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Roig-Sanz, Diana & Meylaerts, Reine (Orgs.). Literary Translation and Cultural Mediators in ‘Peripheral’ Cultures. Londres: Palgrave Macmillan, 2018, 373 p.

Roig-Sanz, Diana; Meylaerts, Reine. Literary Translation and Cultural Mediators in ‘Peripheral’ Cultures. Londres: Palgrave Macmillan, 2018. 373 p.

O subtítulo do livro Literary translation and cultural mediators in ‘peripheral’ cultures revela muito sobre este conjunto de ensaios editado pelos pesquisadores Diana Roig-Sanz e Reine Meylaerts. Trata-se de uma provocação — “Custom officers or smugglers?” — que propõe reflexões sobre o lugar e a importância do mediador cultural no campo da tradução literária em culturas ditas periféricas (por isso o uso das aspas simples em ‘peripheral’). Afinal, os mediadores seriam simples funcionários de alfândega, cumpridores de um papel burocrático nos processos de transferência e tradução culturais, ou teriam também algo de contrabandistas — o que insere uma dimensão de emoção (e ação) ao ofício —, tornando-se assim elementos fundamentais de resistência e sobrevivência em um sistema que historicamente privilegia culturas dominantes?

A reunião de ensaios selecionados por Roig-Sanz e Meylaerts — a primeira, pesquisadora na Universitat Oberta de Catalunya, Espanha, a segunda, professora de Literatura Comparada e Estudos da Tradução na Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica — propõe-se a oferecer novos critérios de observância e análise para o mediador cultural, tratado aqui como figura chave para a evolução e o resgate da história cultural. O volume faz isso a partir da indicação de caminhos metodológicos e analíticos para a compreensão de sua importância (dele, o mediador) nos processos de transferência e transgressão dos campos culturais. Dessa forma, busca superar a concepção tradicionalmente simplista que se referia a esses atores como figuras que desempenhariam um papel único e restrito, como um funcionário de alfândega conformado às suas obrigações burocráticas e à execução mecânica de suas atribuições.

Para Roig-Sanz e MeylaertsRoig-Sanz, Diana & Meylaerts, Reine (Orgs.). Literary translation and cultural mediators in ‘peripheral’ cultures. Londres: Palgrave Macmillan, 2018., conforme escrevem na General Introduction da obra, o mediador cultural seria uma espécie de facilitador de travessias entre fronteiras, um “ator cultural ativo através das fronteiras linguísticas, culturais e geográficas, ocupando estratégicas posições em grandes redes e sendo o veículo da transferência cultural”1 1 “[…] defined as a cultural actor active across linguistic, cultural and geographical borders, occupying strategic positions within large networks and being the carrier of cultural transfer”. (p. 3, tradução minha). O trecho original diz “being the carrier of cultural transfer”. “Carrier”, que pode ser traduzido como “veículo” e “suporte”, ou ainda “portador”, indica a posição de protagonismo e movimento em que os autores colocam o mediador cultural, retirando-o de um injusto lugar de estagnação e funcionarismo.

Como indicado pelo título do volume, esse deslocamento de estratégias de análise não contempla apenas o agente envolvido no processo de tradução. Vai além, tocando também o aspecto geográfico da tradução literária, com todas as implicações econômicas e sociais relacionadas à definição de territórios. Ainda na introdução do volume, Roig-Sanz e MeylaertsRoig-Sanz, Diana & Meylaerts, Reine (Orgs.). Literary translation and cultural mediators in ‘peripheral’ cultures. Londres: Palgrave Macmillan, 2018. destacam a originalidade de seu recorte. Enquanto a maioria dos estudos de tradução e mediação cultural privilegia as grandes metrópoles (Paris, Londres e Nova Iorque) como centros de produção cultural e de tradução, esta seleção se debruça sobre outras cidades que “também apresentam cenas vibrantes de tradução”2 2 “[...] also featured vibrant translation scenes”. (p. 4, tradução minha).

Essa complexidade geográfica que se mantém apartada do anglicismo mainstream pode ser observada já em uma rápida olhada no índice de conteúdos. Após a General Introduction assinada pelos editores, o livro se divide em duas partes. A primeira delas, “Mediators”, composta por seis ensaios, se dedica a investigar agentes de transferência cultural (smugglers?) que atuaram ou atuam sob critérios de configurações menos conhecidas do final do século XIX até o presente. Vamos conhecer, entre outros, o tradutor-diplomata tcheco Emil Walter em seus esforços em prol da tradução e circulação de livros na Europa entre guerras, e o psicanalista Salomon Resnick, pioneiro da cultura judaica na América Latina e em língua espanhola.

Essa prevalência da socio-biografia na condução do volume está intimamente ligada, como justifica o pesquisador Ond?ej Vimr, autor do primeiro artigo da primeira parte, à virada sociológica dos Estudos da Tradução e aos conceitos de campos e habitus de Pierre Bourdieu. A proposta dos textos reunidos nesta primeira parte é “destacar a inserção dos tradutores no tempo e espaço sociocultural”3 3 “[...] highlighting translators’ embedding in the sociocultural time and space”. (p. 41, tradução minha) e elucidar os sistemas e práticas de mediação que esses indivíduos adquirem como resultado dessa interação social ao longo do tempo.

Se a primeira parte nos leva da República Tcheca à Argentina, da China ao Paquistão, a segunda metade do volume nos conduz através dos meandros dos processos de mediação cultural, concentrando-se na análise de atividades de transferência intercultural que se tornam ainda mais complexas quando realizadas por agentes que vivem imersos em cultura multilíngue. É o caso, por exemplo, da muçulmana escravizada Fatma-Zaïda, primeira mulher a traduzir o Alcorão para o francês e que permanece desconhecida até hoje nos meios de mediação e tradução literárias. Ou dos mediadores culturais ligados aos povos originários peruanos que, em seus projetos literários, resgatam essas culturas da posição de subordinação e conquista em que foram lançadas pelos colonizadores.

Por fim, há uma terceira dimensão que Literary translation and cultural mediators in ‘peripheral’ cultures cobre muito bem. Além de chacoalhar as concepções aparentemente estagnadas de definição dos mediadores em suas funções e ações, além de sugerir o reposicionamento do centro geográfico das metrópoles culturais de tradução, Roig-Sanz e Meylaerts selecionaram ensaios que contemplam a diversidade estético-expressiva da literatura, transitando com fluidez da literatura popular à expressão erudita, da tradição oral aos registros da alta cultura. No ensaio do professor Lieven D’hulst, por exemplo, as canções tradicionais flamencas cruzam fronteiras, transformando-se de monumentos patrimoniais em propaganda musical. Se em um capítulo falamos das primeiras traduções de Freud para o italiano, em outro mergulhamos na produção do sul-africano André Brink e suas práticas de autotradução entre o africâner e o inglês.

Em suma — e antes de se deter mais acuradamente em cada um dos ensaios reunidos no livro —, Literary translation and cultural mediators in ‘peripheral’ cultures se dedica, em sua proposta de subversão geográfica, a superar a ideia de que as periferias agiriam meramente como campos de “imitação” da cultura oriunda dos centros “inovadores”. Nesse novo panorama, o tradutor e mediador cultural abandona a inércia criativa de sua posição como “custom officer” para assumir-se “smuggler”, promovendo trocas e criando “suas próprias normas, circuitos, canais e formas”, revoltando-se “contra a tendência, contra o mercado (na medida do possível), contra o gosto dos leitores ou contra a estética dominante na época”4 4 “[...] often create their own norms, circuits, channels and forms. […] they revolted against the trend, against the market (as far as this is possible), against the taste of the readers or against the prevailing aesthetics of the time”. (p. 3, tradução minha).

Como já foi dito, a primeira parte do volume reúne artigos que se dedicam à figura do mediador enquanto agente cultural e a iniciativas editoriais de países periféricos que marcaram o campo da tradução em suas respectivas culturas. O primeiro ensaio a compor essa parte — o capítulo 2 do livro, já que o primeiro traz a introdução dos editores — é Early institutionalised promotion of translation and the socio-biography of Emil Walter, translator, press attaché and diplomat, assinado pelo pesquisador da University of Bristol, Reino Unido, Ondřej Vimr, que também é tradutor do norueguês, sueco, italiano e inglês.

Vimr, que dedica suas investigações sobretudo à história e sociologia da tradução, com ênfase na circulação de literaturas europeias “menos traduzidas” e no impacto de políticas culturais nos processos decisórios no mercado editorial de pequenas nações europeias, esforça-se aqui para lançar luz sobre a trajetória profissional do tradutor, mediador cultural e diplomata tcheco Emil Walter. “O arquivo pessoal de Emil Walter — embora fragmentário — revela uma história pessoal mais complexa, que vai muito além do cenário diplomático profissional”5 5 “Emil Walter’s personal archive—however fragmentary—reveals a more complex personal history reaching far beyond the professional diplomatic setting”. (p. 42, minha tradução), escreve o autor, ecoando a provocação que aparece na capa do livro — “Custom officers or smugglers?” — e que pode ser considerada uma espécie de fio condutor e de ligação entre os ensaios dessa primeira parte.

Vimr fala da trajetória de Walter para tecer considerações sobre os limites das ações individuais e para, de alguma forma, personalizar o panorama cultural de apoio à tradução e circulação de livros nas pequenas nações da Europa no período entre guerras, analisando iniciativas executadas por diferentes entidades dos mais distintos espectros políticos, como a Liga das Nações, a Pequena Entente e a Alemanha nazista. O autor ainda identifica, e esse é o aspecto mais interessante de sua metodologia, o que seriam os três tipos de promoção da tradução no campo da diplomacia cultural: unilateral, bilateral e multilateral.

O terceiro capítulo é Edoardo Weiss, a triestine translating Freud, escrito pela professora do Departamento de Estudos Franceses da Concordia University, no Canadá, Sherry Simon. Simon aborda em seu ensaio o pioneirismo de Weiss, brilhante psicanalista que ampliou os limites da psicanálise e do pensamento freudiano para além de suas fronteiras territoriais originais nas primeiras décadas do século XX, impelindo essa nascente doutrina em direção a uma integração às novas comunidades linguísticas e instituições científicas na Itália.

Seguindo o modelo que permeia a maioria dos textos presentes no volume — o de relacionar personagem e espaço geográfico, tradutor e território —, Simon situa Weiss em uma Trieste em completa ebulição cultural. Cidade portuária do Nordeste da Itália, localizada na fronteira com a Eslovênia, Trieste se consolidou, historicamente, como um espaço bilíngue, campo fértil para o desenvolvimento de uma comunidade criativa de intelectuais e artistas. Por lá passaram grandes ondas de imigração oriundas da Europa Oriental, e enquanto o dialeto triestino era a língua diária da maioria da população e o alemão se firmava como expressão culta, o esloveno e o croata se consolidaram como idiomas formadores dos espaços marginais do trabalho doméstico e braçal, tornando-se, sob o jugo do fascismo, língua proscrita de circulação clandestina.

Simon se dedica a explorar, referenciando autores como Wolf e Fukari (2007), Meylaerts e Gonne (2014) e Lydia Liu (2014), e a partir da trajetória de Weiss na tradução de Freud, de que forma o processo de tradução se realiza no contexto da conjuntura social e cultural triestina, diante de um intercâmbio que é realizado entre duas línguas presentes na mesma cidade, embora em diferentes extratos sociais. Em suas exposições, a autora nos conduz por uma série de construções que colocam em paralelo o ofício do tradutor e o do psicanalista: a tradução como princípio fundamental da vida psíquica. Por fim, conclui Simon, Weiss “orientou claramente a recepção da psicanálise na Itália por meio de suas traduções”, deixando como legado duradouro sua “tradução idiossincrática da topologia freudiana da mente”6 6 “Weiss clearly oriented the reception of psychoanalysis in Italy through his translations. […] the idiosyncratic translation of the Freudian topology of the mind”. (p. 83, tradução minha), uma tradução que jamais se afastou de suas origens triestinas.

No quarto capítulo vamos à América do Sul no período entre guerras. Spanish discovers Yiddish: The cultural policies of Salomon Resnick in Argentina in the interwar period, escrito pelo pesquisador Alejandro Dujovne, ligado ao Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas da Argentina, nos apresenta àquele que pode ser considerado o pioneiro da cultura judaica na América Latina e em língua espanhola. Salomon Resnick nascido na Rússia, mas com importante produção realizada na Argentina, país onde morreu em 1946, é símbolo de uma Buenos Aires que, na virada entre os séculos XIX e XX tornava-se, em decorrência das grandes ondas de imigração judaica da Europa Oriental, ponto de encontro e embate entre dois universos culturais e linguísticos que nunca haviam sido apresentados: o espanhol e o iídiche.

Como no capítulo anterior, o personagem, em seu ofício de mediação cultural, é investigado em uma espécie de relação de representação metonímica. A trajetória de Salomon Resnick torna-se a trajetória da diáspora judaica e daquele encontro linguístico na Argentina entre guerras. A parte pelo todo. É Resnick que, em um momento de ascensão antissemita na Alemanha, assim como na própria Argentina, apresenta a cultura e a literatura iídiche, agora mais politizadas do que nunca, para leitores espanhóis, judeus ou não. Seu empreendimento literário, que inclui ainda a criação de dois dos mais importantes periódicos judaicos no país, corresponde ainda, cronologicamente, ao salto evolutivo no desenvolvimento do mercado editorial argentino.

Saímos da Argentina para a China em Xiaoshuo Yuebao (1921-1931) as a cultural mediator of small literatures in China, da pesquisadora Yehua Chen, ligada atualmente à Universidade de Colônia, na Alemanha. Este artigo abre a série de textos que, ao invés de manterem foco sobre personagens específicos, se dedicam às iniciativas editoriais que revolucionam o campo da tradução e mediação cultural em seus países de origem. É o caso do Xiaoshuo Yuebao, suplemento literário chinês que começou a ser publicado em 1910 e seguiu com tiragem até 1932, após a invasão de Xangai pelos japoneses.

A autora se aprofunda no argumento central que permeia todo o volume, a dicotomia centro-periferia na circulação de textos literários, para nos apresentar aos profissionais de edição e tradução envolvidos na publicação do Xiaoshuo Yuebao e aos seus esforços na tentativa de levar para a China a literatura que era produzida além dos seus limites territoriais. Mais que isso, Chen se dedica a analisar as convergências e divergências estéticas — justificadas por diferentes posturas políticas e ideológicas que eclodiam em um contexto de mudança social e revolução literária — que faziam parte desse grande encontro de mediadores em ofício colaborativo.

Chen ainda organiza interessantíssimas tabelas com a contagem de autores estrangeiros — poetas, dramaturgos, ensaístas e romancistas, do Chile ao Vietnã — das “small literatures” traduzidas pelo periódico na faixa de tempo considerada e de artigos introdutórios (escritos ou traduzidos) sobre a produção literária desses países. É por meio dessa tabela que ficamos sabendo, por exemplo, que o poeta nicaraguense Rubén Dário, o poeta bengali Rabindranath Tagore e o dramaturgo italiano Luigi Pirandello foram publicados, embora muitos deles em traduções indiretas, em diferentes edições do Xiaoshuo Yuebao. O romancista maranhense Aluísio Azevedo é o único brasileiro na lista.

O capítulo seis nos apresenta a uma editora paquistanesa em sua trajetória de difusão literária e mediação cultural. Mashal Books as cultural mediator: translating East Asian, Middle Eastern and African literatures into Urdu in Lahore é assinado por Karen Thornber, professora de Literatura Comparada e Literatura do Leste Asiático na Harvard University, Estados Unidos. O que chama imediata atenção é que a Mashal Books, fundada na década de 1980, continua em atividade7 7 O catálogo da Mashal Books pode ser acessado em seu site oficial https://mashalbooks.org/. . Se os artigos anteriores nos conduziam através de momentos históricos que ajudaram a definir as diretrizes das análises sociológicas dos Estudos da Tradução, o ensaio de Thornber nos mostra que essa história está em flagrante momento de evolução.

A Mashal Books é apresentada pela autora como mediadora cultural de fundamental importância entre as culturas literárias da Ásia, África e Oriente Médio, como o comprovam a diversidade de seu catálogo — uma rápida olhada no site nos mostra títulos de diversas nações em categorias que vão de “social issues” e “general health” a “women issues” e “Jihad and militancy” — e seus esforços de tradução para a língua urdu. Em um dos tópicos de seu artigo, Thornber cita diversos autores, das mais variadas nacionalidades, que integram o catálogo da editora, entre eles o nigeriano Chinua Achebe, os japoneses Shusaku End? e Yasunari Kawabata, e o indonésio Pramoedya Ananta Toer.

O último capítulo da primeira parte do livro tem autoria conjunta: o sociólogo Johan Heilbron, atual diretor de pesquisa do Centre Européen de Sociologie et de Science Politique da Sorbonne, e a professora de sociologia Gisèle Sapiro, da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, ambos em Paris. Sob o título Politics of translation: how states shape cultural transfers, os autores se dedicam a analisar, compensando uma lacuna que atribuem aos Estudos da Tradução, de que forma os processos de tradução e mediação cultural dependem de políticas públicas para que possam se manter em contínua evolução.

Heilbron e Sapiro se dedicam especificamente aos contextos de Holanda e Israel, países nos quais foram efetivadas robustas políticas públicas de fomento à exportação cultural, o que gerou um impacto significativo nas traduções do holandês e hebraico e acabou ajudando a moldar, em um nível global, com seus benefícios e prejuízos, a forma como é vista a literatura nessas línguas. No primeiro caso, nos Países Baixos, são analisadas as relações — que variam, a depender do momento, entre a colaboração e a separação — entre os institutos holandeses e flamengos de mediação cultural e o estabelecimento de uma “literatura holandesa” supranacional. No caso de Israel, são discutidas as estratégias de definição — se por idioma ou por filiação nacional — dos limites da ação do Estado, em um debate que questiona o que seria a “identidade judaica” e, em uma análise específica, os elementos que conectam a literatura hebraica histórica à literatura judaica em um cenário que também inclui autores árabes israelenses que escrevem em hebraico.

Chegamos à segunda parte do volume, “Mediation processes”, que como já foi dito se dedica a analisar os meandros das atividades e processos de transferência cultural. Seu primeiro capítulo (o oitavo na contagem total) é From a slave to a translator: conflicts and mediation in Fatma-Zaïda’s translation of the Quran, assinado pela pesquisadora Rim Hassen, ligada ao departamento de Tradução e Estudos Culturais Comparados na University of Warwick, no Reino Unido.

Fatma-Zaïda foi, provavelmente, a primeira mulher a traduzir o Alcorão para o francês, embora seu trabalho permaneça desconhecido inclusive nos grandes centros de difusão de estudos sobre tradução. A explicação para esse lapso talvez seja a origem de Zaïda, ela era uma escrava muçulmana, esposa de um dignatário turco. Em seu artigo, Hassen investiga a biografia de Zaïda e reflete sobre os modos pelos quais sua tradução — marcada por intervenções e manipulações do texto de origem — foi influenciada por sua condição de mulher escrava. Mais que isso, tece comentários importantes sobre os conflitos nas percepções de feminilidade entre mulheres muçulmanas e europeias no século XIX.

O capítulo nove, Mediating Flemish folk songs across cultural borders during the nineteenth century: From patrimonial monuments to musical propaganda, do professor Lieven D’hulst, ligado ao departamento de Francês e Literatura Francófona e Estudos da Tradução da Katholieke Universiteit Leuven, na Bélgica, se dedica a investigar como as comunidades flamengas souberam mobilizar suas canções folclóricas no sentido de lutar pelo reconhecimento de sua língua e património cultural, ampliando a circulação dessas peças para além das fronteiras de seu território durante o século XIX.

O mais interessante de sua investigação é o resgate dos esforços, das dinâmicas e estratégias dos agentes mediadores — por meio de técnicas de tradução e transferência — envolvidos nesse processo de emancipação cultural e política de suas comunidades linguísticas e na definitiva europeização de sua pequena nação. D’hulst argumenta que qualquer retórica de emancipação cultural oscila entre propósitos, tornando-se “vacilante e consistente”8 8 “The rhetoric of cultural emancipation is both wavering and consistent”. (p. 256, tradução minha), visto que não se desenvolve de modo linear e se fragmenta por diferentes direções, selecionando, a partir de critérios muitas vezes políticos e econômicos, quais tradições se fortalecerão em detrimento de outras.

A pesquisadora em Estudos da Tradução Maud Gonne, ligada à University of Namur, Bélgica, assina o décimo capítulo, From binarity to complexity: a Latourian perspective on cultural mediators the case of Georges Eekhoud’s intra-national activities, que resgata as modalidades de mediação cultural (sobretudo as ideias de difusão e transformação de objetos e textos) a partir da Teoria ator-rede ou de sociologia da tradução de Bruno Latour, tendo como objeto as atividades de transferência do escritor belga Georges Eekhoud e os níveis de mediação que o mesmo explora entre as línguas e as identidades franco-belga e flamenga.

O mais teórico entre os artigos que integram o volume, sustenta-se sobre o argumento fundamental de que “os mediadores não invalidam os limites que transgridem”9 9 “[...] mediators do not invalidate the boundaries they transgress”. (p. 280, tradução minha), mas que sua atividade pode ser observada sob dois aspectos paradoxais. Primeiro, na superfície, onde tais agentes parecem respeitar essas fronteiras, separando idiomas e as culturas de origem e destino. Depois, na profundidade, onde ocorrem as transgressões e a quebra de limites em um processo de criação que é fundamentalmente híbrido. Ou seja, o mediador é, ao mesmo tempo, um intermediário legitimado e um agitador sociocultural e sociolinguístico envolvido em um eterno processo de reciclagem cultural e subversão de limites.

No capítulo onze vamos conhecer os esforços de mediação cultural do escritor e tradutor sul-africano André Brink, autor de romances que ilustram a questão do apartheid em seu país de origem e protagonista do artigo Moving “Out of the laager” and “Betraying the tribe”: André Brink as cultural mediator, assinado pela pesquisadora Lelanie De Roubaix, ligada ao Departamento de Africâner e Holandês na Stellenbosch University, na África do Sul. De Roubaix discorre sobre as práticas de transferência discursiva e auto-tradução de Brink, situando-as em um cenário político de forte agitação política e posicionando-as ao lado de seus produtos culturais, gerando novas camadas de significado para os conceitos de identidade, idioma, mediação, cultura de origem e tradução.

O ponto alto de seu texto é a forma como a autora demonstra que Brink, em sua posição de mediador cultural multilíngue envolvido diretamente nas mudanças de conjuntura enfrentadas pelo seu país, transita, na opinião pública, entre diferentes polos: ora é traidor, ora é herói; ora comunista, ora defensor da liberdade. Essa dicotomia simbólica penetra, inclusive, noções fundamentais de sua identificação como Africâner e de seus esforços culturais enquanto mediador — “Como se deve usar a própria linguagem do parentesco quando ela foi transformada em uma ferramenta de opressão?”10 10 “And how should one use the very language of kinship when it has been made into a tool of oppression?” (p. 311, tradução minha), questiona a autora já na conclusão de seu artigo, deixando claro que não há resposta precisa para todas as perguntas.

O derradeiro capítulo do volume nos leva aos povos originários da América do Sul em “Let’s make Peru Peruvian again”: Cultural mediator and indigenous literature, assinado pela doutora em Semiótica e Filologia do Romance Helena Usandizaga. Como professora de Literatura Hispano-Americana na Universitat Autònoma de Barcelona, na Espanha, Usandizaga vem investigando, há mais de duas décadas, a presença de mitos pré-hispânicos em textos literários, e este artigo, em particular, se debruça sobre o papel dos mediadores culturais na cultura peruana no contexto de subordinação de suas culturas e línguas nativas como reflexo do processo de colonização ao que foram submetidos.

Em outras palavras, Usandizaga nos apresenta alguns personagens — escritores multilíngues, tradutores e mediadores — oriundos ou não desses espaços marginalizados que, em um processo de tensão e resistência cultural, conseguiram levar a cultura andina para além das fronteiras desse espaço periférico. O ápice de sua corrente de reflexões é o tópico The question of indigenous writing: Future perspectives and final thoughts, que à guisa de uma conclusão tece um comentário que pode ser ampliado para a cultura, a língua e a identidade de todas as nações ‘periféricas’ incluídas neste volume de ensaios: “Perguntar-se sobre a possibilidade de escrever nessas línguas é perguntar-se sobre o futuro dos escritores indígenas e sobre o público indígena que os lerá”11 11 “To ask oneself about the possibility of writing in these languages is to ask oneself about the future of indigenous writers and about the indigenous audience that would read them.” (p. 342, tradução minha).

Sua proposição nos conduz, uma vez mais, à provocação que serve como fio condutor entre todos os textos do volume. O mediador cultural nas culturas ‘periféricas’ (repito aqui as aspas simples empregadas no título do livro) deve se ater à norma dominante e assumir sua função de oficial alfandegário, colaborando com a continuidade do controle ideológico e político e dificultando as trocas não oficiais, ou deve se aproveitar de sua posição para tornar-se um exímio contrabandista, enriquecendo sua cultura, transformando-a em resistência, e subvertendo a ordem imposta pelas “línguas mundiais” em sua sede de dominação e uniformização cultural?

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    “[…] defined as a cultural actor active across linguistic, cultural and geographical borders, occupying strategic positions within large networks and being the carrier of cultural transfer”.
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    “[...] also featured vibrant translation scenes”.
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    “[...] highlighting translators’ embedding in the sociocultural time and space”.
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    “[...] often create their own norms, circuits, channels and forms. […] they revolted against the trend, against the market (as far as this is possible), against the taste of the readers or against the prevailing aesthetics of the time”.
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    “Emil Walter’s personal archive—however fragmentary—reveals a more complex personal history reaching far beyond the professional diplomatic setting”.
  • 6
    “Weiss clearly oriented the reception of psychoanalysis in Italy through his translations. […] the idiosyncratic translation of the Freudian topology of the mind”.
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    O catálogo da Mashal Books pode ser acessado em seu site oficial https://mashalbooks.org/.
  • 8
    “The rhetoric of cultural emancipation is both wavering and consistent”.
  • 9
    “[...] mediators do not invalidate the boundaries they transgress”.
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    “And how should one use the very language of kinship when it has been made into a tool of oppression?”
  • 11
    “To ask oneself about the possibility of writing in these languages is to ask oneself about the future of indigenous writers and about the indigenous audience that would read them.”

Referência

  • Roig-Sanz, Diana & Meylaerts, Reine (Orgs.). Literary translation and cultural mediators in ‘peripheral’ cultures Londres: Palgrave Macmillan, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2022
  • Aceito
    26 Fev 2023
  • Publicado
    Mar 2023
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