Acessibilidade / Reportar erro

Tensões contemporâneas entre público e privado

Contemporary tensions between the public and the private

Resumos

Este início do século coloca-nos diante de graves questões que nos impõem a necessidade de repensar as bases do tipo de sociedade que queremos. O espaço da liberdade reduz-se progressivamente a um ato de consumo e a democracia fica ameaçada pelo individualismo extremo e pela desagregação das sociedades política e civil. A pós-modernidade criou uma nova estrutura de castas - os incluídos e os excluídos -, imposta por uma visão tecnocrática e funcional sobre as orientações políticas e econômicas. Acentuou-se a fragmentação, ressurgiu o tribalismo e acelerou-se a perda do monopólio legítimo da violência pelo Estado. A aplicação das idéias neoliberais veio acompanhada de um crescimento das turbulências internacionais e de uma inédita sucessão de crises econômicas e guerras localizadas. A informática tenta substituir a capacidade de julgamento humano e a nova linguagem universal é a impaciência e o arbítrio. O outro é transformado em inimigo. As grandes corporações apropriaram-se do espaço público e o transformaram em espaço publicitário. As instituições políticas tradicionais estão progressivamente incapacitadas de fornecer segurança a seus cidadãos, levando à polarização social e a um ambiente de incerteza que não favorece a articulação de uma ação coletiva, fazendo esvair o espaço de igualdade dos cidadãos em torno das instituições públicas.

GLOBALIZAÇÃO; SISTEMAS SOCIAIS; SOCIALIZAÇÃO


The beginning of this new century brings us serious questions, forcing us to rethink the kind of society we want to build. The space for liberty is being reduced to a mere act of consumption and democracy is threatened by extreme individualism and by the dissolution of political and civil societies. Post-modernity has created a new caste structure the included and the excluded imposed by a technocratic and functional view on political and economic orientations. Fragmentation has increased, tribalism has reemerged, and the loss of the legitimate monopoly on violence by the State has been accelerated. The application of neo-liberal ideas was accompanied by increasing international turbulence and by a succession of economic crises and local wars as had never been seen. Information technology tries to replace human judgment and the new universal language is that of impatience and arbitrariness. The "other" is transformed into an enemy. Large corporations take possession of public space, transforming it into one of advertising. Traditional political institutions are increasingly unable to provide safety to citizens, leading, consequentially, to social polarization and to uncertain environments that do not favor the articulation of collective actions, what promotes the disappearance of the egalitarian space for citizens around public institutions.

GLOBALIZATION; SOCIAL SYSTEMS; SOCIALIZATION


TEMAS EM DESTAQUE

POLÍTICAS INCLUSIVAS E COMPENSATÓRIAS

Tensões contemporâneas entre público e privado

Contemporary tensions between the public and the private

Gilberto Dupas

Presidência do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais Grupo de Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo gdupas@uol.com.br

RESUMO

Este início do século coloca-nos diante de graves questões que nos impõem a necessidade de repensar as bases do tipo de sociedade que queremos. O espaço da liberdade reduz-se progressivamente a um ato de consumo e a democracia fica ameaçada pelo individualismo extremo e pela desagregação das sociedades política e civil. A pós-modernidade criou uma nova estrutura de castas – os incluídos e os excluídos –, imposta por uma visão tecnocrática e funcional sobre as orientações políticas e econômicas. Acentuou-se a fragmentação, ressurgiu o tribalismo e acelerou-se a perda do monopólio legítimo da violência pelo Estado. A aplicação das idéias neoliberais veio acompanhada de um crescimento das turbulências internacionais e de uma inédita sucessão de crises econômicas e guerras localizadas. A informática tenta substituir a capacidade de julgamento humano e a nova linguagem universal é a impaciência e o arbítrio. O outro é transformado em inimigo. As grandes corporações apropriaram-se do espaço público e o transformaram em espaço publicitário. As instituições políticas tradicionais estão progressivamente incapacitadas de fornecer segurança a seus cidadãos, levando à polarização social e a um ambiente de incerteza que não favorece a articulação de uma ação coletiva, fazendo esvair o espaço de igualdade dos cidadãos em torno das instituições públicas.

GLOBALIZAÇÃO – SISTEMAS SOCIAIS – SOCIALIZAÇÃO

ABSTRACT

The beginning of this new century brings us serious questions, forcing us to rethink the kind of society we want to build. The space for liberty is being reduced to a mere act of consumption and democracy is threatened by extreme individualism and by the dissolution of political and civil societies. Post-modernity has created a new caste structure the included and the excluded imposed by a technocratic and functional view on political and economic orientations. Fragmentation has increased, tribalism has reemerged, and the loss of the legitimate monopoly on violence by the State has been accelerated. The application of neo-liberal ideas was accompanied by increasing international turbulence and by a succession of economic crises and local wars as had never been seen. Information technology tries to replace human judgment and the new universal language is that of impatience and arbitrariness. The "other" is transformed into an enemy. Large corporations take possession of public space, transforming it into one of advertising. Traditional political institutions are increasingly unable to provide safety to citizens, leading, consequentially, to social polarization and to uncertain environments that do not favor the articulation of collective actions, what promotes the disappearance of the egalitarian space for citizens around public institutions.

GLOBALIZATION – SOCIAL SYSTEMS – SOCIALIZATION

O início do século XXI coloca-nos diante de enormes tensões. Um mal-estar geral e uma corrosiva desesperança existencial espalham-se pelo mundo global e impõem a necessidade de repensar e renegociar as bases fundamentais do tipo de sociedade que queremos.

O exercício da democracia é a luta permanente dos sujeitos contra a lógica dominante dos sistemas. No entanto, o espaço da liberdade está-se reduzindo progressivamente a um ato de consumo. A internacionalização das mídias e o progressivo rompimento do delicado equilíbrio de fronteiras entre Estado, sociedade civil e indivíduo fazem a prática dessa liberdade dissociar-se cada vez mais da idéia de compromisso com sua sociedade e seu meio cultural. A democracia passa, assim, a ser ameaçada em duas frentes principais: o individualismo extremo, que abandona a vida social aos aparelhos de gestão e aos mecanismos de mercado, e a desagregação das sociedades política e civil.

Durante a modernidade, tanto os dominados como os dominantes haviam sido considerados cidadãos diante da legislação do Estado; ou, se preferirmos, coletivamente como povo perante a Constituição. A razão universal, formal e abstrata, criara entre o indivíduo – com sua consciência subjetiva – e o mundo objetivo uma oposição que era mediada pelo espaço da política. No entanto, na pós-modernidade o conceito de sociedade civil foi absorvido pelo mercado e não pelo Estado. Na verdade, a pós-modernidade não mais produziu uma identidade coletiva; o sentido dessa identidade não foi mais percebido nem pela cultura e nem por uma ideologia de legitimação associada ao poder e a uma comunidade política. Para a pós-modernidade, a ordem social implicou a superação de uma dinâmica de oposição de classes mediante a criação de uma nova estrutura de castas: de um lado, os incluídos, de outro, os excluídos de todos os tipos. A interpretação absoluta e universal da realidade acabou substituída por uma grande diversidade de discursos. Foi o fim dos grandes relatos e o surgimento de uma sociedade atomizada e de uma nova classe dirigente, com clara visão tecnocrática e funcional sobre as orientações políticas e econômicas. A tendência atual ao oligopólio sobre a produção de bens culturais induz a uma recepção passiva de seus consumidores, não se arriscando os produtores de cultura ao terreno da inovação, mas trafegando nas águas tranqüilas e tépidas dos best-sellers. Transformada em mercadoria, a cultura confunde-se com a publicidade.

A consolidação da hegemonia capitalista do Pós-Guerra Fria definiu claramente o tom hegemônico contemporâneo. A mobilidade do capital e a emergência de um mercado global criaram uma nova elite que controla os fluxos do capital financeiro e das informações, atuando predominantemente em redes e clusters e reduzindo progressivamente seus vínculos com as comunidades de origem. Como conseqüência, enquanto o mercado internacional unificou-se, a autoridade estatal enfraqueceu-se. Com isso, acentuou-se a fragmentação, ressurgiu o tribalismo e acelerou-se a perda do monopólio legítimo da violência pelo Estado, que agora compete com grupos armados e com o crime organizado em vários lugares do globo.

Não obstante, o discurso hegemônico neoliberal do Pós-Guerra Fria, que garantia aos grandes países da periferia uma nova era de prosperidade pelas políticas de "abrir, privatizar e estabilizar" – receituário batizado na América Latina de "consenso de Washington" – mostrou-se ineficaz. Os resultados foram, em geral, decepcionantes e têm exigido orçamentos públicos muito apertados, justamente no momento em que os efeitos sociais perversos da privatização aparecem com toda força, reduzindo ainda mais a legitimidade dos governos e das classes políticas.

O clima depressivo que se seguiu surgiu acompanhado de um sentimento de impotência para alterar os impasses contemporâneos, submetidos às forças obscuras do mercado, à competição selvagem, à convulsão das bolsas de valores e à volatilidade brutal dos fluxos financeiros. Ocorreu, então, um estranho paradoxo. Por um lado, qualquer limite imposto à liberdade individual passou a ser sentido como o primeiro passo para o totalitarismo, afirmando o individualismo como o único caminho para a inclusão e o sucesso. Por outro, "lei" e "ordem" surgem como bandeira dominante para atender a esse sentimento de insegurança geral e criar culpados, gerando programas radicais como o controle rígido de imigração e a "tolerância zero" contra a criminalidade.

A ansiedade também está presente diante das transformações no mundo do trabalho, a situação precária de emprego, a "flexibilização" e as constantes modificações dos requisitos e capacitações para a empregabilidade. Junto com a incerteza, têm crescido o medo e a intolerância. O outro transforma-se no potencial inimigo que nos pode fazer mal, ressurgindo violentas as raízes da intolerância – inclusive a religiosa –, acentuada desde os atentados terroristas aos Estados Unidos e sua reação como potência hegemônica com uma nova política de segurança global.

A auto-exaltação desmesurada da individualidade, em um mundo que foi transformado pela mídia em espetáculo, implicou crescente volatilização da solidariedade. O desempenho individual passou a constituir o único critério de sucesso, restando para as subjetividades os pequenos pactos em torno da possibilidade de extração do prazer através do outro, o que constitui um cenário ideal para a explosão da violência. O novo modo de regulação social passou a ser a produção de informação e não de significados comuns compartilhados com a sociedade. O resultado disso é a tendência de manipular os atores sociais pela mobilização imediata com projetos e palavras de ordem e não pela argumentação ou justificação.

A crescente influência das lógicas organizacionais faz com que o processo simbólico deixe de ser referência central, dando lugar ao economicismo e ao tecnocratismo. A crise da civilidade e a intensificação do narcisismo levam, assim, a uma emancipação do indivíduo de todo enquadramento normativo, aversão à esfera pública e sua conseqüente degradação. A liberdade passa a ser percebida como possível unicamente na esfera privada e gera a progressiva privatização da cidadania. Agora, num mundo totalmente estruturado em redes (networks) pelas tecnologias da informação, a vida social contemporânea vem a ser composta por uma infinidade de encontros e conexões temporários. O "projeto" é a ocasião única e o pretexto da conexão; os indivíduos que não têm projetos e não exploram as conexões da rede estão ameaçados de exclusão permanente, já que a metáfora da rede torna-se progressivamente a nova representação da sociedade.

É a emergência de um mundo da interconexão: "estar ou não conectado", eis a questão à qual tendem a resumir-se a inclusão e a exclusão. O mundo da interconexão dilui a distinção entre a vida privada e a vida profissional. Nessas sociedades baseadas no conhecimento, a vigilância torna-se o modo básico de governança. As observações, registros e controles dos nossos passos e rastros são classificados por categorias relacionadas a conceitos de risco ou oportunidade; os códigos admitem ou excluem, conferem crédito ou desacreditam, classificam e discriminam construindo perfis de risco; e os olhos eletrônicos estão em toda parte, sem autorização – e muitas vezes sem a percepção – do cidadão controlado. Numa versão atual simultânea do Big brother de Orwell e do Panopticon de Bentham, poder e conhecimento realimentam-se em um processo circular. A "máquina de visão" deixou de ser um instrumento militar e passou a ser uma tecnologia civil banal; e o "grande olho" se torna uma arma do desejo, insaciável por mais informação.

Na sociedade contemporânea em que reinam as tecnologias da informação, a informática tenta substituir a capacidade de julgamento humano. Diferentemente das linguagens naturais, mediações culturais da humanidade através da sua história, essa nova linguagem universal não é o produto de uma experiência do mundo que foi colocada à disposição de todos através do tempo; é a linguagem da impaciência imediata e do arbitrário sem limites, do imaginário tecnológico expresso no "poder de fazer" e na urgência permanente do "tudo é possível". A questão dos valores, no entanto, permanece no coração do problema de sobrevivência da humanidade no mundo. Essa questão vital, que não é operacional, exige a superação de uma visão ativista de gestão, que troca o "ser" pelo "fazer".

Na teoria política clássica, incorporada ao inconsciente coletivo das sociedades, o espaço público era equivalente ao espaço da liberdade dos cidadãos, no qual estes exerciam sua capacidade de participação crítica na gestão dos assuntos comuns, sob o princípio da deliberação; um espaço que se opunha, portanto, ao espaço privado regido pela dominação do poder. Hoje, as corporações apropriaram-se do espaço público e o transformaram em espaço publicitário; os cidadãos que o freqüentam não o fazem mais na qualidade de cidadãos, mas como consumidores de informação. Grandes avenidas de nossas metrópoles, e boa parte de suas ruas, transformaram-se em um imenso espaço de outdoors e placas de anúncios ou logomarcas.

A paisagem pública urbana é agora um material midiático privado, criando desejos e tratando o cidadão como mero consumidor. A televisão pública só se consegue manter abrindo espaço para a propaganda e o patrocínio de forma equivalente ao setor privado. O universo corporativo não precisa mais se opor ao espaço e à sociedade, como acontecia com a arquitetura modernista; ele se apropriou do controle direto do espaço social circundante. Sociedade civil e política, e mesmo a vida privada, acabaram por ser internalizados no sistema corporativo, que tende a substituir a própria sociedade e suas formas de regulação. O desenvolvimento de uma extraordinária competência do "agir técnico" acabou correspondendo ao crescimento paralelo de nossa impotência em resolver politicamente os problemas coletivos da humanidade, tais como a desigualdade, a miséria e a degradação do meio ambiente.

As novas competências de participação política redefinem-se como um tipo de solidariedade identificada aos interesses de organizações particulares, como o ato de pertencer a uma organização não governamental – ONG – ou associação. Esses grupos de interesse não se dirigem mais à sociedade como um todo, mas a diversas instâncias de decisão especializadas; e acabam sempre levando a demandas de intervenção tecnoburocráticas. Os novos movimentos sociais – e suas reivindicações – são centrados em uma problemática de identidade e afirmação, na busca de reconhecimento da sua diferença e autonomia. O meio no qual eles evoluem não é mais o espaço público político e institucional, mas aquele formado por organizações especializadas com estratégias autônomas. Nenhum desses movimentos tem como objetivo elaborar uma nova concepção de sociedade, de existência coletiva das suas finalidades e limites. Com isso, os espaços sociais convertem-se em auto-exibição infinitamente móvel de produções midiáticas, comunicacionais e publicitárias que se transformam na própria realidade social, confundindo-se com ela.

As ciências humanas e sociais reconvertem-se, em grande medida, na gestão do social, abandonando o intento de uma compreensão global da sociedade e da história em favor da realização de pesquisas circunscritas e focalizadas. Entre as tensões contemporâneas, surge a ilusão de que se possa pretender controlar tudo: um processo físico, um comportamento biológico, uma ação social. A informática transforma-se em instrumento e testemunha da passagem de uma sociedade industrial de produção para uma sociedade de controle direto das operações e das ações pela informação, obedecendo ao princípio da eficiência. No entanto, fica sem resposta a questão fundamental: será possível, a partir de agora, reconstruir uma experiência do mundo e de sentido que não seja apenas mediada pela tela do computador?

Em apenas uma década, a rede de internet transformou a lógica mundial da comunicação e da produção. Pela primeira vez na história, quase um bilhão de pessoas – e suas instituições – comunicam-se entre si como nós de uma mesma rede quase transparente; e talvez sejam dois bilhões em 2010. Esse suporte tecnológico sobre o qual se organizou a chamada Era da Informação veio ao encontro das exigências da economia em busca de flexibilidade e dos indivíduos ansiosos por comunicação aberta. Trata-se de uma tecnologia maleável, alterável profundamente pela prática social.

Transformando-se rapidamente em instrumento vital para a produção, a segurança e a comunicação mundiais, a Internet está hoje no fulcro dos interesses econômicos e psicossociais; isso a coloca cada vez mais exposta aos lobbies de provedores, grupos internacionais de mídias, grandes corporações e governos, cada vez mais atentos e incomodados com a pretensa autonomia desse veículo, ainda fora de controle, que abre espaços inusitados a pessoas e idéias. Nessa sociedade em rede, no entanto, os grandes tendem a dominar os novos contratos e criam as regras para a inserção dos pequenos no mundo da interconexão. A nova forma de exclusão significa recusar-se a aceitá-las.

Há alguma possibilidade de uma ferramenta com essa importância estratégica e operacional vir a favorecer um grande processo de inclusão social dos segmentos da sociedade cada vez mais marginalizados pelo processo de globalização da produção? Ou ela transformar-se-á rapidamente em mais uma força de apartheid, uma espécie de "fosso digital", agora tendo como referência a qualidade de inserção dos indivíduos e dos países na rede? Essa questão central foi tema de análise e desavença profunda no recente Encontro Mundial sobre a Sociedade da Informação, em Genebra. O resultado não foi nada animador, colocando mais uma vez em lados opostos ricos e pobres e gerando uma dissidência encabeçada por Brasil, China, Índia e África do Sul, que pressionaram para que o controle da internet saia das mãos de uma entidade privada norte-americana e passe para um grupo intergovernamental sediado na Organização das Nações Unidas – ONU.

Não há dúvida de que a internet encerra enorme potencial para a expressão dos direitos dos cidadãos e comunicação de valores, mas contém graves riscos. A qualificação do trabalhador é cada vez mais importante numa economia que depende da capacidade de descobrir, processar e aplicar informações on-line. Só que o profissional talentoso é cada vez mais descartável. O que leva à questão crítica de que qualificação é condição cada vez mais necessária – mas cada vez menos suficiente – para a nova empregabilidade. No plano da liberdade individual, na medida em que mais e mais trabalhadores dependem da interconexão por computador, as grandes corporações decidiram que têm o direito de monitorar suas redes, a maioria delas já exercendo– de forma regular – alguma forma de vigilância. Ao mesmo tempo, quase todos os websites coletam dados pessoais de seus usuários e os processam de acordo com interesses comerciais ou particulares. Empresas de cartão de crédito e governos, idem. Com essa tendência orwelliana de vigilância, não haverá nenhum canto em que possamos proteger nossa privacidade. Para controlar alguns criminosos e sonegadores, invade-se a intimidade de todos. Governos sentem-se em pleno direito de desconfiar de seus cidadãos. Mas os cidadãos não têm boas razões para desconfiar de seus governos?

Michel Maille (2004) lembra que, teoricamente, aquilo que o espaço público não pode mais fazer, o espaço da comunicação em rede realiza-o. Nenhum limite territorial lhe pode ser imposto; de certa forma o cidadão encaixa-se em uma dimensão global. O que Rousseau (apud Maille, 2004) não pôde colocar em prática – reunir para um debate todos os cidadãos – a tecnologia atual permitiria realizar. Essa tecnologia, no entanto, abole também o tempo; tudo agora se dá instantaneamente e pode ser imediatamente "discutido" ou votado. O espaço para a reflexão e o amadurecimento desaparece; os ritmos processuais são suprimidos. A visão otimista e universalista do "todos em rede" precisa também ser fortemente nuançada. O acesso a essa rede e ao computador nos países ricos faz parte dos equipamentos domésticos corriqueiros, mas nas periferias as fronteiras sociais ainda são determinantes. O que nos remete à questão de como a democracia pode ser aprimorada com o cidadão virtual, para além da óbvia vantagem da socialização da ação das ONGs e dos movimentos formadores da contra-opinião.

A decisão coletiva mediante a consulta generalizada dos cidadãos parece, com efeito, realizar o sonho impossível de transformar imensos países em pequenas aldeias suíças com plebiscito em praça pública, agora em formato eletrônico. Reunir instantaneamente milhões de cidadãos sem movimentá-los, solicitar suas opiniões e, em seguida, fazê-los decidir plebiscitariamente seria a viabilização de uma democracia direta, rápida e eficaz, podendo dar a ilusão de o cidadão virtual voltar a ser o agente ativo e presente da democracia. Entretanto, enormes dificuldades aparecem. O primeiro grande problema conceitual resgatado por Maille é o paradoxo de Condorcet, que tem mais de dois séculos: a soma das vontades individuais não produz necessariamente a melhor e mais racional solução para o grupo. Essa dificuldade só será ampliada com voto eletrônico do cidadão virtual. A legitimidade da decisão democrática está em que não somente ela venha de todos em processo aberto, mas principalmente que vise o "bem comum". O bem comum não está na simples adição dos pontos de vistas individuais. É importante lembrar os longos períodos de debates e reflexões que ocorreram na Suíça entre os plebiscitos que deliberaram sobre o uso da energia nuclear na geração de eletricidade. No entanto, as novas tecnologias isolam e reforçam a dispersão da decisão que cada um poderá tomar na intimidade da sua "mesa de computador". O cerimonial da democracia exige o deslocamento para o espaço público, para o "fora de casa", ambiente ideal para construir uma decisão coletiva que exige outras lógicas. Deslocar-se exige um esforço que dá legitimidade ao ato de votar, abrindo um espaço para a reflexão que socializa o ato. As manipulações midiáticas e as informações de último minuto difíceis de verificar estarão muito mais presentes e perturbando a tomada de decisão. O liberalismo absoluto de uma rede na qual tudo pode ser dito e exposto, segundo Maille,

...fará com que a arena democrática pareça um livre galinheiro onde rondam raposas livres. Sabe-se que, nessa hipótese, são os elos frágeis que se quebram, ou seja, os cidadãos menos advertidos ou os mais confiantes. Não se pode esquecer que a ausência de regulação de uma rede como a Internet permite, em nome da liberdade de circulação de idéias, manipular de maneira forte a informação, desnaturando-a. (2004, p.23-24)

Essa advertência tem sido, aliás, feita com freqüência na Assembléia do Conselho da Europa.

Outra questão muito relevante é a cada vez mais delicada tarefa de aferição da fronteira entre as esferas pública e privada, indispensável para localizar o cidadão e constituir a cidadania. Na sociedade virtual essa fronteira desloca-se e se embaralha, tornando-se permeável e problemática. Para que o cidadão apareça, é preciso romper as amarras que o ligam ao espaço privado, o que parece pouco provável de conseguir pela intermediação eletrônica, instrumento pelo qual ele opera o correio eletrônico, compra alimento, solicita lavagem de roupa e vota! A confusão que se estabelece não parece favorável à democracia e ao cidadão, agora virtual e ainda mais isolado em sua solidão de um entre milhões de outros virtuais. O elo social e cultural que liga esse novo indivíduo virtual à sua comunidade ainda está presente, mas o elo político exige uma troca real entre homens que se reconhecem como livres e iguais. A cidadania virtual não se pode reduzir a uma fatalidade imposta pela técnica, tem que ser um projeto político e social.

Recebido em: outubro 2004

Aprovado para publicação em: outubro 2004

  • DUPAS, G. Atores e poderes na nova ordem global São Paulo: Paz e Terra. (no prelo)
  • __________. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e o futuro do capitalismo. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. [ed. rev. e ampl.].
  • __________. Ética e poder na sociedade da informação. 2.ed. São Paulo: Unesp, 2001 [ed. rev. e ampl.].
  • __________. Hegemonia, estado e governabilidade: perplexidades e alternativas no centro e na periferia. São Paulo: Senac, 2002.
  • __________. Tensões contemporâneas entre o público e o privado São Paulo: Paz e Terra. 2003.
  • MAILLE, M. O Cidadão virtual. Cadernos Adenauer, v.4, n.6, p.13-29, 2004.
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Encontro Mundial sobre a Sociedade da Informação. Genebra, 10 e 12 dez.2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 2005

Histórico

  • Aceito
    Out 2004
  • Recebido
    Out 2004
Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadpesq@fcc.org.br