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Caminhos da crítica: identidades, feminismos e projetos emancipatórios

Paths of critique: identities, feminisms and emancipatory projects

Caminos de la crítica: identidades, feminismos y proyectos emancipadores

Resumo:

No cenário contemporâneo, a potência crítica das ciências sociais tem sido desafiada. De um lado, reconhecemos a democracia como arena agonística (Mouffe), em que o consenso significa sua morte. De outro, a fragmentação das demandas fragiliza as conquistas democráticas, esvaziando a ideia de emancipação. Destacamos os feminismos e os modos como lidam com o conteúdo emancipatório das políticas identitárias. Atentamos para o perigo de se confundir a afirmação das identidades com o termo identitarismos em conivência com essencialismos que podem derivar em extremismos. Buscamos, porém, demonstrar que a crítica, em sentido ecumênico, não produz um antagonismo entre emancipação e identidade, expondo em caráter preliminar a diversidade dos argumentos desde a Teoria Crítica feminista, passando pelo feminismo pós-estruturalista, até os feminismos negros que nunca foram tão eloquentes. Propomos, por fim, a escuta como condição basilar para quem pretende se autodenominar parte do projeto das teóricas críticas.

Palavras-chaves:
Teorias críticas; Feminismos; Emancipação; Política de identidades; Democracia

Abstract:

In the contemporary scenario, the critical power of the social sciences has come under challenge. On the one hand, democracy is acknowledged as an agonistic arena (Mouffe) where consensus might mean its demise. On the other hand, the fragmentation of demands weakens democratic achievements, undermining the concept of emancipation. To understand this, we focus on feminisms and their approaches to the emancipatory content of identity politics. We discuss the dangers of conflating the affirmation of identities with the term “identitarianism,” which, in complicity with essentialisms, poses a risk of extremisms. In other perspective, we seek to demonstrate how criticism, in an ecumenical sense, does not generate an antagonism between emancipation and identity, presenting the diversity of arguments from feminist critical theory to post-structuralist feminism and black feminisms that have never been so eloquent. Finally, we propose “listening” as a foundational condition for those who intend to self-identify as part of the project of critical theories.

Keywords:
Critical theories; Feminisms; Emancipation; Identity Politics; Democracy

Resumen:

En el escenario contemporáneo, el poder crítico de las ciencias sociales se ha visto cuestionado. Por un lado, reconocemos la democracia como una arena agonística (Mouffe), en la que el consenso significa la muerte. Por otro, la fragmentación de las demandas debilita los logros democráticos, vaciando la idea de emancipación. Destacamos los feminismos y las formas en que abordan el contenido emancipatorio de las políticas identitarias. Señalamos el peligro de confundir la afirmación de las identidades con el término identitarismo, en connivencia con esencialismos que pueden conducir al extremismo. Sin embargo, nos esforzamos por demostrar que la crítica, en sentido ecuménico, no produce un antagonismo entre emancipación e identidad, exponiendo preliminarmente la diversidad de argumentos desde la teoría crítica feminista, el feminismo post-estructuralista hasta los feminismos negros, que nunca han sido tan elocuentes. Finalmente, proponemos la escucha como condición básica para quien quiera llamarse parte del proyecto de las teóricas críticas.

Palabras clave:
Teorías críticas; Feminismos; Emancipación; Política de identidad; Democracia

Um preâmbulo2 2 Ambas as autoras são PQ-CNPq, contando com o apoio da agência em suas pesquisas. Além disso, a primeira autora tem seu projeto igualmente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Espírito Santo (Fapes).

Não é necessário grande esforço intelectual para perceber a dimensão da crise que caracteriza nosso tempo. A ampliação das desigualdades, a ascensão de movimentos antidemocráticos, o militarismo, a erosão do sentido de público, a crise ecológica, os níveis de consumismo, a criminalização da pobreza, o desenvolvimento de novas formas de opressão racial e de gênero são alguns dos problemas que perpassam o diagnóstico das sociedades contemporâneas. Gênero e raça, por sinal, foram, enfim, desvelados como categorias que se entrelaçam à reprodução das desigualdades e hierarquias, expressões nítidas ou subliminares do exercício do poder, inconciliáveis com uma ordem social democrática. Assumimos aqui o propósito de avançar nos diagnósticos do ponto de vista crítico, isto é, atentando para tais mazelas, mecanismos de reprodução e “caminhos” de sublevação.

Escolhemos a questão do gênero como alvo especial de nossa atenção, na medida em que fazemos notar o quanto as conquistas dos feminismos podem trazer ganhos para a luta emancipatória mais larga e, não por outro motivo, tornaram-se alvo privilegiado de ataques de um tipo de antifeminismo de extrema-direita que carrega as projeções morais de movimentos autoritários. Mas não somente, também no espectro da esquerda, um dos ataques recorrentes aos feminismos é que estes seriam “apenas” uma “luta identitária” e, nesse sentido, descolados de problemas e causas universais e, por causa disso, um “desserviço” à construção de uma ordem social emancipatória. Aqui, talvez, esteja o primeiro “nó górdio”: quem está incluído nesse “universal”?

Um primeiro pressuposto orienta nossa discussão: sem um deslocamento epistemológico, as demandas identitárias não são inteligíveis por aqueles que não precisam delas e assistem perplexos a seu recrudescimento. Reconhecemos que os desafios trazidos por tais perspectivas exigem de nós, mulheres e homens – sobretudo, aqueles historicamente “não racializados” e/ou que cabem com relativo conforto no dimorfismo sexual – o alargamento do leque de referências, a autocrítica, o refinamento da “escuta” e os melhores esforços de tradução ou o respeitoso silêncio diante daquilo que não é o espelho de si mesmo.

Queremos evidenciar a riqueza analítica das contribuições feministas e seus impasses. Entendemos como necessário um esforço de articulação da crítica, em sentido ecumênico, a fim de revisar e promover caminhos para o enfrentamento das contradições do capitalismo contemporâneo em sua multidimensionalidade e em todas suas expressões. De algum modo, a “decolonialidade” aponta para esse movimento de abertura epistêmica para além dos códigos binários modernos que produziram as hierarquias de poder, saber, ser, natureza, linguagem e gênero, este último que, conforme Lugones (2014)Lugones, Maria. 2014. Rumo a um feminismo decolonial. Revista de Estudos Feministas 22 (3): 935-52. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013.
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, é uma categoria contextual e singular da modernidade ocidental, incapaz de apreender formas de organização social em que as posições de gênero são fluidas e provisórias e a chamada cisgeneridade não é hegemônica. Ao falar dos feminismos, observamos, também, a desconstrução de ordens culturais/morais por eles operadas. É verdade que as perspectivas teóricas feministas não são consensuais, intercalam visibilidades e invisibilidades, têm uma orientação programática considerada mais abrangente ou menos, capaz ou não de atacar as estruturas profundas das desigualdades. Nenhuma delas, entretanto, pressupõe um “jogo de soma zero” (Fraser 2022Fraser, Nancy. 2022. Justiça Interrompida: reflexões críticas sobre a condição “pós-socialista”. São Paulo: Boitempo., 57).

Marxistas, teóricas críticas feministas, pós-estruturalistas, pós-coloniais, decoloniais, feministas interseccionais aproximam-se e se distanciam. Nessa arena, significados de justiça e identidade são “negociados”. As teóricas da interseccionalidade, por exemplo, são assertivas em dizer que há um entroncamento de gênero, raça e classe que fazem do corpo da mulher negra um lócus de interdições e resistências, em um só tempo, e de produção crítica intransferível. São as vozes femininas negras que, mais explicitamente, sustentam as políticas de identidade que visam “reformar o que está posto com a esperança de transformá-lo em algo diferente” (Collins 2022Collins, Patrícia H. 2022. Bem mais que ideias. A interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo., 15). A autora situa seu debate no plano epistemológico, desafiando o campo de estudos acadêmicos:

O poder epistêmico opera não só por meio do conteúdo que é validado por estruturas epistemológicas tidas como certas e, nesse caso, produzindo a história da interseccionalidade por meio de narrativas coloniais e capitalistas familiares. O poder epistêmico também conta com estratégias específicas que valorizam de modo diferente intelectuais que ele considera teóricas e teóricos sociais, bem como a importância de seus argumentos teóricos. Essas mesmas relações moldam a resistência epistêmica. (Collins 2022Collins, Patrícia H. 2022. Bem mais que ideias. A interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo., 187-8).

Nosso intento, pois, em que pesem as páginas tão limitadas, é partilhar com as leitoras e leitores as inquietações que nos persuadiram acerca da necessidade de “criticar a crítica”, quiçá sugerindo caminhos para dilemas como os entendimentos e usos da “identidade” na persecução da emancipação relida pelos feminismos.

Frankfurt (transformações da crítica marxista)

É interessante que feministas críticas contemporâneas releiam Frankfurt. Se Fraser (1987)Fraser, Nancy. 1987. Que é crítico na teoria crítica? O argumento de Habermas e o gênero. In Feminismo como crítica da modernidade, organizado por Seyla Benhabib e Drucilla Cornell, 57-89. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. fez isso, é ótimo saber que Collins (2022)Collins, Patrícia H. 2022. Bem mais que ideias. A interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo., mais tarde, também. Enredando em um pensamento complexo o conjunto das ciências humanas e tecendo uma rede colaborativa entre campos de saberes, a primeira geração do Instituto de Pesquisa Social, que ficou conhecida como Escola de Frankfurt, tinha como projeto central ampliar os fundamentos racionais da crítica social, alargando (ao mesmo tempo em que confrontava) as fronteiras do Esclarecimento. Essa reflexão não estava baseada no estabelecimento de valores éticos e políticos a priori, mas em um compromisso com a compreensão da totalidade da vida social e com a produção de um diagnóstico das patologias sociais e das relações de poder que as produzem.

Para essa geração, o projeto de constituição de uma teoria crítica é fundamental para que seja possível imaginar transformações sociais e vai se desenvolver diretamente ligado à necessidade de compreender as forças históricas que fizeram emergir o Nazismo, possibilitando o III Reich e seus conhecidos horrores. Também, a percepção do surgimento da indústria cultural como uma lógica de controle das potencialidades emancipatórias da arte e da cultura bem como a observação de modos recorrentes de mobilização dos afetos que fortaleciam traços de uma personalidade autoritária, configurando o “capitalismo administrado”, bloqueando as “energias utópicas” caracterizavam o diagnóstico do capitalismo e suas reconfigurações nas primeiras décadas do século 20. Contudo, justamente a riqueza desse mapeamento e sua capacidade de se aproximar e esmiuçar os dilemas mais centrais da produção capitalista naquele momento que vem dificultar o seu projeto: os caminhos para a crítica parecem cada vez mais limitados, por isso, é possível perceber que o capitalismo inviabiliza os melhores desejos do Esclarecimento, produzindo a negação dos ideais de liberdade e justiça.

Essa crítica radical não consegue produzir sua contrapartida de ação de modo claro. Talvez pelas próprias condições de um mundo em guerra e pelo efeito das fórmulas simplificadoras e slogans rápidos úteis na despolitização do cotidiano, o fato é que essa geração não conseguiu elaborar de modo claro os termos de fundamentação da prática política e da constituição da imaginação e dos afetos emancipatórios. Para Habermas (2002)Habermas, Jurgen. 2002. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002., principal autor da segunda geração, a que se desenvolve no pós-guerra, o projeto de “esclarecer o esclarecimento” seria uma aporia e, portanto, inviável para a reconstrução de um projeto crítico emancipatório. Tentou, então, contornar a crítica da primeira geração mediante a proposição de um novo tipo de racionalidade, que funcionaria como antídoto da racionalidade instrumentalizada, que chamou de “razão comunicativa”. Deixando de lado o diagnóstico da impossibilidade de uma vida reta sob o capitalismo, Habermas produz uma teoria inspirada nas potencialidades da política deliberativa, assentada no “mundo da vida” onde prevalece a “ação comunicativa”, possibilitadora de consensos, em oposição ao “sistema”, dimensão da coerção econômica e política. Na chamada terceira geração, representada, principalmente, por Axel Honneth (2003)Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34., a teoria habermasiana é criticada por se sustentar em uma dicotomia entre “mundo da vida” e “sistema” que, em que pese seu valor heurístico, apresenta um “déficit sociológico”: a negligência para com as dinâmicas reais da interação social e seus conflitos. Por esse caminho, a teoria crítica contemporânea se volta para o problema da intersubjetividade e das lutas por reconhecimento.

Descolonizar a Teoria Crítica

Em seu livro The end of progress, Amy Allen (2017)Allen, Amy. 2017. The end of progress. Decolonizing the normative foundations of Critical Theory. New York: Columbia University Press., filósofa estadunidense, apresenta dois objetivos centrais para a constituição do sentido contemporâneo de crítica: (i) de(s)colonizar a Teoria Crítica de origem frankfurtiana; e (ii) desafiar o relativismo das teorias pós-coloniais. O primeiro, apresentado como um problema evidente (ainda que pouco tematizado), é o de que o projeto intelectual desenvolvido desde a primeira geração de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social até os trabalhos de Habermas e Honneth não reconhecem a centralidade do poder colonial na constituição das sociedades europeias contemporâneas. O segundo, e mais grave, observa que diferentes versões da Teoria Crítica abrigam um sentido de História que possui afinidades com a noção de progresso, seja o progresso como “fato”, equivalente a uma suposta vida moral superior ao do passado, ou o progresso como um “imperativo” para o futuro: a ideia de que ele nos conduz às ditas formas superiores de organização e convivência, o que implica, na prática, a subestimação do problema da violência colonial que sustentou e pacificou as fronteiras europeias (Mbembe 2020Mbembe, Achille. 2020. Políticas da inimizade. São Paulo: N-1 Edições.). Assim, a permanência de sentidos de progresso como apontados por Allen colocaria essa tradição em um paradoxo: a incapacidade de perceber uma dimensão poderosa e significativa de manutenção da lógica de dominação moderna, perpetuando uma lógica de poder que é o núcleo de sua própria crítica. Daí, a necessidade de descolonizar a Teoria Crítica, ampliando seu potencial de diagnóstico das lógicas de violência e sujeição.

Allen (2017)Allen, Amy. 2017. The end of progress. Decolonizing the normative foundations of Critical Theory. New York: Columbia University Press., nem por isso, abandona os fundamentos normativos da crítica, que tendem a ser fragilizados com o avanço do relativismo. Para ela, os movimentos e as lutas não se dão sem alguma forma mais ampla de julgamento e avaliação do que precisa ser combatido. A isso chama de “contextualismo metanormativo”: uma interpretação dos imperativos emancipatórios a partir de uma perspectiva situada e contextual, mas não relativista, associada a uma problematização genealógica dos embates históricos por justiça. A intenção é legitimar o diálogo entre Teoria Crítica e Teoria Pós-colonial, apostando no potencial da segunda para a produção de formas plurais e não eurocêntricas de razão. Mas, de acordo com Bhambra, as “fraturas epistêmicas nos sistemas de pensamento imperialista” (Bhambra 2021Bhambra, Gurminder K. 2021. Decolonizing Critical Theory? Epistemological justice, progress, reparations. Critical Times 4 (1): 73-89 https://doi.org/10.1215/26410478-8855227.
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, 82) exigem em qualquer revisionismo histórico a centralidade nos processos de colonização e escravização. Sem isso, o “contextualismo metanormativo”, por assim dizer, se mostra insuficiente.

A crítica é, portanto, um terreno de disputas e arranjos intelectuais que se desdobram em novos caminhos que precisam ser pensados. Por isso, as ideias de “herança” intelectual, radicalidade/aprofundamento da crítica e justiça/injustiça impõe-nos a ampliação do debate.

Ascensão dos Estudos Culturais

Sobretudo, desde os anos 1980 e 1990, ganhou súbita força a questão da identidade no campo teórico, remetida à “modernidade tardia” e à eclosão dos novos movimentos sociais. Na cena inglesa, o intelectual jamaicano e diaspórico, Stuart Hall (2014)Hall, Stuart. 2014. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina., pioneiro dos Estudos Culturais britânicos, leitor dos franceses Lacan, Deleuze, Derrida e Foucault, participou do início da “virada linguística” e do pós-estruturalismo. Supunha, assim, a existência de algo que antecedia a experiência: a estrutura, em que pese rechaçar qualquer alusão a formas invariantes, típicas do estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss.

Basicamente, o pós-estruturalismo desaloja o sujeito cognoscente. Todos nós existimos embebidos em discursos, nos quais signos e significados são deslocados, justapostos, desdobrados, multiplicados, subvertidos, interpelando-nos infindamente. Portanto, os sujeitos não são entidades fixas, mas “efeitos” de categorias e é no “jogo performático” que os processos de subjetivação se dão, sendo impossível sua apreensão completa por qualquer linguagem.

Hall afasta-se, assim, quer do que chama de “sujeito iluminista”, quer do “sujeito sociológico”. Não lhe interessa o “ego cogito cartesiano”, também não o “sujeito sociológico”, aquele produto do acoplamento entre “interior” e “exterior”, “subjetividade” e “objetividade”. O que lhe interessa é o “sujeito pós-moderno”, descentrado, fragmentado, múltiplo.

Se a psicanálise havia desfeito o mito de que controlamos tudo, explicitando as forças inconscientes que, também, nos regem, assim, relações estruturais não visíveis antecedem as relações entre pessoas. Hall encontra no conceito différ a nce de Derrida – que transgride o francês “correto”, différ e nce – a possibilidade de pensar a estrutura sempre em “movência”, na qual a différ a nce é o “núcleo infinitivo e ativo do diferir” (Derrida 1991Derrida, Jacques. 1991. Margens da filosofia. Campinas: Papirus., 40). Longe de existirem como entidades (essência ou existência), as identidades são plurais e inconstantes porque sinônimo de “processos de identificação”. Não se trata mais da alteridade em relação ao outro, mas das “outridades” que atravessam o sistema cultural e exigem sua descolonização.

A aproximação do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham (CCCS) à questão de gênero foi lenta. Certamente, os feminismos precedem a criação do centro,. Na verdade, Hall, em entrevista concedida a Kuan-Hsing Chen (2009), confessa que os homens do CCCS foram pegos de surpresa quando as feministas tomaram conta do Centro, produzindo tensões que colaboraram para seu afastamento, aliás, que já vinha sendo planejado após tantos anos de dedicação.

O intelectual ficou conhecido pela abordagem da questão racial, mas sempre preferiu compreender a “cultura popular negra” como o lugar da contradição, assim como são todas as culturas (Hall 2009Hall, Stuart e Kuan-Hsing Chen. 2009. A formação de um intelectual diaspórico: uma entrevista com Stuart Hall, de Kuan-Hsing Chen. In Da diáspora: identidades e mediações culturais, organizado por Liv Sovik, 407-34. Belo Horizonte: Editora UFMG., 323). Reconheceu a relevância dos estudos que se dedicam à busca das singularidades das tradições diaspóricas e buscou legitimar os repertórios culturais negros, sem que, fiel ao pós-estruturalismo, corresse o risco de os fetichizar: “Estas formas são sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula […] elas não são a recuperação de algo puro pelo qual, finalmente, podemos nos orientar” (Hall 2009Hall, Stuart e Kuan-Hsing Chen. 2009. A formação de um intelectual diaspórico: uma entrevista com Stuart Hall, de Kuan-Hsing Chen. In Da diáspora: identidades e mediações culturais, organizado por Liv Sovik, 407-34. Belo Horizonte: Editora UFMG., 325), mas respondem à necessidade de uma outra estética da história.

Teóricas feministas críticas e pós-estruturalistas

Nancy Fraser (2020)Fraser, Nancy. 2020. Ponto de vista. Entrevista concedida a Mariana P. Assis, Cristiano Rodrigues e Darlane S. V. Andrade. Revista Estudos Feministas 28 (3): 1-10. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n366381.
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propôs fazer dialogar Habermas e Foucault, instigada, também, por outros expoentes pós-estruturalistas como Derrida. Mais ainda, descobriu Rorty, de um lado, e se enredou na crítica feminista, de outro. Uma intelectual inventiva, foi capaz de identificar os pontos cegos de um e de outro, ao mesmo tempo que seus pontos fortes, tentando avançar em aspectos cruciais da análise da modernidade capitalista. Disse em entrevista que não agradou nem ao frankfurtiano nem a Foucault. Mas ganhou uma rede de interlocutoras feministas de considerável estirpe: Seyla Benhabib, Judith Butler, Drucilla Cornell, dentre tantas.

Foi depois disso que encampou os debates em torno da justiça (distributiva e cultural), interessada em pensar sobre a dimensão normativa da Teoria Social Crítica, sem que abdicasse da visão estrutural, o que fomentou o intenso debate com Axel Honneth (2003)Honneth, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34.. Mais recentemente, Fraser, em entrevista concedida a Mariana Assis, Cristiano Rodrigues e Darlane Andrade (2020), narra seu retorno a uma agenda de pesquisa mais centrada na economia capitalista. Isso tem um histórico, posto que, desde o início, a estudiosa, interessada nas formas de injustiça ligadas à depreciação das questões de gênero e de raça, dentre outras, no contexto da “governamentalidade” (Foucault, 1979Foucault, Michel. 1979. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal.), nunca se desprendeu da percepção da totalidade e das metamorfoses do capitalismo.

Disso decorre o crescente ceticismo em face da questão da identidade, já observado em sua preocupação em distinguir a luta por reconhecimento das lutas identitárias, intentando perceber a dimensão não identitária na política de reconhecimento e escapando, assim, de qualquer viés essencialista, sem desistir de pensar articuladamente o enfrentamento das opressões materiais, da injustiça e das desigualdades socioeconômicas.

Firmando essa perspectiva, a autora, porém, não quer “jogar o bebê fora junto com a água do banho” (Fraser 2020Fraser, Nancy. 2020. Ponto de vista. Entrevista concedida a Mariana P. Assis, Cristiano Rodrigues e Darlane S. V. Andrade. Revista Estudos Feministas 28 (3): 1-10. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n366381.
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, 4). Nesse sentido, aprecia que os “sujeitos do movimento” (mulheres, mulheres negras, LGBTQIA+, negros, indígenas, grupos étnicos, imigrantes e outros) tenham se ampliado e deslocado o protagonismo do homem branco, trabalhador nacional e operário fabril. Entretanto, é assertiva quanto à avaliação dos “exageros da identidade”, quando os movimentos sociais abandonam as lutas mais amplas em prol da justiça e da igualdade social, “reduzindo” sua bandeira à própria questão identitária. Passam, nesse caso, a investir em “guerras culturais”, de teor prescritivo e eivado por práticas autoritárias que, segundo a autora, representam um recuo da crítica. Buscando uma solução para o impasse, Fraser propõe substituir a ideia de identidade pela de status, dentro da leitura weberiana do poder. Deduz-se, então, que o foco na conquista pelas mulheres do acesso a posições sociais de prestígio contempla, para a feminista teórica crítica, as demandas das minorias sem o peso que confere às políticas identitárias.

É interessante chamar Chantal Mouffe (2001)Mouffe, Chantal. 2001. Identidade democrática e política pluralista. In Pluralismo cultural, identidade e globalização, organizado por por Luiz Eduardo Soares. Rio de Janeiro: Record. ao debate. Para ela, a adesão ao pós-estruturalismo implica uma “revolução teórica total”, a saber, o “anti-humanismo teórico” de bases lacanianas, remetido, na abordagem pós-estruturalista, aos processos de subjetivação gerados pelas complexas negociações psíquicas inconscientes. Similar a Stuart Hall (2014)Hall, Stuart. 2014. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina. e Chen (2009), portanto, constata que “[…] as palavras são ‘multimoduladas’. Elas sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento, apesar de nossos melhores esforços para cerrar o significado” (Mouffe, 2001Mouffe, Chantal. 2001. Identidade democrática e política pluralista. In Pluralismo cultural, identidade e globalização, organizado por por Luiz Eduardo Soares. Rio de Janeiro: Record. 41). Sabe que isso não é uma originalidade do pós-estruturalismo uma vez que tal compreensão já se fazia presente desde a filosofia da linguagem de Wittgenstein e a hermenêutica filosófica de Gadamer.

A consequência dessa argumentação é que parece ser a contribuição particular da cientista política pós-marxista. A adesão à différance derridiana implica a negação do consenso em prol dos jogos performáticos. Não há, para Mouffe, a possibilidade de equivaler o social a um corpo orgânico ou a uma totalidade. Decorre daí que a democracia não se funda, também, em consensos, ao contrário, ela é inerentemente conflituosa. A autora separa a “política” e o “político” de forma que o primeiro termo tem como meta “domesticar hostilidades e tentar desarmar o antagonismo potencial que existe nas relações humanas” (Mouffe 2001Mouffe, Chantal. 2001. Identidade democrática e política pluralista. In Pluralismo cultural, identidade e globalização, organizado por por Luiz Eduardo Soares. Rio de Janeiro: Record., 418) e o faz mediante as instituições que organizam a coexistência. Já o segundo, instaura a hibridez, requisito para um verdadeiro “pluralismo agonístico”, constitutivo das sociedades humanas.

Nesse cenário, podemos atribuir à autora a concepção de que as políticas identitárias são vitais. Em nenhum momento, porém, elas se confundem com o que temos denominado “identitarismo”/essencialismo. Para a pós-estruturalista, “a prática política em uma sociedade democrática não consiste em defender os direitos de identidades pré-constituídas, mas sim constituir as suas próprias identidades em um terreno precário e sempre vulnerável” (Mouffe 2001Mouffe, Chantal. 2001. Identidade democrática e política pluralista. In Pluralismo cultural, identidade e globalização, organizado por por Luiz Eduardo Soares. Rio de Janeiro: Record., 415). Em outras palavras, identidade é “local” e “objeto de lutas políticas” (Mouffe 2001Mouffe, Chantal. 2001. Identidade democrática e política pluralista. In Pluralismo cultural, identidade e globalização, organizado por por Luiz Eduardo Soares. Rio de Janeiro: Record., 421).

Por fim, convidamos Judith Butler (1998Butler, Judith. 1998. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu 11: 11-42., 2019) para somar nas controvérsias. A teórica queer não agrada nem a gregos nem a troianos, o que não chega a ser uma novidade. Insurge-se, em um tempo, contra o “identitarismo” e o “liberalismo” (para ela, outra forma de “identitarismo”). Defende a “política democrática radical”, denunciando o estado em sua conivência com o capital, promotor das guerras. Almeja “a ampliação igualitária das condições de vivibilidade para todas as pessoas” (Alves e Alkimin, 2021, 647, grifo nosso), o que explica a ênfase nas alianças possíveis entre as “diferenças” – de desejos, crenças ou autoidentificações –, sem que isso implique consenso. Simplesmente, em suas palavras, “vivemos juntos porque não temos escolha” (Butler 2018Butler, Judith. 2018. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., 134).

Butler não fala precisamente em “arena agonística”, como Mouffe, mas há semelhanças nos argumentos. A pós-estruturalista cultiva uma noção de “universalidade” que não se confunde com a ambição da “totalidade”, de cunho fundamentalista, posto que é “lugar de disputa política permanente” (Butler 1998Butler, Judith. 1998. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu 11: 11-42., 21). Desse modo, “o termo ‘universalidade’ teria de ficar permanentemente aberto, permanentemente contestado, permanentemente contingente, a fim de não impedir de antemão reivindicações futuras de inclusão […] não antecipadas e inantecipáveis” (Butler 1998Butler, Judith. 1998. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu 11: 11-42., 17).

A teórica olha para os atravessamentos e não aceita os fechamentos identitários, o que a preocupa é o potencial de reificação das autodeclarações. Em verdade, sua luta por justiça tem outro paradigma: “A precariedade é a rubrica que une as mulheres, os queers, as pessoas transgêneras, os pobres, aqueles com habilidades diferenciadas, os apátridas, mas também as minorias raciais e religiosas” (Butler 1998Butler, Judith. 1998. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu 11: 11-42., 65). E é “no espaço público, dos corpos que se organizam coletivamente na luta por vidas mais vivíveis” (Butler 1998Butler, Judith. 1998. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu 11: 11-42., 650, grifo nosso).

Talvez, até o momento, o que nos cabe constatar é que as identidades são postas sob escrutínio e reinterpretadas, mas não inteiramente rechaçadas por nenhuma das expoentes da crítica feminista acima, embora cada qual veja com mais pessimismo ou não a tendência a derivar em “identitarismos” como possível prejuízo às lutas emancipatórias, quando os sujeitos identitários plurais encapsulam-se em blocos monolíticos, acentuando mais sua vulnerabilidade específica – certamente, produzida socialmente dentro de um discurso político – do que seu empenho em constituir “um novo sentido de vida do ‘povo’” (Butler 2018Butler, Judith. 2018. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., 200), talvez por uma profunda não identificação com os outros corpos.

Nosso ponto é que, até agora, os feminismos negros não falaram e, somente se escutados, a questão da identidade pode ser redimensionada como crítica.

Feminismos negros

Os feminismos negros, de longeva história, desde as primeiras lutas abolicionistas, nem sempre tiveram esse nome. Em verdade, até muito recentemente, as chamadas “ondas feministas” ignoraram por completo a existência das mulheres negras. Também, as lutas das mulheres negras nasceram junto ao “fato colonial”, bem antes das teorias da interseccionalidade.

Sojouner Thruth (1797-1883) é comumente mencionada como emblema do feminismo negro em sua incisiva pergunta: “Não sou eu uma mulher?” (hooks 2020hooks, bell. 2020. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.), na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, em 1851, aludindo a um ideal de “mulher” que invisibilizava por completo as ex-escravizadas e descendentes. No Brasil, a escritora abolicionista negra, Maria Firmina dos Reis (1822-1917), menos conhecida, vem sendo resgatada, sobretudo desde os anos 1970, em sua atuação pioneira ao projetar as vozes negras silenciadas nos romances de época, quando as personagens escravizadas eram somente o “criado mudo” das tramas costuradas em torno do moço louro heroico e da sinhazinha de pele alva. Maria Firmina ousou em sua prosa (Reis 2018Reis, Maria Firmina. 2018. Úrsula. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.) ao hibridizar os sujeitos narradores, vislumbrando a agência subalterna em seu potencial de apresentação (Spivak 2010Spivak, Gayatri. 2010. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG.).

Lélia Gonzales (1935-1994), intelectual pública, socióloga e militante negra, foi a fundadora do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras que simbolizou a afirmação da mulher no interior do Movimento Negro Unificado (MNU). Atualmente, um empenho especial de outras intelectuais negras devolvem-lhe o protagonismo no debate quer dos estudos feministas – antecipando a teoria estadunidense que passou a enxergar a questão de gênero necessariamente entrelaçada à raça e à classe –, quer do pensamento social brasileiro, no qual, sob inspiração da psicanálise lacaniana, Gonzales expõe o “racismo oculto” no Brasil, além de reivindicar a ancestralidade negra e ameríndia na Améfrica Ladina (Gonzales 2020Gonzales, Lélia. 2020. A categoria político-cultural da a3mefricanidade. In Por um feminismo afro-latino-americano. Ensaios, intervenções e diálogos, organizado por Flavia Rios e Marcia Lima, 127-38. Rio de Janeiro, Zahar.).

Ponto fulcral para ela é que o corpo da mulher negra é sua identidade, não porque “biologizado”, mas por trazer nele inscritas as memórias dos antepassados, das diásporas, da escravização, das violências e das resistências. Também porque é seu corpo que gera os filhos negros, alvos privilegiados da “polícia que mata”. São elas, mulheres negras, as narradoras das histórias que, sem elas, teriam sido jogadas dos “navios tumbeiros” ao mar. Traduzem, assim, para seu povo, a esperança.

É difícil, portanto, abdicar da relevância das lutas identitárias negras quando ainda vivemos sob o jugo colonial-racista. Quando Fraser (2020)Fraser, Nancy. 2020. Ponto de vista. Entrevista concedida a Mariana P. Assis, Cristiano Rodrigues e Darlane S. V. Andrade. Revista Estudos Feministas 28 (3): 1-10. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n366381.
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propõe que a identidade poderia ser substituída por status, algo parece ter lhe escapado: aquelas mulheres não necessariamente se projetam na sociedade moderna-capitalista aspirando às mesmas conquistas que historicamente foram normatizadas pelos corpos brancos. É provável que, cada vez mais, isso se imponha sobre todos em uma sociedade massificada e consumista; contudo, há bandeiras que podem incorrer em injustiças se subestimadas.

Trabalho, maternidade, sexualidade, casamento, aborto, família, amor, autonomia, e liberdade não significaram historicamente o mesmo para os corpos racializados e não racializados. As estruturas coloniais “incorporadas” sugerem que ganham uma singular relevância os processos de subjetivação das mulheres negras que as reposicionam no campo discursivo, também, como eterno diferindo. Mas, a raça, pela qual a humanidade foi dividida e hierarquizada, é concreta e fundante da modernidade. Então, qual emancipação se projeta?

O mundo não vai durar, portanto, a menos que a humanidade se empenhe na tarefa de constituição daquilo que bem se poderia chamar de reservas de vida. Se a recusa em perecer faz de nós seres de história e permite que o mundo seja mundo, então, nossa vocação para durar só se pode realizar quando o desejo de vida se tornar a pedra de toque de um novo pensamento da política e da cultura. (Mbembe 2018Mbembe, Achille. 2018. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições., 312).

Os “caminhos da crítica” estão em aberto e qualquer sucesso em percorrê-los exige de todas as partes a permeabilidade ao que cada um considera o “justo”, o “bom” e o “belo”, o que nos faz recusar saídas universais. Admitindo os pontos frágeis e fortes das diversas abordagens feministas críticas, ainda há que se perguntar, como fez Butler (2018Butler, Judith. 2018. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., 229): “Como, então, podemos pensar sobre uma vida vivível sem estabelecer um ideal único ou uniforme para essa vida?”.

Algumas respostas: os artigos

O dossiê Caminhos da crítica: identidades, feminismos e projeto emancipatório foi recepcionado de formas distintas pelos autores e autoras que desejaram compô-lo. Pudemos perceber a ênfase nos debates hoje suscitados pelas reivindicações de representatividade de mulheres e de mulheres negras, em especial, na história de um campo de saber e nos currículos de ensino, na perspectiva das novas epistemes que inclui a abertura à literatura. Além disso, notamos uma urgência em se debater, colado aos feminismos, a extrema-direita, as existências trans e a capacidade institucional-democrática de assumir pautas feministas.

Raquel Weiss e Winnie Bueno, em “Pensar o mundo na encruzilhada: mulheres negras e a teoria social”, questionam as injustiças na composição do campo científico camufladas na pretensão de neutralidade que, na prática, implicam em exclusões, refletindo sobre a natureza política da teoria. Recuperam, também, a ideia de interseccionalidade, destacando as experiências das mulheres negras como fonte de “conhecimento de resistência produzido para a própria sobrevivência de grupos subordinados pelos diversos sistemas de dominação”. Retomam Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro e Luiza Bairros, precursoras da crítica interseccional. “Pensar o mundo na encruzilhada” aposta na necessidade de escuta das identidades plurais e esboça um caminho possível para a reconfiguração dos parâmetros que orientam a definição das fronteiras da teoria social que, vista como território fragmentado, precisa preencher os “vazios” do conhecimento.

“Vozes que ecoam ancestralidade e resistências em coletâneas de autoria feminina negra contemporânea”, de Cibele Verrangia Correa da Silva, propõe, como fica claro pelo título, um diálogo entre duas coletâneas de literatura negra produzidas no Brasil para entender o modo como suas autoras articulam experiências de emancipação subjetiva e econômica, mas também como elaboram o artístico como espaço de enfrentamento de opressão e violências. A partir do diálogo com autoras como Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins, a trajetória literária apresentada nas obras é caracterizada como uma estética da ancestralidade que representaria o encontro de novas estratégias de resistência e emancipação, trazendo para a discussão deste dossiê um caminho ou elemento “positivo” ao delinear os modos de ressignificação da crítica empreendidos por intelectuais e artistas feministas negras.

Em “O feminismo negro contra a injustiça epistêmica: um estudo das abordagens de Sueli Carneiro e Patricia Hill Collins”, Enrico Bueno da Silva apresenta a contribuição destas duas autoras para a compreensão dos processos de injustiça epistêmica, a crítica ao conhecimento hegemônico e excludente bem como a constituição de horizontes alternativos e de emancipação. O diálogo entre Sueli Carneiro e Patricia Hill Collins é articulado a partir das linhas principais de produção de exclusão e injustiça epistêmica: uma socioinstitucional (como as instituições de produção fortalecem formas discriminatórias) e outra epistemológica (as condições de validação do conhecimento), demonstrando os desafios e caminhos da perspectiva contra-hegemônica, articulando produção de conhecimento legítimo, justiça social e autonomia.

Em “Patriarcado e interseccionalidade: o público e o privado como ponto de convergência teórica”, Isadora Vianna Sento-Sé apresenta os fundamentos da crítica feminista à separação entre público e privado, ao mesmo tempo em que aponta como as teorias do patriarcado e da interseccionalidade trabalham com suas convergências e complementaridades. A discussão se encaminha para demonstrar como as perspectivas recentes da teoria do patriarcado e da interseccionalidade reformulam as reflexões sobre o tensionamento entre família e política e seu lugar na teoria, ampliando nossa compreensão dos sistemas de opressão.

O artigo “Perspectivas teóricas feministas em Relações Internacionais: tensionamentos entre Norte e Sul globais”, de Fabiane Simioni, Gabriela Kyrillos e Camila Felix Vidal, traz uma análise comparativa entre teorias feministas no campo das Relações Internacionais: de um lado, autoras do Norte (Cynthia Enloe e J. Ann Tickner) e, do outro, latino-americanas do campo das epistemologias decoloniais (María Lugones e Ochy Curiel). A ideia é criar tensionamentos e aproximações que ampliem a compreensão das RI, revelando a geopolítica do conhecimento entre o Norte e o Sul globais, apontando a importância do conhecimento das assimetrias de gênero e da colonialidade do poder para as diversas abordagens das RI.

Em “Até aqui nos ajudou um feminismo: violência contra mulher, política institucional e feminismo negro”, Andréa Lopes da Costa Vieira e Bruna Nascimento Rodrigues da Silva apresentam o processo histórico pelo qual o ativismo e a teoria feministas ajudaram a tornar a violência doméstica uma pauta política, mas ainda refletem uma visão clássica e hegemônica do feminismo, dissociada de questões de classe e de raça. A partir de um levantamento histórico das proposições legislativas da Câmara dos Deputados que viraram normas jurídicas na última década, o artigo apresenta um caminho para a reflexão sobre o movimento de transformação da pauta feminista em política institucional, sua aproximação do estado e do campo das políticas públicas. Desse modo, o quadro de proposições legislativas funciona como um pequeno retrato ou amostra dos efetivos embates e conquistas das perspectivas feministas no espaço legislativo e ajuda a refletir sobre as implicações práticas – “subjetivas e objetivas” – de uma perspectiva que não considere gênero e raça para o enfrentamento das vulnerabilidades sociais.

“Epistemologia essencialista e (anti)feminismos transexcludentes: biologizando o gênero nas redes sociais”, de Ana Carolina de O. Marsicano e Tabata P. Tesser, analisa casos recentes e paradigmáticos de disputas em torno da categoria “mulher” nas redes sociais no Brasil. As autoras buscam demonstrar o desenvolvimento e o compartilhamento, por diferentes vertentes do feminismo e mobilizações antifeministas de extrema-direita, de uma “matriz-narrativa” essencialista sobre o gênero. Esses movimentos, supostamente ocupando os opostos do espectro político, se aproximam na produção de uma retórica que evita outras identidades que não se conformem aos padrões de um modelo cisheteronormativo. A partir de um recorte específico sobre movimentos transexcludentes, o artigo coloca uma lupa sobre as rotinas e os processos de constituição de lógicas plurais na democracia.

O artigo “Mulheres, novas direitas, WhatsApp e reinvenção da relação casa-rua”, de Patrícia Pavesi e Julio Valentim, apresenta a questão da ampliação do engajamento político de mulheres conservadoras em redes sociotécnicas e as implicações desse processo para a constituição do espaço público no Brasil. Uma vez que o avanço das novas direitas, marcado pela lógica de ressentimento contra grupos progressistas, tem como mote a constituição do feminismo como grande inimigo da ordem e dos sentidos de família, é preciso entender quais são as propostas de reconfiguração da luta das mulheres. Aqui, temos um recorte importante dos modos como as políticas de identidade são acionadas pelas novas direitas com o intuito de construir sentidos de pertencimento adequados à manutenção de uma ordem neoliberal e, principalmente, como se organizam os movimentos de mulheres que se opõem ao feminismo presente na maioria dos artigos desse dossiê. Assim, a discussão nos lembra da importância, no contexto atual, de considerar a produção sistemática de antifeminismos e aprofundar a compreensão de como estes utilizam e remodelam sentidos e práticas de conexão emocional, afetividade e pertencimento.

Acreditamos que esse conjunto de artigos, ao reunir uma miríade de vozes e engajamentos distintos, representa experimentações e movimentos que permitem o enveredamento em novos caminhos da crítica.

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    Ambas as autoras são PQ-CNPq, contando com o apoio da agência em suas pesquisas. Além disso, a primeira autora tem seu projeto igualmente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Espírito Santo (Fapes).
  • Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2023
  • Aceito
    15 Dez 2023
  • Publicado
    05 Mar 2024
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