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A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas e sua configuração genérica

The relationship between the verbal-visual cohesive chains of serial comic strips and their generic configuration

RESUMO

Afinal, qual a relação entre o texto e o gênero? Partindo da linguística sistêmico-funcional de Hasan (1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University.) e das postulações da Linguística Textual sobre a coesão verbo-visual (Ramos, 2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ), nossa pesquisa investiga se há relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais das tiras. Com o auxílio do NVIVO, analisamos essa hipótese em 20 tiras cômicas seriadas de Ed Mort, de Veríssimo e Paiva (1991Veríssimo, L. F., & Paiva, M. (1991). Ed Mort em: Procurando o Silva. L&PM.). Constatamos que o formato retangular favorece a realização das anáforas visuais e verbais; que a introdução referencial de personagens se realiza pelo plano de visão total; e que a introdução referencial de novos cenários se realiza pelo plano de visão geral. O plano de visão detalhe realiza a recategorização dos objetos do discurso, assim como o uso do ângulo de visão inferior, da transição de quadros aspecto para aspecto, da ausência de requadro, da metáfora visual e do plano de visão primeiro plano. A seriação da tira é reforçada pela realização dos encapsuladores verbo-visuais. Concluímos que na tira cômica seriada a coesão se articula com os movimentos estruturais do texto. A coesão, portanto, surge como elemento que articula texto e gênero e, para nós, deve passar a ser o núcleo de análise do texto.

Palavras-chave:
Estrutura Potencial do Gênero (EPG); Coesão verbo-visual; Tira Cômica Seriada

ABSTRACT

After all, what is the relationship between text and genre? Based on Hasan’s (1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University.) systemic-functional linguistics and Textual Linguistics postulations on verbal-visual cohesion (Ramos, 2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ), our research investigates whether there is a relationship between the cohesive chains and the structural movements of the strips. With the help of NVIVO, we analyzed this hypothesis in 20 serial comic strips by Ed Mort, by Veríssimo and Paiva (1991Veríssimo, L. F., & Paiva, M. (1991). Ed Mort em: Procurando o Silva. L&PM.). We found that the rectangular format favors the realization of visual and verbal anaphors; that the referential introduction of characters takes place through the plane of total vision; and that the referential introduction of new scenarios is carried out through the general vision plan. The detail view plane performs the recategorization of the objects of the speech, as well as the use of the lower viewing angle, the aspect-to-aspect frame transition, the absence of frame, the visual metaphor and the foreground view plane. The serialization is reinforced by the realization of the verbal-visual encapsulators. We conclude that in the serial comic strip, cohesion is articulated with the structural movements of the text. Cohesion, therefore, appears as an element that articulates text and genre and, for us, must become the core of text analysis.

Keywords:
Generic Structure Potential (GSP); Verb-visual cohesion; Serial Comic Strip

1. Introdução

Como sabemos, a gramática teve primazia no ensino de língua portuguesa no Brasil. Foi na década de 1990 e nos anos 2000, com a promulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Pcn, 1998), que os gêneros discursivos passaram mais efetivamente a ser abordados na escola e as discussões sobre a língua portuguesa ganharam novos rumos. Novos gêneros passaram a figurar no ensino de língua materna, bem como outras linguagens, tais como a dos quadrinhos, a do teatro e a do cinema. Nesse contexto, ao final dos anos 2000, o gênero discursivo, com seus movimentos estruturais, e o texto, com sua gramática e textualidade, passam a ser abordados em sala de aula, juntos ou separados, sendo, ainda nesse contexto, que as relações entre ambos não estavam muito bem definidas.

Desde então, estudos sobre essa relação, entre as cadeias coesivas e os movimentos de configuração dos gêneros discursivos, desenvolveram-se de forma profícua no campo das ciências da linguagem (Vieira, 2006Vieira, S. M. M. (2006). Os processos coesivos em diferentes gêneros na interlíngua escrita de aprendizes brasileiros de inglês. Revista Investigações, 19, (2), 37-47.; Ikeda at al., 2019Ikeda, S. N. et al. (2019). Estrutura e textura de texto dissertativo-argumentativo para alunos do Ensino Médio - Um enfoque sistêmico-funcional. Polifonia, 26, (44), 81-101. ); eles se perguntam, a partir de diversos gêneros, se há alguma relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais do texto.

A sistemicista Hasan acredita que as duas unidades de composição do texto - a unidade de textura (que apresenta as cadeias coesivas) e a unidade de estrutura (que apresenta os movimentos estruturais do texto) - não se relacionam, ainda que as cadeias coesivas possam apresentar “uma relação estreita com os movimentos estruturais do texto” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 115), como já foi provado em alguns gêneros discursivos, tais como a “narrativa ficcional” (Hasan, 1984b, apud Hasan, 1984, p. 115) e “exposição” (Martin, 1984, apud Hasan, 1984, p. 115).

Em alguns gêneros discursivos, portanto, há uma estreita relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais do texto e em outros não. Será que esse é o caso dos gêneros de tiras, mais especificamente da tira cômica seriada? Nossa hipótese é que os movimentos estruturais do gênero - juntamente com as linguagens constituintes e sua gramática - articulam-se entre si por meio de seus mecanismos de coesão, sejam eles verbais, visuais ou verbo-visuais.

A fim de provar essa relação, apresentamos a configuração do gênero tira cômica seriada por meio da abordagem sistêmico-funcional de gêneros discursivos cunhada por Ruqaiya Hasan (1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University.). Analisamos as cadeias coesivas presentes no texto por meio das postulações da linguística textual sobre a coesão verbo-visual proposta por Ramos (2007Ramos, P. (2007). Tiras e piadas: duas leituras, um efeito de humor [Tese de Doutorado], Universidade de São Paulo., 2009Ramos, P. (2009). A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto., 2011Ramos, P. (2011). Faces do humor: uma aproximação entre piadas e tiras. Zarabatana., 2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ) e Capistrano Júnior (2011Capistrano Junior, R. (2011). Ler e compreender tirinhas. In V. M. Elias (org.). Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita e leitura (pp. 227-235). Contexto., 2012Capistrano Junior, R. (2012). Referenciação e humor em tiras do Gatão de Meia-idade, de Miguel Paiva. 2012. 139f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. , 2017Capistrano Junior, R. (2017). Referenciação, multimodalidade e humor em tiras cômicas do Gatão de Meia-idade, de Miguel Paiva. Pontes. ). E, por fim, relacionamos as descrições realizadas. Isso revelou como se dá, nas tiras cômicas seriadas, a relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais do texto.

Nesse sentido, com o auxílio do software NVIVO de análise qualitativa, apresentamos - de 20 exemplares da tira cômica seriada de Ed Mort, de Luiz Fernando Veríssimo e Miguel Paiva, publicadas no livro Procurando o Silva (1991Veríssimo, L. F., & Paiva, M. (1991). Ed Mort em: Procurando o Silva. L&PM.) - a Estrutura Potencial (EPG) das tiras cômicas seriadas, bem como a frequência de realização da linguagem dos quadrinhos realizada. Em seguida, com o auxílio do mesmo programa, analisamos as cadeias coesivas verbais e imagéticas encontradas no corpus de investigação. Ao final comparamos os resultados tecendo relações entre ambos.

Iniciamos o texto apresentando aspectos teórico-metodológicos de nossa pesquisa. Justificamos nossas escolhas teóricas e, em seguida, apresentamos as teorias e as análises do corpus de forma conjunta e integrada. A primeira seção dos resultados e discussões descreve os aspectos teóricos fundamentais da teoria de configuração de gêneros discursivos de Hasan, bem como as relações entre texto e contexto e a configuração do gênero tira cômica seriada. A segunda parte descreve aspectos teóricos e de análise da coesão verbo-visual; e a terceira, por fim, relaciona os movimentos estruturais do texto e a coesão verbo-visual.

2. Fundamentação teórico-metodológica

A pesquisa em pauta caracteriza-se como qualitativa, portanto, de cunho interpretativo analítico (Silverman, 2009Silverman, D. (2009). Interpretações de dados qualitativos: métodos para análise de entrevistas, textos e interações. Tradução Magda França Lopes. Artmed.), bem como quantitativa, uma vez que quantificaremos os resultados encontrados em termos de frequência. Como método de pesquisa, abordamos, ainda conforme Silverman (2009Silverman, D. (2009). Interpretações de dados qualitativos: métodos para análise de entrevistas, textos e interações. Tradução Magda França Lopes. Artmed.), a análise de textos que compõem o nosso corpus de estudo.

Analisamos as tiras cômicas seriadas de Ed Mort, escritas por Luis Fernando Veríssimo e desenhadas por Miguel Paiva. Utilizamos como textos de análise 20 tiras que compõem o livro Procurando o Silva (1991). A temática das tiras se refere à apresentação do caso que dá nome ao livro.

Em nossa pesquisa, utilizamos o seguinte aporte teórico-metodológico:

Quadro 1
Referencial teórico-metodológico

Salientamos que as discussões sobre a análise coesiva de textos multimodais serão retomadas das discussões de Ramos (2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ) e Capistrano Júnior (2011Capistrano Junior, R. (2011). Ler e compreender tirinhas. In V. M. Elias (org.). Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita e leitura (pp. 227-235). Contexto., 2012Capistrano Junior, R. (2012). Referenciação e humor em tiras do Gatão de Meia-idade, de Miguel Paiva. 2012. 139f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. , 2017Capistrano Junior, R. (2017). Referenciação, multimodalidade e humor em tiras cômicas do Gatão de Meia-idade, de Miguel Paiva. Pontes. ). Vale destacar que aqui a Linguística Textual será utilizada como meio para se chegar as estruturas coesivas verbo-visuais. Acreditamos que a Linguística Textual não é só uma teoria, mas acima de tudo um modelo de análise textual, uma posição metodológica para a análise, compreensão e interpretação de textos. Dessa forma, essa pode ser encarada como uma estratégia metodológica para análise de textos que pode ser utilizada por outros marcos teóricos funcionais para análise de aspectos particulares, como a coesão.

Em nossa investigação, portanto, tomamos a Linguística Textual, utilizada por Ramos (2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ) e Capistrano Júnior (2011Capistrano Junior, R. (2011). Ler e compreender tirinhas. In V. M. Elias (org.). Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita e leitura (pp. 227-235). Contexto., 2012Capistrano Junior, R. (2012). Referenciação e humor em tiras do Gatão de Meia-idade, de Miguel Paiva. 2012. 139f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. , 2017Capistrano Junior, R. (2017). Referenciação, multimodalidade e humor em tiras cômicas do Gatão de Meia-idade, de Miguel Paiva. Pontes. ) para a análise da coesão verbo-visual dos quadrinhos, como metodologia para se chegar aos mecanismos coesivos verbo-visuais utilizados nas tiras cômicas seriadas de Ed Mort.

As teorias sistêmico-funcionais, como sabemos, tendem a não se misturar com outros aportes teóricos. Longe de desconhecer as teorias de imagens salientamos aqui que o aporte sistêmico-funcional voltado para análise de imagens estáticas (Kress & Van Leeuwen, 1996Kress, G., & Van Leeuwen, T. (1996). Reading Images: The Grammar of Visual Design. Routledge, 1996., 2006Kress, G., & Van Leeuwen, T. (2006). Reading images: the grammar of visual design. 2ed. Routledge.) não pode ser aplicado diretamente aos quadrinhos - muitos sistemicistas me questionam porque não utilizo essas teorias na análise de quadrinhos e sempre tenho que responder. Os quadrinhos não são imagens estáticas, são imagens que pressupõem movimento: “imagens pictóricas justapostas e outras em sequência deliberada destinada a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador” (Mccloud, 1995Mccloud, S. (1995). Desvendando os quadrinhos. Makron Book. , p. 9). Logo, eles se definem, principalmente, pela presença da sarjeta (aquele espaço em branco entre um quadro e outro), onde a história acontece.

É por essa razão que não utilizamos essas teorias aqui. A Linguística Textual parece ter mais avanços em relação aos estudos com os quadrinhos (Ramos, 2007Ramos, P. (2007). Tiras e piadas: duas leituras, um efeito de humor [Tese de Doutorado], Universidade de São Paulo.; Capistrano, 2012Capistrano Junior, R. (2012). Referenciação e humor em tiras do Gatão de Meia-idade, de Miguel Paiva. 2012. 139f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ). Por isso reunimos aqui Linguística Textual (como método) e a Linguística Sistêmico-Funcional de Hasan (como teoria).

2. Fundamentação teórico-metodológica

3.1. Tira cômica seriada e gênero: teoria e análises empreendidas

Estudos empreendido com as postulações sistêmico-funcionais de Hasan são desenvolvidos desde 1993 - ver ampla revisão de literatura realizada por Simões (2016Simões, A. C. (2016). El estado de arte de la teoría de Ruqaiya Hasan: ¿dónde están las pesquisas sobre el Potencial de Estructura Genérica (PEG)? Texturas, 15, 83-96. ; 2020Simões, A. C. (2020). A estrutura potencial do gênero: uma introdução às postulações sistêmico-funcionais de Ruqaiya Hasan. Appris.). Há pesquisas com os contos de fada (Hasan, 1996Hasan, R. (1996). The nursery tale as a genre. In C. Choran, D. Butt, & G. Williams (Ed.), Ways of saying of meaning: selected papers of Ruqaiya Hasan (pp. 61-72). Cassell.), o estágio supervisionado (Silva & Fajardo-Turbin, 2011Silva, W. R., & Fajardo-Turbin, A. E. (2011). Relatório de estágio supervisionado como registro da reflexão pela escrita na profissionalização do professor. Polifonia, 18, (23), 103-127. ; Silva, 2012Silva, W. R. (2012). Proposta de análise textual-discursiva do gênero relatório de estágio supervisionado. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, 28 (2) 281-305. https://doi.org/10.1590/S0102-44502012000200004.
https://doi.org/10.1590/S0102-4450201200...
, 2013Silva, W. R. (2013). Escrita do gênero relatório de estágio supervisionado na formação inicial do professor brasileiro. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, 13, (1), 171-195. https://doi.org/10.1590/S1984-63982012005000016.
https://doi.org/10.1590/S1984-6398201200...
), o editorial de jornal (Ansary & Babaii, 2005Ansary, H., & Babaii, E. (2005). The generic integrity of newspaper editorials. RELC Journal, 36, (3), 271-295. https://doi.org/10.1177/0033688205060051.
https://doi.org/10.1177/0033688205060051...
; 2009Ansary, H., & Babaii, E. (2009). A cross-cultural analysis of English newspaper editorials: A systemic-functional view of text for contrastive rhetoric research. RELC Journal, 40, (2), 211-249. https://doi.org/10.1177/0033688209105867.
https://doi.org/10.1177/0033688209105867...
), a introdução/conclusão de gêneros acadêmicos da área de engenharia (Navarro & Simões, 2019Navarro, F., & Simões, A. C. (2019). Potencial de Estructura Genérica en tesis de ingeniería eléctrica: Contrastes entre lenguas y niveles educativos. Revista signos, Valparaíso, 52, (100), 306-329. http://dx.doi.org/10.4067/S0718-09342019000200306.
http://dx.doi.org/10.4067/S0718-09342019...
), e o texto dissertativo-argumentativo (Ikeda et al., 2019Ikeda, S. N. et al. (2019). Estrutura e textura de texto dissertativo-argumentativo para alunos do Ensino Médio - Um enfoque sistêmico-funcional. Polifonia, 26, (44), 81-101. ), entre outros. No Brasil, a teoria foi popularizada por Motta-Roth e Herbele (2005Motta-Roth, D., & Herbele, V. M. (2005). O conceito de “estrutura potencial do gênero” de Ruqaiya Hasan. In J. L. Meurer, A. Bonini, & D. Motta-Roth (Org.), Gêneros: teorias, métodos, debates (pp. 12-28). Parábola.).

Em suas postulações, Hasan defende que há uma relação indissociável entre texto e contexto, bem como entre gênero e cultura. Essa relação pode ser descrita da seguinte forma:

Esquema 1
A cultura, a situação e a configuração contextual

A cultura (o potencial semiótico), no topo do diagrama, corresponde ao conjunto total de significados que uma certa comunidade pode realizar. Nela estão as formas de “fazer, modos de ser e maneiras de dizer” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 99). A cultura contém - como observamos nas setas duplas verticais - o potencial semântico, ou seja, todos os valores realizados pela língua em uso (linguagem), expressos em variáveis campo2 2 A variável campo do discurso concerne à natureza da atividade social, que envolve tanto as ações/atos que estão sendo realizadas, como seu(s) objetivo(s).” (Hasan, 1989, p. 56). , relação3 3 Investigam-se os papeis dos agentes, bem como “as relações entre os participantes, que surgem a partir de suas biografias ou vivências em comum” (Hasan, 1989, p. 57). Investiga-se a distância social entre eles, se máxima ou mínima. “Quanto maior a distância social mínima, maior o grau de familiaridade entre os participantes.” (Hasan, 1989, p. 57). e modo4 4 Investiga-se o papel da linguagem verbal “se constitutiva ou auxiliar do ato comunicativo” (Hasan, 1989, p. 58); o processo de compartilhamento do texto (canal, fônico ou gráfico); se “o destinatário é capaz de partilhar o processo de criação do texto, como ele se desenvolve, ou o destinatário vê o texto só quando ele é um produto acabado” (Hasan, 1989, p. 58); qual o meio de realização do texto, se falado ou escrito. (CRM) - como observamos nas setas duplas horizontais. Por sua vez, a o potencial semântico específico do gênero está contido no potencial semântico. É ali, a partir de uma calibração dos valores de campo, relação e modo que surge o gênero. Para Hasan (1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 108), “gênero é uma forma abreviada para a frase mais elaborada ‘potencial semântico específico do gênero.”

Uma vez apresentado as relações entre a cultura e gênero, apresento o conceito de texto. Aos moldes sistêmico-funcionais, texto pode ser conceituado como o potencial de significado realizado (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University.). Esse texto está relacionado diretamente ao seu contexto de situação ou produção; ou seja, há uma relação “de mão dupla entre texto e contexto” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 55). Por meio do contexto podemos prever que estruturas devem ou podem ocorrer em um texto. Da mesma forma, por meio do texto, podemos reconstruir as características de seu contexto.

A partir do Contexto - chamado por Hasan de Configuração Contextual (CC), “um conjunto de valores que realizam campo, relação e modo.” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 56) - podemos prever: (a) que elementos devem ocorrer?; (b) Quando eles devem ocorrer?; (c) Quando podem ocorrer?; e (d) Com que frequência podem ocorrer?

De posse da Configuração Contextual (CC) do gênero tira cômica seriada de Ed Mort, por exemplo, podemos prever que elementos devem ocorrer (os obrigatórios) e que elementos podem ocorrer (os opcionais). Da mesma forma, podemos elencar qual dos elementos (obrigatórios ou opcionais) podem surgir no texto sobre o fenômeno de iteração (o que os torna elementos iterativos5 5 Esses elementos podem ser compreendidos como elementos recursivos, ou seja, sua existência é sempre “uma opção” (Hasan, 1989, p. 62). São recursos estruturais, portanto, de construção de significado. ).

Logo, a Configuração Contextual (CC) da tira cômica seriada de Ed Mort realiza-se da seguinte maneira:

Campo: Narração ficcional longa, segmentada com vistas a construção do humor-seriado baseado em personagem fixo.

Relação: O autor está na condição de desenhista. Os leitores são aqueles interessados na leitura de quadrinhos.

Modo: Linguagem multimodal, constituída a partir da associação de imagem e texto. De forma mais específica temos que: o papel da linguagem verbal é auxiliar na composição da tira, cujo foco central é a imagem; o canal é gráfico (multimodal: escrito + imagético); o meio é escrito; e o processo é dialógico. (Simões, 2018Simões, A. C. (2018). A Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e o ensino explícito de gêneros do discurso: a configuração dos gêneros de tiras e o ensino de língua portuguesa [Tese de doutorado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. , p. 241).

Diante de seu Contexto (CC), podemos dizer que o texto deve6 6 Dever ou poder é uma questão de frequência de realização no corpus de estudo. “Acreditamos que devam ser classificados como elementos obrigatórios aqueles que sempre ocorrem, ou seja, aqueles que apresentam uma frequência considerada alta no texto, mais de 80% (81% em diante) dos exemplares em análise. Logo, os elementos opcionais passam a ser aqueles que podem ocorrer com frequência considerada baixa no texto, menos de 80% do corpus em análise. Dessa forma, ainda em nosso entendimento, os elementos obrigatórios ou opcionais que estiverem entre 75% e 85% de presença no corpus analisado se encontram em estágio de mudança e/ou transformação, uma vez que podem mudar de categoria analítica, passando de obrigatórios para opcionais ou de opcionais para obrigatórios, a depender do contexto de situação a ser mapeado. Esse fato evidencia que a Estrutura Potencial do Gênero é probabilística e pode sofrer mudanças no tempo e no espaço.” (Simões, 2018, p. 144). realizar, a fim de constituir-se como uma tira cômica seriada (Simões, 2018Simões, A. C. (2018). A Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e o ensino explícito de gêneros do discurso: a configuração dos gêneros de tiras e o ensino de língua portuguesa [Tese de doutorado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ):

  • Um formato retangular (FR), uma vez que a narrativa é apresentada aos leitores em um tamanho definido (10X15) pelo suporte livro;

  • A Cor (C) , no caso preto-e-branco, predefinidos pelo suporte livro;

  • Uma Estrutura Narrativa (EN), uma vez que o texto é uma narrativa que termina com desfecho cômico;

  • Um ou mais Personagens (P), que irão contar a história, sendo eles protagonistas, coadjuvantes ou figurantes. Tais personagens, a fim de contar suas anedotas, devem realizar o balão e podem realizar de forma iterativa legendas, linhas e traços e metáforas visuais;

  • Um espaço (E), onde a história irá se desenvolver, sendo apresentado por meio de planos de visão, ângulos de visão e transição de quadros.

  • Diversas sarjetas (Sar) e requadros (Rq) , uma vez que estes elementos da linguagem dos quadrinhos delimitam os diversos fatos da história que serão apresentados ao leitor;

  • O tempo (Tem), uma vez que este é o responsável por delimitar a época dos acontecimentos narrados; o tempo de duração de cada cena e dos diálogos empreendidos na aventura;

  • Uma Assinatura Autoral (Aau), a fim de demarcar a autoria da tira realizada;

  • Uma Identificação Bibliográfica (Ib), a fim de demarcar o nome da tira, que no caso é retomada através da capa do livro e, portanto, não surge em cada tira, mas uma única vez.

  • Uma Seriação (S), que objetiva indicar ao leitor a ordem de leitura da narrativa humorística que irá continuar na próxima tira.

Para exprimir toda essa gama de possibilidades de realização, Hasan elabora o conceito de Estrutura Potencial do Gênero (EPG), que se compõe de todos os elementos obrigatórios, opcionais e os iterativos.

De forma didática, podemos configurar uma EPG7 7 Recuperamos as análises já realizadas por nós com este gênero e corpus em nossa tese de doutorado (Simões, 2018 - ver páginas 241-265). No projeto original indicamos a análise de todas as tiras do livro. Entretanto, constatamos que, por questões quantitativas e qualitativas, os 20 exemplares de tiras já nos foram suficientes para alcançar resultados relevantes de pesquisa e que satisfazem nossas hipóteses de investigação. Na pesquisa atual, entretanto, diferente da empreendida na tese, utilizamos como ferramenta de análise o software NVIVO, o que potencializou nossos resultados, uma vez que não é comum a pesquisa de quadrinhos a análise de dados quantitativos. Com o software realizamos a relação qualitativa entre a coesão e a Estrutura Potencial, como se verá nos diagramas elaborados. da seguinte forma:

Quadro 2
Composição da CC e EPG: designação, conceitos e metodologias de análise.

A EPG se apresenta por meio de uma fórmula, como a descrita abaixo:

Imagem 1
8 8 Os elementos obrigatórios estão assinalados em negrito; os opcionais em itálico e os iterativos com a seta à esquerda acima das letras. Os asteriscos mostram se o elemento possui uma ordem fixa ou não. As tiras cômicas seriadas não apresentam elementos opcionais (Simões, 2018). Estrutura Potencial do Gênero tira cômica seriada

A EPG é uma estrutura probabilística que tenta retratar de forma ideal todas as possiblidades estruturais do texto. Por fim, podemos dizer ainda que o texto, segundo Hasan (1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University.), possui duas unidades: (a) a unidade de textura, onde estão os mecanismos de tessitura do texto; e (b) a unidade de estrutura, onde estão os elementos textuais responsáveis pela realização da Estrutura Potencial do Gênero (EPG). Acreditamos, assim como Simões (2018Simões, A. C. (2018). A Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e o ensino explícito de gêneros do discurso: a configuração dos gêneros de tiras e o ensino de língua portuguesa [Tese de doutorado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. , p. 343) que o “gênero é a unidade de estrutura em Hasan, aquela responsável pela identidade genérica, onde está a Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e as linguagens não-verbais constituintes do texto.”

Uma vez descrita as postulações da Estrutura Potencial do Gênero (EPG), juntamente com as discussões de nosso corpus de pesquisa, passemos a descrever as teorizações que analisam a coesão verbo-visual das tiras cômicas seriadas.

3.2. A coesão verbo-visual

Os estudos sobre a multimodalidade tem sido objeto de estudos da Linguística Textual desde a (re)discussão do conceito de texto, que foi expandido a fim de abarcar dimensões imagéticas e verbo-visuais (Cavalcante et al, 2014Cavalcante, M. M. et. al. (2014). Coerência, referenciação e ensino. Cortez.; Cavalcante & Custódio Filho, 2010Cavalcante, M. M., & Custódio Filho, V. (2010). Revisitando o estatuto do texto. Revista do Gelne. Piauí, 12, (2), 56-71. Disponível em: Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/26452/1/2010_art_mmcavalcante.pdf . Acesso em: 28 Jul. 2021.
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/...
). Nesse sentido merecem destaques os estudos sobre a coesão verbo-visual nas tiras cômicas (Ramos, 2007Ramos, P. (2007). Tiras e piadas: duas leituras, um efeito de humor [Tese de Doutorado], Universidade de São Paulo., 2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ; Capistrano, 2012Capistrano Junior, R. (2012). Referenciação e humor em tiras do Gatão de Meia-idade, de Miguel Paiva. 2012. 139f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ).

A fim de desvendar os processos coesivos verbo-visuais da tira cômica seriada, apresentamos uma breve análise dos processos referenciais contidos em uma das tiras cômicas seriadas de Ed Mort (1977), de Luis Fernando Verissimo (texto) e Miguel Paiva (desenho). Discutimos a primeira tira do livro Ed Mort: procurando o Silva (1977), como podemos ver abaixo (Fig. 01). Concomitante com a análise da tira, apresentamos os conceitos da linguística textual que embasam a nossa pesquisa.

O livro de Ed Mort inicia com a seguinte tira:

Figura 1
Tira 01, Ed Mort em Procurando o Silva, p. 3

O texto acima apresenta, como é visível, aspectos linguísticos verbais e não-verbais, o que chamamos de elementos verbo-visuais. A análise de textos multimodais por meio do escopo teórico-metodológico da Linguística Textual (LT) já vem sendo postulada pelo grupo de pesquisa GETEXTO (UNIFESP). Eles defendem que é possível realizar por meio LT a análise simultânea da modalidade verbal e não verbal, ou seja, o mesmo “escopo teórico aplicado aos enunciados verbais escritos é válido também para os de cunho visual ou verbo-visual” (Ramos, 2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. , p. 744). É nesse sentido que validamos também a análise que empreendemos, por considerarmos essa tese plausível e aceitável dentro do que se propõe.

Quando falamos em referenciação, podemos considerar ainda que, se as expressões referenciais utilizadas nesse processo são selecionadas de acordo “com a audiência, com os propósitos comunicativos, com o contexto imediato”, entre outros (Authier-Revuz, 1998, apud Magalhães, 2011Magalhães, M. (2011). Referenciação: sobre coisas ditas e não ditas. Edições UFC., p. 28), a seleção de referentes responde, portanto, a exigências do gênero textual que as constitui. Logo, podemos dizer que é o gênero textual um dos mecanismos discursivos que regulam os processos referenciais dos textos. Sendo assim, investigar a referenciação por meio da configuração de gêneros responde a uma grande lacuna de pesquisas, que pode ser expressa pela seguinte questão: como articular texto e gênero em práticas de leitura e escrita?

Quando investigamos os referentes do texto, observamos que eles se relacionam diretamente com gênero discursivo realizado. Concluímos, com isso, que a relação texto-gênero ou gênero-texto é interdependente e não pode se processar de maneira separada ou distante. Acreditamos que essa análise requer uma observação simultânea entre texto e gênero, entre as cadeias referenciais utilizadas e as etapas de configuração do gênero.

É tomando como base tais preceitos que descrevemos abaixo os processos de referenciação ocorridos na tira cômica seriada de Ed Mort. Esperamos com tal descrição perceber, com um pouco mais de clareza, como o gênero tira cômica seriada realiza suas estratégias de referenciação.

A primeira consideração a se fazer é que na tira a referenciação se dá no quadrinho (dentro da vinheta9 9 Vinheta ou quadro (Ramos, 2009). Uma tira cômica tem normalmente três quadros (ou três vinhetas). ), entre a modalidade verbal e visual, assim como na articulação entre um quadrinho e outro (Ramos, 2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ).

Outro aspecto a se considerar é que textos de humor normalmente tem como exigência a recategorização processada por meio de inferências (Ramos, 2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ), como podemos ver na tira 02 de Ed. Mort (Fig. 02), em que o ratão albino do escri é chamado de Voltaire (aquele que “desaparece, mas sempre volta”, por isso Voltaire, de Voltar.

Figura 2
Tira 02, Ed Mort em Procurando o Silva, p. 3

Logo, entender a tira cômica seriada Ed Mort é perceber que muito do humor da tira é construído por recategorizações que se processam na medida em que os leitores realizam corretamente as inferências solicitadas - do contrário o humor não é percebido.

Na primeira tira do livro (Fig. 1) podemos observar que o discurso se dá de forma direta entre personagem (Ed. Mort) e leitores do jornal. Há presença de balões de fala, cujo conteúdo textual é grafado em caixa alta, próprio ao gênero.

A exemplo da análise de Ramos (2012Ramos, P. (2012). Estratégias de referenciação em textos multimodais: uma aplicação em tiras cômicas. Ling. (dis)curso [online]. 12, (3), 743-763. ), salientamos que na tira de Ed Mort, como em outros quadrinhos e tiras, os objetos do discurso são de ordem visual (ou verbo-visuais, termo de nossa preferência) e são recuperados de forma anafórica pela cena seguinte em relações de cunho coesivo.

Na Fig.1, temos o objeto do discurso Ed Mort e o objeto do discurso escritório. O primeiro objeto é o protagonista da série de tiras, informação esta que é recuperada por meio de nossos conhecimentos prévios e compartilhados sobre o personagem ao ler a capa do livro ou outros livros do autor. Afinal, se o livro de tiras se chama Ed Mort e o personagem afirma que seu nome é Ed Mort é ele o detetive particular da história. Na tira 1 é apresentado o personagem principal da tira e sua profissão: detetive particular que cuida de casos de morte, por isso o uso dos recursos fonético-fonológicos na expressão sonora do nome do personagem é de morte (escreve-se Ed Mort), ou seja, Ed Mort é um detetive que cuida de casos de morte. As vinhetas que se seguem continuam a apresentar o personagem dizendo o que ele tem (um escri), isso se processa anaforicamente quando a vinheta 2 retoma a vinheta 1, e assim por diante até o desfecho cômico.

No Quadro 1, Ed Mort está caminhando pela escada da galeria de Copacabana em direção ao seu escritório. O quadro dois retoma anaforicamente a cena anterior, onde se percebe que o personagem estava descendo a escada para chegar ao seu local de trabalho (vemos a escada ao fundo da cena) e o personagem se virando para a porta do escritório.

Já o Quadro 3 explica o porquê do objeto do discurso escritório foi recategorizado na tira como “escri”, pois o personagem “não gosta de ostentação” e por isso não adicionou à palavra “escri” o “tório” também. O afeito de humor reside na associação do objeto do discurso escri numa galeria em Copacabana (construído com corredores escuros) com objeto de discurso Ed Mort (o detetive de casos de morte). Novamente o nosso conhecimento de mundo é acionado e, por meio dele, percebemos que as galerias em Copacabana na realidade não possuem ostentação e, por isso mesmo, não havia necessidade de Ed Mort dizer que ele “não gosta de ostentação.” Essa repetição do óbvio gera humor.

Se o terceiro quadro é destinado para a construção do desfecho cômico da tira, o quarto quadro é destinado, ao menos nesse exemplar, para construir a continuidade da história. O personagem diz - em close e em quadro maior do que os anteriores, o que enfatiza que essa cena demorou mais do que as outras para ocorrer - “Mort Ed Mort Está na porta” (e também aponta para a porta, enfatizando o que disse “na porta”). Com essa estrutura textual, percebemos o intertexto com um outro famoso investigador de crimes, James Bond (Bond. James Bond10 10 James Bond utilizava essa frase em suas aventuras. Logo, Mort realiza um claro intertexto com Bond. ). Nesse momento, Ed Mort se aproxima discursivamente de James Bond. Na mesma hora em que essa imagem vai sendo construída, Ed Mort se distancia dela, pois ele diz que Ed. Mort está na porta, ou seja, ele não é como James Bond, o que disse no balão de fala é a leitura do que está escrito na porta (por isso enfatiza com o indicador a porta).

Tendo descrito a maneira como se processa a coesão verbo-visual nas tiras de Ed Mort em Procurando o Silva, passemos a descrever as relações entre os mecanismos de coesão verbo-visuais e os movimentos estruturais do gênero.

3.3. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais e sua configuração genérica

Apresentamos abaixo as relações por nós encontradas ao analisarmos as cadeias coesivas com os elementos obrigatórios e opcionais do texto. Cada item descrito representa uma relação encontrada.

3.3.1. O Formato retangular e a realização de anáforas

O formato retangular, presente como elemento obrigatório nas tiras cômicas seriadas, favorece a construção das retomadas anafóricas ou catafóricas. Percebemos, sem dificuldade, que o último quadro retoma o anterior, e assim sucessivamente até o primeiro. A história é contada da esquerda para a direita, o que favorece a construção de um antes (anáfora) e um depois (catáfora), própria dos textos narrativos.

3.3.2. O Planos de visão total ou de conjunto e a introdução referencial

No plano de visão total ou de conjunto o personagem é apresentado dentro da cena, dando primazia para o personagem. “O ser é representado de maneira mais próxima. Reduz-se a importância do ambiente que o cerca e o personagem passa a ganhar mais atenção” (Ramos, 2009Ramos, P. (2009). A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto., p. 138). Em nossa pesquisa, evidenciamos que esse plano favorece a realização da introdução referencial. Por sua realização, o plano total ou de conjunto é realizado na mesma proporção em que há a introdução de novos personagens à história, como apresentado abaixo:

Figura 3
Tira 03, Ed Mort em Procurando o Silva

Na figura 3, os advogados da Sra. Silva, personagens coadjuvantes e figurantes, são apresentados na história pela primeira vez - em uma introdução referencial. O espaço, portanto, realiza-se como plano de visão total ou de conjunto. A introdução referencial é apresentada pela legenda “vários homens” que é recategorizada para “meus advogados.” A recategorização é acompanhada pelo plano de visão total ou de conjunto que focaliza os advogados como personagens, os quatro advogados ao lado da Sra. Silva, ao centro da cena. No decorrer da cena, a recategorização dos homens em advogados é questionada por Ed. Mort, que os testa dizendo “Data Venia.”

A introdução referencial também se relaciona com o plano de visão total ou de conjunto na apresentação do personagem porteiro (coadjuvante), como apresentado na tira abaixo:

Figura 4
Tira 03, Ed Mort em Procurando o Silva

Na figura 4, em especial na segunda vinheta, o porteiro surge na história pela primeira vez - em introdução referencial - a partir do plano de visão total ou de conjunto, que evidencia sua postura, desatenta em relação às pessoas que passam. Logo, como se vê, a apresentação de personagens em introdução referencial se relaciona com o plano de visão total ou de conjunto realizado.

De nosso corpus de pesquisa, com o auxílio do software de análise qualitativa11 11 http://www.qsrinternational.com/nvivo-portuguese NVIVO12, constatamos que essa relação é, aos moldes de Hasan (1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University.), opcional, visto a sua baixa frequência de realização.

Diagrama 1
relacionando o plano de visão total ou de conjunto com a introdução referencial

Ao relacionarmos as variáveis introdução referencial e o plano de visão total ou de conjunto, encontramos 5 referências em comum, ou seja, dos 07 corpus que apresentam a introdução referencial, 5 são realizadas pelo plano de visão total ou de conjunto (ver segunda coluna do diagrama). Isso significa dizer que 71% das tiras cômicas-seriadas de nosso corpus realizam a introdução referencial por meio do plano de visão total ou de conjunto, o que caracteriza essa relação como opcional12 12 “Para nós, consideramos que os elementos obrigatórios são aqueles que sempre ocorrem, ou seja, apresentam uma frequência considerada alta no texto, mais de 80% (81% em diante) dos exemplares em análise. Os elementos opcionais são aqueles que podem ocorrer, cuja frequência no corpus é considerada baixa no texto, menos de 80% do corpus em análise. Dessa forma, ainda em nosso entendimento, os elementos obrigatórios ou opcionais que estiverem entre 75% e 85% de presença no corpus se encontram em estágio de mudança e/ou transformação, uma vez que podem mudar de categoria analítica, passando de obrigatórios para opcionais ou de opcionais para obrigatórios, a depender do contexto de situação a ser mapeado” (Simões, 2018, p. 156). . Ela se torna iterativa também, uma vez que aparece em mais de um exemplar por vez, como apresentado na figura 3.

Podemos observar também essa mesma relação presente no plano de visão geral ou panorâmico. Se o plano total ou de conjunto apresenta como introdução referencial um novo personagem colocado na cena, o plano geral ou panorâmico também apresenta como introdução referencial algo novo na cena, mas desta vez a novidade está na mudança de cenário, como apresentado na tira abaixo:

Figura 5
Tira 20, Ed Mort em Procurando o Silva

Na figura acima, Ed Mort sai de seu escritório (escri) em direção à casa da Sra. Silva. A troca de cenário é apresentada com a mudança de plano de visão e inicia-se a introdução referencial de um novo cenário, no caso a casa da Sra. Silva. Em nosso corpus de pesquisa a troca de cenário por um novo ocorreu apenas uma vez, sendo caracteriza, portanto, como opcional - dos 07 corpus que apresentaram a introdução referencial, apenas 01 se deu em plano geral ou panorâmico (14%), como podemos visualizar no diagrama abaixo:

Diagrama 2
relacionando o plano de visão geral ou panorâmico com a introdução referencial

Diante do diagrama, compreendemos que a relação estabelecida é opcional, uma vez que, de nosso corpus de pesquisa, os planos gerais ou panorâmicos com introduções referenciais sugiram com baixa frequência.

3.3.3. O Plano de visão detalhe e a reiteração

No plano detalhe é enfocado um objeto ou personagem em detalhes. “A atenção é para detalhes do rosto ou de objetos” (Ramos, 2009Ramos, P. (2009). A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto., p. 140). Essa focalização favorece a recategorização dos objetos do discurso (reiteração), como podemos ver abaixo:

Figura 6
Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva

Na tira acima, Ed Mort está em seu escritório pensando no almoço quando “ela” surge em plano detalhe. A metáfora visual da música garota de Ipanema é tocada, o que recategoriza “ela” para uma “coisa linda, cheia de graça.” A seguir, “ela” é recategorizada como “Mulherão”, o que é sugerido pelo plano detalhe da vinheta 2, que faz Ed Mort cair da mesa, haja vista as linhas de movimento presentes na cena.

Podemos ver a mesma relação coesiva de reiteração por recategorização no uso de plano detalhe na figura 7, abaixo:

Figura 7
Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva

Percebemos, conforme figura 7, que o “precisar de você” (vinheta 1) é recategorizado na vinheta 2. O serviço de detetive (trabalho) é recategorizado para “serviços de acompanhante.” Nessa recategorização o plano de visão é modificado para o plano detalhe, o que é reiterado pela conjunção adversativa “mas.”

Em nosso corpus de pesquisa constatamos que a relação entre o plano detalhe e a recategorização é opcional e iterativa, como podemos observar no diagrama abaixo:

Diagrama 3
relacionando o plano de visão detalhe com a reiteração

Pelo diagrama percebemos que a relação entre reiteração e plano detalhe é opcional iterativa, uma vez que de 12 exemplares de reiteração 6 foram realizados pelo plano detalhe, 50%. Essa recategorização pode ocorrer mais de uma vez por texto, o que o caracteriza como iterativo, ou como um recurso para narrar.

A mesma recategorização em plano detalhe ocorre na tira abaixo.

Figura 8
Tira 16, Ed Mort em Procurando o Silva

Discutiremos a figura 8 no item abaixo, uma vez que ele também se relaciona com o ângulo de visão inferior.

3.3.4. O Ângulo de visão inferior e a reiteração

Na figura 8, anteriormente apresentada, na terceira vinheta, observamos que o plano de visão detalhe e o ângulo de visão inferior recategorizam o conteúdo do balão fala “eu posso pagar” de dinheiro para “serviços de acompanhante”, daí o plano de visão enfatizar muito mais o corpo da Sra. Silva do que o dinheiro que ela tem na bolsa. Quando alteramos o ângulo de visão recategorizamos algo na narrativa apresentada.

Consideramos que o plano de visão inferior se relaciona com a recategorização. Dos 20 textos analisados, 19 (95%) se realizaram por meio do ângulo de visão médio, somente 01 (5%) se realizou por meio do ângulo de visão inferior. Dos 12 textos com reiteração, um (01, 8,3%) se realizou por meio de ângulo de visão inferior, como observamos no diagrama abaixo:

Diagrama 4
relacionando o plano de visão detalhe com a reiteração

Modificar o ângulo de visão, é, de alguma forma, recategorizar. Por sua baixa frequência nas tiras, quando surge, o ângulo de visão inferior é significativo e recategoriza aspectos na cena apresentada.

3.3.5. A Seriação e os encapsuladores verbo-visuais

A seriação, elemento obrigatório do gênero, é o número da tira que surge entre as sarjetas da tira. Essa seriação pode ser reforçada por encapsuladores verbo-visuais que retomam toda uma narrativa, devidamente numerada, de uma tira anteriormente apresentada. No exemplo abaixo (figura 9), apresentamos o personagem, elemento obrigatório iterativo, como um encapsulador verbo-visual, em destaque em vermelho.

Figura 9
Tira 07 e 08, Ed Mort em Procurando o Silva

Na figura acima (Fig. 9), há uma clara retomada da tira anterior, favorecendo a sua continuação. O plano detalhe e os personagens são repetidos. Há uma transição de tiras de movimento para movimento, como percebemos no piscar de olhos da Sra. Silva. O encapsulador é aqui essencialmente visual e se apresenta por meio do elemento obrigatório personagem.

Uma outra forma de se realizar o encapsulamento se dá quando as cenas dialogam com a anterior. As baratas (personagens), apresentadas na figura são retomados da tira anterior, onde elas estão no chão mostrando indiferença.

Figura 10
Tira 10, Ed Mort em Procurando o Silva

Como se vê na figura acima, a Sra. Silva aponta para as baratas. Os insetos, como se vê, não estão na tira. O sintagma “baratas” é um encapsulador para a tira anterior, pois ele resume um humor já realizado, que se inscreve na legenda “as baratas fingiam indiferença,” como apresentado na abaixo.

Figura 11
Tira 9, Ed Mort em Procurando o Silva

Quando relacionamos seriação e encapsulamento outros exemplos relevantes podem ser apresentados. Também podem funcionar como elementos encapsuladores, o balão (figura 12) e a legenda (figura 14).

Na figura 12, o balão final, em destaque, retoma o conteúdo verbal das duas vinhetas anteriores destacadas em vermelho. Há uma continuação da tira repetindo-se aspectos da anterior, no caso o plano detalhe e os conteúdos do balão-fala de Ed Mort.

Figura 12
Tira 01 a 04, Ed Mort em Procurando o Silva

A legenda (sem linha) também funciona como encapsulador verbo-visual. Ela apresenta o que se passou na tira anterior, situando-a para o leitor da nova tira, como podemos ver na figura 14.

Figura 14
Tira 57 a 60, Ed Mort em Procurando o Silva

Na figura acima (Fig. 14), o balão final, em destaque, retoma o conteúdo verbal das duas vinhetas anteriores destacadas em vermelho. Há uma continuação da tira anterior repetindo aspectos da anterior, no caso o plano detalhe e os conteúdos do balão-fala de Ed Mort.

O encapsulamento pode ocorrer tanto entre tiras como na mesma tira, como apresentamos na figura 15, abaixo:

Figura 15
Tira 19, Ed Mort em Procurando o Silva

Na figura 15, Ed Mort, como narrador-personagem, apresenta as quatro coisas que sabe sobre o caso do Silva até o momento. O sintagma “aquele caso” (na vinheta 1) encapsula todas as tiras apresentadas até o momento. Destacamos ainda que os fatos apresentados nas quatro vinhetas são chamadas de “estas recapitulações” sintagma que encasula as três vinhetas anteriores.

De nosso corpus de estudo, dos 20 textos que realizaram a seriação, três apresentaram encapsuladores, 15%.

Diagrama 5
relacionando a seriação com o encapsulamento

Logo, como observamos no diagrama 5, a realização de encapsuladores nas tiras cômicas seriadas é opcional e iterativa, uma vez que surge poucas vezes no corpus de análise e mais de uma vez em um mesmo exemplar de nosso corpus de estudo.

3.3.6. A Transição de quadros aspecto pra aspecto e a reiteração

Ao analisarmos o espaço, constatamos que a transição de quadros aspecto para aspecto favorece a recategorização de objetos do discurso. Na tira abaixo, por exemplo, a recategorização foi realizada pela transição de quadros.

Figura. 16
Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva

Na cena, a Sra. Silva diz à Ed Mort que precisa de seus serviços. Logo, o sintagma “preciso de você” é recategorizado de “trabalho” para “serviços de acompanhante”, em especial pela utilização do plano detalhe e da transição de quadro aspecto para aspecto.

Diagrama 6
relacionando a transição de quadros aspecto pra aspecto com a reiteração

De nosso corpus, conforme diagrama acima (Diagrama 6), temos que dos casos de transição de quadro em destaque, inscrito em dois textos, ambos realizaram a reiteração. Por sua vez apenas 16% das tiras realizam a reiteração por meio da transição de quadros, o que a torna opcional.

3.3.7. A Ausência de requadro e a reiteração

Nas tiras cômicas seriadas é comum a presença do requadro. Das tiras de nosso corpus das 62 ocorrências, 6 textos não possuem requadro. A ausência do requadro favorece a realização da reiteração. Na tira baixo a ausência do requadro recategoriza a Sra. Silva para “coisa mais linda mais cheia de graça.”

Figura 17
Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva

A ausência de requadro sinaliza a demora da passagem do tempo. Essa significação, sugere o andar (ou desfilar) da garota de Ipanema até chegar à Ed Mort. Esse recurso reforça a recategorização criada também pelo plano de visão em detalhes.

A mesma ausência do requadro também favorece a recategorização na tira seguinte, 18.

Figura 18
Tira 08, Ed Mort em Procurando o Silva

Na segunda vinheta da tira, a ausência do requadro constrói uma pausa dramática para a piadinha contada por Mort para fazer a moça sorrir.

Do corpus de trabalho, com o auxílio do NVIVO, constatamos que dos 12 textos com reiteração, 5 são realizados pela ausência do requadro.

Diagrama 7
relacionando a ausência de requadro com a reiteração

Nesse sentido, a ausência de requadro se realiza de forma opcional e iterativa, 41%. Essa relação reforça a reiteração realizada por outros elementos da EPG como o plano de visão detalhe.

3.3.8. As Metáforas visuais e a reiteração

As metáforas visuais também podem ser utilizadas como recursos para construção de recategorizações de objetos do discurso. A tira abaixo foi realizada com a presença de metáforas visuais, que recategorizam a Sra. Silva.

Figura 19
Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva

A tira acima já foi apresentada em nossa discussão. Três elementos favorecem a recategorização: o plano detalhe, a ausência do requadro e a metáfora visual. Destacamos aqui a presença da metáfora visual realizada na segunda vinheta. A música que surge na segunda vinheta recategoriza “ela” para “coisa mais linda, mais cheia de graça.” Essa metáfora é acionada ao relacionarmos nosso conhecimento de mundo sobre Ed Mort, que tem um escritório em uma galeria de Copacabana, e é carioca e compartilha todo estereótipo do Rio de Janeiro. Esses conhecimentos, categorizam a partitura musical para a música de Tom Jobim Garota de Ipanema - a notação musical se assemelha às partituras da música.

De nosso corpus de pesquisa, a presença de metáforas visuais é pouco frequente. Das duas ocorrências em nosso corpus, uma realiza a recategorização, como observamos no diagrama abaixo:

Diagrama 8
relacionando a metáfora visual com a reiteração

Dessa maneira, dos 12 textos que realizaram a reiteração, apenas um (8,3%) é realizado por meio de metáforas visuais. Logo, a relação texto e gênero é opcional, visto a sua baixa frequência nos textos de estudo.

3.3.9. O plano de visão primeiro plano e a reiteração

A realização do primeiro plano favorece a realização da recategorização de objetos do discurso. Entretanto, nos parece que essa recategorização só ocorre dessa forma quando é apenas imagética ou quando tem a imagem como fonte principal de significação. Na tira abaixo, por exemplo, a recategorização se dá de forma imagética, no olhar de pesar da personagem.

Figura 20
Tira 15, Ed Mort em Procurando o Silva

Focalizando o primeiro plano, as feições do personagem se tornam significativas e podem ser recategorizadas, no caso o olhar da Sra. Silva, que passa de um “pesar amoroso” para um “pesar financeiro.”

Na tira abaixo, também há um primeiro plano que favorece a recategorização.

Figura 21
Tira 18, Ed Mort em Procurando o Silva

Na tira acima, Silva é recategorizado para “Juca”, um apelido dito em segredo. O sigilo dessa informação é realizado pelo primeiro plano, que enfatiza as mãos da personagem coadjuvante, e recategorizado verbalmente pelo sintagma “Juca.”

Quando relacionamos o plano de visão primeiro plano e a recategorização encontramos a seguinte relação:

Diagrama 9
relacionando o primeiro plano com a reiteração

Ainda que a relação seja intensa, poucos exemplares de nosso corpus apresentam ao mesmo tempo a reiteração que recategoriza e o primeiro plano, somente dois exemplares, o 15 (relacionado ao olhar) e 18 (relacionado ao Juca). A realização dessa relação identificada é opcional. De 09 corpus, 16% (02) realizam essa relação.

Após as análises aqui empreendidas, passemos às nossas considerações finais sobre o assunto.

4. Conclusões

Em nosso trabalho nossa hipótese inicial foi a de que as cadeias coesivas verbo-visuais encontradas no texto estão diretamente relacionadas aos movimentos estruturais obrigatórios ou opcionais do gênero tira cômica seriada. Encontramos as seguintes relações existentes entre texto e gênero, por nós classificadas como obrigatórias ou opcionais:

Quadro 03
A relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais da tira cômica seriada

Isso comprova que as unidades de textura e estrutura do texto se relacionam, sendo a coesão o seu elo de união, como representado no diagrama abaixo:

Diagrama 10
as relações entre texto e gênero

Logo, acreditamos, por fim, que o ensino, a fim de trabalhar gênero e texto no ensino de língua portuguesa, deve se ater primeiramente ao estudo da coesão, seu elo de união. A coesão verbal, e em nosso caso a coesão verbo-visual, portanto, passa a ser o núcleo do trabalho didático-pedagógico com o texto, por ser esta, a tecnologia teórico-metodológica de significação do texto e da articulação do texto com o gênero.

Pelas relações descritas, acreditamos que no futuro cabe investigar, em outros gêneros discursivos e em outros autores de quadrinhos: a relação profícua entre a introdução referencial e o plano de visão total ou de conjunto; e a relação entre a introdução referencial e o plano geral ou panorâmico. Vale incentivar também a pesquisa sobre os encapsuladores verbo-visuais, tema ainda pouco ou nada descrito pela Linguística Textual.

O estudo das cadeias coesivas e dos movimentos estruturais do texto, portanto, acabam por constituir-se em um campo de pesquisa e investigação nas ciências da linguagem bastante promissor, o que evidencia a necessidade de maiores estudos na área.

Agradecimentos

Este artigo faz parte de pesquisa realizada nos estudos de pós-doutorado na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sob supervisão do prof. Dr. Paulo Ramos - a quem somos gratos pela acolhida e acompanhamento constante. Agradecemos também aos pareceristas da revista pela leitura atenta e sugestões realizadas.

Referências

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  • 2
    A variável campo do discurso concerne à natureza da atividade social, que envolve tanto as ações/atos que estão sendo realizadas, como seu(s) objetivo(s).” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 56).
  • 3
    Investigam-se os papeis dos agentes, bem como “as relações entre os participantes, que surgem a partir de suas biografias ou vivências em comum” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 57). Investiga-se a distância social entre eles, se máxima ou mínima. “Quanto maior a distância social mínima, maior o grau de familiaridade entre os participantes.” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 57).
  • 4
    Investiga-se o papel da linguagem verbal “se constitutiva ou auxiliar do ato comunicativo” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 58); o processo de compartilhamento do texto (canal, fônico ou gráfico); se “o destinatário é capaz de partilhar o processo de criação do texto, como ele se desenvolve, ou o destinatário vê o texto só quando ele é um produto acabado” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 58); qual o meio de realização do texto, se falado ou escrito.
  • 5
    Esses elementos podem ser compreendidos como elementos recursivos, ou seja, sua existência é sempre “uma opção” (Hasan, 1989Hasan, R. (1989). Parte B. In M. A. K. Halliday, & R. Hasan. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. (pp. 52-69; 97-116). Editora Deakin University., p. 62). São recursos estruturais, portanto, de construção de significado.
  • 6
    Dever ou poder é uma questão de frequência de realização no corpus de estudo. “Acreditamos que devam ser classificados como elementos obrigatórios aqueles que sempre ocorrem, ou seja, aqueles que apresentam uma frequência considerada alta no texto, mais de 80% (81% em diante) dos exemplares em análise. Logo, os elementos opcionais passam a ser aqueles que podem ocorrer com frequência considerada baixa no texto, menos de 80% do corpus em análise. Dessa forma, ainda em nosso entendimento, os elementos obrigatórios ou opcionais que estiverem entre 75% e 85% de presença no corpus analisado se encontram em estágio de mudança e/ou transformação, uma vez que podem mudar de categoria analítica, passando de obrigatórios para opcionais ou de opcionais para obrigatórios, a depender do contexto de situação a ser mapeado. Esse fato evidencia que a Estrutura Potencial do Gênero é probabilística e pode sofrer mudanças no tempo e no espaço.” (Simões, 2018Simões, A. C. (2018). A Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e o ensino explícito de gêneros do discurso: a configuração dos gêneros de tiras e o ensino de língua portuguesa [Tese de doutorado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. , p. 144).
  • 7
    Recuperamos as análises já realizadas por nós com este gênero e corpus em nossa tese de doutorado (Simões, 2018Simões, A. C. (2018). A Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e o ensino explícito de gêneros do discurso: a configuração dos gêneros de tiras e o ensino de língua portuguesa [Tese de doutorado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. - ver páginas 241-265). No projeto original indicamos a análise de todas as tiras do livro. Entretanto, constatamos que, por questões quantitativas e qualitativas, os 20 exemplares de tiras já nos foram suficientes para alcançar resultados relevantes de pesquisa e que satisfazem nossas hipóteses de investigação. Na pesquisa atual, entretanto, diferente da empreendida na tese, utilizamos como ferramenta de análise o software NVIVO, o que potencializou nossos resultados, uma vez que não é comum a pesquisa de quadrinhos a análise de dados quantitativos. Com o software realizamos a relação qualitativa entre a coesão e a Estrutura Potencial, como se verá nos diagramas elaborados.
  • 8
    Os elementos obrigatórios estão assinalados em negrito; os opcionais em itálico e os iterativos com a seta à esquerda acima das letras. Os asteriscos mostram se o elemento possui uma ordem fixa ou não. As tiras cômicas seriadas não apresentam elementos opcionais (Simões, 2018Simões, A. C. (2018). A Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e o ensino explícito de gêneros do discurso: a configuração dos gêneros de tiras e o ensino de língua portuguesa [Tese de doutorado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ).
  • 9
    Vinheta ou quadro (Ramos, 2009Ramos, P. (2009). A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto.). Uma tira cômica tem normalmente três quadros (ou três vinhetas).
  • 10
    James Bond utilizava essa frase em suas aventuras. Logo, Mort realiza um claro intertexto com Bond.
  • 11
  • 12
    “Para nós, consideramos que os elementos obrigatórios são aqueles que sempre ocorrem, ou seja, apresentam uma frequência considerada alta no texto, mais de 80% (81% em diante) dos exemplares em análise. Os elementos opcionais são aqueles que podem ocorrer, cuja frequência no corpus é considerada baixa no texto, menos de 80% do corpus em análise. Dessa forma, ainda em nosso entendimento, os elementos obrigatórios ou opcionais que estiverem entre 75% e 85% de presença no corpus se encontram em estágio de mudança e/ou transformação, uma vez que podem mudar de categoria analítica, passando de obrigatórios para opcionais ou de opcionais para obrigatórios, a depender do contexto de situação a ser mapeado” (Simões, 2018Simões, A. C. (2018). A Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e o ensino explícito de gêneros do discurso: a configuração dos gêneros de tiras e o ensino de língua portuguesa [Tese de doutorado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. , p. 156).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2020
  • Aceito
    14 Nov 2021
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