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Efeitos da introdução de la langue na discussão do diagnóstico na Clínica de Linguagem

Some effects of the introduction of la langue in the discussion of diagnosis in the Language Clinic

RESUMO

Este artigo aborda criticamente alguns aspectos da “avaliação da linguagem”, uma instância importante do processo diagnóstico. Comentários críticos, referentes à prática, assentada na Fonoaudiologia, de projeção de aparatos gramaticais sobre dados de falas sintomáticas para decidir sobre normalidade ou patologia são apresentados e discutidos. Argumenta-se que instrumentos descritivos de natureza categorial só podem conduzir a análises negativas e deixam passar a mobilidade efetiva que caracteriza falas patológicas. De fato, resultados diagnósticos raramente tomam distância de uma paráfrase sofisticada da queixa do paciente. Assume-se, neste artigo, que as ideias de Saussure são uma saída das descrições. Elas abrem a possibilidade de abordar a fala como algo mais do que mera atualização da gramática, o que é essencial frente a natureza idiossincrática de falas sintomáticas. Procura-se, aqui, iluminar a importância de considerar o funcionamento da linguagem e tomar relações como primitivos nas avaliações de linguagem.

Palavras-chave:
avaliação de linguagem; diagnóstico; Saussure e o funcionamento da linguagem; clínica de linguagem

ABSTRACT

This article discusses decisive aspects related to the “language evaluation” moment of the therapeutic process which leads to a diagnostic conclusion. Some critical comments concerning the widespread application of grammatical apparatuses to evaluate and decide between the normal/pathological polarity are presented and discussed. It is argued that such descriptive instruments are insufficient and misguiding because they can only offer negative description which end up in labelling symptomatic speech as “deviant”, thus missing the positive and effective mobility of the intriguing pathological language manifestations. Indeed, in most cases, “language evaluation” is nothing but a sophisticated paraphrase of the patient’s complaint. It is assumed here that Saussure’s ideas represent a way out of description. In other words, they open the possibility of understanding language and its functioning in speech without approaching speech as mere actualization of grammar. Taking into account the idiosyncratic nature of pathological speech, this paper endeavors to highlight the need for considering the functioning of language as autonomous, as inferred from Saussure’s view on relations as primitives.

Key-words:
language evaluation; diagnosis; Saussure and the functioning of language; language clinic

Introdução

A clínica de linguagem recolhe as manifestações estranhas e enigmáticas de falas sintomáticas. São essas ocorrências especiais que instauram a clínica e levantam interrogação a respeito do modo singular de um falante habitar a linguagem. Essas falas são instigantes, ainda, porque propícias à reflexão sobre os efeitos plurais que promovem no clínico. Tocada por essas manifestações de linguagem, ditas patológicas, voltei-me para a problemática do diagnóstico de linguagem como lugar privilegiado de investigação e discussão dos aspectos mencionados acima, desde o início de minha atividade clínica e acadêmica. Articulei-me a pesquisadores que atuavam/atuam na Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (Derdic), todas nós ligadas ao Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, liderado coordenado por Lier-DeVitto, desde 1997, cuja meta era escrever uma clínica voltada para falas sintomáticas, desde a assunção de um compromisso teórico com a linguagem, ainda que esses acontecimentos linguísticos sejam marginais no âmbito da Linguística. A questão que se coloca para a clínica de linguagem é a de enfrentar necessidades teóricas e clínicas como a de oferecer definições para sintoma (que difere de erro), de circunscrever a especificidade do diálogo clínico, de abordar a questão da mudança por efeito de um ato clínico, de especificar a natureza da interpretação; além de avançar discussões sobre quadros clínicos de linguagem e sobre fundamentos.

Nesse ambiente de questões iniciais, problematizei a avaliação de linguagem, desenvolvendo, de início, uma análise crítica do instrumental utilizado, nesta instância clínica, para realização de “exames de linguagem”. Tais instrumentos não ultrapassam o limite de uma descrição pelo negativo: situam manifestação sintomática como falta/déficit e perdem de vista sua mobilidade efetiva, produtiva do acontecimento patológico. Nesses moldes, a avaliação de linguagem consistia/consiste em elencar as impossibilidades da criança que, na maioria das vezes, cuja fachada nada mais era do que “uma paráfrase sofisticada da queixa da família” (ARANTES, 2001Arantes, Lúcia. 2001. Diagnóstico e Clínica de Linguagem. Tese de doutorado inédita. PPG em LAEL-PUCSP.:31). Lier- DeVitto (2001:247) chamou a atenção para o fato de que aplicações de aparatos gramaticais não cumpriam a tarefa (e nem poderiam) da “descrição da linguagem enquanto falta” porque elas realizavam apenas “uma exclusão”, colocam do “lado de fora” - falas sintomáticas estão, por princípio, “de fora” das possibilidades de descrição pelos instrumentos categoriais.

Fato é que, no momento da avaliação de linguagem, o clínico não pode escapar de uma aproximação à Linguística, seja essa aproximação refletida/consistente ou não. Via de regra, clínicos e pesquisadores de acontecimentos estranhos de linguagem adotam, para nomeá-los, a terminologia pertinente ao campo da Linguística - o encontro com a Linguística parece mesmo inevitável para produção de um dizer sobre a linguagem. De fato, o sintoma na fala tem recebido um revestimento retirado de abordagens gramaticais, da Análise do Discurso, da Pragmática, do Interacionismo, da Pragmática Linguística, entre outras.

O campo das proposições

Ultrapassar o exercício crítico e passar ao terreno das proposições para produzir uma diferença no campo correspondeu ao empenho subsequente. Pareceu-nos preciso enfrentar os acontecimentos linguageiros peculiares, que se apresentavam na clínica, construir uma discursividade mais positiva; distinta do solo tradicional pautado em descrições negativas - gesto decisivo para que termos como “diagnóstico/avaliação” pudessem ser adequadamente qualificados na Fonoaudiologia. Empréstimos de instrumentais descritivos foram recuados e foram fortalecidas direções reflexivas, teóricas, que impulsionaram a construção do Interacionismo em Aquisição da Linguagem, conforme proposto por Cláudia Lemos (1992______. 1992. Los processos metafórico y metonímico como mecanismos de cambio. Substratum. Barcelona, 1:121-136. e outros). A pertinência desta aproximação liga-se ao fato de que “fala” e “erro” são proposições problemáticas, facetas da linguagem que são indispensáveis para se pensar essa clínica. Não menos relevantes foram as críticas às “aplicações” de aparatos categoriais a falas indeterminadas deste ponto de vista (LEMOS, 1982Lemos, Cláudia Thereza Guimarães. 1982. Sobre a aquisição da linguagem e seu dilema (pecado) original. Boletim da Abralin, Recife: Ed. Universitária da Universidade Estadual de Pernambuco, 3:97-136.:97). Frente à sustentação da impertinência dessa projeção sobre falas de crianças e a insuficiência reconhecida da “metalinguagem alternativa” proposta como saída (os processos dialógicos), o caminho foi de retorno ao campo da Linguística, mas não de uma que se possa qualificar como “categorial”.

Lemos (1992______. 1992. Los processos metafórico y metonímico como mecanismos de cambio. Substratum. Barcelona, 1:121-136.) declara filiação ao pensamento de Saussure. Os argumentos empíricos e teóricos oferecidos para a tomada dessa decisão (LEMOS, 2002______. 2002. Das vicissitudes da fala da criança e sua investigação. Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas: Editora da UNICAMP, X:41- 70.), favoreceram sua extensão, a dos fundamentos do estruturalismo europeu, para a reflexão de falas sintomáticas e para a escrita da “clínica de linguagem”. Lier-DeVitto ensina que:

A Linguística Científica tem raízes no estabelecimento de uma bifurcação entre língua e fala e na consequente eleição da primeira - a língua - como seu “objeto”. Para Saussure, seu fundador, o estudo da linguagem comporta duas partes, uma essencial “cuja realidade é independente da maneira como é executada” e outra secundária, “dependente da execução... dos que falam”. A Linguística “propriamente dita” - a essencial - tem como meta “conhecer [esse] organismo linguístico interno” (Saussure, 1916Saussure, Ferdinand de. [1916] 1969. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix.: 31). Fica estabelecida, desse modo, uma oposição, qual seja, interno/externo à língua e sugerido que se “elimine tudo o que seja estranho [externo] a esse organismo [interno]” (op. cit., pg. 29) - tudo, portanto, o que possa estar relacionado à parole - domínio da execução, sob qualquer modalidade (oral, escrita, sinais), do chamado uso da linguagem” (LIER-DeVITTO, 2013Lier-DeVitto, Maria Francisca. 1998. Os monólogos da criança: delírios da língua. São Paulo: Educ-Fapesp.:117)

Segundo a autora, a Linguística Interna, de la langue - a que recebe o título de ciência da linguagem atém-se “à gramática do jogo [interno]” (SAUSSURE[1916]1969: 32). Contudo, ainda que não realizada por Saussure, a atribuição de um estatuto científico à fala estaria, para esse autor, condicionada à inclusão da língua. Acompanhando a discussão de Lier-DeVitto (2013______. 2013. Efeitos do pensamento de Saussure na teorização sobre erros e sintomas na fala. In: Fiorim, José; Flores, Valdir; Barbisan, Leci (orgs.). Saussure, a invenção da linguística. São Paulo: Editora Contexto.:117), temos que a bifurcação da Linguística em dois braços distintos e com tarefas distintas, sugerida por Saussure, parece ter sido aceita tacitamente. De um lado, estão Saussure e Chomsky, que se ativeram à língua e de outro lado, a grande maioria dedicada a questões que ficaram à margem da ciência da linguagem. Importa dizer que, na proliferação de pesquisas sobre a fala/discurso, têm sido invocados, nas explicações, campos como a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia e ignoradas as considerações saussurianas sobre a ordem própria/interna da língua, que é fundante da Ciência da Linguagem.

Brevemente: se, na Linguística hard core, a fala perde sua espessura enquanto ocorrência, enquanto presença de um falante no tempo e no espaço; nos estudos sobre a fala, a língua é apagada - neles, pontuações são introduzidas sobre o falante, mas não propriamente uma teorização sobre ele1 1 Benveniste (1964, 1989) é um desses casos. A teoria da enunciação sustenta o falante no centro das operações de articulação entre língua-enunciação, envolvendo uma noção de “ato”, mas não se pode afirmar, contudo que a questão da subjetividade na linguagem tenha sido verticalizada em sua obra. Atos de Falas ganharam atenção na Pragmática, mas ali, também, importam os efeitos deles e não condições subjetivas particulares. . A articulação entre fala e falante ganha certo relevo na Análise do Discurso. Ali ela se realiza pelo viés da assunção de que a fala é expressão de um assujeitamento ideológico, que obscurece as incidências da língua na fala e dispensa uma visada sobre o irregular que nela acontece - um “irregular” que escapa à intenção do falante e que é, ainda assim, fala de um falante.

Interacionismo em Aquisição da Linguagem e Clínica de Linguagem podem compartilhar, frente à natureza errática dos acontecimentos linguísticos que os interroga, as mesmas bases teóricas (LIER-DEVITTO E ANDRADE, 2011Lier-DeVitto, Maria Francisca e Andrade, Lourdes. 2011. A abordagem do erro na fala e na escrita: aquisição, alfabetização e clínica. Anais do SILEL 2;2: s.p.:s.p):

A natureza idiossincrática tanto da fala da criança, quanto das falas patológicas, é, ao nosso ver, um entre outros argumentos em favor da implicação do conceito de la langue de Saussure. Conceito que permite pensar o sujeito-falante como submetido ao funcionamento da linguagem, ‘capturado’ por esse funcionamento (De Lemos, 1992______. 1992. Los processos metafórico y metonímico como mecanismos de cambio. Substratum. Barcelona, 1:121-136., entre outros). Um sujeito que, ao mesmo tempo, faz presença singular na linguagem (De LEMOS, et alli, 2003Lemos, Cláudia Thereza Guimarães; Lier-DeVitto, Maria Francisca; Andrade, Lourdes; Silveira, Eliana Mara. 2003. Le «saussurisme» en Amérique Latine au XXe siècle. Cahiers Ferdinand de Saussure - revue suisse de linguistique générale, Genève, Librairie Droz, S.A., 56: 165-176.: 174)

Com efeito, como chamou a atenção Lier-DeVitto (2006______. 2006. Patologias da linguagem: sobre as “vicissitudes de falas sintomáticas”. In: Lier-DeVitto, Maria Francisca & Arantes, Lúcia (orgs.). Aquisição, patologias e clínica de linguagem. São Paulo: EDUC/FAPESP.), a heterogeneidade, a assistematicidade, que caracteriza a fala e o sintoma na fala, que “fazem duvidar do sucesso da intencionalidade suposta ao sujeito-falante e levam a pensar que uma instância outra opera em sua fala - instância do funcionamento da língua em sua alteridade radical relativamente ao falante”(LIER-DeVITTO, 2006______. 2001. Sobre o sintoma: déficit de linguagem, efeito da fala no outro, ou ainda...? Letras de hoje, Porto Alegre: EDIPUCR 3:245:253.:189). Disso decorre uma das questões teóricas fundamentais, que resulta da articulação língua-fala, é aquela que implica a necessidade de problematização da relação falante-fala-língua.

O Interacionismo e a Clínica de Linguagem reconhecem a ordem própria da língua e garantem sua incidência na fala, i.e., a força de sua determinação nos acontecimentos na fala/discurso. Nasce daí a exigência teórica de suspenção do sujeito epistêmico, que frequenta o campo dos estudos linguísticos. Trata-se daquele falante a que se supõe uma percepção suficiente e uma cognição reguladora da relação do falante com a linguagem (esta, sempre reduzida a “objeto” e a “instrumento” expressivo/comunicativo dessa subjetividade intencionada). Nesse sentido, Saussure “cabe como uma luva”, já que ele expulsa o sujeito “em controle da linguagem” do cerne da língua - “a língua é carta forçada” (SAUSSURE[1916]1969:85). Disso decorre que nem o falante, nem a massa falante podem ditar os rumos de uma língua. No Interacionismo e na Clínica de Linguagem sustenta-se, como procuro indicar, um diálogo teórico com a Linguística da língua: com o estruturalismo europeu. Dito de outro modo, admite-se que, no particular de uma fala, há língua: um funcionamento simbólico que é condição e possibilidade da fala e de haver falante. Não se poderia, de fato, refletir sobre uma clínica de linguagem sem a assunção das interrogações que falas levantam, nem sem uma teorização capaz de incluí-las como proposições problemáticas. Saussure foi, de fato, “a saída” dos impasses mais embaraçantes da possibilidade de uma escrita teórica de clínicas que têm a linguagem como protagonista. Vejamos, a longa citação abaixo:

A posição crítica que assumimos (...) deve ser entendida como consequente ao retorno a Saussure (...), em busca de uma visão de linguagem que pudesse atender, tanto a questões epistemológicas quanto empíricas que enfrentamos em nosso trabalho no campo da Aquisição da Linguagem (cf. Lemos, 1992______. 1992. Los processos metafórico y metonímico como mecanismos de cambio. Substratum. Barcelona, 1:121-136., 2000 entre outros; Lier-De Vitto, 1998) e das Patologias da Linguagem (cf.Lier-De Vitto, 1999, entre outros; Andrade, 2002). Diferentemente da insistência em reduzir as idéias de Saussure a instrumentos de descrição (...), o que temos procurado - em Saussure e no Cours - é uma saída da descrição. Em outras palavras, investimos na possibilidade de abordar la langue e seu funcionamento na fala, sem abordar a fala como mera atualização da gramática ou, como se diz no campo, do conhecimento linguístico.

De fato, a fala da criança e as falas patológicas, imprevisíveis e altamente heterogêneas, parecem resistir à busca de regularidades em termos de atribuição categorial. Isso é verdadeiro, também, no que remete à natureza fragmentária das produções iniciais da criança e para os “erros” que aparecem em períodos posteriores: sua ocorrência, entretanto, não obscurece a força do funcionamento da linguagem. Enquanto imprevisíveis, esses fenômenos deixam ver o funcionamento da língua como determinante do aparecimento de formas que, apesar de ‘estranhas’, são produtos efetivos de relações dinâmicas. No caso das patologias da linguagem, essas formas estranhas não podem ser associadas a um déficit orgânico particular, nem pode o ‘patológico’ ser referido a qualquer categoria patológica de fala (Lier-De Vitto, 1999, 2000) - (LEMOS et alli, 2003Lemos, Cláudia Thereza Guimarães; Lier-DeVitto, Maria Francisca; Andrade, Lourdes; Silveira, Eliana Mara. 2003. Le «saussurisme» en Amérique Latine au XXe siècle. Cahiers Ferdinand de Saussure - revue suisse de linguistique générale, Genève, Librairie Droz, S.A., 56: 165-176.:173-4)

Esse modo de teorizar sobre a fala permite a inclusão do “irregular” seja em análises de manifestações linguísticas, seja nas avaliações de linguagem, como acontecimento que manifesta a incidência da língua e a presença singular do falante na fala. O erro, o sintoma, são expressões de um excesso de língua que ultrapassa o falante na fala (MILNER[1978]2012Milner, Jean-Claude. [1978] 2012. O amor da língua. Campinas: Editora da UNICAMP.:17; LEMOS, 2006______. 2006. Sobre o paralelismo. In: Lier-DeVitto, Maria Francisca & Arantes, Lúcia (orgs.). Aquisição, patologias e clínica de linguagem. São Paulo: EDUC/FAPESP.:104-5). Na Clínica de Linguagem, insistimos na “relevância do funcionamento universal” na abordagem de falas sintomáticas. Saussure é fundo teórico porque la langue pode abrir portas para a problematização dos sintomas na fala e para a o esforço de construção de uma discursividade para a clínica. La langue e seu funcionamento oferecem a possibilidade de explicação para os acontecimentos imprevisíveis que não se deixam apreender por aparatos gramaticais. Eles passam a ser referidos a efeitos de substituições que promovem combinatórias inesperadas e singulares. Conforme assinalado, por Lier-DeVitto em diversos artigos, substituições têm a ver com os eixos sintagmático e associativo de Saussure - elas remetem às operações em ausência, que foram ressignificadas por Jakobson (1960Jakobson, Roman. 1969. Linguística e poética. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix.). Operações sintagmática e associativa ressurgem como operações metonímica e metafórica, respectivamente.

Reconhecer o impacto de tal ressignificação é recolher a presença indelével de Saussure no texto de Jakobson - o passo formidável realizado por este último foi o de articular a língua na fala. Composições insólitas são efeitos do movimento da língua na fala. Abre-se assim a possibilidade de uma caracterização positiva das ocorrências ditas sintomáticas. Mas há ainda o que acrescentar, a implicação das leis de referencia interna da linguagem afetaram também o clínico: abriu sua escuta para a densidade significante da fala, i.e., para o que “trabalha em baixo”, para o movimento latente da língua. Nesse movimento de passagem, a questão de “saber qual é o significado do sintoma” foi substituída por outras: “como o sintoma é articulado na fala de um falante”; “que efeitos ele produz/não produz na escuta do paciente” (e do terapeuta). No pano de fundo, nas avaliações de linguagem, no movimento de interpretação de falas de pacientes, subjacente está a questão de base: “que natureza de relação este paciente entretém com a língua e com a fala (própria e do outro)”.

Considerações finais

Na modalidade de avaliação de linguagem que tenho proposto e praticado, desde 2001, “interpretação”, portanto, é o centro da práxis clinica e deve produzir uma posição terapêutica, responsável pela direção do tratamento. Há situações em que menos do que garantir com minha participação a sequencialidade do diálogo é o caso de suspendê-la, de deixar aparecer, para o sujeito, “o estranho no espelho”. Outras vezes, caminhos são outros. Tudo depende da natureza da relação da criança com a fala do outro e com a própria. O apego teórico à cadeia significante comporta um alerta para os risco do excesso de uma “tradução compreensiva”, que recobre no afã de fazer sentido do não-sentido, que muitas vezes marca falas sintomáticas de crianças, recobre-se precisamente a articulação significante, que o determina. Importa considerar que “escuta” como “interpretação” implica silêncio e estranhamento e que, para escutar-se, a criança deve poder escutar-se no estranhamento do outro. Estas considerações sobre a avaliação de linguagem são efeitos da aproximação a Saussure. A interpretação de falas difíceis de crianças apoia-se na escuta para a articulação significante - ela não visa à apreensão “do quê a criança quis dizer”, nem mira um sentido oculto no sintoma. Lier-DeVitto afirma, a partir de Deleuze, que: “aquilo que importa é a superfície e o que nela se passa: o expresso torna possível a expressão...[devemos nos ater] ao interno do externo” (LIER-DeVITTO, 1998: 79). O que sugiro como “avaliação de linguagem” é a escuta da superfície significante da fala e a seus efeitos sobre a criança, o outro e o diálogo, enfim, ocorrências bizarras “não estão fora das leis de composição interna da linguagem” (LIER-DeVITTO, 1998:161)

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2016
  • Aceito
    17 Maio 2017
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