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PARDUE, Derek. Cape Verde, Let’s Go: creole rappers and citizenship in Portugal. Urbana, Chicago, Springfield: University of Illinois Press, 2015, 208 p.

PARDUE, Derek. . Cape Verde, Let’s Go: creole rappers and citizenship in Portugal. Urbana, Chicago, Springfield: University of Illinois Press, 2015, 208 p.

CIDADANIA CONTESTADA: rap kriolu e experiências migratórias em Lisboa

Parece haver certa miopia nas ciências sociais quando diante da noção de interculturalidade, categoria derrapante, que faz referência a uma série de ideias que visam a possibilitar interações, convivências e trocas sociais mais equânimes e horizontais entre diferentes grupos étnicos e religiosos. Porém, há de se ter cuidado com a conveniência política do conceito: às vezes, pode denotar o desejo, sobretudo por parte de chefes de estado, gestores de políticas públicas, fundações e organizações filantrópicas, de promover conexões socioculturais; mas, outras vezes, pode revelar um contorno seletivo dos processos migratórios e de algumas políticas de inclusão via cidadania, bem como um uso utilitarista das produções artísticas desses agentes.

Essa é a crítica que serve de pano de fundo e mote analítico do último e importante trabalho do antropólogo norte-americano Derek Pardue, Cape Verde, Let’s Go: Creole Rappers and Citizenship in Portugal, publicado em dezembro de 2015. Professor Associado do Department of Global Studies da Aarhus University, Dinamarca, Pardue oferece uma abordagem arguta sobre a produção musical de rap kriolu na cidade de Lisboa, Portugal. O livro, a um só tempo, é um relato meticuloso sobre a presença cabo-verdiana na capital portuguesa – bem como das experiências culturais nas periferias da cidade – e uma análise sobre os processos identitários e as políticas de agenciamento em torno da cidadania, território incerto e em disputa em um contexto pós-colonial ainda pobremente compreendido.

A obra é baseada em trabalho de campo extenso e em metodologias de investigação variadas, incluindo entrevistas, análise de arquivos históricos, legislações e letras de músicas, aplicação de questionários e revisão crítica de políticas governamentais, de Portugal e Cabo Verde. Pardue conduziu, no total, pesquisas etnográficas em Lisboa (em 2007, 2009, 2011 e 2013) e em Praia, Cabo Verde (em 2009 e 2011), nas quais entrevistou rappers, grafiteiros, DJs, dançarinos, membros de agências estatais que lidam com imigrantes e trabalhadores de associações não governamentais, envolvidos, na época, com migração e interculturalidade. O antropólogo apresenta, ainda, uma gama de fontes primárias e secundárias que incluem obras de ficção, dados historiográficos, fragmentos literários e testemunhais, notas e impressões etnográficas de viagens, letras de rap, entremeados com teorias políticas e antropológicas.

A partir de processos de identificação coletiva e experiências culturais migratórias, Pardue lança-se na tarefa de compreender a constituição relacional de cada grupo – portugueses e cabo-verdianos –, avaliar a relação entre experiências e políticas migratórias e refletir sobre a problemática da cidadania como “balanço de aquisições e atribuições” (p. 7). O escopo da obra é, nessa medida, juntar dois corpos epistemológicos relevantes: experiências migratórias – como as produções culturais – e políticas migratórias – elementos políticos que regem o fluxo de pessoas frente aos desafios da cidadania. Problematizar as duas esferas do fenômeno é essencial para captar a dialética entre formação identitária e práticas de cidadania.

Para Pardue, o rap kriolu cabo-verdiano, sobretudo em Lisboa, bem como os papéis desempenhados por seus agentes, desafiam a noção predominante de cidadania, que alude a um projeto político-cultural de afiliação social possibilitada pela relação entre vivências diárias e dinâmicas históricas de longo prazo. Entretanto, o antropólogo argumenta que a categoria cidadania deve ser ressignificada e lida sob outro viés, não como condição social abstrata, e sim como disposição que se materializa na ocupação espacial; trata-se de uma presença que marca lugar e motiva os agentes a considerarem a cidade como palimpsesto territorial (p. 9). É nessa linha que o pesquisador percorre dois aspectos de empoderamento e, vale dizer, duas dimensões da cidadania, ao sustentar sua análise, quais sejam: a língua e a cultura expressiva.

A maioria dos cabo-verdianos, autóctones ou situados nas comunidades diaspóricas, falam o kriolu – língua híbrida que emergiu no final do século XV, a partir do colonialismo português no oeste africano e como saldo da expulsão ibérica de mouros sob a égide da inquisição. Hoje, o kriolu, como “língua intermediária” (p. 42) de assimilação dentro do cenário colonial lusófono, “varia de uma ilha de Cabo Verde para outra, assim como de uma localidade diaspórica para outra” (p. 9). De um modo geral, a língua foi influenciada pelo vocabulário português; já seu sistema fonético e sua gramática se vinculam a idiomas do oeste da África – Mandingo, Temne, Wolof e outras línguas pidgin e creole.

Entre 1980 e 1990, Portugal começou a se tornar cada vez mais multicultural, devido a compromissos internacionais, favorecendo a interculturalidade e a intensificação do fluxo migratório, especialmente dos países africanos de língua portuguesa (PALOP), como Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, além da Guiné Equatorial. Para Pardue (p. 50), os rappers kriolu, nas periferias de Lisboa, se posicionam, atualmente, no espaço público de modo a enfatizar sua língua como marcador social de diferença. De fato, o kriolu foi, antes de tudo, fato social do colonialismo e, com efeito, tentativa de assimilação dentro da identidade e cidadania portuguesas. Contudo, para alguns migrantes africanos, o kriolu vem se tornando, progressivamente, mecanismo expressivo de crítica social e de reivindicação cultural e territorial, contraste político, portanto, do discurso lusotropicalista.

O lusotropicalismo é uma ideologia fundada sob um conjunto de mitos que exaltam o colonialismo português e a sociedade pós-colonial como excepcionalmente “convenientes” a processos de miscigenação. Cunhado na década de 1950 por Gilberto Freyre, ele se refere a um dispositivo de controle cordial que se traduziria em uma hipotética mistura de raças e leis lenientes por parte da metrópole. Incluindo-se nessa seara de discussões, Pardue argumenta que, historicamente, o kriolu teve uma formação singular no colonialismo português, sendo que suas complexidades e idiossincrasias contribuíram para fortalecer a ideologia englobante e fictícia da “civilização” portuguesa “durante os períodos coloniais iniciais dos séculos XVI e XVII, bem como durante seu revigoramento ou reinvestimento em África, no final do século XIX e na primeira metade do século XX”, agora sob a égide do lusotropicalismo (p. 49-50).

É nessa linha que emerge a problemática da pesquisa: que efeitos tem, sobre políticas identitárias em Portugal, produzir rap kriolu cabo-verdiano a partir de performances musicais que interrompem o dispositivo lusotropicalista? O lugar etnográfico da obra é, portanto, o rap kriolu e as experiências de seus agentes em bairros improvisados e moradias sociais de Lisboa. A “cabo-verdianidade” em Portugal está enredada na performance do kriolu, que, por sua vez, como expressão cultural da identidade migratória, põe em prática um discurso avesso ao lusotropicalismo, insurgindo-se no espaço público como símbolo de alteridade e diferença.

O rap kriolu afetou – ainda que indiretamente – os termos que moldam as políticas migratórias no país, em especial as políticas públicas, os preceitos jurídicos – e, mais timidamente, o próprio senso comum sobre o que é ser português na atualidade europeia. Uma análise da dinâmica cultural exercida pelo kriolu mediante performances de rappers residentes em regiões periféricas de Lisboa é pertinente para mostrar que a língua vem, sim, impactando a identidade nacional. O rap apareceria, dentro dessa agenda, como campo de investigação rico no que tange à cidadania, na medida em que o gênero faz questão de sublinhar o poder estético e político da linguagem como catalisador de prerrogativas que reivindica, tanto no nível dos circuitos comerciais quanto das práticas mais cotidianas – na forma e no conteúdo –, direitos sociais, culturais, espaciais e políticos. Trata-se, portanto, de perceber que a linguagem não só incorpora relações essenciais do encontro do eu com o outro, do exercício mesmo da alteridade, mas também diz respeito a questões de poder, história e espaço.

A partir de tal deslocamento, Pardue traz à tona o conceito bakhtiniano de “cronotopo” (chronotope), sugerindo uma conexão de relações temporais e espaciais de caráter expressivo e cultural. Com isso, lança a hipótese de que a cidadania não é tão e somente um conjunto de práticas motivadas por uma variedade de interesses; é, antes disso, uma formação cronotópica, ou seja, um processo mediante o qual o tempo, o lugar e os agentes históricos reais e circunscritos em determinado espaço social se revelam conjunta e artisticamente. Trata-se de uma variável que conjura e organiza sentimentos coletivos de pertencimentos históricos e experiências espaciais, como o colonialismo e a migração. Isso leva o pesquisador a afirmar que o sentido de cidadania plena deve ser situado em articulações particulares e concretas de tempo e espaço, como a própria produção cultural e a ocupação de espaços públicos.

A ideia de cronotopo parece ser útil, no caso do kriolu, na medida em que permite profundidade na avaliação das tensões que existem em torno de políticas identitárias codificadas na forma poética do rap, “não só elucidando uma apreciação do espaço de formação identitária como constituído historicamente, mas, inclusive, marcando a evidência linguística e narrativa desse trabalho sobre a identidade” (p. 86). À medida que o colonialismo foi se tornando mais agressivo, o kriolu insurgiu para representar “um africano outro, explorado, que ainda não é membro colaborativo de Portugal, digno de direitos e cidadania plena, mas certamente capaz de autodenominar-se português” (p. 57). Pardue fornece, então, evidências sobre a reivindicação identitária do que denomina cidadania crioula, delineando a presença espacial da africanidade dentro de Lisboa e sua luta por inserção social.

O kriolu emerge, nesse contexto, como meio de empoderamento em que aquele que fala, declama, compõe, canta e dança reúne, na expressividade e performatividade artísticas, noções de identidade e de cultura migratória opostas àquelas apregoadas pelo colonialismo e pelo lusotropicalismo, a fim de demarcar reivindicações da cidadania crioula na Europa contemporânea. Tal reivindicação assume uma orientação espacial por meio da qual os migrantes apreendem, ressignificam e representam suas noções de história, ideologia, identidade. O espaço acaba sendo, nesse ínterim, “dimensão irredutível da presença” (p. 105); o rap kriolu, por sua vez, torna-se um novo imaginário social, meio rotinizado de formatar a realidade social da comunidade cabo-verdiana em Portugal. O desfecho da obra segue tal equação: “a cultura molda a cidadania” (p. 135), pois as práticas dos rappers, nas periferias, reconfiguram imaginários espaciais de pertencimento e as próprias políticas identitárias e de cidadania.

Todavia, talvez fosse o caso de investir mais na crítica de algumas categorias, de forma a sublinhar como os termos colocados em jogo pelos diferentes agentes – sobretudo ao exporem uma multiplicidade de vivências, políticas e lutas sociais – são, no limite, problemáticos, na medida em que podem encerrar tanto pressupostos eurocêntricos como visões romantizadas de situações históricas. A desconstrução mais detida dos conceitos, ou seja, a crítica dos pressupostos de categorias como interculturalidade, cidadania, identidade, pertencimento, raça e periferia, por exemplo, ajudaria a deslocar questões camufladas por trás de suas próprias condições de produção para o centro das disputas políticas e, com efeito, transformar ausências (ou aquilo que é silenciado propositalmente) em presenças. Afinal, o que há, na cultura expressiva de cabo-verdianos em Lisboa, que foge à tão alardeada dicotomia cidadão e migrante? O que há, nas lutas pela cidadania crioula, que escapa à dicotomia Europa e África? O que há, no rap kriolu, que indica a invenção de novas cidadanias e novos saberes sobre experiências migratórias, políticas identitárias e práticas culturais nas periferias?

Se, por um lado, o fantasma da nostalgia lusotropicalista e o oceano parecem reunir portugueses e cabo-verdianos num cenário abstrato de encontro supostamente intercultural, por outro, o trabalho e a raça, a exploração e o racismo, os separam na materialidade da vida cotidiana, deixando às escuras ações transgressivas que poderiam dar credibilidade à cultura expressiva desse grupo social, em oposição à credibilidade excludente de políticas públicas. Por isso, é de se elogiar o esforço e o sucesso de Derek Pardue em conferir inteligibilidade a novos processos identitários de luta por cidadania, mobilizados pelo rap kriolu, que sugerem um paradigma alternativo de pertencimento socioespacial. Tal é a lógica e a potência por trás da insistência dos rappers nas periferias de Lisboa, ao dizerem que “o kriolu não é ‘tuga’, mas também não é uma nostalgia convencional cabo-verdiana. Kriolu é, isso sim, uma cidadania crioula em Portugal” (p. 156). E isso, como sustenta o antropólogo, de modo algum faz coro com os discursos oficiais utilitaristas de interculturalidade lusófona e cidadania europeia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2016
  • Aceito
    28 Out 2016
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