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Implicações da nova definição de Dor da IASP: tempos para novos paradigmas e o resgate de seu significado

Senhor editor,

Há aproximadamente 40 anos, a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP)11 Merskey H, Albe Fessard D, Bonica JJ, Carmon A, Dubner R, Kerr FWL, et al. Pain terms: a list with definitions and notes on usage. Recommended by the IASP subcommittee on taxonomy. Pain. 1979;6(3):249-52. propôs um conceito de dor que visava normatizar sua definição de maneira que a padronização pudesse ser empregada em diversos contextos. Em julho de 2020 foi apresentada à comunidade científica uma última definição22 Raja SN, Carrb DB, Cohen M, Finnerup NB, Flor H, Gibson S, et al. The revised International Association for the Study of Pain definition of pain: concepts, challenges, and compromises. Pain. 2020;161(9):1976-82. atualizada, cuja tradução para o português foi feita pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED)33 DeSantana JM, Perissinotti DMN, Oliveira Jr JO, Correia LMF, Oliveira CM, Fonseca PRB. Tradução para a língua portuguesa da definição revisada de dor pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. https://sbed.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Defini%C3%A7%C3%A3o-revisada-de-dor_3.pdf
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As definições teóricas costumam nortear práticas, manuais e currículos acadêmicos, cuja importância reside em suas derivações conceituais e implicações, as quais refletem na prática profissional. Isso resulta em variações na forma de compreensão da dor, assim como das enfermidades e sofrimento relacionados.

Este editorial pretendeu apontar para algumas reflexões sobre essa atualização conceitual, considerando suas notas nas discussões e a relevância dos conceitos de dor, notadamente enquanto fenômeno de percepção subjetiva, em contextos sociais e psicológicos da sua etiologia e implicações.

A partir da proposta de Merskey et al. da definição de dor11 Merskey H, Albe Fessard D, Bonica JJ, Carmon A, Dubner R, Kerr FWL, et al. Pain terms: a list with definitions and notes on usage. Recommended by the IASP subcommittee on taxonomy. Pain. 1979;6(3):249-52. e a despeito da divergência de diversos teóricos e pesquisadores, a palavra dor tem sido utilizada em vários idiomas para se referir tanto ao sistema nociceptivo quanto à sua percepção e resposta comportamental. Compreendemos que definições científicas são instrumentos adaptáveis e flexíveis sujeitos às circunstâncias culturais e sociais influenciadas e resultantes do comportamento individual e comunitário. Assim como qualquer outro instrumento, a arte de sua boa aplicação não está em simplesmente empregá-lo, mas sim em fazê-lo de maneira habilidosa.

Entendemos que esta nova taxonomia, dentre outras demandas criteriosas, exige uma mudança de paradigma.

Pouco mais de quatro décadas se passaram e embora algumas novas propostas de terminologia tenham surgido e evidências tenham apontado em direção à falseabilidade ou percalços da definição, suas limitações teóricas e éticas, o desenvolvimento de uma nova terminologia de forma consensual não tem sido uma tarefa fácil. O objetivo maior para o qual tanto trabalho vem sendo investido só poderá ser garantido pela atenção especial daqueles que utilizarão a nova definição.

O desenvolvimento dessa empreitada por meio de amplo investimento da Força Tarefa dispendeu de longas discussões teóricas, linguísticas e éticas enfatizando que a nova definição deveria ser aplicável a todas as populações, incluindo animais, assim como contemplar os aspectos nociplásticos, subjetivos e as dimensões psicológicas e sociais.

Apesar de consultas públicas à comunidade, discussões e reflexões acerca de mudanças conceituais a princípio não parecerem significativas para muitos, elas o são, pois enfatizam ainda mais a presença de elementos comportamentais, psicológicos e sociais baseados no desenvolvimento do conhecimento das últimas décadas, especialmente o relacionado às ciências do comportamento.

A nova taxonomia inclui dupla dimensão conceitual que abrange tanto a perspectiva neuroplástica como epigenética, ainda que de forma implícita. Isso é de fundamental interesse, uma vez que o fenômeno doloroso sempre inclui ambas perspectivas e, muitas vezes, uma delas acaba sendo esquecida.

Se por um lado existe um avanço na compreensão ampliada da dor, existe também a defesa por um critério mais «objetivo», pautado em componentes e fenômenos biológicos ou orgânicos. Essa defesa, no entanto, parece-nos estar pautada na garantia ilusória de controle absoluto sobre a dor, esquecendo-se que um «controle» só é possível ao se respeitar a natureza do fenômeno doloroso: subjetiva, influenciada por vários fatores, sujeita à qualidade das experiências vitais decisivas, e de papel adaptativo. Também é importante considerar que a descrição verbal da dor é tão ou mais importante do que a descrição pura de dados que a envolve.

Vale lembrar que a Psicologia, ciência do comportamento, já desenvolveu métodos bastante objetivos de mensuração de variáveis e atualmente fornece elementos às demais áreas do conhecimento, desde que sejam utilizados por agentes com formação adequada.

Parece-nos que a IASP, nessa nova definição, além de salientar a dor como uma experiência mais ampla do que permite a fisiopatologia, retoma o caminho que talvez tenha se perdido em decorrência do avanço da tecnologia ou mesmo de medidas de intervenção puramente biológicas isoladas. Estas, sem dúvida, têm a sua importância, contudo, alguns dos profissionais, até por dificuldade de compreensão dos seus princípios, acabam deixando de lado outros fatores relevantes.

Diante destas breves pontuações, seria pertinente reconstruir também nosso modelo biopsicossocial de dor? Entendemos que sim.

Esperamos que em termos de políticas públicas a nova definição de dor e a inclusão dos conceitos sobre dor na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) possam refletir mais diretamente nas práticas clínicas e formas de tratamento da dor, bem como na inclusão de disciplina que aborde o tema dor nas grades curriculares dos cursos de graduação na área de saúde, mobilizando também a categoria dos psicólogos para atuar de forma mais veemente na área.

Atenciosamente,

REFERENCES

  • 1
    Merskey H, Albe Fessard D, Bonica JJ, Carmon A, Dubner R, Kerr FWL, et al. Pain terms: a list with definitions and notes on usage. Recommended by the IASP subcommittee on taxonomy. Pain. 1979;6(3):249-52.
  • 2
    Raja SN, Carrb DB, Cohen M, Finnerup NB, Flor H, Gibson S, et al. The revised International Association for the Study of Pain definition of pain: concepts, challenges, and compromises. Pain. 2020;161(9):1976-82.
  • 3
    DeSantana JM, Perissinotti DMN, Oliveira Jr JO, Correia LMF, Oliveira CM, Fonseca PRB. Tradução para a língua portuguesa da definição revisada de dor pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. https://sbed.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Defini%C3%A7%C3%A3o-revisada-de-dor_3.pdf
    » https://sbed.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Defini%C3%A7%C3%A3o-revisada-de-dor_3.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020
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