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Proprietários estão mais satisfeitos que inquilinos? Uma análise discriminante no contexto urbano

Resumo

Este trabalho traz reflexões a fim de compreender se existem diferenças entre as percepções de proprietários e inquilinos no contexto urbano. Tal entendimento pode influenciar na definição de políticas habitacionais e busca uma melhor compreensão sobre a satisfação dos indivíduos. A partir do questionário aplicado e de análises estatísticas, observou-se a importância da manutenção e infraestrutura do contexto urbano para ambos os grupos. Localização, serviços e recursos do bairro também se apresentaram como discriminantes entre os grupos, ressaltando as características relevantes para cada público-alvo.

satisfação residencial; políticas habitacionais; meio urbano; casa própria; inquilinos

Abstract

This study investigates whether there are differences between the perceptions of owners and tenants in the urban context. Understanding this matter can influence decisions on housing policies, as it helps to comprehend the general satisfaction of subjects. Based on the questionnaire that was administered and on statistical analyses, we observed the importance of the maintenance and infrastructure of the urban context for both groups. The neighborhood's location, services, and resources discriminated between the groups, and highlighted the relevant characteristics for each target audience.

residential satisfaction; housing policies; urban environment; homeownership; tenants

Introdução

A satisfação residencial tem motivado diversos estudos que buscam obter um melhor entendimento sobre a qualidade de vida dos indivíduos (Aigbavboa e Thwala, 2018AIGBAVBOA, C.; THWALA, W. (2018). Residential satisfaction and housing policy evolution. Londres, Routledge.). Da mesma forma, o contexto urbano também exerce importância na vida dos cidadãos, sendo um dos tópicos de maior interesse nos estudos sobre o meio urbano (Hur e Morrow-Jones, 2008HUR, M.; MORROW-JONES, H. (2008). Factors that influence residents' satisfaction with neighborhoods. Environment and Behavior, v. 40, n. 5, pp. 619-635. DOI: 10.1177/0013916507307483.). Além disso, a importância de aspectos relacionados ao ambiente residencial se destaca pelo sentido de casa própria, que, para muitos, é o item de maior consumo em suas vidas (Aigbavboa e Thwala, 2018AIGBAVBOA, C.; THWALA, W. (2018). Residential satisfaction and housing policy evolution. Londres, Routledge.).

Em razão de muitas pessoas sonharem com a casa própria, os formuladores de políticas habitacionais têm o desafio de criar programas que sejam capazes de atender as necessidades e expectativas dos indivíduos, especialmente os de baixa renda. Byun e Ha (2016)BYUN, G; HA, M. (2016). The factors influencing residential satisfaction by public rental housing type. Journal of Asian architecture and building engineering, v. 15, n. 3, pp. 535-542. observaram que as políticas públicas habitacionais focam na quantidade de habitações, sem levar em consideração a qualidade de vida dos residentes, o que está associado com a satisfação dos indivíduos. Para Aigbavboa e Thwala (2018)AIGBAVBOA, C.; THWALA, W. (2018). Residential satisfaction and housing policy evolution. Londres, Routledge., a realização dos programas habitacionais não consistiria apenas na quantidade de unidades entregues, mas também em entender os fatores que influenciam as necessidades e eventual satisfação do indivíduo com o produto entregue, assim, a satisfação residencial poderia embasar futuras políticas e planos de intervenção.

Observa-se que diversos estudos sobre a satisfação residencial têm analisado a propriedade do imóvel, investigando apenas proprietários ou inquilinos. Alguns estudos examinaram a satisfação nos contextos urbanos de habitação popular (Mohit, Ibrahim e Rashid, 2010; Ibem e Aduwo, 2013IBEM, E. O.; ADUWO, E. B. (2013). Assessment of residential satisfaction in public housing in Ogun State, Nigeria. Habitat International, v. 40, pp. 163-175. DOI: https://doi.org/10.1016/j.habitatint.2013.04.001.
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; Byun e Ha, 2016BYUN, G; HA, M. (2016). The factors influencing residential satisfaction by public rental housing type. Journal of Asian architecture and building engineering, v. 15, n. 3, pp. 535-542.); outros estudos focaram em contextos urbanos específicos, como vilas urbanas, contextos urbanos reconstruídos ou históricos renovados (Fang, 2006FANG, Y. (2006). Residential satisfaction, moving intention and moving behaviors: a study of redeveloped neighborhoods in inner-city Beijing. Housing Studies, v. 21, n. 5, pp. 671-694. DOI: https://doi.org/10.1080/02673030600807217.
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; Li e Wu, 2013LI, Z.; WU, F. (2013). Residential satisfaction in China's informal settlements: A case study of Beijing, Shanghai, and Guangzhou. Urban geography, v. 34, n. 7, pp. 923-949.; Jiang et al., 2016JIANG, W. et al. (2016). Mixed logit model of intended residential mobility in renovated historical blocks in China. In: 13th INTERNATIONAL CONFERENCE ON DESIGN AND DECISION SUPPORT SYSTEMS IN ARCHITECTURE AND URBAN PLANNING. Anais. Eindhoven, Technische Universiteit, pp. 1-15.); outros examinaram grupos específicos, como imigrantes (Tao et al., 2015TAO, L. et al. (2015). Housing choices of migrant workers in China: beyond the Hukou perspective. Habitat International, v. 49, pp. 474-483.; Gan et al., 2016GAN, X. et al. (2016). Are migrant workers satisfied with public rental housing? A study in Chongqing, China. Habitat International. v. 56, pp. 96-102.; Lin e Li, 2017LIN, S.; LI, Z. (2017). Residential satisfaction of migrants in Wenzhou, an ‘ordinary city ‘of China. Habitat international, v. 66, pp. 76-85.); e, ainda, algumas pesquisas estudaram a satisfação em habitações públicas para locação (Huang e Du, 2015HUANG, Z.; DU, X. (2015). Assessment and determinants of residential satisfaction with public housing in Hangzhou, China. Habitat International, v. 47, pp. 218-230. DOI: https://doi.org/10.1016/j.habitatint.2015.01.025.
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; Li et al., 2019LI, J. et al. (2019). Residential satisfaction among resettled tenants in public rental housing in Wuhan, China. Journal of Housing and the Built Environment, v. 34, n. 4, pp. 1125-1148.).

Para Mohit e Raja (2014)MOHIT, M. A.; RAJA, A. M. M. A. (2014). Residential satisfaction-concept, theories and empirical studies. Planning Malaysia, v. 12, n. 3, pp. 47-66. DOI: 10.21837/pmjournal.v12.i3.131., a propriedade da habitação é um indicador da satisfação residencial, pois os proprietários tendem a estar mais satisfeitos que inquilinos, porque possuem um senso de gratificação e que os faz psicologicamente mais orgulhosos e satisfeitos com sua habitação. Huang e Du (2015)HUANG, Z.; DU, X. (2015). Assessment and determinants of residential satisfaction with public housing in Hangzhou, China. Habitat International, v. 47, pp. 218-230. DOI: https://doi.org/10.1016/j.habitatint.2015.01.025.
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observaram que as políticas públicas em diversos países ao redor do mundo focam na aquisição da casa própria, associada a inclusão social e vista como sucesso pessoal. De acordo com Elsinga e Hoekstra (2005)ELSINGA, M.; HOEKSTRA, J. (2005). Homeownership and housing satisfaction. Journal of Housing and the Built Environment, v. 20, n. 4, pp. 401-424. DOI: https://doi.org/10.1007/s10901-005-9023-4.
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, proprietários têm o direito de decidir o que acontece com seu imóvel, definindo seu uso, manutenção, decoração e negociação, por isso, frequentemente a propriedade é vista como segurança, liberdade, independência e vantagens financeiras.

Apesar dessas constatações, Huang e Du (ibid.) observaram, em seu estudo realizado na China, que os moradores de habitações de aluguel teriam maior satisfação que aqueles que vivem em casa própria e atribuíram esses resultados à política habitacional adotada no país. Já Lotfi, Despres e Lord (2019) observaram que a insatisfação não está necessariamente associada com a intenção de mudar, conforme observado por estudos anteriores (Jiang et al., 2016JIANG, W. et al. (2016). Mixed logit model of intended residential mobility in renovated historical blocks in China. In: 13th INTERNATIONAL CONFERENCE ON DESIGN AND DECISION SUPPORT SYSTEMS IN ARCHITECTURE AND URBAN PLANNING. Anais. Eindhoven, Technische Universiteit, pp. 1-15.), mas, entre as principais razões para a mudança, estaria o desejo de ter a casa própria (Clark, 2017CLARK, W. A. V. (2017). Residential mobility in context: Interpreting behavior in the housing market. Papers: revista de sociologia, v. 102, n. 4, pp. 575-605.). Ademais, Elsinga e Hoekstra (2005)ELSINGA, M.; HOEKSTRA, J. (2005). Homeownership and housing satisfaction. Journal of Housing and the Built Environment, v. 20, n. 4, pp. 401-424. DOI: https://doi.org/10.1007/s10901-005-9023-4.
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argumentaram que é provável que os benefícios da casa própria estejam restritos a moradores de contextos urbanos mais desenvolvidos. Já no contexto da América Latina, Guerreiro, Rolnik e Marín-Toro (2022) observaram uma expansão do mercado de locação de imóveis.

O fato de os resultados sobre o tema serem conflitantes quando se consideram diferentes grupos e contextos geográficos indica que há uma necessidade de pesquisas mais aprofundadas para esclarecer os fatores que tornam os contextos urbanos mais satisfatórios para proprietários e inquilinos. Desse modo, este estudo busca preencher essa lacuna, tendo como pergunta de pesquisa: as percepções do meio urbano são significativamente distintas quando se considera a situação da habitação atual (própria ou não própria)?

Dada a importância da casa própria para a vida das pessoas, este estudo contribui para entender como o perfil de proprietários e inquilinos pode influenciar na definição de políticas habitacionais e de planejamento urbano, incorporando novas possibilidades.

Referencial teórico

Políticas públicas habitacionais

De acordo com UN-Habitat (2015)UN-HABITAT (2015). Housing at the centre of the new urban agenda. Nairobi., o processo de urbanização e o rápido crescimento da população têm causado vários desafios às cidades, que precisam atender às necessidades habitacionais dos cidadãos.

A acessibilidade à moradia é um problema global caracterizada pela desigualdade social (ibid.) e se manifesta, no Brasil, fisicamente nos espaços segregados das cidades (Ramos e Noia, 2016RAMOS, J. S.; NOIA, A. C. (2016). A construção de políticas públicas em habitação e o enfrentamento do déficit habitacional no Brasil: uma análise do Programa Minha Casa Minha Vida. Desenvolvimento em Questão, v. 14, n. 33, pp. 65-105.). Guerreiro, Rolnik e Marín-Toro (2022) destacaram que o mercado de locação de imóveis ociosos está em expansão na América Latina, mas o foco não tem sido a qualidade das habitações nem o bem-estar dos indivíduos. Isso tem gerado situações de informalidade e terceiriza a responsabilidade do Estado em promover políticas habitacionais que atendam às necessidades dos cidadãos.

Embora existam diferenças consideráveis entre os países, observa-se que os preços das moradias aumentaram, em todos eles, três vezes mais rápido nos últimos anos do que nas últimas duas décadas, entre todas as faixas de renda (Plouin, 2019PLOUIN, M. (2019). “Affordable Housing and Homelessness. Challenges Across the OECD”. In: Un expert group meeting on affordable housing and social protection systems for all to address homelessness. Nairobi, UN-Habitat.). No Brasil, os custos com habitação absorvem elevada parcela da renda dos indivíduos, chegando a representar três a quatro vezes a renda anual do indivíduo (Ramos e Noia, 2016RAMOS, J. S.; NOIA, A. C. (2016). A construção de políticas públicas em habitação e o enfrentamento do déficit habitacional no Brasil: uma análise do Programa Minha Casa Minha Vida. Desenvolvimento em Questão, v. 14, n. 33, pp. 65-105.). Além disso, os modelos de casa própria com agressivo financiamento, observado nas últimas décadas, enfatizam a especulação em vez do bem-estar social (UN-Habitat, 2015UN-HABITAT (2015). Housing at the centre of the new urban agenda. Nairobi.). Programas de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (Athis) e programas de melhorias habitacionais também surgiram com uma forma de promover a moradia no Brasil.

Clark (2017)CLARK, W. A. V. (2017). Residential mobility in context: Interpreting behavior in the housing market. Papers: revista de sociologia, v. 102, n. 4, pp. 575-605. observa que a intenção de se mudar ou adquirir a casa própria está condicionada a instituições financeiras e políticas governamentais, uma vez que o setor habitacional é um aspecto central de diversas economias mundiais. No Brasil não é diferente, pois o mercado imobiliário é um setor estratégico da economia, pela geração de empregos e renda, além da importância social do produto habitação (Ramos e Noia, 2016RAMOS, J. S.; NOIA, A. C. (2016). A construção de políticas públicas em habitação e o enfrentamento do déficit habitacional no Brasil: uma análise do Programa Minha Casa Minha Vida. Desenvolvimento em Questão, v. 14, n. 33, pp. 65-105.). Além disso, o acesso à moradia é complexo, pois envolve o setor privado e as instituições governamentais, representando altos custos, processos e riscos, sendo uma indústria regulamentada, que indica onde e de que forma devem ser implantados os empreendimentos (Clark, 2017CLARK, W. A. V. (2017). Residential mobility in context: Interpreting behavior in the housing market. Papers: revista de sociologia, v. 102, n. 4, pp. 575-605.).

O aumento dos custos para aquisição de um imóvel, associado ao aumento de despesas básicas, como saúde e educação, traz reflexos em diversos países, nos quais já se observa a menor probabilidade de que os jovens adquiram uma propriedade que seus pais (Plouin, 2019PLOUIN, M. (2019). “Affordable Housing and Homelessness. Challenges Across the OECD”. In: Un expert group meeting on affordable housing and social protection systems for all to address homelessness. Nairobi, UN-Habitat.). Para Clark (2017)CLARK, W. A. V. (2017). Residential mobility in context: Interpreting behavior in the housing market. Papers: revista de sociologia, v. 102, n. 4, pp. 575-605., não é possível saber se a casa própria será sustentável para as populações urbanas no futuro, mas pode se constatar que o crescimento da aquisição da casa própria observado no século XX não se repetirá no século XXI.

Paralelamente, enquanto uma parcela significativa tem dificuldades para pagar sua habitação, seja os custos de locação ou de financiamento, as famílias de menor renda são as mais impactadas pelos altos desembolsos, encontrando dificuldades para financiamento (Plouin, 2019PLOUIN, M. (2019). “Affordable Housing and Homelessness. Challenges Across the OECD”. In: Un expert group meeting on affordable housing and social protection systems for all to address homelessness. Nairobi, UN-Habitat.), o que contribui para a crescente desigualdade social. Além disso, o mercado imobiliário é formado pelas preferências do consumidor, como tamanho, localização e estilo, e pelas percepções do construtor do que será consumido; assim, quem depende das políticas habitacionais geralmente não tem oportunidade de participar do processo de escolha (Clark, 2017CLARK, W. A. V. (2017). Residential mobility in context: Interpreting behavior in the housing market. Papers: revista de sociologia, v. 102, n. 4, pp. 575-605.).

Para Guerreiro, Rolnik e Marín-Toro (2022), a ascensão do aluguel como forma de moradia tem sido observada atualmente na América Latina, numa conjuntura caracterizada pela valorização da terra e da informalidade, uma vez que áreas centrais são cada vez mais escassas e “contratos de gaveta” são comuns. Nesse sentido, a locação é uma terceirização da responsabilidade legal e da qualidade das habitações aos inquilinos, por meio de políticas habitacionais de auxílio mensal, sendo operacionalizadas sem gestão e controle por parte do Estado (ibid.).

Clark (2017)CLARK, W. A. V. (2017). Residential mobility in context: Interpreting behavior in the housing market. Papers: revista de sociologia, v. 102, n. 4, pp. 575-605. ressalta que, nas nações de bem-estar social, como alguns países europeus, a tendência tem sido fornecer subsídios para o acesso à moradia e encorajar a disponibilidade de habitação social alugada. Nas economias liberais, como nos Estados Unidos, a tendência tem sido favorecer o mercado, incentivando o financiamento da habitação. No Brasil, a política habitacional adotada nos últimos anos voltou-se para a aceleração da economia e geração de emprego, desconectada dos seus objetivos de ser uma política inclusiva, tendo como problemas centrais: empreendimentos periféricos e sem infraestrutura, elevação do custo da terra urbanizada, falta de instrumentos de gestão social, inviabilidade para implantar empreendimentos em áreas centrais e a transferência desmedida de recursos públicos para o mercado (Nascimento Neto e Ultramari, 2022NASCIMENTO NETO, P.; ULTRAMARI, C. (2022). Política habitacional no Brasil: manifestações territoriais de uma década de habitação social de mercado. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 24, n. 1. DOI: https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202206.
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). Assim, observa-se que o objetivo principal, que seria reduzir o déficit habitacional concentrado na menor faixa de renda, não está sendo atendido, pois as contratações são maiores entre o público com maior faixa de renda, configurando uma facilidade para financiar a casa própria (Ramos e Noia, 2016RAMOS, J. S.; NOIA, A. C. (2016). A construção de políticas públicas em habitação e o enfrentamento do déficit habitacional no Brasil: uma análise do Programa Minha Casa Minha Vida. Desenvolvimento em Questão, v. 14, n. 33, pp. 65-105.).

Portanto, a sustentabilidade das cidades do futuro dependerá do enfrentamento das questões habitacionais, as quais deverão estar no centro de atenção das práticas do planejamento urbano, colocando as pessoas e os direitos humanos em primeiro lugar (UN-Habitat, 2015UN-HABITAT (2015). Housing at the centre of the new urban agenda. Nairobi.).

Satisfação residencial

Aigbavboa e Thwala (2018)AIGBAVBOA, C.; THWALA, W. (2018). Residential satisfaction and housing policy evolution. Londres, Routledge. descreveram a satisfação residencial como uma percepção individual de que a condição habitacional está de acordo com suas necessidades e expectativas, por isso não é uma constante, mas um resultado complexo, influenciado por diversas características. Para Elsinga e Hoekstra (2005)ELSINGA, M.; HOEKSTRA, J. (2005). Homeownership and housing satisfaction. Journal of Housing and the Built Environment, v. 20, n. 4, pp. 401-424. DOI: https://doi.org/10.1007/s10901-005-9023-4.
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, a casa própria é encorajada pelas políticas públicas em diversos países, sendo preferencial em relação à locação, por ter um efeito positivo no indivíduo e na sociedade como um todo. Apesar disso, países com um setor de locação bem desenvolvido podem fornecer segurança aos indivíduos, os quais podem considerar a locação como uma alternativa viável em relação à aquisição da casa própria.

Alguns estudos demonstraram que proprietários estavam mais satisfeitos que inquilinos em relação às características do contexto urbano (Parkes, Kearns e Atkinson, 2002; Boschman, 2018BOSCHMAN, S. (2018). Individual differences in the neighborhood level determinants of residential satisfaction. Housing studies, v. 33, n. 7, pp. 1127-1143.). Já Mohit e Azim (2018)MOHIT, M. A. l; AZIM, M. (2018). Residents’ Satisfaction with Public Housing in Hulhumale’Area of Male’, Maldives. Asian Journal of Environment-Behavior Studies, v. 3, n. 9, pp. 125-135. observaram que os proprietários apresentaram menores níveis de satisfação que os inquilinos, e Chen et al. (2013)CHEN, L. et al. (2013). Disparities in residential environment and satisfaction among urban residents in Dalian, China. Habitat International, v. 40, pp. 100-108. constataram que a propriedade da habitação não era capaz de melhorar a satisfação residencial de moradores de baixa renda.

Nesse sentido, diversas pesquisas têm observado que as características do contexto urbano estão mais relacionadas com a satisfação do que propriamente as características da habitação, inclusive nos estudos que analisaram as percepções de proprietários e/ou de inquilinos (Huang e Du, 2015HUANG, Z.; DU, X. (2015). Assessment and determinants of residential satisfaction with public housing in Hangzhou, China. Habitat International, v. 47, pp. 218-230. DOI: https://doi.org/10.1016/j.habitatint.2015.01.025.
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; Byun e Ha, 2016BYUN, G; HA, M. (2016). The factors influencing residential satisfaction by public rental housing type. Journal of Asian architecture and building engineering, v. 15, n. 3, pp. 535-542.; Li et al., 2019LI, J. et al. (2019). Residential satisfaction among resettled tenants in public rental housing in Wuhan, China. Journal of Housing and the Built Environment, v. 34, n. 4, pp. 1125-1148.). É no contexto urbano que as vidas ocorrem, incluindo as interações sociais e a acessibilidade aos serviços; então torna-se uma unidade básica que afeta a qualidade de vida dos indivíduos (Hur e Morrow-Jones, 2008HUR, M.; MORROW-JONES, H. (2008). Factors that influence residents' satisfaction with neighborhoods. Environment and Behavior, v. 40, n. 5, pp. 619-635. DOI: 10.1177/0013916507307483.).

Elsinga e Hoekstra (2005)ELSINGA, M.; HOEKSTRA, J. (2005). Homeownership and housing satisfaction. Journal of Housing and the Built Environment, v. 20, n. 4, pp. 401-424. DOI: https://doi.org/10.1007/s10901-005-9023-4.
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analisaram a satisfação entre proprietários e inquilinos de oito países europeus. Os autores concluíram que os proprietários estavam mais satisfeitos devido ao desejo inato de possuir a casa própria ou pelo incentivo das políticas públicas de aquisição da moradia.

Hur e Morrow-Jones (2008)HUR, M.; MORROW-JONES, H. (2008). Factors that influence residents' satisfaction with neighborhoods. Environment and Behavior, v. 40, n. 5, pp. 619-635. DOI: 10.1177/0013916507307483. estudaram a satisfação de moradores com casa própria em seus contextos urbanos, partindo do pressuposto de que existem fatores da vizinhança que influenciam a satisfação dos indivíduos nos EUA. Os autores identificaram 14 variáveis significativamente relacionadas à satisfação com o contexto urbano, como aparência, problemas sociais, segurança, interações sociais, serviços do governo local e acesso a atividades recreativas.

Huang e Du (2015)HUANG, Z.; DU, X. (2015). Assessment and determinants of residential satisfaction with public housing in Hangzhou, China. Habitat International, v. 47, pp. 218-230. DOI: https://doi.org/10.1016/j.habitatint.2015.01.025.
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examinaram os determinantes da satisfação, comparando quatro tipos de programas habitacionais existentes na China, incluindo habitações públicas para locação e subsídio para aquisição da casa própria. Os resultados indicaram que moradores de casas próprias estavam mais satisfeitos com áreas verdes, tranquilidade e segurança do contexto urbano e se preocupavam mais com os equipamentos públicos. Com relação às instalações públicas, a proximidade com o centro foi um fator de satisfação maior para os residentes em habitações próprias e de aluguel, além de todos estarem preocupados com as características do contexto urbano. Os resultados mostraram que os moradores de habitações de aluguel teriam maior satisfação residencial que aqueles que vivem em casa própria. Os autores concluíram que isso se deve à política habitacional adotada na China, pois quem adquire a casa própria teria maiores restrições na escolha da habitação, ao contrário dos tipos de habitação alugada.

No seu estudo, Byun e Ha (2016)BYUN, G; HA, M. (2016). The factors influencing residential satisfaction by public rental housing type. Journal of Asian architecture and building engineering, v. 15, n. 3, pp. 535-542. tiveram como objetivo analisar o nível de satisfação de inquilinos em habitações públicas na cidade de Seul, na Coreia do Sul, em relação ao tipo de habitação. Os resultados indicaram que a satisfação dos inquilinos é influenciada por aspectos do entorno, como privacidade, limpeza e lixo, segurança e serviços de educação; fatores físicos da moradia; acessibilidade a serviços de saúde, mercados, comércio, transporte público e a atividades culturais e parques; e características de conforto da habitação.

Milić e Zhou (2017) examinaram os fatores que influenciam a satisfação residencial de jovens, a fim de embasar as políticas habitacionais da Sérvia. O estudo abordou a questão das mudanças no mercado de trabalho, longos períodos de estudo e a instabilidade econômica como aspectos que dificultam o acesso a uma habitação entre a população estudada. Os resultados indicaram que a satisfação residencial entre jovens é influenciada pela privacidade, propriedade da habitação, tamanho da moradia e apego ao contexto urbano.

Li et al. (2019)LI, J. et al. (2019). Residential satisfaction among resettled tenants in public rental housing in Wuhan, China. Journal of Housing and the Built Environment, v. 34, n. 4, pp. 1125-1148. investigaram a satisfação em habitações públicas para locação na China, uma das políticas habitacionais difundidas no país para a população de baixa renda. Os resultados indicaram que a satisfação com a habitação e as características do contexto urbano é influenciada pelo espaço e pelo projeto da habitação, assim como pela acessibilidade a serviços no contexto urbano, pelos serviços públicos e pela gestão dos contratos de locação. Ainda, a qualidade da habitação não influenciava a satisfação, especialmente entre os mais jovens.

Observa-se que as políticas habitacionais precisam ser aprofundadas de forma a atender à demanda e às necessidades dos indivíduos. Assim, compreender a influência do meio urbano na satisfação pode ser capaz de promover melhorias na qualidade de vida de proprietários e inquilinos, além de embasar políticas públicas bem-sucedidas, associando planejamento urbano e habitação.

Estratégia de pesquisa

O objetivo desta investigação foi identificar se existem diferenças entre proprietários, incluindo financiamento, e indivíduos que moram em habitações alugadas, emprestadas ou de parentes, em relação à satisfação com o contexto urbano. O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (CEP/UTFPR). Foi adotado o método de procedimento survey, que, por meio de um instrumento de pesquisa, busca descrever e analisar as variáveis com tratamento estatístico. Foi adotado um questionário, desenvolvido a partir de questões abordadas em estudos anteriores sobre o tema. A coleta de dados foi dividida em aplicação do teste piloto e aplicação do teste final, e, na sequência, os dados foram compilados e analisados. A Figura 1 apresenta as etapas da pesquisa.

Figura 1
– Estratégia da pesquisa

O questionário contemplou questões objetivas e subjetivas, e estas últimas foram medidas pela escala Likert de 5 pontos. Para atingir o objetivo deste estudo, foram elencadas 53 variáveis, apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1
– Variáveis selecionadas para a pesquisa

As variáveis selecionadas foram divididas em três grupos: “Características e recursos do meio urbano” – características do planejamento urbano que podem ser observadas e avaliadas de maneira objetiva (Fornara, Bonaiuto e Bonnes, 2010); “Serviços públicos e manutenção” – características funcionais associadas à disponibilidade e qualidade dos serviços oferecidos na vizinhança (Faganello, 2019FAGANELLO, A. M. P. (2019). Estudo sistêmico das inter-relações dos construtos que influenciam a satisfação residencial visando à elaboração de um modelo a partir da percepção cognitiva do indivíduo. Tese de doutorado. Curitiba, Universidade Tecnológica Federal do Paraná.); e “Desempenho do entorno” – percepção cognitiva em relação às características do contexto urbano do ponto de vista dos indivíduos (Bonaiuto e Fornara, 2017BONAIUTO, M.; FORNARA, F. (2017). Residential satisfaction and perceived urban quality. Reference Module in Neuroscience and Biobehavioral Psychology. DOI: https://doi.org/10.1016/B978-0-12-809324-5.05698-4
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). Para definição das variáveis, o critério utilizado foram os aspectos mais relevantes das pesquisas sobre satisfação e meio urbano.

Observa-se que as “características e recursos do meio urbano” referem-se a aspectos objetivos, ofertados ou não pelo meio urbano. O grupo “serviços públicos e manutenção” reúne as variáveis objetivas, que, em tese, são de responsabilidade do poder público. Já o constructo “desempenho do entorno” apresenta as características subjetivas, ou seja, busca-se observar a percepção do indivíduo em relação aos itens propostos.

As recomendações do Comitê de Ética em Pesquisa foram seguidas em todas as etapas, sendo adotado um protocolo de aplicação, constituído pela apresentação da pesquisa ao participante e pelo preenchimento do questionário. O primeiro passo foi a aceitação (ou não) do indivíduo em participar da pesquisa, e o segundo consistiu no preenchimento do próprio questionário. Utilizou-se a ferramenta on-line Google Forms para a aplicação, e os participantes receberam um link, enviado por e-mail ou pelas redes sociais, o qual continha a apresentação da pesquisa e informava que a participação seria de forma livre e voluntária.

A coleta de dados foi realizada entre maio e setembro de 2020, e o tipo de amostragem por conveniência foi adotado, pois a pesquisa utilizou indivíduos que estavam disponíveis (redes sociais dos pesquisadores, e-mail para conhecidos, estudantes e colaboradores do programa de pós-graduação) e não selecionados por algum critério estatístico. Os critérios definidos para a inclusão no estudo foram: ser maior de 18 anos, ser brasileiro e residir no interior do País, e considerou-se que uma variedade de respostas de diferentes perfis seria fundamental para atingir o objetivo.

Apesar de a ferramenta on-line poder atingir um maior público, observou-se que a maioria dos participantes possuía uma renda mais alta, e o acesso às pessoas de baixa renda de forma presencial foi prejudicado pela pandemia de Covid-19. No entanto, a amostra foi formada por 426 diferentes perfis de três regiões brasileiras: Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

Finalizada a coleta, os dados foram organizados em tabelas com o auxílio do Microsoft Excel, resultando em uma matriz numérica. As variáveis foram organizadas no eixo X, e os participantes foram associados a um número sequencial no eixo Y, para preservar o anonimato.

Na sequência, foram desenvolvidas as análises estatísticas, por meio do software SPSS (Statistical Package for the Social Sciences), versão 24. Inicialmente, foram realizadas as análises descritivas dos dados, com o objetivo de compreender e caracterizar a amostra.

Foram aplicadas as análises discriminantes, a fim de identificar as características que se diferiam entre os dois grupos, considerando a situação da habitação atual como variável dependente. Na sequência, testes não paramétricos de Mann-Whitney foram desenvolvidos, de modo a confirmar os resultados das análises discriminantes. Nos testes, a hipótese nula é que as duas amostras tenham a mesma distribuição; então, quando a hipótese nula é rejeitada, ou seja, a significância é menor que 0,05, é um indicativo de que as variáveis selecionadas diferem entre os dois grupos.

Para compreender os resultados obtidos na análise discriminante, foram analisadas também as correlações das variáveis mais discriminantes e a satisfação com o contexto urbano em ambos os grupos, utilizando o coeficiente de Spearman. Tal coeficiente é o mais indicado para medir a intensidade de relação entre variáveis ordinais, variando entre – 1,000 e + 1,000, sendo que:

  • -1 indica a perfeita correlação negativa ou inversa, ou seja, quando o aumento em uma variável implica a diminuição da outra ou vice-versa;

  • +1 indica a perfeita correlação positiva ou direta, ou seja, quando ambas as variáveis aumentam ou diminuem concomitantemente;

  • 0 indica a inexistência de relação entre as variáveis (Pontes, 2010PONTES, A. C. F. (2010). Ensino da correlação de postos no ensino médio. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE PROBABILIDADE E ESTATÍSTICA. 19., 2010, São Pedro. Anais... São Pedro, ABE, pp. 26-30.).

Quanto mais o coeficiente estiver próximo dos extremos, maior será a correlação entre as variáveis, e o sinal negativo indica uma correlação inversa. As análises foram desenvolvidas com base em um intervalo de valores e cores, no qual as cores quentes indicaram as correlações positivas e as cores frias, as correlações inversas. Assim, quanto mais escuras são as cores, maiores são as correlações, e valores absolutos acima de 0,300 foram considerados significativos para o estudo (Field, 2009FIELD, A. (2009). Descobrindo a estatística usando o SPSS-5. Porto Alegre, Penso Editora.; Cohen, 2013COHEN, J. (2013). Statistical power analysis for the behavioral sciences. Londres, Routledge.). Por fim, para confirmar a confiabilidade dos resultados, as correlações com significância de 5% e 1% foram identificadas por um ou dois asteriscos, respectivamente, após o coeficiente.

Análise dos resultados

Primeiramente, foram realizadas as análises exploratórias dos dados, a fim de compreender o perfil dos respondentes e o comportamento geral da amostra.

A amostra foi caracterizada por ter a maioria do gênero feminino (51,9%), com nível de escolaridade especialização/mestrado (45,3%), renda familiar média bruta entre R$4.180,00 e R$10.450,00 (35,4%), idade entre 20 e 29 anos (46%), sem filhos (66,9%) e solteiros (52,8%). No Quadro 2 observam-se os resultados estratificados entre os dois grupos de modo a compreender seu comportamento. A coleta de dados resultou em uma amostra com 426 respondentes das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, sendo a região Sul a mais abrangida.

Quadro 2
– Perfil da amostra

No Quadro 3 pode ser observada a estatística descritiva da amostra (N=426), com valores de média e desvio padrão de cada variável utilizada. As médias variam entre 1 e 5, sendo o 1 igual a “discordo totalmente” e o 5 igual a “concordo totalmente”, para a amostra total.

Quadro 3
– Análises estatísticas descritivas da amostra por região

Por meio do Quadro 3, é possível observar variáveis com maior média e menor desvio padrão, denotando uma tendência geral de percepção positiva, como internet e telefone, água e esgoto sendo as maiores para ambos os grupos. As variáveis distância do transporte público, riscos de desastres naturais e distância do comércio foram as menores para ambos os grupos.

Para identificar as diferenças entre os indivíduos que são proprietários e os que não têm casa própria, foram realizadas análises discriminantes e testes não paramétricos de Mann-Whitney. A amostra foi dividida em dois grupos: o primeiro foi formado por 139 indivíduos (32,6% da amostra) que não possuem casa própria, ou seja, moram em uma habitação emprestada, de parentes ou alugada; o segundo grupo foi formado por 287 respondentes (67,4% da amostra) que moram em casa própria ou financiada.

Inicialmente, foi aplicada a análise discriminante nas variáveis do constructo características e recursos do meio urbano (CRMU), conforme Quadro 4, que apresenta os coeficientes da função discriminante. As variáveis com maior poder de distinção entre os dois grupos possuem valores absolutos acima de 0,30. Os coeficientes absolutos menores de 0,10 indicam variáveis que não discriminam os dois grupos, e, entre 0,10 e 0,30, as variáveis não distinguem os grupos, mas também não podem ser consideradas iguais para a amostra em estudo.

Quadro 4
– Resultados da análise discriminante e teste não paramétrico do constructo CRMU

Nesse primeiro constructo, foram encontradas quatro variáveis discriminantes: ar muito poluído, existência de atividades culturais, edificações volumosas e habitações próximas. Esses resultados foram confirmados pelos testes não paramétricos de Mann-Whitney, pois tais variáveis apresentaram significância menor que 0,05, indicando que a hipótese nula deve ser rejeitada. Entre as características que são semelhantes para os dois grupos, podem ser citadas a existência de quadras esportivas, escolas boas, parques, áreas verdes e posto de saúde adequado.

Da mesma forma, as análises discriminantes foram aplicadas nas 18 variáveis relacionados aos serviços públicos e manutenção (SPM), conforme Quadro 5. Nesse caso, somente duas variáveis tiveram coeficientes acima de 0,30, indicando que apenas a existência de buracos nas ruas e vandalismo diferem entre os dois grupos. Tais resultados também foram confirmados pelos testes não paramétricos de Mann-Whitney, apresentando significância menor que 0,05. No outro extremo, foram encontradas as seguintes características que podem ser consideradas iguais para ambos os grupos: sinalização e limpeza das ruas e calçadas, calçadas acessíveis, terrenos baldios, coleta de recicláveis e lixo nas ruas.

Quadro 5
– Resultados da análise discriminante e teste não paramétrico do constructo SPM

Por fim, as análises discriminantes foram realizadas com o constructo desempenho do entorno (DE), conforme Quadro 6. As variáveis identificadas como discriminantes foram: contexto urbano silencioso, tráfego calmo, distância até escola e local de trabalho e privacidade. Da mesma forma, os testes não paramétricos de Mann-Whitney apresentaram significância menor que 0,05 para essas variáveis, indicando a rejeição da hipótese nula. Como variáveis não discriminantes entre os dois grupos, foram encontradas contexto urbano isolado, coleta de lixo e reciclável, boa sinalização e facilidade em circular.

Quadro 6
– Resultados da análise discriminante e teste não paramétrico do constructo DE

Foram identificadas, além das variáveis discriminantes, algumas variáveis que são iguais para os dois grupos, ou seja, independentemente de ser casa própria ou não, são aspectos que podem ser considerados relevantes para ambos. Por isso, para auxiliar nesse entendimento, foram selecionadas as variáveis que se distinguem entre os grupos e foram analisadas as correlações entre elas e os grupos, em relação à satisfação com o contexto urbano, conforme Quadro 7.

Quadro 7
– Correlação entre satisfação com o contexto urbano (SCU1) e variáveis discriminantes

Foi adotado o coeficiente de Spearman, e valores absolutos acima de 0,300 são considerados moderados a fortes. A confiabilidade dos resultados foi expressa pela significância de 5% e 1%, as quais são identificadas por um asterisco (*) ou por dois (**), respectivamente após cada coeficiente de correlação. Ainda, o sinal negativo indica que a variável é inversamente relacionada à outra analisada.

A maior correlação encontrada foi entre atividades culturais e a satisfação daqueles que não moram em casa própria: 0,545**. Ainda, estão mais relacionadas com esse grupo: edificações volumosas, ar muito poluído e privacidade. Para o grupo dos proprietários, foi observado que apenas o contexto urbano ser silencioso apresentou uma correlação maior em relação ao outro grupo.

O Quadro 8 apresenta um resumo com as variáveis discriminantes e não discriminantes entre os dois grupos. Foram identificadas 11 variáveis discriminatórias e 15 variáveis semelhantes.

Quadro 8
– Resumo das análises discriminatórias entre os grupos

Discussão dos resultados

Os resultados encontrados sugerem que aqueles que moram em casa própria (ou financiada) possuem algumas percepções diferentes daqueles que vivem em habitações emprestadas, de parentes ou alugadas. Além disso, os resultados indicaram, também, várias semelhanças entre ambos os grupos.

Inicialmente, observou-se que a maioria das variáveis não discriminantes entre os grupos refere-se à manutenção ou infraestrutura do contexto urbano, como sinalização e limpeza das ruas, coleta de lixo e de recicláveis e terrenos baldios. Diversos estudos, como Fornara, Bonaiuto e Bonnes (2010) e Mohit, Ibrahim e Rashid (2010) já haviam demonstrado a influência da manutenção do contexto urbano no aumento da satisfação dos indivíduos.

Também se destacaram os serviços, como existência de boas escolas, quadras esportivas, áreas verdes e posto de saúde adequado. De forma geral, a disponibilidade e a funcionalidade dos serviços são capazes de melhorar a satisfação do indivíduo, conforme demonstrado por Emami e Sadeghlou (2021)EMAMI, A.; SADEGHLOU, S. (2021). Residential satisfaction: a narrative literature review towards identification of core determinants and indicators. Housing, Theory and Society, v. 38, n. 4, pp. 512-540.. Em relação à circulação, observou-se que o contexto urbano ser isolado e a facilidade em circular também não diferem entre os grupos.

Ao contrário do que era esperado, apenas uma variável se destacou pela maior relação de satisfação com o contexto urbano entre os proprietários. Observou-se que o contexto urbano ser silencioso tem maior influência na satisfação desse grupo. Isso sugere que os indivíduos, quando possuem condições financeiras para ter seu próprio imóvel, buscam adquirir sua casa própria em áreas mais tranquilas e quietas, fugindo dos centros das cidades, que geralmente são regiões agitadas, como observado por Fang (2006)FANG, Y. (2006). Residential satisfaction, moving intention and moving behaviors: a study of redeveloped neighborhoods in inner-city Beijing. Housing Studies, v. 21, n. 5, pp. 671-694. DOI: https://doi.org/10.1080/02673030600807217.
https://doi.org/10.1080/0267303060080721...
. Já os inquilinos podem entender esta como uma situação temporária e, por isso, não expressaram tanta relação da satisfação com o contexto urbano ser silencioso, dando prioridade a outros aspectos.

Com relação às características que se relacionaram mais com aqueles que não moram em casa própria, observaram-se a privacidade e as edificações volumosas. É possível inferir que edificações volumosas diminuem a privacidade se forem muito próximas, e isso pode refletir que tal grupo de indivíduos, quando puder adquirir a casa própria, prezará pela privacidade. Isso indica que aqueles que moram em casa de parentes, emprestada ou alugada, têm a privacidade prejudicada, justamente pela situação da moradia atual. Nesse sentido, Aiello, Ardone e Scopelliti (2010) observaram que edificações volumosas nos contextos urbanos estavam relacionadas com uma sensação de opressão para os indivíduos, influenciando negativamente na satisfação.

A existência de atividades culturais também é mais influente na satisfação daqueles que não vivem em casa própria. Isso pode ser explicado pela amostra caracterizada por moradores entre 20 e 29 anos, ou seja, predominantemente formada por jovens. Ainda, isso pode indicar que esse grupo de pessoas pode estar vivendo de forma temporária em outra cidade, a trabalho ou estudos, e busca atividades culturais como forma de lazer.

Tal grupo também atribuiu maior satisfação quando o ar não é poluído. Essa pode ser uma característica dos centros das cidades, geralmente mais movimentados que os bairros e com congestionamento, que contribuem para a aumentar a poluição do ar. Outra característica dos centros das cidades é a oferta de habitações para locação, geralmente pela facilidade de acessos aos serviços, reforçando o entendimento de que moradores de habitações alugadas geralmente vivem no centro e poderiam estar mais satisfeitos, caso a qualidade do ar fosse melhor.

Observou-se que, na comparação entre os dois grupos, as demais variáveis não apresentaram diferenças consideráveis nas correlações. Mas ressalta-se que os resultados são significativamente relevantes, pois existe apenas uma probabilidade de 5% ou de 1% de que eles não refletem toda a população, expressa pela significância. Isso indica que os resultados provavelmente são verdadeiros para a amostra caracterizada, ou seja, não são resultantes de uma situação aleatória.

De forma geral, todos estão mais satisfeitos quando há boas opções de serviços e boas condições de manutenção nos contextos urbanos. Esse conhecimento pode ser útil para que as políticas públicas fomentem a implantação de mais serviços, espaços públicos e de lazer nos contextos urbanos, não priorizando apenas as regiões centrais. Ainda, a importância da manutenção do contexto urbano destaca-se, pois isso é capaz de encorajar os moradores a cada vez mais utilizarem o contexto urbano como espaço de convívio e socialização.

Este estudo pode ser útil para ajudar a formular novas políticas habitacionais orientadas com foco no cidadão no contexto brasileiro, que não tem atendido sua demanda e seu principal objetivo. Influenciados pela especulação imobiliária e não levando em consideração o bem-estar do indivíduo, os programas habitacionais brasileiros precisam ser melhorados, e esta pesquisa destaca a importância de entender os aspectos que tornam as cidades mais satisfatórias para os moradores.

A satisfação residencial é um tema complexo, por isso resultados contraditórios são frequentemente observados em outras pesquisas. No entanto, essa complexidade sugere a necessidade de mais estudos sobre o tema. Os resultados indicaram que não existe uma regra padronizada que possa ser aplicada a todas as regiões. Entre as limitações do estudo, destaca-se que o acesso às pessoas de baixa renda foi prejudicado pela pandemia de Covid-19. Para estudos futuros, podem ser estudados contextos urbanos específicos de uma cidade ou comparações entre cidades e, ainda, podem ser estudados grupos específicos, levando em consideração a situação atual da moradia, a renda e a idade.

Nota de agradecimento

Os autores agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, pelo apoio à pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    9 Ago 2022
  • Aceito
    8 Set 2022
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