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A Educação Matemática no currículo infantil boliviano

Mathematics education in the Bolivian children's curriculum

Resumo:

Discute-se o atual currículo-base da educação infantil boliviana denominado Programa de Estudio Educación Inicial en Familia Comunitaria Escolarizada, sua organização geral e, em especial, como a matemática é nele desenvolvida. As discussões foram amparadas nos estudos realizados por autoras/es cujos estudos versam sobre as temáticas descoloniais e a matemática na educação infantil. O currículo é descrito pela legislação como um instrumento descolonizador e libertador, por articular a cultura local com a participação da sociedade, na tomada de decisões nas políticas educacionais. A educação matemática articulada no currículo destaca, por meio das temáticas orientadoras, aspectos da intraculturalidade e da interculturalidade, criando possibilidades para que os saberes da família e da comunidade sejam reconhecidos. Isso permite o diálogo entre culturas, garantindo a visibilidade e o intercâmbio de outras lógicas epistêmicas, contribuindo para a construção de um pensamento descolonial.

Palavras-chave:
Educação infantil; Educação matemática; Currículo intercultural; Descolonização; Intercâmbio cultural

Abstract:

This article examines the current core curriculum for Bolivian children’s education, known as the Initial Education Study Program in a Schooled Community Family, in terms of its overall structure and, more specifically, how mathematics is taught. The discussions are conducted based on authors who have researched colonial and mathematical themes in children's education. The legislation describes the curriculum as a decolonizing and liberating tool for articulating local culture while allowing society to influence decision-making concerning educational policies. The curriculum of mathematical education emphasizes intraculturality and interculturality through guiding themes, allowing for the rebuilding of family and community knowledge, facilitating cultural dialogue, ensuring the visibility and exchange of other epistemic logics, and contributing to the construction of decolonized thought.

Keywords:
Children's education; Mathematical education; Intercultural curriculum; Decolonization; Cultural exchange

Considerações iniciais

A Educação Infantil ocupa um lugar de destaque cada vez maior na agenda educativa mundial, pois ao longo dos anos, a infância vem abrindo espaços na sociedade, sendo incorporada por meio de ordenamentos legais aos sistemas educacionais. Hoje, em muitos países da América Latina, como no Brasil, Bolívia, Equador, México, Nicarágua, Panamá, Peru e Venezuela, corresponde à etapa inicial da educação formal das crianças compondo a educação básica e recebe diversas denominações: educação infantil, educação maternal, educação parvulária, educação inicial, creche etc. que, de maneira geral, compreende a educação de meninos e meninas de zero a cinco anos de idade (Unesco, 2019UNESCO. Sistema de información de tendencias educativas en América Latina: observatorio regional de políticas educativas. Buenos Aires: Unesco, 2019. Disponível em: https://siteal.iiep.unesco.org/ Acesso em: 20 dez. 2022.
https://siteal.iiep.unesco.org/...
).

Atrelado a esse movimento de incorporação na educação básica, desde a década de 1990, também foram organizadas diversas reformas, abrangendo mudanças na legislação educacional, na reorganização dos sistemas de ensino, na formação de professores e as reformulações curriculares.

As reformas curriculares na América Latina, carregaram o caráter neoliberal que, propositalmente, ignora a história e as especificidades de cada país, invisibilizando as culturas nacionais, perpetuando dessa forma, resquícios coloniais ao se adotar e validar uma única perspectiva, no caso a eurocêntrica, e a partir dela, todas as estruturas de poder se organizaram por meio das relações coloniais que atravessam praticamente todos os aspectos da vida (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, 2005. p. 117-142 .).

Diante deste cenário, podemos questionar: haveria outros modos de se elaborar e construir um currículo sem se pautar pela agenda neoliberal? Quais caminhos possíveis?

Vislumbramos essa possibilidade no currículo boliviano que em seu processo de produção tomou um rumo diferente dos demais países latino americanos, pois fez a opção de ser delineado nos moldes que aparentemente envolveu a participação dos povos originários por meio de seus conselhos, trazendo em seus princípios uma perspectiva decolonial e intercultural.

Sendo assim, esse artigo tem como objetivo compreender a estrutura da educação infantil boliviana, a organização curricular proposta para essa etapa, que elementos estão presentes em suas orientações para o campo da educação matemática e quais possibilidades decoloniais1 1 Para os autores pós-coloniais, os termos Decolonizar e Descolonizar são considerados sinônimos. podem ser desenvolvidas por meio dele.

Para direcionar nossos olhares sobre o documento curricular boliviano nos apoiaremos nos estudos realizados por autores/as cujos estudos estão situados/as no contexto latino-americano como Aníbal Quijano (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, 2005. p. 117-142 ., 2014QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad. Buenos Aires: Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, 2014.) e de Catherine Walsh (Walsh, 2008WALSH, C. E. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el estado. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 131-152, 2008., 2009aWALSH, C. E. Interculturalidade crítica e pedagogía decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, V. (org). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009a. p. 12-43., 2012WALSH, C. E. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, SC, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, 2012.).

O artigo está organizado em três momentos. Inicialmente faremos a explanação sobre alguns aspectos da colonialidade que incidiram sobre a Bolívia e o processo de refundação do estado, que pretende combater seus requícios. Na sequência descreveremos como se deu a construção do novo paradigma educacional e seus desdobramentos sobre a organização e o currículo da educação infantil boliviana. E, por fim, discutiremos como é concebido o trabalho com a matemática e sua relação com os pressupostos da interculturalidade e decolonialidade.

Nuances e interfaces políticas e sociais da Bolívia

Assim como em vários países da América Latina, no processo de colonização da Bolívia, houve a imposição dos conhecimentos eurocêntricos sobre os conhecimentos tradicionais indígenas, em uma tentativa de apagamento das culturas dos povos originários. Em muitos momentos da história do país, a escolarização foi negada aos povos tradicionais e em outros foi utilizada como uma estratégia de homogeneização, visando a integração do indígena à sociedade nacional, o que acarretou a invisibilização das culturas de muitas nações.

A colonialidade é fruto do processo de colonização, em que mesmo com sua finalização, deixou seu rastro na sua lógica de desumanização, silenciando e esmagando identidades, culturas e saberes outros que não os eurocêntricos.

Para a pesquisadora Catherine Walsh (2009b, p. 186WALSH, C. E. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de) coloniais de nuestra época. Quito: Univeridad Andina Simon Bolívar: Abya-Yala, 2009b., tradução nossa), “[...] a educação contribuiu – e segue contribuindo – para a colonização das mentes, para as noções de ‘singularidade’, ‘objetividade’ e ‘neutralidade’ da ciência, do conhecimento e da epistemologia, e de que algumas pessoas são mais ‘aptas’ a pensar do que outras.”

O funcionamento da colonialidade opera por meio de quatro eixos entrelaçados: a colonialidade do poder (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, 2005. p. 117-142 .), a colonialidade do saber, a colonialidade do ser (Maldonado-Torres, 2007MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidade del ser, contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GOMES, S.; GROSFROGUEL, R. (comp.). El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana: Universidad Central-IESCO, 2007. p. 127-167.) e a colonialidade cosmogônica (Walsh, 2009bWALSH, C. E. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de) coloniais de nuestra época. Quito: Univeridad Andina Simon Bolívar: Abya-Yala, 2009b.).

Os quatro eixos de manifestação da colonialidade são assim definidos pela pesquisadora Catherine Walsh (Walsh, 2008WALSH, C. E. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el estado. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 131-152, 2008., 2012WALSH, C. E. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, SC, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, 2012.):

  • – A colonialidade do poder, como um sistema de classificação social baseado em uma hierarquia racial e sexual, na formação e distribuição de identidades sociais entre superior e inferior.

  • – A colonialidade do saber, exclui e desqualifica a existência de outras racionalidades epistêmicas e tem a perspectiva eurocêntrica como única e válida.

  • – A colonialidade do ser, seria exercida por meio da inferiorização, subalternização e desumanização do outro negando-lhe a existência, tratando povos e comunidades indígenas como bárbaros e incivilizados.

  • – No último eixo, a colonialidade cosmogônica, cuja base se dá na divisão binária entre natureza/sociedade, descartando toda visão ancestral entre o mundo biofísico, humano e espiritual.

Na tentativa de romper com esse sistema, muitos movimentos sociopolíticos surgiram na América do Sul, com o objetivo de refundação, interculturalização e descolonização do Estado, dentre eles podemos destacar o Estado Plurinacional da Bolívia.

De acordo com site do Instituto Nacional de Estatística da Bolívia, o país está situado ao Sul do continente americano, e possui uma área total de 1.098.581 km², fazendo fronteira com o Brasil, Peru, Chile, Argentina e Paraguai. Seu contexto social é marcado por uma grande diversidade étnica e cultural, e por altos índices de pobreza e desigualdade. Ao longo da sua história, a Bolívia perdeu territórios para o Chile, o Brasil e o Paraguai em guerras e conflitos. A Bolívia também sofreu golpes militares e instabilidade política até a restauração da democracia em 1980. A população boliviana é de cerca de 11,2 milhões de pessoas, das quais 41,7% se declaram pertencentes a uma das nações e povos indígenas originários e 23,3% se declararam afro-bolivianos.

Desde os anos 1990, movimentos sociais que representam populações de origem urbana e pobre da Bolívia altiplânica têm adotado um discurso indígena e demandas por justiça concebidas tanto em termos de reconhecimento identitário quanto de redistribuição de bens materiais.

O país possui duas capitais, Sucre, que foi a primeira sede de governo, é a capital constitucional e abriga o poder legislativo, e La Paz é a capital legislativa. O país está organizado em nove departamentos: Pando, Beni, Santa Cruz, Chuquisaca, Tarija, Potosí, Cochabamba, Oruro e La Paz. O Índice de desenvolvimento humano (IDH) é de 0,703, o investimento em educação é de 8,6%.

Hoje, os idiomas oficiais do país são o espanhol e todas as 36 línguas das nações e povos camponeses indígenas nativos. Para Quijano (2014)QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad. Buenos Aires: Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, 2014., as identidades culturais indígenas, foram negadas ao longo dos séculos, pois eram vistas como subculturas, por justamente contrastarem com a cultura eurocêntrica.

O reconhecimento dos idiomas, e das culturas indígenas só se deu por meio de um intenso processo de lutas e reivindicações que envolveu diversos setores da sociedade, que levou a refundação do estado, passando a se chamar: Estado Plurinacional da Bolívia.

Para García Linera (2014)GARCÍA LINERA, A. Democracia liberal vs. democracia comunitária. In: MIGNOLO, W. Interculturalidad, descolonización del estado y del conocimiento. Buenos Aires: Del Signo, 2014. p. 71-82., teórico e político boliviano, foi preciso dar um passo para o reconhecimento de que o país é plurinacional, formado por diferentes etnias e nações, que deveriam ser incluídas, respeitando suas formas de organização comunitária e terem garantidos a igualdade de direitos políticos e culturais. Para Catharine Walsh (Walsh, 2008, p. 142WALSH, C. E. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el estado. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 131-152, 2008. tradução nossa), a plurinacionalidade e a interculturalidade são complementares, pois

[...] a interculturalidade aponta as relações e articulações a serem construídas e por isso é uma ferramenta e um projeto necessário na transformação do Estado e da sociedade. Mas para que esta transformação seja verdadeiramente transcendental, é necessário romper com o quadro uninacional, enfatizando a plurinacionalidade não como uma divisão, mas como uma estrutura mais apropriada para unificar e integrar.

As atitudes decoloniais, de acordo com Maldonado-Torres (2007)MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidade del ser, contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GOMES, S.; GROSFROGUEL, R. (comp.). El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana: Universidad Central-IESCO, 2007. p. 127-167., estão pautadas em projetos de resistência questionadores que objetivam superar os modelos eurocêntricos coloniais do ser, do saber, e do poder. Em uma explicação similar, Walsh (2009a)WALSH, C. E. Interculturalidade crítica e pedagogía decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, V. (org). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009a. p. 12-43. ressalta que a decolonialidade é uma ferramenta que desvela os mecanismos de poder e uma estratégia para tentar construir relações de vida de modo distinto do que nos foi imposto pela colonialidade.

A Bolívia iniciou um processo histórico de mudança estrutural na dinâmica social e política do país, na qual o próprio Estado assumiu uma posição anti-imperialista trazendo um caráter disruptor em relação às influências da economia globalizada. Em 2006, tomou posse o primeiro presidente de origem indígena, Evo Morales, e estabeleceu-se uma série de propostas para a reestruturação do país, envolvendo um processo de mudança e transformação social, econômica, cultural, tecnológica e política, na tentativa de resgatar um sistema sociocomunitário. Os primeiros anos de governo de Evo Morales foram cruciais para a consolidação de uma nova situação política, centrada na defesa dos recursos naturais do país e no respeito ao caráter multiétnico e multicultural do povo boliviano, para tal medida instituiu-se uma série de medidas de reformas legislativas.

Após a reformulação da constituição boliviana houve a promulgação em 2010 de uma nova legislação educacional, a Lei Educativa número 70 'Avelino Siñani – Elizardo Pérez' (Bolivia, 2010BOLIVIA. Ley nº 070, ley de 20 de diciembre de 2010 […] ley de la educación “Avelino Siñani - Elizardo Pérez”. La Paz: Gaceta Oficial de Bolivia, 2010. Disponível em: http://tinyurl.com/ye2x6r3w Acesso em: 23 fev. 2024.
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), com proposta de erradicar várias desigualdades que violavam o direito à educação, especialmente da população nativa.

Avelino Siñani e Elizardo Pérez fundaram em 1931, no departamento de La Paz, a Escuela Ayllu de Warisata, cuja organização e abordagem pedagógica representou uma inovadora e rica experiência, baseada nas vivências, valores e princípios do Povo Aymara, com o objetivo de integrar as concepções e os saberes das populações indígenas, na construção de um novo desenvolvimento pedagógico. A escola funcionou até 1940, pois a educação desenvolvida por este modelo representou um perigo para os grandes latifundiários de terras, que sentiram seus interesses ameaçados, e uma série de atos conseguiu destruí-la. O modelo pedagógico elaborado pelos dois educadores serviu de base para se pensar as reformas educativas e a nova legislação educacional boliviana.

O capítulo dois da supramencionada Lei destaca que a educação deve se dar em sociedade, por meio da participação plena da população boliviana no sistema educativo plurinacional, respeitando suas diversas expressões sociais e culturais nas suas diferentes formas de organização. Também, destaca como sua primeira base, que a educação deve possuir um caráter descolonizador, libertador, revolucionário, anti-imperialista, para despatriarcar e transformar as estruturas econômicas e sociais visando a reafirmação cultural de nações e dos povos indígenas originários e afrobolivianas na construção do Estado Nacional e do Vivir Bien (Bolivia, 2010BOLIVIA. Ley nº 070, ley de 20 de diciembre de 2010 […] ley de la educación “Avelino Siñani - Elizardo Pérez”. La Paz: Gaceta Oficial de Bolivia, 2010. Disponível em: http://tinyurl.com/ye2x6r3w Acesso em: 23 fev. 2024.
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).

A construção dessa nova legislação, como consequência, também impactou sobremaneira a construção de novos currículos.

A construção de um novo paradigma educacional

Todo processo histórico de mudança também propõe seu próprio caminho para a construção de um novo paradigma de educação, entendendo-a como um instrumento descolonizador e libertador. E, nesse novo contexto, houve a necessidade da reformulação dos currículos, que deveriam traduzir em seu escopo os princípios destacados na legislação: um modelo educacional sociocomunitário produtivo que recupera a memória e as vivências históricas dos povos indígenas e originários.

O resgate da memória e vivências dos povos originários incorpora um aspecto proposto por Mignolo (2008, p. 249)MIGNOLO, W. D. Novas reflexões sobre a “idéia da américa latina”: a direita, a esquerda e a opção descolonial. Caderno CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 239-252, 2008. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-49792008000200004
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em que “[...] a descolonização da história narrada e do pensamento historiográfico é parte da tarefa do pensamento descolonial para avançar na opção descolonial.” O currículo propõe uma educação descolonizadora que incorpora os valores e conhecimento dos povos e nações indígenas originários de forma igualitária, para revalorizar, recuperar e desenvolver o seu potencial e também contribuir como elementos contra-hegemônicos e alternativas ao capitalismo.

Outro destaque, refere-se a intraculturalidade, interculturalidade e o plurilinguismo em todo sistema educativo.

O documento define a interculturalidade como uma forma democrática de relação entre culturas, como instrumento de coesão e convivência harmoniosa e equilibrada entre todos os povos e nações que habitam o território nacional. O desenvolvimento da inter-relação e interação, em igualdade de condições, dos saberes, do conhecimento, da ciência e da tecnologia produzidos por cada das culturas, fortaleceria a auto identidade entre todas as culturas bolivianas. A intraculturalidade, por sua vez, tem como objetivo fortalecer a identidade e a reafirmação dos elementos culturais presentes em um povo ou nação indígena, valorizando sua filosofia, visão de mundo e saberes. E, por fim, o plurilinguismo que considera o espanhol e todas as demais línguas das nações e povos indígenas como instrumentos de comunicação. Portanto, a organização curricular prevê a aprendizagem do espanhol e a língua materna de acordo com a nação.

Na análise da legislação curricular observamos que essa nova proposta educacional traz como fundamento filosófico o Vivir Bien, definido nas experiências dos povos originários, como estar bem e viver em harmonia com a Mãe Terra (Pachamama), com os animais e as plantas para estar em equilíbrio biosférico. De acordo com o pesquisador aymara e político boliviano Fernando Huanacuni Mamani, para os povos originários, a vida não se mede em função da economia. A própria essência da vida, o viver bem, no modelo proposto, “[...] está em desacordo com o luxo, a opulência e o desperdício, com o consumismo, com não trabalhar, mentir, roubar, subjugar e explorar os outros, agredir a natureza[...]” (Huanacuni Mamani, 2010HUANACUNI MAMANI, F. Buen vivir / vivir bien: filosofia, políticas, estrategias y experiencias regionales andinas. Lima, Peru: Coodinadora Andina de Organizaciones Indígenas, 2010.).

Para Walsh (2012, p. 72WALSH, C. E. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, SC, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, 2012., tradução nossa): “O vivir bien abre as possibilidades de conceber e gerir a vida de uma ‘outra’ forma, uma forma concebida a partir da diferença ancestral e seus princípios, mas pensada para o conjunto da sociedade.”

Como fundamento sociológico, o currículo base destaca a condição plural da realidade da população boliviana, já que o país é composto por várias nações indígenas, que, ao longo dos séculos, o colonialismo tentou invisibilizar essa diversidade por meio de uma proposta educacional homogênea que desconsiderou a cultura e o plurilingismo dessas populações.

Quanto à organização do Sistema Educativo Plurinacional, temos: o Subsistema de Educação Regular, o Subsistema de Educacão Alternativa e Especial e o Subsistema de Educação Superior de Formação Profissional.

A educação infantil boliviana insere-se no Subsistema de Educação Regular, é denominada de Educação Inicial em Família Comunitária, subdivide-se em não escolarizada para crianças de zero a três anos e escolarizada para os maiores, crianças de quatro a cinco anos.

A Educação Inicial em Família Comunitária não escolarizada é partilhada entre a família, a comunidade e o Estado; objetiva recuperar, fortalecer e promover a identidade cultural de crianças de zero a três anos, apoiando à família na promoção da saúde e alimentação, bem como favorecer o desenvolvimento integral promovendo espaços de socialização, transmissão cultural e formação na família, na comunidade e nas instituições.

Já a Educação Inicial em Família Comunitária escolarizada, destinada às crianças de quatro a cinco anos, amplia aos processos educativos iniciados na fase anterior, fortalecendo o desenvolvimento de quatro dimensões curriculares: Ser, Saber, Fazer e Decidir, a partir dos campos dos saberes, articulando as atividades da escola com as atividades da vida familiar e comunitária, em interlocução com a visão de mundo das diferentes culturas.

O Programa de Estudio Educación Inicial en Familia Comunitaria Escolarizada é descrito pela legislação como um instrumento descolonizador e libertador, por articular a cultura local com participação da sociedade na tomada de decisões em políticas educativas, responsabilizando-se por seu desenvolvimento como resposta às suas lutas e expectativas por um Estado plurinacional (Bolivia, 2014BOLIVIA. Ministerio de la Educación. Programa de estudio: educación inicial en familia comunitaria. La Paz: Ministerio de la Educación, 2014. Disponível em: https://tinyurl.com/bdj57u2v Acesso em: 23 fev. 2024.
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). A intencionalidade é que a perspectiva da descolonização esteja presente nas práticas educativas desde os primeiros anos de escolaridade, pois isso permitiria a formação integral das crianças dentro de sua cultura, em sua comunidade e em sua família, fortalecendo os valores e sua identidade cultural. E, sendo a identidade compreendida a partir das múltiplas manifestações, construções e reconstruções históricas, há a necessidade urgente de se estabelecer uma educação intercultural, na perspectiva de reconhecer e fortalecer as diferentes identidades, pessoal e social, construindo processos de cooperação, de respeito e de solidariedade.

Vale destacar que as transformações bolivianas foram o resultado da luta de movimentos sociais, oriundas dos movimentos de educação popular, protagonizados – especialmente – pelos povos e nações indígenas que já vinham reivindicando uma educação a partir de outras premissas. Nesse contexto, temos a elaboração do novo currículo que iniciou-se em 2006, antes mesmo da publicação da atual legislação.

Esse processo envolveu a participação de professores dos setores urbano e rural, profissionais e acadêmicos de diversas especialidades e sábios indígenas de diferentes povos e nações do Estado Plurinacional. Em 2008, esses documentos curriculares foram apresentados no Primeiro Encontro Pedagógico do Sistema Educação Plurinacional, com a participação de representantes de diferentes organizações, instituições dos povos e nações indígenas e camponesas.

Na sequência, em 2009, foram realizadas Reuniões Pedagógicas para a revisão desses programas de estudos. Tais reuniões envolveram professores especialistas, familiares e outras organizações e instituições ligadas à educação. Nos três anos subsequentes trabalhou-se na revisão e adequação desses documentos com a participação de professores por níveis e especialidades em conjunto com a equipe técnica do Ministério da Educação. Finalmente, em 2014, o documento foi lançado e publicado com o objetivo de servir como referência para o professor no seu trabalho pedagógico e que a partir desse currículo-base cada povo ou nação boliviana construa também seus currículos; ou sejam realizem uma harmonização entre o currículo base e o currículo regionalizado.

Nesse texto, inicialmente apresentaremos o currículo base, revisado em 2021 e, na sequência discutiremos aspectos que consideramos essenciais para compreensão de quais elementos da interculturalidade estão presentes em suas orientações para o campo da linguagem matemática na Educação Infantil e quais possibilidades decoloniais podem ser desenvolvidas por meio dele.

A composição curricular está organizada em quatro Campos de Saberes: Cosmos e Pensamento, Comunidade e Sociedade, Vida, Terra e Território, e Ciência, Tecnologia e Produção.

O campo Cosmos e Pensamento aborda a espiritualidade, os valores, a afetividade, as práticas sociais, bem como as formas de perceber o mundo, a vida e a natureza com base nas diretrizes socioculturais de cuidado, atenção e educação estabelecidas na família e comunidade, fortalecendo assim sua identidade social e cultural. O Cosmos é a visão e interpretação de mundo que os povos indígenas estruturaram durante séculos, com base em uma ligação entre todos os sistemas de vida que compõem o planeta.

O campo Comunidade e Sociedade destaca como ação a valorização e reconhecimento dos saberes, sentimentos e emoções, valores e as diferentes práticas e formas de comunicação, de cada criança e a compreensão da realidade em sua primeira língua e iniciação da segunda língua numa primeira fase, para depois iniciar uma língua estrangeira de acordo com as necessidades local e regional. Todo esse processo, a partir das orientações socioculturais das famílias e da comunidade, de acordo com a vivência, cuidado e desenvolvimento pessoal, que contribua para o fortalecimento de sua identidade.

O campo Vida, Terra e Território tem como meta a promoção da vida, a terra, o território, o respeito, a defesa, a proteção e o cuidado com a natureza, numa relação e interdependência harmoniosa e complementar entre sistemas de vida, desde o espaço familiar e comunitário onde as crianças vivem e se relacionam. Nesse processo de inter-relação, situações são apresentadas a ele para observar, explorar, experimentar, analisar, refletir, e fazer perguntas com diversas possibilidades de respostas, oportunizando a importância de viver em espaços saudáveis.

E, por fim, o campo Ciência, Tecnologia e Produção objetiva desenvolver o conhecimento matemático aplicado à vida, a partir de diversas situações da vida cotidianas, dando vazão para um pensamento criativo de natureza produtiva e problematizadora, complementada por práticas e experimentações na família, escola, comunidade e ambiente produtivo, bem como a aproximação e familiarização com o uso da tecnologia como meio de aprendizagem para o desenvolvimento de habilidades criativas.

O programa de estudo está organizado em duas etapas: o primeiro ano, para crianças na faixa etária de quatro anos e o segundo ano para as crianças na faixa etária de cinco anos; há objetivos diferentes, porém complementares, para cada uma delas.

No primeiro ano, o objetivo é contribuir para o desenvolvimento de valores sociocomunitários e hábitos de vida saudáveis nas esferas física, emocional e espiritual, desenvolvendo capacidades, qualidades e potencialidades, por meio de atividades ligadas e articuladas ao cotidiano da família e da comunidade para favorecer o desenvolvimento de sua identidade cultural e linguística no contexto em que vivem.

Já o objetivo delineado para as crianças do segundo ano é a promoção dos princípios, valores e atitudes intraculturais e interculturais, realizando diversas atividades de observação, argumentação, experimentação, pesquisa, expressão criativa e lúdica em relação ao cotidiano, que contribuam para o desenvolvimento de habilidades, qualidades e potencialidades de forma integral e holística.

Para cada um dos anos são desenvolvidas três temáticas, com a função de articular os conteúdos com quatro dimensões humanas: ser, saber, fazer e decidir. Cada uma dessas dimensões cumpre um propósito para o processo de descolonização. A dimensão do ser promove o desenvolvimento e fortalecimento de atitudes, sentimentos, valores e identidade. A dimensão do saber visa o fortalecimento de conhecimentos anteriores e o desenvolvimento de novos conhecimentos com base nas atividades diárias e na interação dialógica com as pessoas, a Mãe Terra e o Cosmos. Enquanto que, a dimensão do fazer promove as habilidades por meio de diversos objetos e jogos. E, por fim, a dimensão decidir é desenvolvida de forma gradual nas primeiras manifestações de decisão das crianças (Bolivia, 2021BOLÍVIA. Ministério de la Educación. Programa de estudio: educación inicial en familia comunitaria escolarizada. La Paz: Ministério de la Educación, 2021.).

O documento curricular em seus discursos enfatizam a necessidade de resgatar a identidade e o pensamento dos povos indígenas, expressando dessa maneira, um pensamento descolonizador, que pensa a partir das margens, descolonizando a história narrada (Mignolo, 2008MIGNOLO, W. D. Novas reflexões sobre a “idéia da américa latina”: a direita, a esquerda e a opção descolonial. Caderno CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 239-252, 2008. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-49792008000200004
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).

No entanto, nota-se no discurso do documento, a ausência de uma definição explícita sobre o conceito de infância e criança, porém, ao longo de sua estruturação, nos foi possível extrair uma breve caracterização desse entendimento.

A partir del nacimiento las niñas y los niños desarrollan experiencias de aprendizaje que parten de la realidad y práctica de la vida cotidiana de las familias y las comunidades, desarrollando integralmente la afectividad y espiritualidad, la identidad cultural, la salud y nutrición, y el desarrollo psicomotriz y cognitivo como componentes de los procesos formativos en los primeros años de vida (Bolivia, 2014, p. 14BOLIVIA. Ministerio de la Educación. Programa de estudio: educación inicial en familia comunitaria. La Paz: Ministerio de la Educación, 2014. Disponível em: https://tinyurl.com/bdj57u2v Acesso em: 23 fev. 2024.
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)2 2 Tradução nossa: "Desde o nascimento, meninas e meninos desenvolvem experiências de aprendizagem que se baseiam na realidade e na prática cotidiana das famílias e comunidades, desenvolvendo de forma integral a afetividade, a espiritualidade, a identidade cultural, a saúde e a nutrição, o desenvolvimento psicomotor e cognitivo como componentes do processo formativo nos primeiros anos de vida.".

Esse discurso reconhece que as crianças, desde o nascimento, aprendem e se desenvolvem por meio de experiências vivenciadas na família e na comunidade, mas, não deixa claro sobre como ela é vista, reconhecida e considerada no processo de elaboração e desenvolvimento curricular.

Mesmo notando essa ausência no discurso curricular, todavia, devemos levar em consideração que cada sociedade detém uma visão de infância e criança de acordo com seu contexto social, político e histórico que, segundo Kuhlmann Jr. (1998, p. 16)KUHLMANN JR., M. Infância, história e educação. In: KUHLMANN JR., M. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998. p. 15-42., a infância “[...] tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado é em função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e papel.”

A matemática no currículo da educação infantil boliviana

Ao adentrar em uma instituição de Educação Infantil, as crianças trazem consigo vários saberes de diversos campos, em virtude da sua história de vida, das suas vivências no plano físico, intelectual e sócio afetivo. Para Lorenzato (2006, p. 25)LORENZATO, S. Educação infantil e percepção matemática. Campinas, SP: Autores Associados, 2006., “[...] as crianças convivem com formas, grandezas, quantidades, tabelas, gráficos, representações, símbolos, regularidades, regras, etc.” Antes de ingressarem na educação formal, as crianças já estabelecem relações com esses conceitos no âmbito familiar e na comunidade e esse aspecto deve ser considerado no desenvolvimento do trabalho pedagógico.

Observamos que as orientações presentes no documento curricular demonstram esse cuidado, ao afirmar que as propostas devem se dar em situações sociais e culturais por meio das temáticas orientadoras.

O currículo base do primeiro e segundo ano destacam seis temáticas que expressam os valores culturais da família e comunidade, a comunicação intracultural e intercultural, as atividades produtivas da família e da comunidade, a identidade cultural da família perante a diversidade sociocultural, as relações da família com as práticas produtivas e as relações harmônicas com a natureza, em cada um dos campos de conhecimento.

No campo Ciência, Tecnologia e Produção, as temáticas orientadoras procuram articular os saberes da família e da comunidade com os conceitos matemáticos formais: estimativa e comparação de medidas de comprimento, peso, volume, textura e sua aplicação em atividades da família, escola e comunidade; formas geométricas no ambiente familiar e comunidade; noções de tempo na comunidade e na escola; noções de quantidade associada às atividades produtivas; figuras geométricas relacionadas a atividades produtivas; estimativa e comparação de medidas de temperatura, noção de tempo e sua aplicação em atividades família, escola e comunidade; números ordinais e cardinais e seu uso em atividades cotidianas; sistema monetário e sua aplicação nas atividades produtivas na família e comunidade; noção de quantidade e sua utilização nas atividades diárias.

Ao analisarmos a disposição dos conteúdos matemáticos e as orientações para o desenvolvimento das atividades, observamos que há uma ênfase com as ações desenvolvidas na família e na comunidade.

O documento defende que o processo educativo sócio-comunitário, se executa com base na participação democrática e consenso, em que a comunidade se compromete com a gestão educacional para atingir objetivos comuns, com base nos saberes e conhecimentos, visando transformação social e fortalecimento de convivência harmoniosa com a mãe terra e o cosmos (Bolivia, 2021BOLÍVIA. Ministério de la Educación. Programa de estudio: educación inicial en familia comunitaria escolarizada. La Paz: Ministério de la Educación, 2021.).

A organização proposta por meio de campos de conhecimento tenta romper com a fragmentação dos conteúdos, por permitir a articulação entre eles, dentro de uma visão integral e holística do conhecimento, exigindo um currículo que seja integrado, pois a criança apreende o mundo de forma holística, não atribuindo significado ao conhecimento isolado (Lopes, 2003LOPES, C. E. O conhecimento profissional dos professores e suas relações com estatística e probabilidade na educação infantil. 2003. 290 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. Disponível em: https://www.repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/283441 Acesso em: 6 jan. 2023.
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).

Entendemos que a articulação das aprendizagens em campos de conhecimentos, pode contribuir para potencializar uma visão integral do conhecimento, destacando a criança no centro do propósito educativo, dentro do seu contexto de vida na família e na comunidade, portanto, o desafio é desenvolver uma educação que articule os campos de conhecimento, ligando-os à realidade, integrando as atividades cotidianas como a brincadeira, o jogo e o movimento, na família e comunidade, de forma inter-relacionada e complementar, desta maneira lançando as bases para uma educação sociocomunitária produtiva.

As estratégias metodológicas citadas no documento elencam que é preciso propor atividades que permitam experimentar, descrever, comentar, conversar, ouvir, perguntar e dar a sua opinião. Bem como fomentar o questionamento, a problematização e a argumentação permitem às crianças encontrarem variadas soluções para as situações-problemas. Além de pesquisar, escolher soluções, levantar dúvidas, ter divergências, realizar debates e discussões sobre temas de interesse pactuado pelo grupo ou proposto pelo professor (Bolivia, 2021BOLÍVIA. Ministério de la Educación. Programa de estudio: educación inicial en familia comunitaria escolarizada. La Paz: Ministério de la Educación, 2021.).

As crianças carregam um vasto conhecimento adquirido por meio de suas vivências na família e na comunidade que pertencem, portanto estão em contato com a matemática a todo momento. Vemos essa preocupação expressa no currículo base, pois a descrição do próprio campo destaca que a matemática deve ser vivenciada a partir de diversas situações da vida cotidianas, tais como: visitas a mercados, feiras, lojas de bairro, transporte público, passeios, pontos de alimentação e produção e outros, nas quais são realizadas operações de cálculo e estimativas de quantidades, espacialidade, lateralidade, peso, tamanho, comprimento, distância, ordem, medida e tempo, dentro de um contexto significativo pautado em suas vivências em família e na comunidade (Bolivia, 2021BOLÍVIA. Ministério de la Educación. Programa de estudio: educación inicial en familia comunitaria escolarizada. La Paz: Ministério de la Educación, 2021.).

O documento reforça que o conceito de número se constrói em situações sociais e culturais, por meio de troca entre as crianças e adultos. Essa visão corrobora com o pensamento de Lopes e Grando (2012)LOPES, C. E.; GRANDO, R. C. Resolução de problemas na educação matemática para a infância. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICAS DE ENSINO, 16., 2012, Campinas. Anais [...]. Campinas: Unicamp, 2012. Disponível em: http://tinyurl.com/67ns98k5 Acessao em: 8 jan. 2022.
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, ao afirmarem que a criança percebe o número por meio das relações de significado que ele assume em diversas situações, assim, a criança adquire a percepção numérica articulada com a leitura da realidade.

O discurso expresso no documento reforça que os conceitos matemáticos são construídos em relação direta da criança com a família e a comunidade por meio de brincadeiras, atividades cotidianas, de modo que ela participe ativamente, construindo sua interpretação do mundo.

Las niñas y los niños desarrollan a partir de sus experiencias cotidianas conceptos matemáticos por ejemplo mucho - poco, cantidades más – menos; por tanto, el desarrollo del pensamiento lógico matemático depende de las oportunidades que se le brinde. Estos conceptos no se encuentran aislados ya que están en relación con la aplicación en la vida misma [...] (Bolivia, 2021, p. 16BOLÍVIA. Ministério de la Educación. Programa de estudio: educación inicial en familia comunitaria escolarizada. La Paz: Ministério de la Educación, 2021.)3 3 Tradução nossa: "As crianças desenvolvem os conceitos matemáticos a partir de suas experiências cotidianas, como: muito, pouco, mais, menos, portanto o desenvolvimento do pensamento lógico matemático depende das oportunidades oferecidas a elas. Mas, esses conceitos não estão isolados de forma abstrata porque são aplicados na vida"..

Nessa mesma perspectiva, Lorenzato (2006)LORENZATO, S. Educação infantil e percepção matemática. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. esclarece que essas habilidades integram-se e relacionam-se continuamente, assim um conceito apoia o outro na sua construção.

Seja qual for a noção e o campo matemático (espaço, número, medida) que estiver sendo trabalhado, haverá sempre uma relação direta com um dos conceitos físicos matemáticos de tamanho, lugar, distância, forma, quantidade, número, capacidade, tempo, posição, medição, operação, direção, volume, comprimento e massa (Lorenzato, 2006LORENZATO, S. Educação infantil e percepção matemática. Campinas, SP: Autores Associados, 2006.).

A Educação Inicial em Família Comunitária seria a base fundante para a construção do projeto de vida das crianças, na família e na comunidade, contribuindo para o desenvolvimento dos valores, da identidade cultural, além das capacidades físicas e cognitivas de todas as crianças, pois é nesse âmbito que são desenvolvidas suas primeiras interações na vida comunitária. Ao se trazer o reconhecimento dos saberes, das práticas, das línguas, das visões de mundo das nações e povos indígenas para o desenvolvimento das propostas curriculares contribui-se para a afirmação e o fortalecimento da interculturalidade.

Para Huanacuni Mamani (2010)HUANACUNI MAMANI, F. Buen vivir / vivir bien: filosofia, políticas, estrategias y experiencias regionales andinas. Lima, Peru: Coodinadora Andina de Organizaciones Indígenas, 2010., nas nações indígenas do norte ao sul do continente, a organização e os saberes emergem de um mesmo modelo comunitário, em que a vida é concebida não somente como uma relação social, mas como uma profunda relação de vida comunitária. E, as famílias estão inseridas em uma comunidade organizadas no território por diversas formas, que constituem a rede cultural e social das pessoas, configurando a esfera histórica, social e ideológica. Dessa maneira, entendemos que ao se enfatizar a presença dos conhecimentos comunitários por meio da família e da comunidade em uma perspectiva intercultural, desde a educação inicial, permitiria a transformação das mentalidades, garantindo que as crianças cresçam em sua cultura, na comunidade e família por meio de uma educação integral e decolonial.

A educação intercultural promoveria a troca de conhecimentos, práticas, línguas, visões de mundo, valores, ciência e tecnologia dos povos que compõem um Estado, em harmonia, reciprocidade, complementaridade e diálogo entre diferentes visões do mundo. Dessa maneira o documento assume um conceito de interculturalidade crítica (Walsh, 2012WALSH, C. E. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, SC, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, 2012.), defendida pela autora como ação, projeto e processo para intervir nas estruturas da sociedade para se romper com as relações de poder e o padrão de racialização vigente.

As crianças iniciam seus processos formativos nos primeiros anos de vida, na família e na comunidade, nesta etapa da vida são fortalecidos os valores, sua identidade pessoal e cultural e os valores da vida comunitária nas experiências de vida dos povos originários. Desde a mais tenra idade, as crianças bolivianas têm a possibilidade de serem orientadas pela busca e integração com a Mãe Terra, o cosmo e a espiritualidade para o viver bem.

Os documentos analisados dão destaque a valorização das culturas e saberes dos povos originários, por meio da vida cotidiana, das tarefas e brincadeiras comunitárias, na interação entre as próprias crianças e entre elas e os adultos, potencializando seu desenvolvimento integral de maneira decolonial.

Considerações finais

Propor políticas e práticas educativas que desafiem o estatuto da colonialidade é um grande desafio e, se torna urgente discutir e realizar uma educação para as crianças que traga possibilidades para se romper com a colonialidade em suas diferentes formas de manifestações.

O currículo da educação infantil boliviana nos permitiu observar que seus princípios e sua organização podem destacar formas de se romper com o pensamento colonial.

Os campos de saberes e conhecimento do Programa de Estudio Educación Inicial en Familia Comunitaria Escolarizada destacam a necessidade de interculturalidade como um fazer essencial ao trabalho do professor dessa etapa da educação, articulando os saberes e a cultura da família e da comunidade.

A educação matemática proposta visa recuperar, fortalecer e valorizar os saberes matemáticos dos povos bolivianos, que são parte intrínseca da vivência diária no seu entorno natural, desde a mais tenra idade.

Assim, ao se destacar dentro das temáticas orientadoras aspectos da intraculturalidade e da interculturalidade, criam-se possibilidades na qual os saberes da família e da comunidade são reconhecidas, possibilitando um diálogo entre culturas, garantindo a visibilidade e intercâmbio de outras lógicas epistêmicas, contribuindo para a construção de um pensamento descolonial. Se tornando, dessa forma, uma ferramenta para agir, uma ação deliberada, constante, contínua, articulada com a descolonização (Walsh, 2012WALSH, C. E. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, SC, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, 2012.).

A partir deste trabalho, concluímos que há ainda a necessidade de investigarmos os currículos regionalizados para entendermos que outros aspectos são destacados para se garantir uma educação descolonizadora.

Todavia, a organização curricular para a educação infantil boliviana apresenta a possibilidade de romper com o pensamento colonial quando questionamos e resistimos aos dispositivos do modelo canônico e científico europeu, pretendemos desconstruir valores hegemônicos, marcados pela herança patriarcal, eurocêntrica e racista que submetem as crianças desde a mais tenra idade a um conjunto de sistemas que oprimem as diferenças étnico-raciais, sexuais e de gênero (Faria et al., 2015FARIA, A. L. G.; MACEDO, E.; SANTIAGO, F.; BARREIRO, A.; SANTOS, S. E. Da servidão à rebeldia: as pedagogias descolonizadoras brasileiras. In: CONGRESO DE ESTUDIOS POSCOLONIALES, 2. Y JORNADAS DE FEMINISMO POSCOLONIAL GENEALOGIAS CRÍTICAS DE LA COLONIALIDAD, 3, 2014, Buenos Aires. Actas […]. Buenos Aires: Idaes Unsam, 2015.).

  • 1
    Para os autores pós-coloniais, os termos Decolonizar e Descolonizar são considerados sinônimos.
  • 2
    Tradução nossa: "Desde o nascimento, meninas e meninos desenvolvem experiências de aprendizagem que se baseiam na realidade e na prática cotidiana das famílias e comunidades, desenvolvendo de forma integral a afetividade, a espiritualidade, a identidade cultural, a saúde e a nutrição, o desenvolvimento psicomotor e cognitivo como componentes do processo formativo nos primeiros anos de vida.".
  • 3
    Tradução nossa: "As crianças desenvolvem os conceitos matemáticos a partir de suas experiências cotidianas, como: muito, pouco, mais, menos, portanto o desenvolvimento do pensamento lógico matemático depende das oportunidades oferecidas a elas. Mas, esses conceitos não estão isolados de forma abstrata porque são aplicados na vida"..

Referências

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  • BOLIVIA. Ministerio de la Educación. Programa de estudio: educación inicial en familia comunitaria. La Paz: Ministerio de la Educación, 2014. Disponível em: https://tinyurl.com/bdj57u2v Acesso em: 23 fev. 2024.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
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