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Resenhas

Resenhas

O ENSINO DE OFÍCIOS ARTESANAIS E MANUFATUREIROS NO BRASIL ESCRAVOCRATA (190p.)

O ENSINO DE OFÍCIOS NOS PRIMÓRDIOS DA INDUSTRIALIZAÇÃO (243p.)

O ENSINO PROFISSIONAL NA IRRADIAÇÃO DO INDUSTRIALISMO (269p.)

Luiz Antônio Cunha

São Paulo, Brasília: Editora da Unesp, Flacso, 2000

Celso João FerrettiI; João dos Reis Silva JúniorII

IPrograma de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Fundação Carlos Chagas

IIPrograma de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Celso João Ferretti cferretti@fcc.org.brv

A trilogia sobre o ensino profissionalizante no Brasil mostra, dentre outras leituras possíveis do trabalho de Luiz Antônio Cunha a partir de perspectiva histórica, a produção da dualidade entre a educação propedêutica e a educação profissional e a sua relação com as transformações históricas do trabalho humano no país e sua representação social, que se expressa, no presente, nas reformas educacionais do governo militar autoritário e nas do hiperpresidencialismo consolidado com o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Essa parece ser a tese defendida na consistente coletânea dos três volumes, publicada pela editora Unesp, com apoio da Orealc, Ministério do Trabalho e financiamento do FAT.

A dualidade da educação propedêutica e profissional pode ser entendida por meio de uma infinidade de itinerários, especialmente aqueles que articulam o processo histórico de sua constituição, as relações sociais contemporâneas e a especificidade do caso brasileiro, tendo o contexto mais amplo como pano de fundo. Cabe destacar a importância de estudos e pesquisas que atualmente vêm se realizando sobre o tema, uma vez que este – ao lado de outros temas, como educação de jovens e adultos, educação especial etc. –, como destaca o autor, tem sido em geral considerado secundário, quando comparado com temas relacionados com a formação das elites brasileiras.

Em nossa leitura do relevante trabalho, assumimos os supostos epigrafados neste texto para o entendimento da dualidade entre o propedêutico e o profissional na educação brasileira, assumimos uma postura teórico-metodológica que implica considerar o tema não somente no momento atual, mas sobretudo mediante sua construção histórica. Isso remete, de pronto, ainda que de forma breve, a compreender as origens e as transformações da educação profissional e sua relação com a educação de natureza propedêutica, o que o autor faz por meio de consistente pesquisa histórica e historiográfica.

A dualidade em tela no caso brasileiro, como se pode ler na trilogia, carrega consigo pelo menos três especificidades que se projetam nos períodos tratados nos diferentes volumes, as quais ajudam a elaborar a hipótese acerca da dualidade no presente. A primeira refere-se à representação social do trabalho manual e intelectual que é produzida com o final da escravidão; a segunda refere-se ao processo de industrialização do país e à peculiaridade da formação de nossa força de trabalho, o que leva à terceira especificidade: as diferenças entre educação artesanal, manufatureira e industrial. Senão vejamos.

Com o término da escravidão do ponto de vista legal, as representações sociais sobre o trabalho livre alteram-se no país e acentuam-se as diferenças entre trabalho manual e intelectual, uma vez que o primeiro passa a ser identificado com os africanos e seus descendentes, enquanto o segundo, com trabalhadores brancos. Tal processo social desenvolve-se, sedimenta-se e consolida as diferenças sociais entre brancos e negros, sendo que, dessa forma, a educação artesanal acaba por ficar predominantemente com os afro-brasileiros e a propedêutica, com os de origem branca.

Por outro lado, as características das três modalidades de educação (artesanal, manufatureira e industrial) são distintas. Enquanto na artesanal o processo é assistemático, propicia autonomia ao mestre e ao aprendiz, e sua relação com o trabalho liga-se às corporações de ofício no controle político-formal do mercado de trabalho, a educação industrial assemelha-se ao processo industrial de trabalho e tende a reproduzi-lo com intensa divisão do trabalho, separação entre concepção e execução, bem como acentuado controle. Já a educação manufatureira encontra-se a meio caminho entre os dois casos, considerados como extremos.

No Brasil, segundo o autor, ao contrário do que aconteceu nos países europeus, a manufatura não se origina linearmente do regime artesanal e o mesmo se pode dizer do setor manufatureiro em relação ao industrial. Aqui reside uma característica específica apontada por Cunha sobre as transformações na organização do trabalho e sobre a produção da dualidade entre educação profissional e propedêutica. Dessa forma, ao pensar nas análises feitas por Marx em O Capital, acerca da expropriação do saber sobre o trabalho nas referidas passagens de regime de trabalho e suas conseqüências para a esfera educacional, o autor nos alerta sobre o cuidado com que devemos proceder. Enquanto no Brasil a manufatura começa a florescer dada a decadência do trabalho artesanal e escravo, na Europa, o trabalho industrial já está consolidado e a manufatura não mais predomina. Aqui importou-se a manufatura por meio dos produtos, dos equipamentos e, principalmente, da mão-de-obra qualificada dos imigrantes, especialmente os de origem italiana, ao mesmo tempo em que se buscavam produzir uma nova força de trabalho e um novo ser social, condizente com a formação econômico-social que se iniciava com a manufatura e a indústria orientada pelo modelo de substituição de importações que se anunciava.

As reflexões do autor levam-nos a olhar os modelos de educação profissional que tivemos no país, num passado mais remoto e na atualidade, buscando maior articulação. Segundo Cunha, ainda que na época do Império, dadas as características de nossa economia, a educação agrícola tenha predominado quantitativa e qualitativamente, a educação artesanal, manufatureira e industrial é que se tornam paradigma para a educação profissional, e, conseqüentemente, paradigma para a produção histórico-social da dualidade entre a educação profissional e a educação propedêutica. Para o autor, tal hipótese pode ser mais bem entendida e produzida quando se estuda a educação artesanal do início do século XX (1909), nos centros de formação profissional do Senai (1942) e nas escolas técnicas federais, também criadas em 1942. Retomando os supostos anunciados no início, produzidos por Lefèbvre (1981): "Para quem não analisa, o passado vem, muitas vezes, se perder, se mostrar num presente inteiramente presente e aparentemente dado, ou em um bloco anacrônico e fora de uso. Daí o caráter, ao mesmo tempo difícil e recente da sociologia rural [e outras], ciência do atual que não pode prescindir da história, pois aqui, como lá e acolá, o histórico persiste e age sobre o atual".

Pode-se, por outro lado, afirmar com Cunha (p.4), ancorado em Shaf, no caso da educação profissional e sua historicidade, que "essa projeção pode ser apontada, especialmente pelos seus efeitos profundos sobre todo o sistema educacional na forma decorrente da lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1º e 2º graus (Lei n. 5.692/71) e na criação do sistema paralelo de educação profissional (LDB/96 e Decreto n. 2.206/97)".

O dualismo dessas modalidades de educação no Brasil persistirá nos primórdios da industrialização brasileira, porém sob nova forma fenomênica, isto é, a educação artesanal estatal, para os descendentes de escravos e os socialmente excluídos, e as instituições privadas com a função de formar os brancos bem situados dentre os vários segmentos sociais de então. Segundo o autor, esse é o legado do Império à República. Para Cunha, a República resultou da aliança de liberais, positivistas e monarquistas ressentidos com os rumos do Império, e a primeira Constituição Federal Republicana de 1891 refletiu a referida aliança, especialmente, no que interessa destacar, o capítulo sobre a educação. Dentre as muitas influências podemos destacar a descentralização e secularização do ensino e a extinção do privilégio nobiliárquico de nascimento, como conseqüência. Conforme Cunha, tornou-se garantido o livre exercício de qualquer profissão, o que significou um duro golpe no corporativismo dos profissionais liberais e um relevante fator para a reconfiguração do mercado de trabalho, com expressão na educação profissional. No entanto, nos primeiros trinta anos do período republicano, segundo o autor, "três processos sociais e econômicos combinaram-se para a estrutura social, notadamente no Estado de São Paulo, com fortes repercussões para a questão da educação, até mesmo para a educação profissional: a imigração estrangeira, a urbanização e a industrialização. Decorrentes desses processos e reagindo sobre ele, os movimentos sociais e sindicais urbanos abriram uma nova fase na história do país" (p.7).

Tais movimentos deram início à representação da classe trabalhadora no Brasil com muitos resultados positivos, ainda que por meio de uma revolução passiva – isto é, pelo alto –, tanto no que se relaciona à esfera educacional quanto nas relações trabalhistas entre capital e trabalho. No entanto, segundo o que se lê no texto, nos primórdios da industrialização, tais movimentos foram violentamente reprimidos pelo governo em favor da burguesia industrial, e a representação política dos trabalhadores tornou-se artificial porque produzida de forma populista na era Vargas. Talvez resida aí o embrião de um Estado corporativo e populista, que buscará por diversos meios, em particular pela educação propedêutica e profissional, alinhavar uma subordinação pacífica dos trabalhadores aos empresários. Hipótese provável, tal como propõe Cunha ao analisar a ideologia da burguesia como uma bricolage política do industrialismo e dos valores sobre o trabalho redentor, como propunha a maçonaria. Tais ideologias irão orientar Nilo Peçanha na criação do ensino, em particular na sua modalidade profissionalizante, produzindo sob diferente forma histórica a mesma dualidade educacional do período escravocrata, afirma o autor sobre o industrialismo: "Mesmo com a intensificação dos conflitos sociais nos primeiros anos do século XX, os industrialistas diziam que o Estado deveria cogitar do ensino obrigatório antes mesmo de instituir leis sociais. Ao lado do esperado efeito moralizador das classes pobres, o ensino profissional era visto como possuidor de outras virtualidades corretivas. Era o que defendia João Pinheiro, importante líder industrialista, em 1906, quando presidente do Estado de Minas Gerais, ao propor a criação desse ramo do ensino para combater o bacharelismo que estaria grassando entre as camadas médias" (p.15-16).

E, por outro lado, João Luís Alves, então ministro da Justiça de Nilo Peçanha, no início do século XX, discursava, como relata Cunha, na Loja Maçônica "Belo Horizonte", mostrando de forma distinta sua posição quanto às relações entre a educação, de um lado, e às relações entre capital e trabalho, de outro: "dizia ele [João Luís Alves] que o antagonismo entre capital e trabalho – que levava a uma verdadeira "guerra intestina" – corresponde à fragmentação do corpo social, a uma cisão da cabeça (o capital) e dos braços (o trabalho). Essa cisão era atribuída por ele mais à incapacidade política, à incúria social e, sobretudo, ao egoísmo dos patrões do que à exigência dos trabalhadores. É esse antagonismo que a maçonaria deveria combater, pelas armas da razão, pela educação popular, pela interferência nos negócios públicos e pela propaganda do ideal de solidariedade entre os homens. A educação assumia especial importância nessa proposta, pois ela poderia defender os operários contra as seduções da utopia anarquista" (p.16-17).

Dessa articulação de valores assentada no legado do Império à República, sobre a representação social do trabalho manual e intelectual nos primórdios da industrialização, foi produzida a dualidade entre o ensino propedêutico e o ensino profissionalizante, reforçando as divisões sociais no início do século, que assumirão formas distintas na Irradiação do Industrialismo.

No terceiro volume da trilogia, Cunha, ao tratar do ensino profissional industrial no século XX, quando se consolida a industrialização brasileira, desenvolve a tese segundo a qual essa modalidade de ensino foi demarcada pelo corporativismo, entendido como expressão da articulação entre interesses públicos e privados no contexto do Estado Novo, que assumiu o papel de promotor do desenvolvimento econômico.

De acordo com o autor, essa forma de articulação instituiu empresários e trabalhadores como atores políticos pela via de sua interlocução com o Estado, mas de forma desigual, visto que os primeiros fizeram valer seus interesses não apenas pela associação com a esfera estatal, mas também por meio de federações e confederações não permeadas pela influência oficial, enquanto os segundos só foram incluídos na estrutura corporativa à custa da destruição de suas associações autônomas. Assim, não obstante a ideologia que recobriu essa espécie de articulação – a da colaboração entre as classes sociais – o que prevaleceu foi a negociação privilegiada entre o empresariado e o Estado com a exclusão dos trabalhadores.

Para Cunha, essa estrutura corporativa não apenas foi uma das determinações do desenho assumido pelo ensino industrial na época, como também sobreviveu a Vargas e se fez presente nas décadas posteriores, tanto na definição das políticas econômicas quanto nas educacionais. Isso não impede que tenha sido posta em questão pelo aumento da complexidade da sociedade brasileira, resultante do crescimento industrial que ela própria ajudou a criar, complexidade essa que estimula "o surgimento de uma teia de organizações que [passam] a articular e dar identidade coletiva aos agentes sociais que moldam seu comportamento e veiculam suas demandas fora do antigo encapsulamento corporativo" (p.213). Esse questionamento, no entanto, não erodiu o corporativismo, antes lhe conferiu novas formas pelas quais, não obstante o discurso ideológico de defesa do bem-estar comum, o que se pretendeu, no fundo, foi a preservação de interesses de grupos, inclusive os de funcionários públicos, cuja sindicalização, proibida pelo Estado Novo, foi autorizada pela Constituição de 1988. No entanto, como afirma Cunha, as proposições educacionais do governo nos anos de 1990, especialmente no que concerne ao ensino profissional, representam um abalo na estrutura corporativista que articulava essa modalidade de ensino até então, eventual projeção do que fizeram os positivistas na Constituição Federal Republicana de 1891.

Partindo dessa tese, original no campo das análises sobre o ensino profissional brasileiro, o autor desenvolve o texto em seis capítulos, traçando inicialmente um panorama da instituição do ensino profissional, enfatizando a passagem do século XIX para o século XX e, de modo especial, a política do Estado Novo. Historia, nesse contexto, a criação do Senai e acompanha suas transformações até o final do século. Desenvolve processo semelhante em relação ao ensino técnico industrial, privilegiando suas relações com o Senai e com o ensino secundário. Retoma e amplia suas contundentes análises anteriores sobre o que denomina aventura do governo federal ao instituir, por intermédio da Lei 5.692/71, o 2º grau compulsoriamente profissionalizante, assim como sobre os desdobramentos que se seguiram à sua implantação para, no capítulo final, abordar a situação do ensino profissional nos anos 90, particularmente no que concerne às medidas tomadas pelo MEC e pelo MTb nos dois mandatos do governo Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que fica clara a intensificação da dualidade entre as modalidades educacionais em pauta. A LDB/96 e o Decreto-Lei 2.206/97, articulados, tornam independentes a educação propedêutica e profissional, além de organizar esta última em módulos e dividi-la nos níveis básico, técnico e tecnológico, impossibilitando, na prática, a articulação com o ensino de formação geral. Desse modo destinam, de fato, a educação profissional para os trabalhadores e a propedêutica para outros extratos sociais mais abastados, acentuando ainda mais a exclusão escolar e social. Ao examiná-las, Cunha destaca as profundas transformações que implicam, seja para o ensino profissional desenvolvido pela rede pública de ensino, seja para o Senai, contexto educacional conflitante, cujas principais características, nas suas próprias palavras, são: "a definição do estatuto público das instituições educacionais não como sinônimo de estatal, mas, de preferência, privado; a prevalência do mercado como definidor imediato da demanda e do conteúdo dos cursos, assim como de sua avaliação; o custeio do ensino pelos interessados imediatos, sejam entidades, empresas ou os próprios cursistas/alunos; a fragmentação dos currículos, de modo a baratear o atendimento da demanda, que se supõe igualmente fragmentada; o atendimento maciço, particularmente pelas instituições mantidas pelo Estado; e, finalmente, como conseqüência disso tudo, a recomposição da dualidade da estrutura do campo, que esteve borrada pelas políticas educacionais populistas e até mesmo dos governos militares" (p. 16).

A análise desenvolvida por Cunha, embora não elimine as determinações econômicas na definição das políticas educacionais, não lhes confere, também, o estatuto de ordenadoras de suas considerações. Seu olhar é orientado principalmente pelo exame da "lógica interna às políticas educacionais, explicada por suas implicações ideológicas e pelas disputas que se desenvolvem e se desenvolveram [no] campo propriamente educacional" (p. 16).

Afasta-se, com isso, das análises que estabelecem relações diretas entre o setor produtivo e as reformas educacionais, colocando ênfase nas mediações político-ideológicas que fazem com que as reformas, ainda que propostas com um certo sentido e intenção, nem sempre assumam as dimensões e características previstas ou desejadas por seus formuladores. A análise fica, com isso, enriquecida.

No entanto, é necessário atentar para as distorções que podem ocorrer nesse tipo de enfoque, nas quais, deve-se afirmar, Cunha não resvala. Tais distorções, a pretexto de privilegiar as análises especificamente educacionais, tendem a construir uma visão encapsulada da instituição escolar e a supor que aquelas que procuram estabelecer relações entre o sistema educacional e o produtivo são, por isso, economicistas.

João dos Reis Silva Júnior

jrjunior@exatas.puesp.br

REPROVAÇÃO ESCOLAR: RENÚNCIA À EDUCAÇÃO

Vitor Henrique Paro

São Paulo: Xamã, 2001, 167p.

José Antonio Có Onça

Faculdade de Educação da USP, Sociologia da Educação, Faculdade Mozarteum de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência José Antonio Có Onça joseonca@uol.com.br

Ao pesquisar a resistência à aprovação de estudantes no ensino público fundamental, Vitor Paro põe em evidência dois temas interligados cuja atualidade torna precioso esse trabalho: a administração escolar, tomada como conjunto de atividades mediadoras na busca de fins educativos, e a avaliação educativa.

Convicto de que a produção escolar, por sua especificidade – a constituição de sujeitos, de cidadãos –, não pode e não deve ser tratada nos mesmos moldes que a produção mercantil, produtora de objetos, o autor traz para a discussão sólidos e oportunos argumentos em favor dessa tese, no momento em que governos neoliberais tentam impor ao sistema de ensino regras de eficiência e controle praticadas no mercado capitalista.

A defesa de uma administração escolar de visão ampla estende-se também ao conceito de avaliação, apresentada como instrumento para a consecução dos objetivos pedagógicos e nunca como um óbice para que estes sejam atingidos.

A não-reprovação, embora seja uma reivindicação histórica de eminentes educadores, enfrenta séria resistência dos profissionais da educação, por sua implantação mal concretizada na rede municipal em São Paulo (graças à mudança de orientação política) e mal realizada na rede estadual (mais voltada para objetivos "eficientistas" de produtividade do que para objetivos pedagógicos). Esclarecer os motivos dessa resistência e compreender como a estrutura institucional a reforça é o objetivo da pesquisa que ensejou o trabalho.

A obra é dividida em quatro capítulos: no primeiro, o autor descreve a escola pesquisada e seu funcionamento, chamando a atenção para a preocupação da direção com a qualidade de ensino, com a democracia e com o respeito aos alunos. Tais características são importantes para revelar que a distância entre o desejável e o constatado não ocorre por negligência ou qualquer fator negativo que afete particularmente a instituição pesquisada, mas por força de condicionantes sociais, políticos, econômicos e culturais presentes em toda a rede de ensino.

Coerente com a visão ampla de educação, para além da tendência "eficientista" que a caracteriza como mera realização de um produto cujo portador se torna apto para o mercado de trabalho ou para novos patamares escolares, Vitor Paro descreve, no segundo capítulo, a avaliação como processo permanente e necessário à realização da vida humana em sociedade. Ao fazê-lo, distancia-se da visão ingênua do senso comum, que tende a considerá-la como fato periódico e pontual. Dessa forma, o autor abre caminho para perceber o processo de avaliação – e a correção de rumos dele decorrente – como algo dinâmico que requer uma interação dialética permanente entre os sujeitos nele envolvidos. Aliás, é na análise da avaliação específica da prática educativa, na afirmação do aluno como sujeito que o texto extrapola a perspectiva de mera descrição das características de um processo avaliativo e se torna uma reflexão amorosa sobre a formação do ser humano educando.

Apoiando-se em experiências de pioneiros como Dante Moreira Leite e Lauro de Oliveira Lima, o autor revela as tentativas anteriores de implantação da política de não-reprovação como prática didática, cotejando-as com o princípio da seriação, que a essa altura ganha aos olhos do leitor a condição de absurdo incompreensível.

Os argumentos, sempre rigorosos, não conseguem esconder a paixão ao articular o processo avaliativo com a construção da autonomia e do amor-próprio das crianças em formação, especialmente ao considerar o significado desse processo para aquelas das camadas menos favorecidas e para a perpetuação da iniqüidade social.

Fica claro que não se trata apenas de mudar a avaliação, mas de mudar a própria concepção de "educação bancária", nos termos de Paulo Freire, vigente nas escolas brasileiras. Vitor Paro defende com vigor a mudança dessa "escola que não está estruturada para ensinar e promover personalidades, mas para selecionar aqueles que, apesar dela, têm condições de galgar os vários degraus do ensino até chegar à universidade".

A mudança nos conceitos de avaliação torna-se, dessa forma, importante instrumento para a superação do sistema autoritário e credencialista assumido por nossa escola. Tal concepção é apoiada na revitalização das críticas feitas por pensadores como Dante Moreira Leite, Anna Maria Saul, Sandra Zákia de Souza, Lauro de Oliveira Lima, Carlos Cipriano Luckesi e outros, na discussão sobre ciclos, progressão continuada e promoção automática.

A promoção automática como instrumento de manipulação estatística por governantes impopulares, para melhorar resultados e atingir metas de aprovação escolar, transforma um recurso pedagógico de alto valor intrínseco em máscara para uma escola que não cumpre suas funções. O pior dessa prática nefasta é colocar um recurso válido sob suspeição do professorado, dos pais e até dos próprios alunos. Mesmo os depoimentos favoráveis à organização em ciclos sempre se fazem acompanhar de uma adversativa que de algum modo os contradiz, trazendo perplexidade e sentimentos contraditórios dos envolvidos no problema.

Quais são os mecanismos implícitos e explícitos que impedem a plena adesão do professorado a essa idéia? É no terceiro capítulo que Vitor Paro, articulando o trabalho de pesquisa com o estudo da ideologia dominante, faz a anatomia do processo reprovador, buscando compreender as razões pelas quais a reprovação manifesta-se enraizada em nosso sistema de ensino, mesmo nas escolas em que corpo docente e direção se mostram a priori favoráveis aos ciclos.

No minucioso trabalho de entrevista com cada professor envolvido, no acompanhamento dos conselhos de classe, o autor vai desvelando as contradições vividas pelos educadores e como a teia de justificativas e preconceitos sobrepuja as razões lógicas e pedagógicas que esses mesmos professores haviam dito compreender e defender quando se apresentaram como favoráveis aos ciclos. Ainda que tais educadores sejam sérios e dedicados, são prisioneiros de formulações há muito marcadas em suas mentes, o que lhes traz conflitos emocionais.

A sensibilidade com que alguns desses conflitos são narrados mexe com os sentimentos do leitor, dando um tom comovente à leitura. As histórias se sucedem, revelando frustrações de alunos, pais, professores, diretores e até do leitor, que já não tem como se isentar. Por que há resistência à aprovação? Quais são as razões que levam pessoas e grupos a reagirem negativamente a essa intenção?

Ainda que ciente das limitações da pesquisa, Vitor procura, com base nos dados coletados, estabelecer quais os fatores que influenciam a resistência à aprovação, estabelecendo quatro ordens de determinantes: os socioculturais, que dizem respeito aos valores, crenças e costumes que impregnam as ações, hábitos e concepções das pessoas envolvidas no processo de ensino; os psicobiográficos, que se referem à configuração da personalidade dos agentes envolvidos e principalmente às marcas deixadas nessa personalidade pelas experiências pessoais anteriores, relacionadas à avaliação; os institucionais, relativos às condições materiais de funcionamento da própria instituição escolar, originárias tanto da realidade imediata quanto do sistema que mantém a unidade de ensino; e os didático-pedagógicos, relacionados principalmente às dificuldades na realização do aprendizado, advindas de procedimentos e concepções de ensino adotados na tarefa de levar os educandos a se dedicarem ao estudo. A análise de cada um desses determinantes vai expondo a cultura e a realidade atual da escola; calcada nas falas dos professores, pais e dirigentes, a análise revela como os mecanismos de socialização, marcados por relações de exploração e desigualdade econômica, reproduzem necessariamente a dominação que permeia tais relações: "nessa sociedade, em que as pessoas valem não pelo que são, mas pelo (poder econômico) que têm, a dominação não se restringe às relações de produção, mas se difunde para todos os âmbitos sociais, num padrão que se multiplica em todas as relações da sociedade" (p.75).

À análise dos determinantes sociais segue-se a dos psicobiográficos, cujo foco é a influência da ideologia sobre a biografia. O recurso didático da reprovação, presente no passado dos educadores e pais, aparece legitimado pelo uso e pelas condutas socialmente adquiridas por esses quando estudantes. Dessa forma, sua repetição não é questionada, mas validada pela associação entre educação e punição. Ao rememorar as angústias escolares, como a disciplina rigorosa em excesso, o terror das provas, os entrevistados desnudam a fragilidade das crianças que foram no passado e, paradoxalmente, legitimam com suas práticas atuais os mesmos mecanismos de desconsideração à subjetividade alheia a que foram submetidos.

Os determinantes socioculturais e psicobiográficos atuam em um cenário que pode favorecer a conservação ou a mudança: trata-se das condições materiais e estruturais da escola e da influência que exercem sobre a prática educacional. Vitor Paro sintetiza esses determinantes institucionais em três fatores: a pressão das condições materiais escolares adversas à realização de um bom ensino; a prevalência da reprovação como estruturante do ensino e a ausência de medidas no sistema de ensino que facilitem a aceitação da aprovação. O primeiro desses fatores evidencia-se quando o Estado não o reconhece, costumando responsabilizar os professores pelos insucessos escolares: "...tão mistificadora quanto a atitude de professores de jogar a culpa do fracasso escolar sobre os alunos e suas famílias é a postura que se verifica, hoje, quer na academia, quer no seio do Estado, de apontar a má qualificação do professor como a causadora de todos os males do ensino..." (p. 98-99). Sem negar a necessidade da contínua formação dos professores, mas sem aceitar o jogo de empurra das autoridades, o texto expõe a precariedade das condições de ensino de nossas instituições, tais como o número excessivo de alunos por classe e outras conhecidas mazelas, agravadas por administrações descomprometidas com o ensino público ou preocupadas apenas em apresentar boas estatísticas. A exposição, reforçada pelos depoimentos, demonstra com clareza que a extinção das reprovações não se viabiliza por decreto, mas se insere em um conjunto de reformas necessárias.

Sobre as implicações didático-pedagógicas, os apegos conservadores à reprovação são dissecados e expostos sob os subtítulos "A reprovação como motivação", "Alunos passam sem saber", "Se a vida lá fora reprova...", "A culpa do aluno", mostrando como são enfatizadas estratégias punitivas e de culpabilização dos alunos. A negação da espontaneidade da criança, a negação dos educandos como sujeitos revela-se na preocupação excessiva com o "Silêncio e disciplina". "O ciclo para pobre", "O apego à seriação", "Recuperação", "Auto-avaliação, Autodisciplina, Autoconceito", "O que torna o ensino ruim". Sob cada um desses subtítulos, os determinantes institucionais do apego à reprovação vão sendo visitados e ilustrados com as entrevistas que expõem a sedimentação de conceitos e preconceitos presentes na nossa escola.

Finalmente, no quarto e último capítulo, a administração escolar é reafirmada como conjunto de atividades mediadoras na busca de fins educativos, assim como é reafirmada a especificidade da escola por sua ação educativa de constituição de sujeitos, de cidadãos. Como em outros escritos do mesmo autor, Vitor Paro volta a distinguir os objetivos educativos dos interesses de mercado.

A resistência aos ciclos é com certeza um dos mais graves problemas que teremos de superar para a melhoria da escola pública. Esse estudo, por seu valor científico, mas também, e em grande medida, pela maneira sensível e comovente de conduzir a problemática, é uma grande contribuição para todos que estão empenhados nas mudanças necessárias na educação brasileira e na valorização do ensino público.

Como instrumento de reflexão, principalmente nos cursos de pedagogia, o livro se prestará ao entendimento e à superação da reprovação como prática didática.

O CUIDADO E A FORMAÇÃO MORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Thereza Montenegro

São Paulo: Educ, 2001, 182p.

Valéria Amorim Arantes de Araújo

Departamento de Filosofia e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Valéria Amorim Arantes de Araújo varantes@usp.br

Thereza Montenegro inicia sua obra convidando a refletir sobre dois elementos centrais da educação infantil e da formação das educadoras por ela responsáveis: os atos de cuidar e educar. Antecipadamente, assume o emprego do feminino para referir-se às educadoras infantis, por tratar-se de uma profissão exercida, em sua maioria, por mulheres. Não se pode passar despercebido por esta colocação: criticando as premissas teóricas que concebem o cuidado como função exclusiva das mulheres e/ou como peculiaridade da vida afetiva, a autora situa-se numa ótica contrária à naturalização do cuidado como particularidade de gênero, ou seja, como atributo natural ou inato às mulheres. Assume sua aproximação teórica com Marília Carvalho, que explica o cuidado como prática histórica construída socialmente. A autora estabelece, ao longo de seu trabalho, uma discussão relevante e inacabada sobre cuidado e gênero.

No panorama estudado, a questão que aparece como cerne das discussões diz respeito à formação dos agentes da educação infantil para desempenhar as atividades de cuidado. Partindo da premissa de que tais atividades são de natureza moral, a autora defende a tese de que a educação moral deve ser integrada a um programa de formação para o cuidado. Assim, somado à idéia de que o cuidado é socialmente construído, adota também o conceito de Puig, que o concebe como "parte constitutiva da consciência moral".

Na introdução da obra, Thereza Montenegro caracteriza a trajetória e situação atual dos estabelecimentos destinados às crianças menores de três anos em vários países, focalizando especialmente o Brasil. Essa caracterização é permeada por uma discussão relevante acerca de uma visão historicamente construída e naturalizada no cenário da educação infantil: a cisão entre as atividades de cuidar (com caráter assistencialista) e as atividades de educar (com caráter pedagógico). Argumentando em favor da consolidação das creches como espaço de ambas as atividades – educação e cuidado –, alerta-nos para o fato de que somente em 1993, nas Diretrizes de Política de Educação Infantil, um documento oficial fez menção às creches e pré-escolas como instituições que deveriam desempenhar tais funções.

O primeiro capítulo, que tem como propósito resgatar os sentidos do cuidado na história da educação infantil, está dividido em duas partes:

Na primeira parte a autora apresenta, fundamentando-se especialmente no trabalho de Rosemberg, informações significativas sobre o assunto, extraídas tanto de textos acadêmicos como de legislações. No conjunto destas informações, sinaliza para a utilização do termo guarda, desde o início da existência das creches até meados dos anos 80, para designar o objetivo destas instituições. Para ilustrar, traz a legislação de 1943 (p.35): "...os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitindo às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos no período da amamentação". O caráter assistencialista, marcante na história da educação infantil, é interpretado por alguns autores e autoras como reflexo do conceito da função de guarda, atribuída por tanto tempo a essas instituições. Aponta, ainda, para o fato de que somente a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente o termo guarda foi substituído por proteção, cuidado.

Discorrendo sobre a diversidade de sentidos da palavra cuidado, Montenegro assume a mesma definição de Rosemberg, que concebe o cuidado como o conjunto de atividades que se referem à individualidade da criança, e designa o sentido de atenção às suas necessidades emocionais, respeito a seu ritmo de desenvolvimento e aprendizagem, e às suas diferenças. Sob essa concepção, Thereza critica fortemente as visões que separam a função da creche (cuidado) e da pré-escola (educação), bem como aquelas que atribuem estritamente à família o ato de cuidar (entendido como amparo e assistência), reiterando que ambas as funções (cuidado e educação) devem estar integradas, tanto nas creches como nas pré-escolas.

É dessa forma que a autora, na segunda parte do primeiro capítulo, atenta para a dicotomia razão e emoção e o reflexo das concepções que separam educar de cuidar, sobre o processo de formação das educadoras infantis. Apresenta-nos a idéia de que a cisão entre afetividade e cognição (com suas raízes na filosofia) parece ter contribuído para a naturalização de um ponto de vista que atribui ao âmbito familiar a responsabilidade pelo campo afetivo (cuidado), e ao âmbito institucional a responsabilidade pelo cognitivo (educação). Daí a idéia de que a mulher, provida do saber da maternidade estaria apta a assumir o papel de educadora infantil1 1 . Entendendo que as mães também exercem o papel de educadoras, refiro-me aqui especificamente às profissionais da educação infantil. , uma vez que a função de educar seria cumprida pelos outros níveis da educação. O reflexo de tal idéia – transposição do lugar de mãe para o de professora –, como mostra o texto, parece estar no caráter assistencialista e não profissional, atribuído à educação infantil. Neste caso, a competência para cuidar não requereria, necessariamente, uma formação profissional. Assim sintetiza a autora: "a afetividade é mencionada com freqüência, implícita ou explicitamente, como intrínseca ao cuidar, que se contrapõe ao racional e profissional".

Do ponto de vista das políticas públicas, cabe uma pergunta: à que se deve a precariedade e fragilidade, no Brasil, da formação das educadoras que trabalham em creches e pré-escolas? Analisando o documento publicado pelo MEC (Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, 1998), a autora verifica que, apesar de ele contemplar a função de cuidar para este nível de educação, o documento não faz referência à formação das profissionais para exercê-la. Pondera, portanto, que o documento cria "um paradoxo, pois espera-se que a educadora cumpra uma função sem instrumentalizá-la para isso".

Essa análise conduz a uma indagação relevante e que ocupa, justamente, o ponto central do livro: como formar para cuidar? Assumindo que a formação para o cuidado implica a educação moral, no segundo capítulo a autora dedica-se à conceituação e caracterização sistemática do termo, relacionando-o especificamente à educação infantil. Trazendo elementos da filosofia e da enfermagem, alerta para as diferenças conceituais sobre o termo cuidado, existentes entre estes dois campos. Fundamentando-se nos conceitos da filosofia, e contrapondo-se aos conceitos da enfermagem, nos quais o cuidado é sempre referenciado no outro, Thereza Montenegro defende a idéia de que a formação profissional para as atividades de cuidado deve ter como pressuposto, dentre outros, o cuidar-se de si. Em uma palavra, o cuidado objetivando o bem do próprio sujeito.

Com esta tomada de posição a autora volta-se, no terceiro capítulo, para o campo da psicologia, analisando algumas questões de gênero e moral, especificamente em relação ao cuidado. Desta vez, contrapõe-se à tradição filosófica e chama atenção para modelos teóricos que assumem a dicotomia entre cognição e emoção, compartilhando da seguinte premissa: existem, no ato de cuidar, racionalidade e afetividade.

Apresentando algumas teorias feministas, a autora centra-se no trabalho desenvolvido pela psicóloga norte-americana Carol Gilligan. Tal trabalho, que essencialmente rompe com o princípio de uma moralidade pautada exclusivamente no princípio de justiça (cuja origem está na filosofia), distingue a existência de duas fontes, ou orientações, para explicar a moralidade humana: a justiça, e uma outra orientação centrada no cuidado (care). Gilligan postula ainda que, enquanto a moralidade feminina prioriza o cuidado, a orientação de justiça é priorizada na moralidade masculina. Na opinião de Thereza Montenegro, a ética do cuidado acabou contribuindo para a consolidação da interpretação de que o ato de cuidar é uma atividade vinculada "naturalmente" às mulheres. A esta crítica, acrescenta-se a permanência das polarizações entre o campo da racionalidade e da afetividade, traduzido na teoria de Gilligan como justiça/cuidado.

Reconhecendo os méritos do modelo de Gilligan – que amplia a concepção sobre os princípios fundantes da moralidade humana –, o texto aponta também sua insuficiência, alertando para o fato de "seus pressupostos fundamentarem uma interpretação que naturaliza a disposição para cuidar, tornando-a incompatível com a formação profissional".

A autora lança-se, no quarto e último capítulo, à discussão sobre a importância do desenvolvimento pessoal para o cuidado, entendendo-o como parte integrante da educação moral das educadoras infantis. Introduz o capítulo com a idéia de que a virtude generosidade é a que mais se aproxima do sentido moral da palavra cuidado. Ao estudar e apresentar a visão de vários autores, como Comte-Sponville e Snyders, sobre a generosidade, entende que o cuidado pode ser compreendido como generosidade no campo da moralidade, mas uma generosidade perpassada por determinações racionais.

Com isso, traz à tona, novamente, a discussão a respeito da dicotomia entre razão e emoção no contexto da formação moral das educadoras. Como afirma, "é nessa articulação mais elaborada das relações entre essas dimensões que, entendo, deva residir o fundamento de uma formação para o cuidado das educadoras infantis".

Superando a dicotomia de concepções teóricas que ora privilegiam a cognição e a razão, e ora privilegiam os sentimentos e emoções, Montenegro adota, como caminho para a formação das educadoras infantis, a proposta construtivista de educação moral do autor catalão Josep Maria Puig, da Universidade de Barcelona. E o faz porque Puig situa-se numa perspectiva que concebe a educação moral como construção de personalidades morais, e isso pressupõe processos educativos que almejem o desenvolvimento pessoal de personalidades morais. Ora, esta é, justamente, a tese central da autora.

A aproximação da concepção de Puig sobre educação moral, ao mesmo tempo que parece "confortar" Thereza Montenegro, aponta-lhe a importância de investir numa nova e difícil empreitada: desenvolver um programa de educação moral que, tal como a autora prescreveu, "tenha como um de seus objetivos o domínio das funções psicológicas da consciência moral". O cuidado seria, pois, uma dessas funções.

A maior contribuição do livro está no convite à reflexão sobre a educação moral, ou, como propõe a autora, a educação para o cuidado. Ao mesmo tempo que abre novos caminhos para a pesquisa, tece uma rica e instigante discussão sobre a temática. Discussão inacabada e salutar para o avanço da educação brasileira. E da maior urgência.

AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM NO ENSINO SUPERIOR: UM RETRATO EM CINCO DIMENSÕES

Neusi Aparecida Navas Berbel; Waldecira Souza da Costa; Icléia Rodrigues de Lima e Gomes; Cláudia Chueire de Oliveira e Maura Maria Morita Vasconcelos

Londrina: Ed. UEL, 2001, 268p.

Marialva Rossi Tavares

Fundação Carlos Chagas

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Marialva Rossi Tavares mtavares@fcc.org.br

Muito se tem dito sobre avaliação, sempre do ponto de vista dos especialistas e professores. Neste livro os interessados no tema encontram uma importante contribuição para a reflexão da prática docente tendo, porém, como referência, a visão do aluno. O texto também resgata as discussões em torno do trabalho avaliativo desenvolvido na sala de aula, uma vez que, nos tempos atuais, o foco principal da avaliação tem se deslocado para a esfera macro dos sistemas de ensino.

A partir de um referencial teórico, as autoras situam o problema ressaltando que a avaliação da aprendizagem no ensino superior é, efetivamente, uma questão problemática que necessita ser explorada por diversos ângulos, com vistas a orientar professores em sua prática pedagógica e na formação de novos professores para esse nível de ensino.

A proposta do livro surgiu a partir do desenvolvimento do projeto integrado de pesquisa : "Avaliação no ensino superior: significado e conseqüências," coordenado pela professora Neusi Berbel, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), do qual as autoras participaram, assumindo a análise de uma das cinco dimensões da avaliação.

O projeto teve como objetivo conhecer as práticas avaliativas dos professores do ensino superior, em 14 cursos de licenciatura da UEL, e refletir sobre o seu significado pedagógico e conseqüências na vida dos alunos.

Para desenvolvê-lo foi utilizada a "metodologia da problematização", que adota procedimentos eminentemente qualitativos. Sua escolha deveu-se, segundo as autoras, ao fato de se tratar de abordagem que apresenta possibilidades de intervenção na realidade. Esta metodologia é desenvolvida basicamente em quatro etapas: observação da realidade e identificação do problema; definição dos pontos-chave a estudar; teorização, em que a investigação se intensifica e colhe elementos para a elaboração das hipóteses de solução, e aplicação, que deve ocorrer pela prática transformadora no contexto em que se deu a investigação.

A organização do livro permite que o leitor acompanhe o desenvolvimento de cada etapa. Assim, na introdução as autoras descrevem o processo de observação da realidade, a partir do qual definem o problema a ser investigado. Nos capítulos que se seguem apresentam os pontos-chave estudados a partir da definição do problema, os quais correspondem às cinco dimensões da avaliação. A etapa de teorização foi desenvolvida mediante trabalho de classificação das respostas obtidas no interior de cada dimensão. Essa etapa, bem como a descrição dos pontos-chave, compõe os cinco capítulos do livro e corresponde à dimensão pedagógica, instrumental, emocional, ética e corporal/ritual. Finalmente, ao concluírem as autoras abordam as hipóteses de solução e indicam o compromisso firmado com a transformação.

As dimensões foram analisadas a partir do registro de situações vividas em sala de aula com a avaliação, seguidas do comentário dos alunos. Os comentários foram classificados em positivos e negativos, sempre do ponto de vista dos alunos.

O primeiro capítulo trata da Dimensão Pedagógica, entendida como a relação que a avaliação mantém com os elementos essenciais à organização e metodologia definida para cada momento do trabalho.

As respostas dos alunos nessa dimensão foram classificadas em vários aspectos diferentes: o tratamento dado ao conteúdo na avaliação, desdobrado em: coerência entre o que é ensinado e o que é cobrado; clareza no objetivo das avaliações; relação entre teoria e prática e, finalmente, avaliação do que é relevante, útil, importante para a vida; forma de ensinar e avaliar. Nesse aspecto as respostas dos alunos apontam para a coerência entre a forma de ensinar e a forma de avaliar; o uso de métodos estimulantes, a preparação do aluno para a avaliação, a relação entre professor aluno (atenção, interesse pelo aluno) e o fornecimento do feedback. As respostas dos alunos ainda apontaram para outros fatores importantes como: os critérios de avaliação, a clareza no ensinar e no avaliar, que se refere à elaboração das questões e dos instrumentos, e o nível de exigência quanto à elaboração pessoal dos conhecimentos exigidos dos alunos.

Nesta dimensão os comentários positivos dos alunos relatam o uso de várias alternativas de avaliação que não apenas a prova, o uso da avaliação para aferir o conhecimento e não como vingança, a preocupação do professor com a formação do aluno mais que com a sua nota, a valorização do seminário como forma de avaliar, entre outras. Já os comentários negativos referem-se à falta de diálogo e de relacionamento com o aluno, má atuação com os conteúdos, entre outras. O que se percebeu é que as observações dos alunos fazem parte de um ideário presente no modo como pensam a prática educativa.

No segundo capítulo, breve revisão do surgimento da avaliação da aprendizagem é apresentada para introduzir a Dimensão Instrumental. Esta é entendida, ao longo do tempo, como sendo constituída por elementos que compõem a estrutura operacional de acompanhamento do rendimento escolar, e compreende as formas, os instrumentos e os meios que os professores utilizam para obter dados sobre o processo de ensino e aprendizagem dos alunos e em relação a si mesmos, como docentes, no contexto macro em que a escola está inserida.

Nesta etapa foram identificados, a partir dos registros dos alunos, 30 procedimentos de avaliação, agrupados em três categorias: provas, trabalhos e outros procedimentos.

As provas para os alunos continuam sendo o recurso oficial da avaliação da aprendizagem. Para eles as conseqüências positivas de utilização da prova estão relacionadas à possibilidade de promover alguma produção de conhecimento dentro do cenário proposto pela prova; as negativas referem-se à mera reprodução do conteúdo estudado.

Os trabalhos, segundo os alunos, significam a possibilidade de expressar conhecimento, habilidades e atitudes que estão sendo adquiridos em conjunto com os pares, como produto de uma elaboração pessoal ou coletiva. As conseqüências enfatizam o desenvolvimento dos alunos devido à necessidade de elaborar, problematizar, descontextualizar e propor novas idéias

Assim, as avaliações que propiciam a aplicação de conhecimentos já elaborados, que permitem o desenvolvimento da capacidade de criação, a produção de novo conhecimento e, portanto, a construção de sua história, estas são as formas mais valorizadas pelos alunos.

A Dimensão Emocional, descrita no capítulo três, analisa os aspectos emocionais presentes no processo de avaliação. Os dados apontam, em sua maior parte, para sentimentos negativos, o que torna imperativo examinar os aspectos geradores de sofrimentos psicológicos e sentimentos aversivos diante da avaliação.

Os dados levantados com alunos apontaram para três categorias. A que diz respeito às atitudes do professor diante do processo de avaliação é o aspecto mais citado pelos alunos e aparece como sendo o fator de maior influência nos sentimentos experimentados durante as avaliações. Nas respostas analisadas percebeu-se que a atitude do professor na avaliação tem mais influência sobre os sentimentos experimentados pelos alunos do que os instrumentos de avaliação.

A categoria que corresponde à avaliação em si e aos sentimentos vivenciados pelos alunos indica que, de modo geral, a situação de avaliação provoca sentimentos negativos a partir do medo do que possa vir a ocorrer e por se tratar de uma situação que envolve julgamento. Quando relatam os aspectos positivos e negativos, os alunos relacionam a avaliação à prova, a qual tem influência direta na percepção geral da situação e nos sentimentos do aluno no processo.

A terceira categoria corresponde às diferenças individuais e ao processo de avaliação e diz respeito a aspectos psicológicos não cognitivos, mas tão importantes quanto, quais sejam a ansiedade, as expectativas de controle e o autoconceito, que são características adquiridas a partir da relação com pessoas significativas para o aluno, como o professor.

A Dimensão Ética refere-se aos aspectos morais subjacentes ao ato de avaliar e corresponde a três princípios: respeito pelas pessoas, beneficência e justiça. Neste sentido, a avaliação da aprendizagem é um dos momentos pedagógicos mais imbuídos de elementos éticos, pois é o momento em que os professores julgam e portanto tomam decisões sobre a vida acadêmica dos alunos.

Da análise dos comentários considerados positivos destaca-se a satisfação pelo respeito humano e pela forma envolvente e democrática de ensinar de alguns professores, valorizando suas competências, seriedade e comprometimento ético.

Em contrapartida, na análise dos depoimentos considerados negativos, o que se destaca é a indignação do aluno quando o professor: cobra na avaliação o que não foi ensinado; comete arbitrariedades e abuso de poder; não estabelece comunicação clara; comete injustiças; desrespeita o aluno como pessoa e usa a avaliação como instrumento de controle e punição

Para as autoras a docência é uma atividade distinta das demais profissões, pois o professor não lida com um cliente, mas com um número expressivo de pessoas que passam por um processo de amadurecimento moral e intelectual. Tal fato atribui ao docente uma responsabilidade incalculável pois, sua passagem pela vida dos alunos não se dá sem conseqüências.

A Dimensão Corporal – ritual – ou corporeidade é entendida no capítulo como um fator que ocorre tanto na avaliação como em qualquer outro momento do encontro pedagógico da sala. Constitui-se em experiências cotidianas concretas de prazer e desprazer, que podem expressar-se por grandes e pequenos movimentos gestuais dos sujeitos, das posturas físicas, dos usos que fazem do espaço dentro e fora da sala de aula. Os rituais, formas e modos de encontro de professores e alunos, tanto para situações de avaliação como para situações de aula e suas conotações de dar, receber, assistir, participar.

Entre os comentários registrados pelos alunos, mais da metade apresentou descrições explícitas de posturas físicas de professores e de alunos. São referências relacionadas ao fazer ritual dos professores e seus alunos; registros que remetem à idéia de como os sujeitos vivem o espaço e o tempo cotidiano acadêmico.

Apresentadas e discutidas as cinco dimensões desta pesquisa, na conclusão as autoras apresentam uma lista de medidas que poderiam possivelmente ser adotadas pelas universidades para a superação das dificuldades (hipóteses de solução). Propõem ações que visam à transformação da realidade, das quais a publicação deste livro é uma delas.

Como as autoras lembram, é preciso levar em conta que no relato os alunos manifestam sua representações sociais sobre as cinco dimensões e emitem seus pontos de vista a respeito de experiências que tiveram. Portanto não se podem considerar essas indicações como a palavra final, uma vez que os professores não foram ouvidos. Esse fato não invalida porém o uso das representações como suporte para desencadear uma reflexão sobre a prática avaliativa dos professores, uma vez que foi possível constatar, pelos registros dos alunos, que as atitudes dos professores, sejam elas positivas ou negativas, deixaram lembranças que marcaram sua história acadêmica.

Esse fato em si justifica resgatar o processo de reflexão da prática docente sobre a avaliação da aprendizagem, salientando a responsabilidade da universidade e dos professores quanto ao preparo de profissionais para o ensino.

Assim, mais que prescrever normas ou modelos de ação, o livro traz, na fala do aluno, pontos para a reflexão sobre a prática avaliativa dos professores. A simples leitura do livro já constitui em si o processo de reflexão do professor sobre a sua prática na busca de uma ação intencional que favoreça a aprendizagem dos alunos.

  • Endereço para correspondência
    Celso João Ferretti
  • Endereço para correspondência
    José Antonio Có Onça
  • Endereço para correspondência
    Valéria Amorim Arantes de Araújo
  • 1
    . Entendendo que as mães também exercem o papel de educadoras, refiro-me aqui especificamente às profissionais da educação infantil.
  • Endereço para correspondência
    Marialva Rossi Tavares
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Mar 2003
    • Data do Fascículo
      Mar 2002
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