesa e Ensino de Inglês. O trabalho conduzido pelas duas professoras se realiza no volume aqui resenhado, que se organiza a partir dos estudos de léxico, da pragmática e da sociolinguística para compreender os processos que envolvem o ato de jogar videogame como campo de atuação humana.

A primeira parte – capítulos 1 a 5 – trata dos videogames pelos olhares da lexicologia, localização e variação, com capítulos que recorrem à abordagem lexical para o estudo dos games; fóruns, tutoriais e detonados1 1 “vídeo [ou texto que] mostra um passo a passo que ensina a vencer cada uma das etapas do jogo, geralmente com legendas de texto ou texto e imagens (capturas de tela)”. Fonte: https://novaescola.org.br/bncc/conteudo/24/conheca-seis-generos-digitais-sugeridos-pela-bncc. Acesso em: 05 abr. 2022. ; além do papel do léxico de ficção científica nos games; e uma crítica à linguagem jurídica utilizada por usuários finais nos jogos digitais. Com embasamento teórico da lexicologia e da linguística variacionista, este primeiro pilar da obra investiga o papel dos processos lexicais em diferentes contextos nos quais o videogame é utilizado, servindo ao propósito de melhor compreender as economias e ecologias dos games. A primeira parte do livro salienta o potencial da mídia para compreensão de fenômenos relacionados à comunicação mediada por computador (CMC) e seus efeitos sobre a mudança e o contato linguísticos. A título de exemplo, cito os dois primeiros capítulos da primeira parte.

No capítulo 1, as autoras Carola Álvarez-Bolado Sánchez e Inmaculada Álvarez de Mon conduzem um estudo de caso de modo a compreender o uso de neologismos no discurso jornalístico do nicho de games na Espanha. O estudo sugere que os neologismos que aparecem em seus dados são primariamente semânticos, ou sejam, são recontextualizações de termos já existentes em espanhol sendo apropriados para o contexto de games. O capítulo dois (de autoria de uma das organizadoras do volume, Isabel Balteiro) utiliza-se da abordagem lexical e da linguística de corpus para analisar a linguagem utilizada em fóruns sobre videogames, salientando, através de seus resultados, a maneira como a comunicação mediada por computador afeta a maneira como novos termos são criados para criar um balanço entre jargão especializado e linguagem simples, com uso consistente de abreviações.

Estudos como os apresentados até aqui iluminam o modo como videogames podem enriquecer uma língua, haja vista que as palavras recontextualizadas pelo domínio discursivo dos games podem ser reincorporadas na língua padrão. Além disso, sugerem possíveis olhares sobre a linguagem da CMC (HERRING, 1996HERRING, S. C. S. Computer-Mediated Communication: Linguistic, Social, and Cross-Cultural Perspectives. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1996. v. 12.) e como ela pode afetar contextos assíncronos (off-line).

A mídia dos games se torna, dessa maneira, um meio de estudar as mudanças linguísticas ocasionadas pelas novas tecnologias e um meio de compreender a aquisição e aprendizagem do léxico. Exemplos deste potencial da mídia podem ser vistos em trabalhos dedicados a entender a aquisição de léxico na aprendizagem do inglês (LEÃO, 2014LEÃO, L. Vídeo games de RPG e a aquisição lexical multimodal de inglês como língua estrangeira. 2014. 135f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem, subárea Estudos Aplicados de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014.), que investiga como se dá a aquisição de vocabulário por alunos de inglês como língua adicional ao jogarem videogames do gênero RPG. O trabalho de Leão ressalta que a aquisição de léxico se dá por meio da redundância de informação, ou seja, quando um item lexical é apresentado verbalmente, em simultâneo com elementos visuais e sonoros.

Os trabalhos na primeira parte de Approaches to Videogame Discourse vão, desta maneira, contribuir para o entendimento atual e futuro da mudança linguística ocasionada pelas novas tecnologias e configura como um rumo frutífero da pesquisa com corpus. Para além das contribuições para o entendimento da própria língua, também podemos verificar as contribuições advindas da interação on-line pela perspectiva dos atores sociais.

A segunda parte – capítulos 6 a 9 –debruça-se sobre as interações entre jogadores em diferentes contextos, focando nas estratégias de impolidez (HAUGH, 2013HAUGH, M. Im/Politeness, Social Practice and the Participation Order. Journal of Pragmatics, v. 58, p.52–72, 2013.), na negociação de sentidos em situações de jogo on-line e off-line de diversos gêneros de jogos, revelando as várias aproximações entre os atos de jogar em contextos virtual e presencial. Este eixo temático, que lida com os jogadores, vai se utilizar de uma abordagem etnográfica para contribuir com o entendimento de aspectos pragmáticos de tal interação. Entre as questões abordadas, está o que é definido como “Bad Language” – um termo que se refere a linguagem tabu e ironia – para compreender a impolidez cooperativa em jogos co-op (ou co-situados; multijogador presencial); o uso de palavras tabu como (re)construtor de identidades; o uso de linguagem colaborativa em jogos digitais do gênero puzzle (quebra-cabeças); e como as regras de interação em jogos online conflitam com as estratégias comunicativas adotadas em tais ambientes. Nessa parte, é possível lançar luz sobre o uso da impolidez em contextos digitais, contribuindo para os estudos da pragmática na CMC.

Os usos da impolidez e da linguagem tabu são tópicos ainda pouco debatidos quando pensados no contexto da Comunicação Mediada por Computador, menos ainda quando se considera o uso de tal linguagem em redes sociais. Existe, de fato, uma literatura extensa sobre as estratégias de impolidez em ambientes de trabalho e educação, em redes sociais e outras plataformas digitais, mas o estudo focado em games como campo de atividade humana é ainda limitado. Esta lacuna de pesquisa tem sido preenchida, de maneira mais substantiva, em trabalhos que se debruçam sobre a ética e a moral entre jogadores (BIANCHINI; OLIVEIRA; VASCONCELOS, 2012BIANCHINI, L. G. B.; OLIVEIRA, F. N.; VASCONCELOS, M. S. Procedimentos no jogo virtual colheita feliz: entre a virtude e a regra. Educação Temática Digital, v. 14, n. 1, p.1-21, 2012.; RAMOS, 2012).

As pesquisas sobre estratégias de impolidez em videogames podem ser exploradas a partir de trabalhos como os supracitados, que geram entendimentos sobre julgamentos de valores que constituem noções de certo e errado, e como elas se manifestam nas práticas sociais mediadas pela linguagem, o que pode informar sobre fenômenos como os estudados pelos autores do volume aqui resenhado. Tal rumo de pesquisa pode contribuir para pesquisas que se dedicam à relação entre linguagem, tecnologia e sociedade.

A terceira parte – capítulos 10 a 13 – explora o discurso dos games para além do texto, com estudos que refletem sobre a linguagem dos jogos digitais por sua proceduralidade e transmidialidade, além das ideologias e educação linguística que interpelam tais mídias. Em outras palavras, é neste eixo temático que podemos observar o potencial da linguagem do videogame para a Linguística Aplicada. O olhar da Linguística dos Videogames, entendido pelas organizadoras deste volume como um ramo da Linguística da Mídia, fica mais evidente neste terceiro pilar, que utiliza um aporte teórico que alude à Sociolinguística da Globalização (BLOMMAERT, 2010BLOMMAERT, J. The Sociolinguistics of Globalization. New York: Cambridge University Press, 2010.) para compreender a distribuição de recursos semióticos entre as diferentes variantes das línguas faladas nos jogos.

Os capítulos desta parte analisam o modo procedural, a forma primária de expressão dos videogames que pode ser usada para compreender os recursos linguísticos das novas mídias; o modo como jogadores leem o jogo digital por meio desta forma de expressão, interpelando jogadores e produtores de games com diferentes ideologias; como certas ideologias podem ser “codificadas” na proceduralidade dos games; e nas instruções dos jogos. Pode-se argumentar que a contribuição mais inovadora da parte três está no conceito de proceduralidade e na sua aplicação nas diferentes formas de compreender o discurso dos games.

O conceito de proceduralidade – relativo ao modo de expressão procedural – é bem estabelecido no campo de Game Studies (Estudos de Games). Baseado na ideia de que sistemas de regras são, em si, recursos semióticos capazes de integrar textos – e, portanto, implementar práticas socioculturais –, a proceduralidade é estudada de maneira a conceptualizar o modo como normas e regras criam sentidos que ensinam a seus jogadores como agir em sociedade, a partir de fronteiras bem definidas e de parâmetros implícitos envolvidos na experiência de jogo.

Por meio desta exploração do discurso dos games, Approaches to Videogame Discourse: Lexis, Interaction, Textuality se propõe a situar o ato de jogar videogames como um domínio de atividade humana, com seus aspectos global e multicultural. Situa seus aspectos “estranhos” e fora do comum, que o localizam na LA, haja vista que Linguística Aplicada compreende a atividade humana manifesta na linguagem utilizando a exceção para entender a regra, o incomum para entender comum. Um exemplo de tal pesquisa como é feita no Brasil é compreender o videogame como texto.

Destaca-se, por essa abordagem, a concepção do videogame para expressão artística (RAMOS, 2013RAMOS, C. O. Lendo Fable 2: os videogames como espaço possível de negociações e produção de efeitos de sentido. 2013. 133 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) - Universidade do Sul de Santa Catarina, UNISUL, Tubarão, 2013.), afastando-o de seu caráter puramente lúdico, base da maior parte das pesquisas focadas em games – e o destaque de um elemento-chave para interação com o videogame, a simulação, que ressalta o potencial da mídia para a aprendizagem de saberes de vida e de ruptura de hegemonias, ponto já levantado por pesquisas anteriores (LIMA, 2008LIMA, L. H. M. X. DE. Virando o jogo: uma análise de videogames através de um olhar discursivo crítico. 2008. 165 f. (Mestrado em Linguagem eTecnologias do programa deLinguística Aplicada). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.). O ato de jogar videogames é discutido, assim, a partir das pesquisas de Ensslin e Balteiro, além de Gee (2003)GEE, J. P. What Video Games Have to Teach us about Learning and Literacy. New York: Palgrave Macmillan, 2003., Jenkins (2009)JENKINS, H. Cultura da convergência. Tradução: Susana Alexandria. São Paulo: Aleph, 2009. e outros, ao sugerir o papel dos jogos digitais na compreensão da condição humana na sua relação com as novas tecnologias.

O livro aqui resenhado é um trabalho único e inovador, que abre novos caminhos na pesquisa com videogames na LA, na AD e na Sociolinguística, caminho esse que contribui para gerar entendimentos acerca da relação entre linguagem e tecnologia em diferentes contextos no Brasil e no mundo. Assim, recomendo a leitura àqueles pesquisadores em Análise de discurso e Sociolinguística que se dedicam à comunicação mediada por computador em seus aspectos pragmático e lexicológico.

REFERÊNCIAS

  • BIANCHINI, L. G. B.; OLIVEIRA, F. N.; VASCONCELOS, M. S. Procedimentos no jogo virtual colheita feliz: entre a virtude e a regra. Educação Temática Digital, v. 14, n. 1, p.1-21, 2012.
  • BLOMMAERT, J. The Sociolinguistics of Globalization New York: Cambridge University Press, 2010.
  • GEE, J. P. What Video Games Have to Teach us about Learning and Literacy New York: Palgrave Macmillan, 2003.
  • HAUGH, M. Im/Politeness, Social Practice and the Participation Order. Journal of Pragmatics, v. 58, p.52–72, 2013.
  • HERRING, S. C. S. Computer-Mediated Communication: Linguistic, Social, and Cross-Cultural Perspectives. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1996. v. 12.
  • JENKINS, H. Cultura da convergência Tradução: Susana Alexandria. São Paulo: Aleph, 2009.
  • LEÃO, L. Vídeo games de RPG e a aquisição lexical multimodal de inglês como língua estrangeira 2014. 135f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem, subárea Estudos Aplicados de Linguagem) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014.
  • LIMA, L. H. M. X. DE. Virando o jogo: uma análise de videogames através de um olhar discursivo crítico. 2008. 165 f. (Mestrado em Linguagem eTecnologias do programa deLinguística Aplicada). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.
  • RAMOS, C. O. Lendo Fable 2: os videogames como espaço possível de negociações e produção de efeitos de sentido. 2013. 133 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) - Universidade do Sul de Santa Catarina, UNISUL, Tubarão, 2013.
  • REGO, I. DE M. S. Mobile Language Learning: How Gamification Improves the Experience. In: Handbook of Mobile Teaching and Learning Berlin: Springer-Verlag, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2022
  • Aceito
    13 Abr 2022
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com