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Linguagem e gênero: no trabalho, na mídia e em outros contextos

RESENHA REVIEW

Resenhado por Cristiane Maria Schnack

Mestre em Lingüística Aplicada - UNISINOS/RS

HEBERLE, Viviane Maria; OSTERMANN, Ana Cristina; FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Linguagem e gênero: no trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.

Desde o advento dos estudos sobre gênero, as perspectivas teórico-analíticas a partir das quais o mundo acadêmico lança seu olhar caminham para uma prática que busca mais problematizar as noções hegemônicas de masculino e feminino do que essencializar os universos "feminino" e "masculino" enquanto vinculados ao caráter biológico dos seres humanos. Inicialmente, tome-se a própria concepção de gênero, que outrora indexava o caráter biológico que caracteriza e, por assim dizer, divide os seres humanos em homens e mulheres, e que na contemporaneidade está vinculada a um fazer que é socialmente construído ao longo de outras construções identitárias, tais como etnia, classe social, escolaridade, entre outras.

Adotando a concepção contemporânea de gênero, Viviane Heberle, Ana Cristina Ostermann e Débora Figueiredo organizam o livro intitulado Linguagem e Gênero no trabalho, na mídia e em outros contextos e reúnem artigos que discutem a relação entre linguagem e gênero em "contextos socioculturais onde os textos e as falas estão inseridos (p. 7)". Ao não perceber gênero e linguagem em uma relação direta e unilateral, mas como parte de um mesmo processo de constituição social, os artigos agregam valor às discussões e mostram o quão complexo pode ser compreender essa relação. É preciso, como os artigos mostram, discutir gênero de forma situada, através da compreensão das práticas e de seus significados simbólicos, e perceber que esses significados são reconfigurados quando transportados para outros contextos, outras práticas, outras relações entre as pessoas. Isso possibilita que concepções de gênero, antes vistas de forma monolítica, possam ser desconstruídas, e as diferentes construções intragênero, por exemplo, compreendidas e trazidas à baila.

A organização do livro dá amplitude às concepções de gênero e linguagem, visto que está dividido a partir daquilo que é primordial na proposta: discutir relações identitárias de gênero em distintos contextos culturais. O livro divide-se, pois, em três grandes partes: Gênero, Interação e Trabalho (Parte I), Gênero e Mídia (Parte II), e Gênero em Ambientes Diversos (Parte III).

Os artigos da Parte I (Gênero, Interação e Trabalho) se afiliam em dois aspectos primordiais: analiticamente valem-se de interações face a face (naturalísticas ou de entrevistas) e giram em torno do tópico/contexto de trabalho dos/as participantes da pesquisa.

As interações face a face em ambientes distintos de trabalho são analisadas nos estudos de Ostermann (Comunidades de Prática: gênero, trabalho e face, capítulo 3, p. 15-47), Jung (Ecologia lingüística e social de uma comunidade multilíngüe, capítulo 4, p. 69-92), e de Pereira (Estratégias de manutenção do poder de uma ex-chefe em uma reunião empresarial: indiretividade e diretividade em atos de comando, capítulo 5, p. 49-68).

Ostermann, em seu estudo, analisa as diferentes construções de gênero que ocorrem em dois grupos distintos de profissionais mulheres que apresentam, contudo, uma mesma razão de ser: prestar auxílio (jurídico, policial, psicológico, assistencial) às mulheres vítimas de violência doméstica. A partir da análise das trajetórias interacionais, de como as profissionais se posicionam com relação às falas das vítimas, a autora estabelece relações entre as práticas recorrentes que caracterizam cada grupo e as identidades que emergem destas práticas. A noção de comunidades de prática proposta por Wenger (1998) e por Eckert e McConnell-Ginet (1992) é utilizada para dar conta da complexa rede de significações que cerca a construção do que significa ser mulher nos dois grupos analisados.

Já Jung, em seu estudo sobre a construção de gênero em uma comunidade multilíngüe, mostra que gênero está imbricado na construção identitária étnico-lingüística de forma bastante complexa, mediada por concepções locais sobre urbanidade. De forma elucidativa, a autora discute como gênero se torna "relevante como 'identidade' (ênfase no original) de poder socialmente construído na comunidade lingüística" (Jung, 2006:86), através da relação que homens e mulheres estabelecem com valores locais da terra.

Pereira, ao analisar uma reunião de trabalho, focaliza a realização de diretivos de uma ex-chefe de departamento de uma empresa carioca durante uma reunião com o atual chefe deste departamento e seus liderados. A partir de uma análise bastante detalhada, Pereira é capaz de mostrar que a opção de (in)diretividade dos atos da ex-chefe são sensíveis ao tópico e à fase da reunião na qual se encontram todos. É na análise da trajetória dos diretivos que a construção da identidade da ex-chefe fica mais evidenciada, uma vez que possibilita que percebamos a forma como ela se coloca em relação ao atual chefe e aos/às demais funcionários/as, enfatizando a tensão que envolve construções identitárias: não é apenas a construção identitária de uma ex-chefe, mas, acima de tudo, de uma ex-chefe mulher, frente a seus/suas antigos/as liderados/as e ao atual chefe homem, mediando a implementação de um trabalho que fora iniciado em sua gestão. Parece-me, contudo, uma teia densa demais para ser analisada somente nos atos de fala da ex-chefe, sem considerar-se o contexto seqüencial mais imediato e mais amplo.

Ainda inserido no capítulo acerca da relação gênero-interação-trabalho, mas valendo-se da análise da narrativa de história de vida, Oliveira, Bastos e Lima (Imigração e trabalho: revendo estereótipos de gênero, capítulo 3, p. 49-68) revelam como uma imigrante se constrói discursivamente como empreendedora, um atributo que ainda hoje parece estar atrelado ao universo masculino. Ao longo do trabalho, as autoras mostram que, embora se posicione discursivamente demonstrando as aptidões que circundam o ser empreendedor/a, afiliando-se a um mundo predominantemente masculino, a narradora-participante do estudo o faz talhando sua fala de forma tradicionalmente vinculada ao mundo feminino. Contudo, ao atrelarem, nas suas conclusões, a simpatia e cumplicidade estabelecida entre pesquisadora e pesquisada durante a entrevista ao estilo "feminino" da pesquisada, evidencia-se o fato de a história de vida ter se constituído, antes de mais nada, em um feito interacional, no sentido de ter sido co-construída entre pesquisada-pesquisadora (Grindsted, 2005). Contudo, não há uma discussão sobre este fato, a não ser a real constatação de que houve afiliação por parte de ambas. Problematizar essa questão enriqueceria ainda mais o debate acerca das construções sociais que, acima de tudo, emergem na interação.

A parte Gênero e Mídia compreende três estudos. Partindo de uma análise multimodal, Moita Lopes ("Falta homem até pra homem": a construção da masculinidade hegemônica no discurso midiático, capítulo 6, p. 131-158) e Lemes do Prado e Motta-Roth (Comodificação e homoerotismo, capítulo 7, p. 159-176) discutem a construção das masculinidades em contraposição à construção da masculinidade, enquanto que Piasecka-Till (Buscando significado em um corpus: PC, sexismo e suas inflexões no banco de língua inglesa do Cobuild, capítulo 8, p. 177-198) busca, pela análise da colocação lexical no banco de dados de língua inglesa, compreender as construções - negativas - que a imprensa operacionaliza com relação aos movimentos (anti-)sexismo e politicamente corretos.

Em seu artigo sobre a construção da masculinidade hegemônica na reportagem jornalística "Falta homem até pra homem" (Jornal O Dia, Caderno D), Moita Lopes parte da perspectiva da análise crítica e multi-modal (Fairclough, 1995; Kress e Van Leeuwen, 1996) para dar conta das três dimensões que um evento comunicativo abarca. A partir daí, o autor tece relações entre as práticas socioculturais, discursivas e o texto, de forma a mostrar como a mídia, atuando em direção contrária aos grandes questionamentos contemporâneos sobre a experiência humana, essencializa e homogeiniza as diversas identidades sociais (aqui, mais especificamente, a identidade masculina hegemônica). Ao fim e ao cabo, ainda lhe sobra fôlego para propor que a centralidade da questão está, sobretudo, na discussão do papel da mídia como espaço para a construção de (novas) identidades, trazendo seu estudo à superfície da vida cotidiana de cada um/a de nós.

A mídia também está no radar de Piasecka-Till, que analisa tanto a freqüência das ocorrências dos termos "politicamente correto" (politically + correct e political + correctness), "sexismo" (sexism), "sexista" (sexist), e "nãosexista" (non-sexist), quanto as construções semânticas engendradas pelas colocações que os termos-objetos de estudo recebem no Bank of English do COBUILD, maior corpus de língua inglesa. Ao fazê-lo, a autora traça relações de interdependência entre as colocações (na sua grande maioria criando um campo semântico negativo para os termos) e entre os termos em si. Além disso, ao fazê-lo, Piasecka-Till traz à pauta a necessidade de um debate sobre quem são os produtores dos textos - neste caso textos midiáticos - e quais os reais objetivos destes produtores ao escrever um texto. Por fim, a autora também salienta a importância de uma análise qualitativa que se valha dos resultados quantitativos apresentados. Contudo, não o faz ao longo do estudo, resultando em relações estabelecidas muito mais a partir do conhecimento da própria autora do que dos contextos de uso.

Os Anúncios Pessoais são objetos de estudo de Prado e Motta-Roth, que, ao valerem-se da Análise Crítica do Discurso (Fairclough, 1989; 1992), analisam como as relações interpessoais são construídas por anunciantes homossexuais. Além disso, discutem o papel da comodificação do sujeito na relação oferta-procura estabelecida nos referidos anúncios. Em termos de economia de mercado, o que Prado e Motta-Roth demonstram é a forma como essa masculinidade não-hegemônica (homoerótica) é construída na tensão, na ambigüidade e nas contradições que cercam uma identidade que, ainda, é constituída ao largo da identidade masculina hegemônica. Como aplicação pedagógica, Prado e Motta-Roth alertam para a necessidade de nos inteirarmos mais sobre as formas de uso da linguagem para a expressão de identidades não hegemônicas, de forma a respeitar as diferentes construções de sexualidade e erotismo, por exemplo.

A parte Gênero em Ambientes Diversos traz a discussão de Figueiredo (Os discursos públicos sobre o estupro e a construção social de identidades de gênero, capítulo 9, p. 199-215) sobre a construção judiciária de estupro e a análise de Gastaldo ("Fala, Cachaça!" Futebol e sociabilidade masculina em bares, capítulo 10, p. 217-230) sobre o universo característico brasileiro e, acima de tudo, do brasileiro homem.

Ao analisar as "decisões de apelação britânica em julgamentos de estupro" (Figueiredo, 2006, p. 199), Figueiredo discute a construção social da identidade feminina e da masculinidade hegemônica, e mostra como o discurso jurídico sobre estupro pode, ao invés de promover a justiça, acentuar as discrepâncias de poder encontradas na sociedade e, especificamente neste caso, entre os gêneros. Além disso, o discurso jurídico, como ação social que tem resultados concretos que podem ser bastante perversos (inocentar um estuprador, por exemplo), pode acabar por estereotipar ainda mais a identidade de mulher. Este fato pode, lamentavelmente, silenciar essas mulheres perante um ato de violência contra elas próprias, como no caso do estupro, justamente em função de contribuir para a manutenção da dificuldade de as mulheres reconhecerem quando um estupro é realizado.

Gastaldo analisa como o mundo masculino hegemônico é construído em torno da mesa de bares em dias de partidas de futebol. De cunho etnográfico, o estudo de Gastaldo revela as práticas nas quais expectadores homens se engajam ao assistirem a uma partida de futebol na televisão de um bar. Tomando como dado o fato de que "futebol é também (ou ainda) um mundo masculino" (Gastaldo, 2006: 217), a análise ofertada no estudo, embora bastante sensível aos construtos simbólicos em negociação, reforça um fazer essencialista de uma identidade masculina hegemônica. Contudo, ao propor que se olhe para o evento de assistir coletivamente um jogo de futebol televisionado como espaço de sociabilidade, o autor traz fôlego à discussão deste espaço constituído como prática local situada.

É preciso dizer ainda que a coletânea de artigos apresentados por Heberle, Ostermann e Figueiredo oportuniza um fazer ventilar as relações entre linguagem e gênero, de forma não unilateral e direta, mas imbricadas nas complexas teias de significações que situam culturalmente as práticas de homens e mulheres nos mais variados contextos de atuação. Além disso, os artigos que compõem o livro mostram-se de grande importância tanto para estudantes e profissionais iniciantes no assunto quanto por profissionais e estudantes com larga experiência de pesquisa em estudos de gênero, visto que lidam com questões práticas da ordem do dia: o conviver em sociedade, significando o mundo que nos circunda.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2009
  • Data do Fascículo
    2008
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