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Relação da hiperemia reativa pós-oclusiva avaliada pelo índice de perfusão pletismográfico com a depuração do lactato: uma nova peça no quebra-cabeça não resolvido da perfusão e da oxigenação dos tecidos no choque séptico

O choque séptico comumente caracteriza-se pela falta de coerência entre a hemodinâmica sistêmica e a microcirculação.(11 Kanoore Edul VS, Ince C, Dubin A. What is microcirculatory shock? Curr Opin Crit Care. 2015;21(3):245-52.) A otimização das variáveis cardiovasculares sistêmicas frequentemente não consegue melhorar o resultado dos pacientes com sepse. Como o objetivo final da ressuscitação deve ser a normalização da perfusão e a oxigenação dos tecidos, há um interesse crescente no monitoramento do fluxo microvascular. Infelizmente, poucas ferramentas para esse objetivo estão disponíveis na clínica.

As alterações na perfusão cutânea são manifestações típicas de todo tipo de choque. Embora métodos sofisticados possam ser usados para o estudo de distúrbios microcirculatórios da pele, a avaliação clínica ainda é uma abordagem fundamental.(22 Deegan AJ, Wang RK. Microvascular imaging of the skin. Phys Med Biol. 2019;64(7):07TR01.) A presença de máculas e sua gravidade estão fortemente associadas à mortalidade em pacientes com choque.(33 Dumas G, Lavillegrand JR, Joffre J, Bigé N, de-Moura EB, Baudel JL, et al. Mottling score is a strong predictor of 14-day mortality in septic patients whatever vasopressor doses and other tissue perfusion parameters. Crit Care. 2019;23(1):211.) O tempo de reenchimento capilar também é um método útil, barato e universalmente acessível. Ele fornece informações prognósticas relevantes e pode orientar com sucesso a ressuscitação de pacientes com choque séptico.(44 Hernández G, Ospina-Tascón GA, Damiani LP, Estenssoro E, Dubin A, Hurtado J, et al. Effect of a resuscitation strategy targeting peripheral perfusion status vs serum lactate levels on 28-day mortality among patients with septic shock: the ANDROMEDA-SHOCK randomized clinical trial. JAMA. 2019;321(7):654-64.) O problema é que a medição do tempo de reenchimento capilar é pouco reprodutível. Mesmo após cuidadosa padronização e treinamento, a variabilidade inter e intraobservador do método é grande.(55 Espinoza ED, Welsh S, Dubin A. Lack of agreement between different observers and methods in the measurement of capillary refill time in healthy volunteers: an observational study. Rev Bras Ter Intensiva. 2014;26(3):269-76.) O tempo de reenchimento capilar muda de acordo com a temperatura ambiente, a idade, o sexo e as características da pele.(66 Pickard A, Karlen W, Ansermino JM. Capillary refill time: is it still a useful clinical sign? Anesth Analg. 2011;113(1):120-3.) Outra ferramenta valiosa para a avaliação da perfusão cutânea é o índice de perfusão (IP), que é derivado da análise da forma de onda do pletismógrafo do oxímetro de pulso.(77 Lima AP, Beelen P, Bakker J. Use of a peripheral perfusion index derived from the pulse oximetry signal as a noninvasive indicator of perfusion. Crit Care Med. 2002 Jun;30(6):1210-3.) O IP é a razão entre o componente pulsátil (compartimento arterial) e o não pulsátil (sangue venoso e capilar) da luz que atinge o detector do oxímetro de pulso. Assim, a redução do componente pulsátil pela vasoconstrição periférica diminui a proporção e, portanto, o IP. Em voluntários saudáveis, os valores do IP têm distribuição altamente distorcida e variam de 0,3 a 10,0. No entanto, o IP está correlacionado com a diferença de temperatura entre o núcleo e os pés. Em pacientes gravemente doentes, um valor de IP abaixo de 1,4 reflete a presença de perfusão periférica deficiente.(77 Lima AP, Beelen P, Bakker J. Use of a peripheral perfusion index derived from the pulse oximetry signal as a noninvasive indicator of perfusion. Crit Care Med. 2002 Jun;30(6):1210-3.) O IP pode ser usado para a avaliação da responsividade a fluidos durante uma manobra de elevação passiva das pernas.(88 Beurton A, Teboul JL, Gavelli F, Gonzalez FA, Girotto V, Galarza L, et al. The effects of passive leg raising may be detected by the plethysmographic oxygen saturation signal in critically ill patients. Crit Care. 2019;23(1):19.) Além disso, a resposta dinâmica do IP a um teste de oclusão vascular (TOV) permite o estudo da hiperemia reativa, que é a capacidade de recrutar a microcirculação após um desafio isquêmico.

Nesta edição da Critical Care Science, Miranda et al. publicam uma nova contribuição para nosso entendimento dessa questão.(99 Miranda AC, De Stefani FC, Dal Vesco BC, Carraro Júnior H, Assreuy J, Morello LG, et al. Relationship between peripheral ischemic microvascular reserve, persistent hyperlactatemia, and its temporal dynamics in sepsis: a post hoc study. Crit Care Sci. 2023;35(2):177-186.) Anteriormente, Menezes et al. mostraram que os pacientes em choque séptico, em comparação com os controles sem sepse, levaram mais tempo para atingir o pico do IP após TOV (70 [53 - 92] versus 48 [36 - 60] segundos).(1010 Menezes IA, Cunha CL, Carraro Júnior H, Luy AM. Perfusion index for assessing microvascular reactivity in septic shock after fluid resuscitation. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(2):135-43.) Embora a variação do IP (∆IP) fosse semelhante nos dois grupos (71 [32 - 125] versus 79 [30 - 137] %), a alteração nos primeiros 60 segundos após o TOV (∆IP0-60) foi menor no grupo com sepse (1 [-19 - 40] versus 39 [6 - 75] %). Em contrapartida, a ∆IP nos 60 segundos seguintes (∆IP60-120) foi semelhante (48 [18 - 98] versus 43 [18 - 93] %). A ∆IP0-60 e a ∆IP60-120 provavelmente estão ligadas a respostas mecanossensíveis e metabólicas.(1111 Koller A, Bagi Z. On the role of mechanosensitive mechanisms eliciting reactive hyperemia. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2002;283(6):H2250-9.) Em um estudo adicional em pacientes com choque séptico, os autores descobriram que os não sobreviventes levaram mais tempo para atingir o IP máximo.(1212 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) Paradoxalmente, os não sobreviventes tiveram ∆IP mais alta do que os sobreviventes, o que foi completamente explicado pelas diferenças na ∆IP60-120. Consequentemente, um pico de ∆IP > 62% foi um forte indicador de mortalidade. Em resumo, a resposta mecanossensível está diminuída em pacientes com sepse em comparação com controles sem sepse, mas a resposta metabólica é maior em não sobreviventes do que em sobreviventes com choque séptico. É interessante notar que ambos os estudos mostraram correlação positiva entre o pico de ∆IP e a dose de vasopressor, cujo mecanismo subjacente envolve alterações na regulação adrenérgica.(1010 Menezes IA, Cunha CL, Carraro Júnior H, Luy AM. Perfusion index for assessing microvascular reactivity in septic shock after fluid resuscitation. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(2):135-43.,1212 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.)

Por sua vez, Miranda et al.(99 Miranda AC, De Stefani FC, Dal Vesco BC, Carraro Júnior H, Assreuy J, Morello LG, et al. Relationship between peripheral ischemic microvascular reserve, persistent hyperlactatemia, and its temporal dynamics in sepsis: a post hoc study. Crit Care Sci. 2023;35(2):177-186.) estudaram uma série de pacientes com choque séptico que mantiveram hiperlactatemia após a ressuscitação no primeiro dia do diagnóstico. Seus objetivos eram confirmar o valor prognóstico do teste e avaliar sua relação com o nível de lactato. Os pontos fortes do estudo foram o projeto prospectivo e multicêntrico, bem como a inclusão de um número relativamente grande de pacientes. Infelizmente, havia muitos dados faltantes. Os pacientes com pico de ∆IP > 62% apresentaram maior mortalidade (66,1% versus 38,5%), mais alterações na perfusão periférica e tendências não significativas para níveis mais altos de lactato, menor depuração de lactato e doses de norepinefrina do que os pacientes com pico de ∆IP < 62%. A presença de pico de ∆IP elevado identificou um grupo de pacientes com uma condição mais grave. Embora o valor de um pico de ∆IP elevado como preditor de mortalidade tenha sido confirmado, o estudo não conseguiu identificar associação clara com a depuração de lactato. Esse resultado não é inesperado, considerando as múltiplas fontes de hiperlactatemia em pacientes com sepse.

Os achados de Miranda et al.(99 Miranda AC, De Stefani FC, Dal Vesco BC, Carraro Júnior H, Assreuy J, Morello LG, et al. Relationship between peripheral ischemic microvascular reserve, persistent hyperlactatemia, and its temporal dynamics in sepsis: a post hoc study. Crit Care Sci. 2023;35(2):177-186.) e Menezes et al.(1010 Menezes IA, Cunha CL, Carraro Júnior H, Luy AM. Perfusion index for assessing microvascular reactivity in septic shock after fluid resuscitation. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(2):135-43.,1212 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) não são necessariamente paradoxais e podem refletir as intrincadas anormalidades da hiperemia reativa e da oxigenação tecidual no choque séptico. A resposta tardia para atingir o pico do IP, em comparação com pacientes sem sepse, poderia ser uma expressão de hiperemia reativa alterada. Por outro lado, uma ∆IP mais alta em pacientes não sobreviventes com choque séptico pode mostrar o resultado de um maior débito de oxigênio adquirido durante o TOV.

Em resumo, o IP é uma ferramenta útil para monitorar a oxigenação dos tecidos de pacientes em estado grave. Quando combinado ao TOV, não só fornece novas percepções sobre a complexidade do recrutamento microvascular, mas também melhora a capacidade de prognóstico. Embora o estudo de Miranda et al.(99 Miranda AC, De Stefani FC, Dal Vesco BC, Carraro Júnior H, Assreuy J, Morello LG, et al. Relationship between peripheral ischemic microvascular reserve, persistent hyperlactatemia, and its temporal dynamics in sepsis: a post hoc study. Crit Care Sci. 2023;35(2):177-186.) acrescente novas informações aos achados anteriores de Menezes et al.,(1010 Menezes IA, Cunha CL, Carraro Júnior H, Luy AM. Perfusion index for assessing microvascular reactivity in septic shock after fluid resuscitation. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(2):135-43.,1212 Menezes IA, Cunha CL, Junior HC, Luy AM. Increase of perfusion index during vascular occlusion test is paradoxically associated with higher mortality in septic shock after fluid resuscitation: a prospective study. Shock. 2019;51(5):605-12.) a interpretação e a utilidade clínica do teste não são simples. Há necessidade de mais estudos para entender completamente o significado e os mecanismos desses achados interessantes.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2023
  • Aceito
    10 Jun 2023
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