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Das citações (in)diretas na discursividade do voto de Carlos Ayres Britto acerca da união homoafetiva: efeitos de sentido possíveis

On (in)direct quotations in Carlos Ayres Britto's voting speech on same sex union in Brazil: some possible effects of meaning

Resumos

Neste artigo, trazemos o acontecimento que o voto do ministro relator Carlos Ayres Britto funda pela sua enunciação, no Supremo Tribunal Federal, referente à recente (2011) questão da união homoafetiva no Brasil, tendo como corpus de análise as citações (in)diretas extraídas de afirmações de personalidades célebres (Platão, Max Scheler, Descartes, Fernando Pessoa, Nietzsche, Hegel, Jung, Caetano Veloso, Rui Barbosa, Spinoza, Sartre e Chico Xavier), postas em jogo na materialidade linguística. Discutimos os efeitos de sentido possíveis delas decorrentes, mediante a perspectiva da Análise do Discurso de orientação francesa, tendo em conta os aspectos relevantes das condições de produção do discurso, sem deixarmos de aventar os efeitos de articulação entre citações e enunciados que as circunscrevem no voto, paralelismos etc. Lançaremos, ainda, breve olhar sobre o ethos do sujeito do discurso, a partir dos efeitos de sentido das citações. Dentre outras avaliações e reflexões, concluiremos que o discurso tem como argumento maior o amor, confrontando uma FD (Formação Discursiva) prototípica do judiciário, inclusive nas menções a interdiscursos religiosos. Para nosso exercício analítico, contamos especialmente com Possenti (2009, 2002), Eni Orlandi (2009, 2006), Foucault (2010, 2009), Maingueneau (1997) e Pêcheux (2009), para que constituam nosso aporte teórico.

efeitos de sentido; citações; discurso; união homoafetiva


This article raises the event created by the enunciation of Brazilian Supreme Court minister Carlos Ayres Britto's vote. Such vote refers to the recent (2011) homoaffective union issue in Brazil. The corpus of analysis of this work are the (in)direct citations from famous authors (Plato, Max Scheller, Descartes, Fernando Pessoa, Nietzsche, Hegel, Jung, Caetano Veloso, Rui Barbosa, Spinoza, Sartre and Chico Xavier) brought into play in linguistic materiality. We discuss the possible effects of meaning resulting from the citations through the perspective of Discourse Analysis of French Orientation considering the relevant aspects of the conditions of discourse production while exposing the effects of articulation between quotes and statements that circumscribe the vote, parallelisms et cetera. We also launch a brief look over the ethos of the discourse subject from the citation's effects of meaning. Among other avaliations and reflections we conclude that the discourse has love as its major argument, confronting a prototypical Discursive Formation of the judiciary including the references to religious interdiscourses. For our analytic exercise we count specially with Possenti (2009, 2002), Eni Orlandi (2009, 2006), Foucault (2010, 2009), Maingueneau (1997) and Pêcheux (2009), to constitute our theoretical support.

effects of meaning; citations; discourse; homoaffective union


Introdução

Neste ano de 2011, assistimos a uma circulação intensificada de discursos voltados ao tema da união homoafetiva, produzidos por variadas entidades, em diversos espaços sociais, até que o Supremo Tribunal Federal (STF) veio a se posicionar sobre a questão, como que à maneira de lhe dar bom termo. No centro das atenções voltadas à Corte Suprema por parte dos interessados, estava o ministro relator da matéria, Carlos Ayres Britto, encarnando o maior representante da instituição na ocasião, dando um voto - já famoso - a favor da união homoafetiva.

Em se tratando desse voto, Britto nele realizou doze citações, onze diretas e uma indireta, extraídas de personalidades relativamente bem conhecidas mundo afora. São essas "opiniões autorizadas" mobilizadas pelo ministro relator que perfazem o nosso objeto de análise, a ser executada mediante o modelo teórico da Análise do Discurso de orientação francesa, com especial interesse destinado aos efeitos de sentido possíveis que delas decorrem. Também encontramos no texto citações e referencias ao direito, por meio de leis ou jurisprudências. Contudo, nos interessa observar, exclusivamente, aquelas que não são oriundas do próprio discurso jurídico, mas se articulam nele, pela inserção de uma outra ordem discursiva naquela materialidade.

Para isso, dividimos nossos apontamentos em três seções, com vistas a uma organização das ideias no texto que favoreça uma leitura fluida. Em "Das condições de produção pertinentes ao voto", a seguir, além das informações que julgamos ser relevantes para entender o momento histórico em que surge o voto analisado, explicitamos alguns dados de ordem jurídica, tendo o cuidado de evitar carregar o texto com jargões técnicos, ou seja, só lançando mão deles para apoiar a nossa exposição. Na seção seguinte, "Considerações de ordem teórica e metodológica", mostramos mais detidamente o que nos dará sustentação para realizar o proposto aqui, com ponderações específicas no tocante ao modelo de análise utilizado, principais conceitos operatórios e procedimentos adotados, à guisa de preparação para a seção subsequente, "As citações", na qual expusemos o que resultou da aplicação do modelo teórico elegido.

E finalmente, como desfecho do nosso trabalho, fizemos algumas "Considerações finais", através das quais revisitamos alguns pontos discutidos ao longo do texto, mas sem deixar de lhes conferir novo destaque. Importante também é mencionar que preferimos fazer uso de notas de rodapé para informações secundárias, remissões a outras partes ou fontes, advertências, elucidações relevantes mas não imprescindíveis, referências a outros campos teóricos, ressalvas, complementações e, ainda, apontamentos conceituais relativos às partes que poderiam comportar o risco de haver quiproquós epistemológicos.

Das condições de produção pertinentes ao voto

Em cinco de maio de 2011, o STF, após votação unânime, equiparou as entidades familiares formadas por casais do mesmo sexo à unidade familiar heterossexual. Foram nove ministros do STF que acompanharam o ministro relator das ações propostas (Carlos Ayres Britto), para dar provimento ao pleito de equiparação1 1 Desde já, deixemos explicitado que não nos ocuparemos das razões do convencimento dos ministros. . Há, pois, no novo cenário jurídico, três unidades familiares albergadas pelo direito: aquela oriunda do casamento; a originária da união estável (casais de mesmo sexo se inscrevem aqui, ao lado dos casais cujos membros são de sexo diferente); e a chamada família monoparental (formada, por exemplo, pela mãe solteira).

Essa equiparação se funda pelo acontecimento que a enunciação2 2 Noção de enunciação que adotamos: quando houver realização de enunciado(s) (unidade elementar do discurso), há enunciação, com sua individualidade espaço-temporal, logo, nunca se repete (cf. FOUCAULT, 2010:116). envolvida em nosso objeto de análise inaugura. Antes do proferimento da sentença final, a situação de fato das unidades familiares formadas por casais do mesmo sexo estava à margem da proteção jurisdicional. Isso significava que, ainda que fosse, há tempos, uma situação consolidada socialmente (i.e., a união homoafetiva não foi criada pela enunciação referida e, por conseguinte, pela decisão judicial, mas já se dava no mundo social), para a reclamação de qualquer direito patrimonial, de adoção e todos aqueles direitos decorrentes do vínculo familiar, os envolvidos viviam grande embate judicial, sempre sujeitos à denegação3 3 Denegação enquanto jargão técnico jurídico relativo à improcedência das demandas, resguardando-se, assim, acepções outras. dos seus pedidos, por não haver a regulamentação de situações fáticas que lhes eram concernentes. Destarte, esta é justamente uma das características que a discursividade judicial coloca: o seu caráter inclinadamente vereditório. Assim, é com uma enunciação do STF, com as decisões proferidas, que o judiciário: 1) ou convida determinada conduta à sua proteção; 2) ou, ao contrário, a exclui, atribuindo valor negativo, passível, então, de coerção e controle por parte de aparelhos institucionais do Estado legitimados para essa incumbência.

De modo breve mas suficiente para o propósito que colocamos nesta discussão, situemos mais os principais elementos condizentes com as condições de produção do acontecimento dizendo que é bom salientar que o discurso do voto4 4 O voto na íntegra do ministro relator Carlos Ayres Britto está disponível no endereço eletrônico do STF. Seu link direto é http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf de Britto emerge na história atual da sociedade brasileira com uma estrutura semântico-pragmática sobredeterminada por influxos conjunturais. Com isso em mente, coloquemos que "as condições de produção caracterizam o discurso, o constituem e como tal são objeto da análise", o que traz, na perspectiva do objeto, "a necessidade de se ver a enunciação não como desvio mas como processo constitutivo da matéria enunciada" (ORLANDI, 2006ORLANDI, E. P. 2006. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4.ed. Campinas, SP: Pontes.:110). Conectado a isso, lembremos que o julgamento em questão tratou de duas ações institucionalmente propostas, uma das quais pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro5 5 Protocolo no STF em 27 de fevereiro de 2008. e outra pela Procuradoria Geral da República6 6 Protocolo no STF em 02 de julho de 2009. , objetivando dar interpretação conforme a Constituição e determinados textos de lei, de modo que, como resultado, a matéria concernente à união estável fosse válida tanto para casais formados por pessoas de sexos diferentes como para as de mesmo sexo.

Para circunscrevermos melhor a questão das ações, vale dizer que elas foram agrupadas, naturalmente, por tratarem da mesma matéria, e que após os trâmites seguiram para o julgamento pelo colegiado do STF. A sessão foi acompanhada atípica e exacerbadamente - dada a polêmica que lhe foi tributada, obviamente - pela imprensa, profissionais da área e entidades interessadas. Houve defesa oral por partes previamente inscritas e interessadas no resultado final, manifestando-se tanto a favor da equiparação quanto contra, porquanto o "sistema jurídico não é um sistema fechado, isolado do contexto cultural e social no qual se insere, pelo contrário, sofre constantemente seu influxo", sistema que é, na verdade, resultante dessas influências (PERELMAN, 1998PERELMAN, C. 1998. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes.:115). Apenas depois de vencidos tais protocolos é que o ministro relator passou a proferir o relatório e o voto de sua lavra.7 7 Da propositura da primeira demanda até o julgamento, houve um lapso temporal de mais de três anos, capaz de trazer amadurecimento à discussão social sobre o tema, assim como o pacífico convencimento dos julgadores, que, ao fim, deram provimento por unanimidade.

Considerações de ordem teórica e metodológica

Voltar nosso pensamento a alguns dos principais elementos das condições de produção pertinentes ao voto, como vimos na seção acima, nos importa para os fins do exercício que faremos aqui, que será centralmente discutir os efeitos de sentido possíveis que a realização das doze citações (in)diretas8 8 Dizemos citações(in)diretas para contemplar o fato de que, das doze citações realizadas no voto, onze são diretas (não parafraseadas) e uma, indireta (parafraseada). Para (Authier-Revuz 1990), seriam entendidas como formas de heterogeneidade mostrada marcada no discurso. Contudo, pedimos a licença ao leitor para continuar a usar a designação citações (in)diretas, dados a vantagem que sua econômica nos traz e o foco do nosso propósito neste trabalho. , presentes no voto do ministro relator Carlos Ayres Britto acerca da união homoafetiva. Cuidaremos de, problematizá-la, de modo a conceber o momento da enunciação enquanto fenômeno (cujos efeitos são potencialmente capazes de transformar a realidade social). Tal fenômeno implica numa efetividade com a qual se instauram bases de um novo olhar, de um outro tempo e estado de coisas que o acontecimento que ora observamos concorre a projetar na sociedade brasileira, tendo vivamente em mente que:

[...] se a cada enunciação algum efeito de sentido pode ser novo e irrepetível, por outro lado, a 'grande massa' dos efeitos de sentido é efetivamente uma retomada de sentidos prévios e com eles coincide. É este o fato que instaura a possibilidade do sentido literal no interior de uma teoria da enunciação, sentido literal produzido historicamente, em função das constrições decorrentes das posições enunciativas, dos gêneros etc. Sendo grande a probabilidade de que as palavras estejam 'atravessadas por muitos discursos', isso pode explicar que cada uma delas (ou muitas delas) tenham mais de um sentido literal etc. (POSSENTI, 2002POSSENTI, S. 2002. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. Curitiba, PR: Criar Edições.:234).

Isso dito, será, com o aparato teórico e metodológico da Análise do Discurso (AD) de orientação francesa que proporemos discutir os efeitos de sentido possíveis das citações referidas expressamente. O que perfaz nosso corpus, então, são as citações diretas contidas no voto do ministro relator dos processos relativos ao tema da equiparação da unidade familiar homoafetiva9 9 É com itens lexicais derivados da composição entre homo- e afetivo (para homoafetivo, homoafetividade etc.) que o sujeito do discurso no voto se refere ao "vínculo de afeto e solidariedade entre os pares e parceiros do mesmo sexo". Aqui, conservaremos essa medida, já que, sem o peso de certas expressões mais ou menos pejorativamente marcadas, é suficiente para dar conta "ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho, entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de humanos" (entre aspas, palavras extraídas do voto em questão; v. n.6). , cuja seleção, como indica (Orlandi 2009_______. 2009. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 8.ed. Campinas, SP: Pontes.:63), já é parte da análise, porque importa na decisão dos analistas acerca das propriedades discursivas da proposta de reflexão.

Tal recorte, aliás, se inscreve no interdiscurso necessariamente constitutivo da discursividade do ministro no voto. Para Charaudeau e Maingueneau (2004)CHARAUDEAU, P; MAIGUENEAU, D. 2004. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto. - vale recuperar concisamente sua abordagem sistematizada -, o verbete do interdiscurso possui duas acepções possíveis: num círculo mais concêntrico, seriam as relações recíprocas em um dado conjunto de discursos do mesmo campo; numa visada mais ampla, seriam as relações implícitas e explícitas havidas entre discursos. Para os fins deste estudo, como trabalharemos com as citações (in)diretas articuladas no voto, iniciaremos, pois, o manejo das relações explicitadas, para irmos em direção dos efeitos de sentido possíveis como decorrência do dialogismo recuperável da materialidade discursiva.

Não nos interessa, portanto, as relações do intradiscurso, mas os diálogos do interdiscurso. Isso significa dizer que as citações relativas ao próprio discurso jurídico, como jurisprudências ou textos de lei ficam excluídas dos nossos interesses teóricos.

No que concerne ao recorte do nosso corpus, trataremos as citações abstraídas de seus contextos nos quais os autores lembrados as geraram originalmente, i.e., pressuporemos apenas a materialidade mesma das citações10 10 Disso decorre que não faria sentido nos engajarmos na verificação da autenticidade e fidedignidade das citações atualizadas no voto. articuladas com os enunciados do voto que imediatamente as circunscrevem - interessa-nos a "materialidade simbólica própria e significativa" do texto (ORLANDI, 2009ORLANDI, E. P. 2006. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4.ed. Campinas, SP: Pontes.:18), segundo nosso recorte -, com vistas a aventar, pontualmente, efeitos de sentido plausivamente possíveis. Para isso, deixemos enunciada uma observação de Pêcheux e Fuchs (1990)PÊCHEUX, M; FUCHS, C. 1990. "A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas". In: GADET, F; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Ed. da Unicamp., de extrema importância teórico-metodológica (ainda para a AD francesa como um todo, inclusive), que assumimos aqui em nossa reflexão, respeitante especialmente a efeitos de sentido e paráfrase:

Queremos dizer que, para nós, a produção de sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrase entre seqüências tais que a família parafrástica destas seqüências constitui o que se poderia chamar de matriz do sentido (matriz = geratriz). Isto equivale a dizer que é a partir das relações no interior desta família que se constitui o efeito de sentido, assim como a relação a um referente que implique esse efeito. Se nos acompanham, compreenderão, então, que a evidência da leitura subjetiva segundo a qual um texto e biunivocamente associado a seu sentido (com ambigüidades sintáticas e/ou semânticas) é uma ilusão constitutiva do efeito-sujeito em relação à linguagem e que contribui, neste domínio específico, para produzir o efeito de assujeitamento que mencionamos acima: na realidade, afirmamos que o 'sentido' de uma seqüência só é materialmente concebível na medida em que se concebe esta seqüência como pertencente necessariamente a esta ou àquela formação discursiva (o que explica, de passagem, que ela possa ter vários sentidos) (PÊCHEUX & FUCHS, 1990PÊCHEUX, M; FUCHS, C. 1990. "A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas". In: GADET, F; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Ed. da Unicamp.:169).11 11 Sobre Formação Discursiva, v. n.15.

Esse posicionamento metodológico referente à gênese das citações, diga-se, tem amparo por estar englobado pelo respaldo que diz respeito à natureza própria do acontecimento enunciativo, olhado, como quer (Foucault 2010FOUCAULT, M. 2010. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.), "nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal", enquanto irrupção, de modo que não é preciso "remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância" (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. 2010. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.:28).

E a instância que admite essa irrupção (materializada no discurso objeto deste exercício reflexivo), e não outra em seu lugar, merece uma atenção que julgamos ser evidentemente necessária e, sobretudo, pertinente. Nesse sentido, ao pressupormos a concordância de que a instância do discurso diz respeito, a rigor, à sua enunciação, devemos nos ocupar de "compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação". Então, necessariamente temos de "determinar as condições de sua existência [que não se confunde com sua origem], de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligadas" (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. 2010. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.:31), de cujo entrelaçamento eclodem atualizados.

Adiantemos também que não haverá o interesse em tentar recuperar as intenções conscientes (e pontuações inconscientes) comunicativas da pessoa de Britto, nem os significados por ela eventualmente visados, porquanto sabemos de antemão que escapa ao sujeito enunciador12 12 No decorrer deste texto, tomaremos o sujeito enunciador, o enunciador do discurso mais frequentemente por sujeito do discurso, observando-se as implicações dessa escolha terminológica por adotarmos a visão althusseriana dissecada por (Possenti 1990), de que, para a AD, importam os "sujeitos na história". No limite, por sinal, essa é uma questão teórica secundária, se cotejada aos propósitos centrais deste trabalho. , por um efeito ideológico elementar, o domínio de sua discursividade e as formações imaginárias aí imbricadas. Seguimos, pois, o princípio de exterioridade enunciado por (Foucault 2009_______. 2009. A ordem do discurso. 18.ed. São Paulo: Loyola.:53), que diz respeito à desnecessidade de se passar, do discurso, para seu núcleo interior e escondido suposto, para o centro de um pensamento ou para o íntimo de uma significação que nele se manifeste, mas sim, "a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade" (FOUCAULT, 2009_______. 2009. A ordem do discurso. 18.ed. São Paulo: Loyola.:53).

Isso colocado, para a AD o sujeito do discurso possui duas características fundamentais que merecem ser destacadas: ele é clivado e é, em certa medida, assujeitado (POSSENTI, 2009_______. 2009. "Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas". In: Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. v.3. 4.ed. São Paulo: Cortez.:386). O sujeito não é uno, íntegro e, além de intrinsecamente partido, ainda é cortado ou atravessado pela ideologia e pelo inconsciente, o que se compatibiliza e se completa com o fato de que, a rigor, o sujeito "não está na origem do discurso" (POSSENTI, 2009_______. 2009. "Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas". In: Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. v.3. 4.ed. São Paulo: Cortez.:386).

No discurso, portanto, não encontraremos uma manifestação

[...] majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. (FOUCAULT, 2010 4 O voto na íntegra do ministro relator Carlos Ayres Britto está disponível no endereço eletrônico do STF. Seu link direto é http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf :61).

E retomando nossas palavras mais uma vez sobre o recorte de nosso corpus, deixemos a ressalva de que eventualmente podemos lançar mão de apontamentos atinentes a componentes extradiscursivos (o que nos faculta o modelo teórico adotado), a exemplo de informações prévias de autores/citações, quando entendermos que esse conhecimento seja, de certa forma, dado, e importante para ponderar efeitos de sentido possíveis específicos.

Ainda, circunscrevemos nossa análise às citações que são externas ao universo jurídico. Não nos interessou observar as inserções de citação de texto de lei ou de jurisprudências, mas apenas aquelas que são de outra ordem do discurso, que foram trazidas para dentro do dizer-o-direito. E é justamente essa trama tecida com os interdiscursos que nos interessa para esse estudo.

As citações

Ao longo do voto de Britto, as citações (in)diretas estão distribuídas como argumentos, ora pela autoridade, ora pela ilustração, extraídas de autores bem diversos: Platão, Max Scheler, René Descartes, Fernando Pessoa, Friedrich Nietzsche, Georg W. F. Hegel, Carl G. Jung, Caetano Veloso, Rui Barbosa, Baruch de Spinoza, Jean-Paul Sartre e Chico Xavier, tratados aqui na ordem em que aparecem.

Maingueneau (1997)MAINGUENEAU, D. 1997. Novas tendências em análise do discurso. 3.ed. Campinas, SP: Pontes. afirma que as citações, pelo viés da AD, não são admitidas como escolhas completamente livres do enunciador, o que decorre da noção de sujeito que aqui consideramos. O sujeito não cita quem deseja ou como deseja: o que regula as citações são as imposições ligadas a este lugar discursivo, uma coerção de Formação Discursiva (FD)13 13 Definição primeira: "No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção que se trata de uma formação discursiva - evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como 'ciência', ou 'ideologia', ou 'teoria', ou 'domínio de objetividade'". (FOUCAULT, 2010:43; grifo do autor). , portanto.

Dessa maneira, tendo-se o corpus da presente reflexão composto pelas citações (in)diretas que observaremos adiante, explicitemos ainda que o projeto da AD que assumimos aqui não se impele a uma pretensa objetividade pura no tratamento do material ao qual se dirige, tampouco visa à exaustividade (nem em extensão, nem em completude) e esgotamento do objeto posto em consideração. O jogo de relações aí envolvido, dada a dimensão dos inumeráveis desdobramentos potenciais e complexidade que evidencia, tornaria a empresa do oposto como claramente inexequível; assim é que realçamos que o que o analista de discurso assume como tarefa é "recortar e analisar estados diferentes" do processo discursivo (ORLANDI, 2009_______. 2009. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 8.ed. Campinas, SP: Pontes.).

Feitos os comentários e considerações preliminares, passemos à analise de cada citação, individualmente ou em pares relacionados, seguindo rigorosamente a ordem em que aparecem no voto. Enumeramos - de (1) a (12) - as citações (integrais em relação à sua realização no voto) e usamos a atribuição de autoria conforme aquela constante no texto original do relator.14 14 Uma vez que naturalmente pomos em articulação os dizeres limítrofes às citações em nossa análise de cada uma das doze ocorrências, recomendamos ao leitor a leitura do voto (v. n.6) antes de passar para a nossa discussão, se não de modo completo, ao menos as partes imediatamente no entorno das citações (in)diretas, mas tal procedimento não se evidencia, em princípio, de todo necessariamente imprescindível. Em todo caso, ao se ter a impressão de que nossos argumentos não estejam suficientemente consistentes a respeito do exercício de discutir efeitos de sentido possíveis, a leitura do voto na íntegra não poderá ser ignorada (se a "impressão" persistir, remetemo-lo à n.24).

(1) Platão: "quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia"

(2) Max Scheler: "O ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante"

Antes da citação, o sujeito do discurso lembra que se cairia em erro de interpretação acerca de institutos jurídicos caso se ignorasse a dimensão afetiva das pessoas e, então, tenta conectar isso com as citações de Platão e Scheler que se seguem, pretendendo sustentar seu argumento. Entretanto, vemos que o único fator em comum nas três afirmações postas em relação (a do Britto, a do Platão e a do Scheler) é a menção do amor. Do ponto de vista semântico-discursivo, as três afirmações não entram, no entanto, em jogo de "intersustentação" ou sustentação recíproca, já que advogam coisas distintas: Britto defende que, para um fazer interpretativo mais eficiente, se deve conhecer a dimensão afetiva das pessoas; Platão, por seu turno, defende que saber filosofia pressupõe partir do amor (muito provavelmente amor à filosofia); e Scheler declara que a capacidade de amar é anterior ao pensar e ao desejar (se entendermos que ser volitivo é uma sobredeterminação da capacidade de amar).

Mas, a despeito disso (da não convergência das direções das afirmações), uma vez que o sujeito-intérprete15 15 Uma vez que o campo psicanalítico concorre à formação da plataforma epistemológica de base da AD, é dele que extraímos o saber de que significantes produzidos, formando cadeias, fundarão a demanda da instância de um sujeito de significação (que estamos chamando, sem maiores implicações, de sujeito-intérprete), que incidirá neles (cf. LACAN, 2008). está implícita, irrefletida e fortemente inclinado a "ver" coerência no que vê ou ouve16 16 Segundo(Bronckart 2009:137), p.ex., o texto (entendido por ele tanto como produção comunicativa verbal oral quanto escrita) tende, por definição, a produzir um efeito de coerência sobre seu destinatário. , ele tenderá a "enxergá-las" como estando inter-relacionadas sob uma isotopia, dada por sua vontade racional de encontrá-la, portanto. Como resultado, criam-se efeitos de sentido que tocam a dimensão afetiva - como dimensão de primeira ordem -, a ser, consequentemente, privilegiada como tal frente às demais, como, por exemplo, a racional. Para ele, então, parece ser o amor (ou a afetividade) a linha mestra de interpretação.

Apontar o amor como diretriz, no entanto, a priori não é tarefa fácil para o sujeito do discurso, já que ele - dada a coerção que o papel desempenhado e o lugar ocupado implicam - sentiria necessidade de um argumento de autoridade para legitimar sua escolha por esse caminho. Considerando-se a necessária formalidade do discurso jurídico, assim como a aura de tecnicista e burocrata (no sentido da positividade17 17 Uma positividade tem que ver com domínios de objetos criados pelo poder de afirmação do discurso (FOUCAULT, 2009:69-70). ), a opção do enunciador a ter como valor primeiro o amor (em oposição, por exemplo, à lei), carece mesmo de uma prévia justificação, por não ser, de saída, adequado à expectativa prototipicamente relacionada à instituição que o marca. Trata-se de FDs diversas, que se caracterizam "não por princípios de construção, mas por uma dispersão de fato" (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. 2010. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.:131), relativa ao "campo de memória [que] está ligado às formas de hierarquia e se subordinação que regem os enunciados" (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. 2010. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.:79)18 18 V. tb. n.15. .

Outro destaque que julgamos importante a ser feito - no que tange às citações (1) e (2) sobre o amor como ponto de partida da motivação para a procedência de outras "capacidades" - é o fato de que o amor não é um elemento prototipicamente ligado ao discurso jurídico. O amor, os afetos e as paixões, em geral, não fazem parte da FD jurídica, tradicionalmente vinculada ao universo das racionalidades: prototipicamente, cumpre ao discurso jurídico a aprovação/reprovação de determinada conduta com base nos preceitos legais vigentes. Ainda que, eventualmente, na prática jurídica, discutam-se as motivações das ações, das condutas, tal discussão cinge-se ao enquadramento neste ou naquele texto de lei. A interpretação é, nesse caso, o processo intelectual, cujo objetivo é "averiguar o conteúdo de uma disposição jurídica"19 19 Sem, no entanto, vincular-se à ilusão de que haja uma única solução "correta", visto que diferentes soluções possíveis, racionalmente de igual valor, podem dividir espaço. (KELSEN, 2007KELSEN, H. 2007. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.).

Agora, vejamos a citação seguinte:

(3) René Descartes: "Não me impressiona o argumento de autoridade, mas, sim, a autoridade do argumento"

Considerando seu entorno, (3) parece gozar de bom encaixamento no discurso. É patente que essa citação - se nos lembrarmos das afirmações adjacentes, com as quais se relaciona diretamente no voto - desencadeia uma analogia por pareamento: assim como "o argumento de autoridade" está para a construção de preconceitos, "a autoridade do argumento" está para a formação de conceitos baseados na reflexão afinada a respeito da realidade, para usarmos os termos presentes nos enunciados do voto imediatamente vizinhos. Todavia, coloca-se como curiosa a inserção dessa citação após o evidente uso do argumento de autoridade para legitimar o discurso do amor há pouco focalizado. Ora, a importância do argumento de autoridade é, então, relativizada, ainda que pese sobre ele a legitimação do amor como ponto de partida para o enfrentamento da questão.

Seria autorizado pensar ainda, por outro lado, que a citação de Platão e Scheler - (1) e (2) - não seja posta como um argumento de autoridade, mas sim pela autoridade do argumento20 20 Ainda que as citações (1) e (2) sejam tomadas como um argumento de autoridade, essa possibilidade não coloca impedimento algum para que tais citações sejam tomadas como uma autoridade do argumento. . Assim pensando, os efeitos de sentido possíveis, considerando o momento resultante do movimento de (1) até (3), flutuam, conferindo um reforço à escolha do amor como ponto de partida em si, porque não estaria supostamente legitimado pela figura de Platão ou Scheller, mas por ser, em si, uma autoridade de argumento. O ethos 21 21 Vale dizer que assumimos o conceito de ethos dado em (Maingueneau e Charaudeau 2004) como a "imagem de si mesmo que o sujeito do discurso constrói em seu discurso para exercer uma influência" sobre o destinatário do discurso. Não se trata, por óbvio, da imagem real de um sujeito real, mas daquela que se verifica pelo seu discurso como a imagem que o sujeito tem de si mesmo com o fim de criar certos efeitos de sentido. resultante dessa inserção pode referir-se à ideia de que o sujeito do discurso crie efeitos de ilusão segundo os quais pretensamente não se colocam para buscar respaldo de peso ao raciocínio, pois este se bastaria em si, o que, evidentemente, examinando o nosso recorte de corpus, não se verifica como fato, já que, como o leitor verá ao notar as outras citações, não se vê distanciamento da estratégia do argumento de autoridade.22 22 Caso o leitor discorde (não só desse ponto), nos sentiríamos lisonjeados em receber sua crítica ou observação (lignegri@ufpr.br, guidabittencourt@gmail.com, selmojunior@gmail.com), porquanto rechaçamos a ideia de que não devamos considerar, enquanto autores, a ilusão de um lugar de irrefutabilidade.

Citar Descartes, ainda, pode permear o restante do discurso com a alusão subterrânea ao cartesianismo, do raciocínio reto, conferindo ao discurso uma aura de precisão, como um construto lógico.

(4) Fernando Pessoa: "O universo não é uma idéia minha./A idéia que eu tenho do universo é que é uma idéia minha"

Ao contrário do que dissemos inicialmente sobre (3), (4) parece ter encaixamento problemático. Ao dizer sobre o necessário combate contra os preconceitos a favor da formação de conceitos gerados sob o cuidado de se tentar captar a realidade, esse trecho só faz evocar que o mundo e as coisas que o povoam não são criados a partir de nossa ideação, mas sim tornados conhecidos por mediação de ideias que se engendram para torná-los subjetivamente cognoscíveis. Logo, difícil ver encaixamento pacífico na argumentação anterior no voto, com a qual se pretendia relacionar. Além disso, pode produzir um efeito de sentido que dê potencialmente a ideia de que apenas o que é "ideia minha" pode ser assumido como ideia verdadeira, subjetivando excessivamente uma leitura de mundo e, por consequência, autorizando que cada qual possa sobrepujar a ideia do outro, em nome desta ideia particular.

Relacionando as citações (3) e (4), vemos um paralelismo de forma: a primeira parte de ambas nega um dado (não me impressiona.../ o universo não é...), para então, na segunda, se dar a conclusão "acertada". A negação posta no primeiro plano chama a atenção para o elemento negado, reforça-o enquanto objeto da negação, posto que, por essa técnica, a progressão informativa da oração parte da suposição da informação negada. Teríamos esquematicamente: Não X mas Y, em que X seria um suposto inicial de Y.

Até então, vimos no discurso a evocação de filósofos. Aparece, então, um poeta. No caso dos primeiros ("classe" que vai aparecer ostensivamente na sequência), não se demanda muito esforço se se quiser considerar que a menção a eles não obedece outra "função" não a de introduzir legitimidade ao alçamento do amor como fundamento do convencimento. Por seu turno, o poeta é chamado para intermediar uma relação com a racionalidade, o que torna amalgamados os ajuizamentos de que a coisa e a ideia que se faz da coisa, como dito - o tornar a coisa subjetivamente conhecida -, são ocupações da racionalidade, da construção intelectual e do filtro do quadro de referências individual. É que o amor não se coloca sob o escopo da racionalidade.

Mas os poetas são prototipicamente ligados ao universo das subjetividades e, por extensão, do amor. A subversão à regra - filósofos tratam do conhecimento, da sabedoria, elaboram racionalmente os saberes a propósito dos fenômenos do mundo, ao passo que os poetas se ocupam dos amores, das sensações, da ordem do sensível e do sensório - garante os ulteriores efeitos de sentido que o leitor já certamente intui, em ambos os casos, na medida em que legitima a escolha do amor, já que aqueles, ligados à racionalidade, assim também são facultados a asseverar; e ao trazer uma citação que trata da temática da intermediação racional, não perde de vista o amor, porque quem fala de racionalidade é um poeta.

Isso dito, passemos à (5) e (6):

(5) Nietzsche: "Torna-te quem és"

(6) Hegel:23 23 O que segue é uma paráfrase, tal como está no voto. ... Hegel a sentenciar que a evolução do espírito do tempo se define como um caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo

(5), expressão originalmente pindárica, articulada ostensivamente na bibliografia do autor citado, é concernente, ainda que de modo tácito, com o querer dos defensores da união homoafetiva e, conectando-se à paráfrase relativa a Hegel, intenta que o movimento do tornar-se quem se é traria o aperfeiçoamento da história. Salvo melhor juízo, entraríamos no campo da especulação ao tentar delimitar refletidamente como seria esse aperfeiçoamento sugerido.

Outro caminho relativo a (5) seria considerar que, ao tratar da plenitude existencial, o apelo faz referência à recorrente impossibilidade do indivíduo homoafetivo ser quem é, sobre o qual culturalmente tem pesado, de fato, limitações para alguma consecução de plenitude de existência tal como frequentemente é experienciada pelo indivíduo heterossexual, no particular que diz respeito ao maior consentimento social à sua orientação sexual. Se se vive num ambiente hostil a dado comportamento, aí então se vive obrigatoriamente um simulacro de si mesmo, protegendo-se da resposta contrária ao que se é. Assim, os efeitos de sentido possíveis se colocam numa direção voltada àqueles que estão impedidos de se tornar quem são, mas que, com a enunciação do voto, passarão a ser "autorizados" a tornar-se quem realmente são. É como um libelo, uma autorização institucional, e evidencia-se o lugar de quem fala, com o poder vereditório em mãos, representante máximo da instituição de controle que é o Judiciário, criando um ethos de poder com efeitos como que análogos ao que o sagrado pode produzir.

(7) Jung: "A homossexualidade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação"

Quanto à citação de Jung (sabendo-se, claro, que ela é insuficiente para se captar o ponto de vista do autor sobre o tema24 24 V. JUNG, C. G. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. ), a coisa está bem dada, isto é, o sujeito do discurso lança mão dela para dar embasamento teórico à posição de que a união homoafetiva não representa patologia constituída por componentes sexuais disfuncionais. O sujeito-intérprete quer dizer, com autoridade científica, que a união homoafetiva é normal, é a própria identidade psíquica dos sujeitos.

Assim, pela primeira vez o sujeito do discurso traz à baila uma citação relativa à questão da "homossexualidade" (para usar a mesma designação). Agora - e estamos vendo o amor, a assunção de si, ou a mediação da racionalidade ou sensibilidade na cognição25 25 A saber: (1), (2), (4), (5), (9) e (12). -, o sujeito do discurso, praticamente no meio de sua fala, opta por passar a tratar da "homossexualidade" do ponto de vista clínico, rechaçando, agora diretamente, qualquer menção ou referência à etiquetagem da orientação sexual homoafetiva em termos de anomalia, doença ou coisa que o valha. Ainda que o enunciador tenha adiado o enfrentamento desse ponto, teve de fazê-lo. É um discurso ainda muito comum e, portanto, necessariamente teria de ser confrontado e, segundo a coerência isotópica, negado. Todavia, não é um argumento ao qual o enunciador credita necessariamente muita importância26 26 Afirmamos isso com segurança por não ignorar o fato de que, das doze citações (in)diretas, apenas a (7) tem relação com o universo clínico. , mas, considerando os discursos contrários correntes, é importante negá-lo expressamente.

(8) Caetano Veloso: "bruta flor do querer"

Para uma avaliação mais completa, diga-se que a letra inteira ("O Quereres"), na qual se encontra esse verso, tem um grau de poeticidade, de estranhamento notadamente intenso no aspecto de que a relação combinatória dos significantes produz enunciados incomuns, onerando significativamente o sujeito-intérprete a um dispêndio de significação.

No limite do razoável, no entanto, poderíamos aventar que a oposição de bruta/flor possa causar um estranhamento capaz de pôr em destaque elementos como a força, a rudeza, a violência combinados com a sensibilidade, a delicadeza, a beleza, como lampejo de síntese por parte do enunciador de itens prototipicamente antagônicos. E pelo fato de que gêneros de poesia não tenham propriamente o campo do jurídico como território próprio em que circular, (8) pode vir a comunicar algum efeito de humanização aplicado sobre a ideia proeminente de rigidez racional que caracterizaria significativamente a instituição da qual o sujeito do discurso se faz representante.

E na esteira da autorização de acionar o recurso de ponderar elementos extradiscursivos27 27 V. últ. § da seção "Considerações de ordem teórica e metodológica". , e ainda sabendo que "o sentido não está associado simplesmente nem às palavras, nem aos enunciados, mas depende, de alguma forma, exatamente, da enunciação dos enunciados, o que, por sua vez, depende de condições específicas" (POSSENTI, 2002POSSENTI, S. 2002. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. Curitiba, PR: Criar Edições.:171), outro efeito se sentido possível relacionado à citação (8) seria decorrente da inserção do nome de um artista bastante conhecido, associado às manifestações de cultura popular brasileira contemporânea. Se, de um lado, temos o chamamento de nomes como Platão, Hegel, Fernando Pessoa, por exemplo, conotando uma intelectualização do sujeito enunciador, por outro, temos o chamado a um artista popular, como que para aproximar metonimicamente o universo da intelectualidade universal ao das manifestações mais populares.

Como desdobramento disso, evidencia-se que há possibilidade de efeitos de sentido deflagrarem efeitos de sentido (aqui considerados possíveis) que apontem na direção de "demonstrar" que a FD do STF (do qual o enunciador é representante, no caso e no momento da enunciação), articulada pelo sujeito do discurso, tem seu bojo atravessado por discursos advindos da observação do que se passa no mundo da cultura popular. Por consequência, nada nos espantaria ao reconhecer que o sujeito-intérprete "intuísse" que a Corte Suprema não se enclausura em suas questões judicantes (e políticas) exclusivamente, mas também tem olhos para ver o movimento social em vários níveis de manifestação, legitimando ainda mais suas posturas decisórias. Cria-se, pois, um ethos de contemporaneidade, diverso daquela ideia primeira que circunda as instituições constituídas - como o judiciário - de engessamento, encastelamento.

(9) Jean-Paul Sartre: "na matemática do amor, um mais um... é igual a um"

É interessante notar que a fórmula bíblica detentora de valor significativo análogo se extrai do livro de Genesis, 2:24, e reza que "deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apegar-se-á a sua mulher e serão ambos uma só carne", que faz referência expressa ao casal heterossexual. Em ambas as situações, no entanto, temos, como resultado da união afetiva de dois seres, um apenas. Nessa linha, porém, o discurso do campo religioso é "subvertido" pela máxima sartreana para compor uma construção "matemática", dando guarida ao raciocínio construído pelo sujeito do discurso. Logo, é plausível a possibilidade de que o texto bíblico seja objeto de evocação arquitextual28 28 Como diz Foucault (2009), no discurso podemos encontrar o esboço ou as ruínas de uma obra, dizendo alhures - (FOUCAULT, 2010) - que esta seja "nó em uma rede" e que não há enunciados que não suponham outros. em (9), citação na qual, contudo, os termos homem/mulher são afastados para que se dê lugar ao fenômeno do amor em si, do que decorrem efeitos de sentido possíveis que apontem para a desconsideração de gênero ou sexo na "cena" de amar.

(10) Rui Barbosa: "a Pátria amplificada"

(11) Spinoza: "Nas coisas ditas humanas, não há o que crucificar, ou ridicularizar. Há só o que compreender"

Em (10), o metadiscurso é simples: lembrando-nos dos ditos vizinhos a essa citação no voto, reatualiza-se uma analogia forte entre sociedade e família, salientando-se alguns valores para os quais supostamente ambas se dirigem, a primeira no rastro da segunda. Assim, recuperando a alusão há pouco discutida de que a união homoafetiva não tem nada de patológico, e considerando que o objetivo dos homoafetivos se liga à consecução do direito de realização de casamento homossexual, é bem plausível registrar que os efeitos de sentido possíveis concernem a levar o sujeito-intérprete a anuir que, por extensão, a sociedade será valorosa, superior, normal; cabendo a nós, segundo a articulação ensejada por (11), apenas "compreender" isso. Como aditivo, explicitemos que o ato de compreender não implica, por definição, em aceitar, apoiar, concordar, o que confere um caráter de "passividade" àquele que trata do objeto da compreensão: não há a necessidade de se agir no mundo, mediante ações ou palavras, por se compreender um fenômeno.

Em (11), o eufemismo das "coisas ditas humanas" para, no caso, representar as uniões homoafetivas novamente corrobora o discurso posto: o de humanizar as relações afetivas, sejam elas de qualquer natureza (dar "coisas ditas humanas" por "relações homoafetivas" é um movimento que foca e reforça o estatuto de humanidade ali presente).

Outra observação acerca de (11) nos faz considerar a negação presente, assim como fizemos mais acima neste trabalho. O discurso parece cortado por outras vozes que dizem "há que se crucificar ou ridicularizar" - discursos contrários à tese defendida; de modo que o sujeito do discurso se obriga a negá-las expressamente, evocando uma citação do campo da filosofia que reforça que racionalmente se deve dizer não a esse discurso, ao mesmo tempo subjacente e superficializado.

O ethos visado aqui parece ser, portanto, o que privilegia uma visão humanizadora sobre os dados do mundo.

(12) Chico Xavier: "A gente pode morar numa casa mais ou menos,/Numa rua mais ou menos,/ Numa cidade mais ou menos"/ E até ter um governo mais ou menos", assim conclui a sua lúcida mensagem: "O que a gente não pode mesmo,/ Nunca, de jeito nenhum,/ É amar mais ou menos,/ É sonhar mais ou menos,/ É ser amigo mais ou menos,/ (...) Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos".

Os efeitos de sentido possíveis, dizemos de chofre, relacionam o "amar mais ou menos" em (12) com uma união homoafetiva sem direito de constituir uma família com estatuto jurídico e, por isso, protegida. E como a isotopia da discursividade do ministro relator se dirige a uma posição favorável à união homoafetiva, essa passagem vem a chancelá-la. Exercitemos ainda que a evocação de Chico Xavier num dado momento histórico em que esse nome é bastante popular (em decorrência não apenas do apelo sempre presente das questões da espiritualidade, mas especialmente em decorrência dos recentes lançamentos cinematográficos Chico Xavier: o filme (2010) e As mães de Chico Xavier (2011), que o colocam no centro do enredo), novamente dá pistas, tanto da construção de ethos de contemporaneidade, como também da construção de um discurso que "flerta" com um discurso religioso - afinal, este é, segundo nos apresenta (Orlandi 2006ORLANDI, E. P. 2006. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4.ed. Campinas, SP: Pontes.:242-3), "como aquele em que fala a voz de Deus" -, sabendo-se que o espiritismo kardecista, ao qual o nome de Chico Xavier se vincula, a propósito, é de base cristã.

Aliás, o amor é um dos elementos-chave explorados pelo campo religioso. Partindo-se da máxima bíblica "Deus é amor"29 29 1ª Epístola de João, 4:8: "Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor". , o campo discursivo religioso, por extensão, coloca a questão do amor (seja espiritual, seja "carnal") em destaque. Trazer essa tônica e, em consequência, "flertar" com o discurso religioso vai dar condições para que os efeitos de sentido aí possíveis digam respeito a uma tentativa de neutralização da oposição à união homoafetiva perpetrada justamente por aqueles com alguma vinculação religiosa30 30 No caso, tanto a Convenção Nacional dos Bispos do Brasil quanto a Associação Eduardo Banks foram ouvidas na condição de amici curiae, defendendo a improcedência das ações e, portanto, a não equiparação da união estável homoafetiva à união estável entre pessoas de sexo diferente. . A Convenção Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) advoga no sentido de que o "afeto não pode ser parâmetro para a constituição de uma união homoafetiva estável"31 31 Essa informação está disponível no endereço eletrônico do STF. Seu link direto é http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178775 . Quando o sujeito do discurso elege o argumento do outro como base da construção do seu raciocínio, visa com isso, além de livremente expressar seu convencimento, persuadir o outro, porque busca no cabedal de argumentos do opositor o que embasa seu raciocínio e é, a partir disso, capaz de gerar uma conclusão oposta.

Voltando a (12), nela se diz que, para afastarmos o risco de ser mais ou menos, precisamos/devemos amar, sonhar e ser amigos engajados. Assim, pela própria evocação do texto citado, fica bem plausível que os efeitos de sentido possíveis se dirijam a uma assunção de que a decisão do relator carregaria o potencial de propiciar a plenitude da vida (inclusive amorosa) aos homoafetivos.

Considerações finais

Integrando a ideia que emerge do fato de que o sujeito do discurso se coloca de forma a quebrar o estereótipo de um burocrata que aplica friamente leis, temos a presença, no discurso que ele produz, de citações que, para além de tocar a filosofia, se filiam à cultura popular, ao espiritualismo, à poesia e até à clínica. Na nossa discussão, vimos que isso, analiticamente, se perfaz como base da argumentação a favor da união homoafetiva que é inequívoca e inegavelmente defendida. Nesse movimento, assistimos à "costura" realizada no voto de FDs de naturezas diversas como que para tentar contemplar todos os aspectos que a polêmica questão da união homoafetiva faz(ia) suceder, nos mais distintos âmbitos e lugares sociais, "presentificados" no texto que avaliamos, na especificidade dos efeitos de sentido possíveis relativos às citações (in)diretas. Igual interesse se coloca para nós ao ponderarmos a plausibilidade do efeito de integração de componentes de natureza racional juntamente com os de caráter sentimental para enriquecer e fundamentar a "tomada de lado" de Britto acerca da matéria. Se tivéssemos de salientar uma particularidade dentro de todos os conjuntos de efeitos de sentido possíveis, pensaríamos que aqueles que se dirigem ao propósito de fomentar uma "humanização das relações" se constituem numa interessante escolha. Por outro lado, não nos é lícito deixar de lançar realce à sucessão de ênfases dadas ao amor a pretexto das citações por parte do sujeito do discurso, dando condição para que o amor fosse posto num lugar de proeminência se contrastado com as posturas em alguma medida ligadas com os preconceitos circulantes e com os julgamentos resultantes de inobservância de, inclusive, uma FD clínica. Destaquemos ainda a operação - à qual esperamos ter conferindo novo grau de explicitação - de se "flertar" com uma FD religiosa como estratégia de, tacitamente, desarmá-la no que se refere ao posicionamento que ela e outras congêneres geralmente efetivam contra os ensaios (sociais, políticos, jurídicos) de legitimação concernente às relações homoafetivas. O amor ser alçado à preocupação primeira, naturalmente é pensá-lo em seu estatuto ôntico - como ente com valor em si - , anterior ao tratamento que lhe é conferido por instituições. Por extensão esse modo de vê-lo fará com que uma "regulamentação" qualquer que choque frontalmente com os interesses homoafetivos seja descabida - e os efeitos de sentido possíveis nesse particular das citações (in)diretas realizadas na materialidade linguística, na discursividade do voto de Britto vão convergir fortemente para isso.

  • AUTHIER-REVUZ, J. 1990. "Heterogeneidades enunciativas". In: Cadernos de Estudos Lingüísticos, nº 19, p. 25-27. Campinas: Unicamp.
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  • KELSEN, H. 2007. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
  • LACAN, J. 2008. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
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  • _______. 2009. "Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas". In: Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. v.3. 4.ed. São Paulo: Cortez.
  • 1
    Desde já, deixemos explicitado que não nos ocuparemos das razões do convencimento dos ministros.
  • 2
    Noção de enunciação que adotamos: quando houver realização de enunciado(s) (unidade elementar do discurso), há enunciação, com sua individualidade espaço-temporal, logo, nunca se repete (cf. FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. 2010. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.:116).
  • 3
    Denegação enquanto jargão técnico jurídico relativo à improcedência das demandas, resguardando-se, assim, acepções outras.
  • 4
    O voto na íntegra do ministro relator Carlos Ayres Britto está disponível no endereço eletrônico do STF. Seu link direto é http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf
  • 5
    Protocolo no STF em 27 de fevereiro de 2008.
  • 6
    Protocolo no STF em 02 de julho de 2009.
  • 7
    Da propositura da primeira demanda até o julgamento, houve um lapso temporal de mais de três anos, capaz de trazer amadurecimento à discussão social sobre o tema, assim como o pacífico convencimento dos julgadores, que, ao fim, deram provimento por unanimidade.
  • 8
    Dizemos citações(in)diretas para contemplar o fato de que, das doze citações realizadas no voto, onze são diretas (não parafraseadas) e uma, indireta (parafraseada). Para (Authier-Revuz 1990AUTHIER-REVUZ, J. 1990. "Heterogeneidades enunciativas". In: Cadernos de Estudos Lingüísticos, nº 19, p. 25-27. Campinas: Unicamp.), seriam entendidas como formas de heterogeneidade mostrada marcada no discurso. Contudo, pedimos a licença ao leitor para continuar a usar a designação citações (in)diretas, dados a vantagem que sua econômica nos traz e o foco do nosso propósito neste trabalho.
  • 9
    É com itens lexicais derivados da composição entre homo- e afetivo (para homoafetivo, homoafetividade etc.) que o sujeito do discurso no voto se refere ao "vínculo de afeto e solidariedade entre os pares e parceiros do mesmo sexo". Aqui, conservaremos essa medida, já que, sem o peso de certas expressões mais ou menos pejorativamente marcadas, é suficiente para dar conta "ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho, entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de humanos" (entre aspas, palavras extraídas do voto em questão; v. n.6).
  • 10
    Disso decorre que não faria sentido nos engajarmos na verificação da autenticidade e fidedignidade das citações atualizadas no voto.
  • 11
    Sobre Formação Discursiva, v. n.15.
  • 12
    No decorrer deste texto, tomaremos o sujeito enunciador, o enunciador do discurso mais frequentemente por sujeito do discurso, observando-se as implicações dessa escolha terminológica por adotarmos a visão althusseriana dissecada por (Possenti 1990POSSENTI, S. 2002. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. Curitiba, PR: Criar Edições.), de que, para a AD, importam os "sujeitos na história". No limite, por sinal, essa é uma questão teórica secundária, se cotejada aos propósitos centrais deste trabalho.
  • 13
    Definição primeira: "No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção que se trata de uma formação discursiva - evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como 'ciência', ou 'ideologia', ou 'teoria', ou 'domínio de objetividade'". (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. 2010. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.:43; grifo do autor).
  • 14
    Uma vez que naturalmente pomos em articulação os dizeres limítrofes às citações em nossa análise de cada uma das doze ocorrências, recomendamos ao leitor a leitura do voto (v. n.6) antes de passar para a nossa discussão, se não de modo completo, ao menos as partes imediatamente no entorno das citações (in)diretas, mas tal procedimento não se evidencia, em princípio, de todo necessariamente imprescindível. Em todo caso, ao se ter a impressão de que nossos argumentos não estejam suficientemente consistentes a respeito do exercício de discutir efeitos de sentido possíveis, a leitura do voto na íntegra não poderá ser ignorada (se a "impressão" persistir, remetemo-lo à n.24).
  • 15
    Uma vez que o campo psicanalítico concorre à formação da plataforma epistemológica de base da AD, é dele que extraímos o saber de que significantes produzidos, formando cadeias, fundarão a demanda da instância de um sujeito de significação (que estamos chamando, sem maiores implicações, de sujeito-intérprete), que incidirá neles (cf. LACAN, 2008LACAN, J. 2008. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.).
  • 16
    Segundo(Bronckart 2009BRONCKART, J.-P. 2009. Atividade de linguagem, textos e discurso. 2.ed. São Paulo: EDUC.:137), p.ex., o texto (entendido por ele tanto como produção comunicativa verbal oral quanto escrita) tende, por definição, a produzir um efeito de coerência sobre seu destinatário.
  • 17
    Uma positividade tem que ver com domínios de objetos criados pelo poder de afirmação do discurso (FOUCAULT, 2009:69-70).
  • 18
    V. tb. n.15.
  • 19
    Sem, no entanto, vincular-se à ilusão de que haja uma única solução "correta", visto que diferentes soluções possíveis, racionalmente de igual valor, podem dividir espaço.
  • 20
    Ainda que as citações (1) e (2) sejam tomadas como um argumento de autoridade, essa possibilidade não coloca impedimento algum para que tais citações sejam tomadas como uma autoridade do argumento.
  • 21
    Vale dizer que assumimos o conceito de ethos dado em (Maingueneau e Charaudeau 2004CHARAUDEAU, P; MAIGUENEAU, D. 2004. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto.) como a "imagem de si mesmo que o sujeito do discurso constrói em seu discurso para exercer uma influência" sobre o destinatário do discurso. Não se trata, por óbvio, da imagem real de um sujeito real, mas daquela que se verifica pelo seu discurso como a imagem que o sujeito tem de si mesmo com o fim de criar certos efeitos de sentido.
  • 22
    Caso o leitor discorde (não só desse ponto), nos sentiríamos lisonjeados em receber sua crítica ou observação (lignegri@ufpr.br, guidabittencourt@gmail.com, selmojunior@gmail.com), porquanto rechaçamos a ideia de que não devamos considerar, enquanto autores, a ilusão de um lugar de irrefutabilidade.
  • 23
    O que segue é uma paráfrase, tal como está no voto.
  • 24
    V. JUNG, C. G. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
  • 25
    A saber: (1), (2), (4), (5), (9) e (12).
  • 26
    Afirmamos isso com segurança por não ignorar o fato de que, das doze citações (in)diretas, apenas a (7) tem relação com o universo clínico.
  • 27
    V. últ. § da seção "Considerações de ordem teórica e metodológica".
  • 28
    Como diz Foucault (2009), no discurso podemos encontrar o esboço ou as ruínas de uma obra, dizendo alhures - (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. 2010. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.) - que esta seja "nó em uma rede" e que não há enunciados que não suponham outros.
  • 29
    1ª Epístola de João, 4:8: "Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor".
  • 30
    No caso, tanto a Convenção Nacional dos Bispos do Brasil quanto a Associação Eduardo Banks foram ouvidas na condição de amici curiae, defendendo a improcedência das ações e, portanto, a não equiparação da união estável homoafetiva à união estável entre pessoas de sexo diferente.
  • 31
    Essa informação está disponível no endereço eletrônico do STF. Seu link direto é http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178775

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    Jun 2011
  • Aceito
    Mar 2014
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