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Subalternidade nas práticas discursivas da cultura popular: um estudo da comunidade indígena Xucuru

Subalternity in discursive practices of popular culture: a study of the Xucuru indigenous community

RESUMO

Esta pesquisa intersecciona o conceito bakhtiniano de circularidade e o conceito de prática discursiva, a partir da perspectiva foucaultiana, a fim de analisar a (co)construção da identidade social dos sujeitos representantes de uma parcela das práticas discursivas da cultura popular pernambucana, mais especificamente, da tribo indígena Xucuru e suas performances do ritual do toré. A metodologia utilizada foi fundamentada a partir de pesquisas de campo e se constituiu pelos seguintes passos: i) observação das performances do ritual do toré da tribo indígena Xucuru, em Pesqueira-PE; ii) elaboração de entrevistas, in loco, com os sujeitos sociais representantes desta comunidade; e iii) captação de material histórico sobre a tribo Xucuru. Após o estudo, é possível afirmar que a identidade social da tribo indígena Xucuru é transformada social e politicamente e se (co)constrói na circularidade dos discursos que, por sua vez, se materializam por meio de referentes linguísticos encontrados ao longo do texto.

Palavras-chave:
cultura popular; circularidade; identidade social; prática discursiva

ABSTRACT

This study joins the Bakhtinian concept of circularity and the concept of discursive practice, from the Foucaultian perspective. Its aim is to analyze the (co) construction of the social identity of the subjects representing a portion of the discursive practices of Pernambuco popular culture, specifically, from the Xucuru indigenous tribe and their performances of the toré ritual. The methodology used was based on field research and consisted of the following steps: i) observation of the performances of the toré ritual of the Xucuru indigenous tribe in Pesqueira-PE; ii) elaboration of interviews, in loco, with the social subjects representing this community; and iii) collation of historical material about the Xucuru tribe. Results show that the social identity of the Xucuru indigenous tribe is socially and politically transformed and is (co)built by the circularity of discourses which, in turn, materialize through linguistic referents found in the text.

Keywords:
popular culture; circularity; social identity; discursive practice

1. Introdução

Esta discussão advém das reflexões desenvolvidas em minha tese acerca do modo como entendo linguagem mobilizada no âmbito das manifestações de grupos de cultura popular, observando-a a partir dos conceitos de prática discursiva e circularidade. Para tanto, recorro a autores como Spivak (1994Spivak, G. C. (1994). Can the subaltern speak?. In Colonial Discourse and Post-colonial Theory - A Reader. Patrick Williams & Laura Chrisman (Eds.). (pp. 66-111). Columbia University Press.); Canclini (2003Canclini, N. G. (2003). Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, & Ana Regina Lessa. 3ª ed. Editora da Universidade de São Paulo. (Culturas Híbridas: Estrategias para Entrary: salir de la Modernidad, 1990).); Foucault (1986Foucault, M. (1986). A Arqueologia do saber. Forense. (L’archéologie du savoir, 1969).); e Hall (2002Hall, S. (2002). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz T. da Silva, & Guacira L. Louro - 7. ed. DP&A. (The Question of Cultural Identity, 1992). ). Para verificar a contribuição do conceito de circularidade das práticas discursivas na cultura popular, respaldo-me em (i) Bakhtin (1993Bakhtin, M. (1993). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. Hucitec; Editora da Universidade de Brasília. (Colonial Discourse and Post-colonial Theory: A Reader, 1965).), pelo qual percebe-se um profundo diálogo entre a cultura popular e a elitista, em que as fronteiras entre essas duas culturas tornam-se indefinidas e pouco precisas e, ao mesmo tempo, em que é harmoniosa, também é marcada pelo conflito e pelas dissonâncias; e em (ii) Ginzburg (1987Ginzburg, C. (1987). O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução Maria Betânia Amoroso. Companhia das Letras. (Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del ‘500, 1976).), por meio do qual o conceito bakthiniano de circularidade é apresentado ao servir de base para mostrar um estudo sobre depoimentos de um moleiro da classe popular perseguido pela inquisição e que transitava entre os discursos popular e elitista, respectivamente.

Parto da hipótese de que a identidade social desses sujeitos é transformada politicamente e se (co)constrói pelos vários discursos em circularidade no interior de suas representações. Assumo o ponto de vista de Hall (2002Hall, S. (2002). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz T. da Silva, & Guacira L. Louro - 7. ed. DP&A. (The Question of Cultural Identity, 1992). ) ao dizer que a identidade social não é algo inato, mas imaginário e formado e transformado no interior da representação, entenda-se aqui, a representação não dissociada do próprio conceito de autorepresentação, mas este como parte constitutiva daquele. Ou seja, pelo modo como podemos identificar uma cultura local por meio das práticas discursivas expressas pelos agentes sociais (auto)representantes desta cultura.

Segundo Hall (2002Hall, S. (2002). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz T. da Silva, & Guacira L. Louro - 7. ed. DP&A. (The Question of Cultural Identity, 1992). ), a partir da segunda metade do século XX em diante, período denominado por ele de modernidade tardia, o sujeito foi (des)centrado pelas transformações de conceitos que respaldam as ciências humanas, a partir de perspectivas de autores como Lacan e Foucault. Como esse sujeito de fragmentos percebe-se diante de suas identidades? Essa é uma das indagações a qual o autor procura solucionar, focando particularmente o estudo da identidade nacional. Para este autor, as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós, brasileiros, por exemplo, só sabemos o que significa ser ‘negro’ devido ao modo como a ‘negritude’ veio a ser representada - como um conjunto de significados - pela cultura hegemônica desde a época da escravidão no Brasil. Segue-se que a noção não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos - “um sistema de representação cultural e político” (op.cit.:p. 48-49).

Gayatri Spivak (1994Spivak, G. C. (1994). Can the subaltern speak?. In Colonial Discourse and Post-colonial Theory - A Reader. Patrick Williams & Laura Chrisman (Eds.). (pp. 66-111). Columbia University Press.) questiona esse modelo como reprodução de modelos colonialistas de pensamento. Assim, os estudos subalternos (Subaltern Studies), corrente que parte de uma nova conceituação do termo “subalterno”, remontam a Gramsci, que denomina como “subalternos” os pertencentes às classes oprimidas, como uma forma de substituir o termo marxista “proletariado”. Os teóricos citados acima, a partir da conceituação de Gramsci, que, diferentemente do termo anterior, pressupõe subordinação, submissão, começaram a perceber que as formas de opressão estão além da classe e da condição econômica e que também há opressão com bases nos estudos gramscianos e nas teorias marxistas. Somando a tudo isso o fato de que Gramsci considera a cultura subalterna essencialmente folclórica, espontânea, fundada no senso comum mais que uma concepção científica do mundo, o conceito de subalterno foi ampliado.

Para Spivak, o subalterno é aquele que não é representado, inclusive na representação que se propõe dar a ele, porque, a partir do momento em que é representado, ele já é inserido em um discurso e perde o caráter de subalternidade num processo de alienação das diferenças. Se por um lado a alienação do processo de produção da diferença leva certos agentes sociais a construírem ou assumirem uma identidade a partir daquilo que diferencia esses agentes de uma identidade dominante, por outro as novas formas de significar e referenciar esses mesmos agentes, situando-os em uma dimensão político-social, são sinais, embora tímidos, de que a prática discursiva, dentro da qual esses agentes se significam, está em constante movimento de redefinição de suas fronteiras, o que atesta que esses agentes, embora carreguem o peso de terem sido posicionados pela alteridade, são agentes inquietos em relação à posição que ocupam, sentindo necessidade, portanto, de se movimentarem dentro dela, de olharem para o que está fora dela, o que nos leva a pensar as estratégias políticas destes apenas como referências ou motivações para se buscar mais equilíbrio nas relações de força.

Ora, no que se refere à cultura popular e sua representação cultural e política, segundo Canclini (2003Canclini, N. G. (2003). Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, & Ana Regina Lessa. 3ª ed. Editora da Universidade de São Paulo. (Culturas Híbridas: Estrategias para Entrary: salir de la Modernidad, 1990).), há uma tendência remota em se entender esse termo associado a uma identidade essencialista. Canclini diz que essa relação pode ser perceptível pelo desejo de se entender o povo e suas produções culturais buscando sempre ‘resgatá-los de um passado’ e presos a determinados estereótipos, tais como o povo ser representante de uma ‘tradição’ e de uma ‘essência’ - associações que determinam um lugar fixo para se entender o popular e que vêm desde o positivismo e o messianismo sociopolítico.

Segundo Canclini (2003Canclini, N. G. (2003). Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, & Ana Regina Lessa. 3ª ed. Editora da Universidade de São Paulo. (Culturas Híbridas: Estrategias para Entrary: salir de la Modernidad, 1990).), os estudos folcloristas, ao verem com nostalgia os discursos da cultura popular, ao ficarem presos à sua representação como em busca de um passado remoto apreendido por esse conceito dentro desse âmbito de observação, estabelecem crenças construídas por comunidades antigas em busca de pactos simbólicos com a natureza de que se perderiam se a tecnologia lhes ensinasse a dominar forças políticas. Mesmo na Modernidade permanece uma inquietude romântica que leva a definir popular como tradicional. Ou, nas palavras do autor:

O popular como resíduo elogiado: depósito da criatividade camponesa, da suposta transparência da comunicação cara a cara, da profundidade que se perderia com as mudanças “exteriores” da modernidade. (op.cit.:p.209).

Um segundo desejo dessa representação do popular é retomada, numa outra perspectiva, pelos românticos, ao decidir que a especificidade da cultura popular reside em sua fidelidade ao passado rural. Isto é, segundo Canclini (2003Canclini, N. G. (2003). Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, & Ana Regina Lessa. 3ª ed. Editora da Universidade de São Paulo. (Culturas Híbridas: Estrategias para Entrary: salir de la Modernidad, 1990)., p.210), à especificidade da cultura popular “tornam-se cegas às mudanças que a redefiniam nas sociedades industriais e urbanas. Ao atribuir-lhes uma autonomia imaginada, suprimem a possibilidade de explicar o popular pelas interações que este tem com a nova cultura hegemônica. O povo é ‘resgatado’, mas não conhecido”.

Foucault (1986Foucault, M. (1986). A Arqueologia do saber. Forense. (L’archéologie du savoir, 1969).), em A Arqueologia do Saber, apresenta claramente a importância de considerarmos o conceito de prática discursiva ao trabalharmos com a linguagem enquanto ação:

(...) gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (...) não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse mais que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (op.cit.:p.56).

Nesse sentido, o discurso, de acordo com Foucault (1986Foucault, M. (1986). A Arqueologia do saber. Forense. (L’archéologie du savoir, 1969)., p.70), ultrapassa a simples referência a coisas e apresenta significados para além da utilização de letras, palavras e frases e não pode ser entendido como um fenômeno de mera expressão de algo: “apresenta regularidades intrínsecas a si mesmo, através das quais é possível definir uma rede conceitual que lhe é própria”. O autor se refere a ‘esse mais’, acrescentando que seja definido e assegurado a partir do próprio discurso, até porque as regras de construção dos conceitos, segundo Foucault, não habitam na mentalidade nem na consciência dos indivíduos: “pelo contrário, elas estão no próprio discurso e se impõem a todos aqueles que falam ou tentam falar dentro de um determinado campo discursivo”.

Ou seja, a linguagem, que constitui o jogo ou o mecanismo a partir do qual se dá a significação e ordenação da experiência, ou melhor, o empreendimento dessa relação de dominância via significação, só é possível pela consideração do conjunto de seus significados na prática discursiva. O gesto da significação é, portanto, a instauração do jogo no e pelo discurso. Daí a questão central numa discussão sobre identidade não ser a diferença em si, mas como ela é (co)construída ideologicamente nas práticas discursivas. Em outras palavras, um sistema de diferenças ordenadas de certa maneira é o que estabelece o jogo da significação da/na linguagem. Esse jogo, porém, se dá no interior das práticas discursivas (co)construídas, por um lado, pelo “eu” e, por outro lado, pelo “outro” do discurso, numa relação de conflitos e tensões marcadas por desejo de poder.

Essa luta pela hegemonia passa necessariamente pelo controle de produção do sentido. Embora esse esforço de controle da produção de sentido (no caso da cultura popular) seja uma característica indiscutível de todo funcionamento das práticas discursivas. Em outras palavras, a contínua reordenação das relações de força produz um movimento constante de renegociação dos sentidos no processo de representação. É exatamente esse caráter contingencial e histórico das relações de força das práticas discursivas e de seus sujeitos socialmente constituídos e constituintes dos discursos que estabelece uma “negociação” e interação por meio de uma circularidade dinamicamente contínua dos discursos.

Para esclarecer melhor o uso que faço do conceito de circularidade das práticas discursivas, por meio do qual defendo que a identidade se (co)constrói social e politicamente na circularidade dos discursos por meio das práticas discursivas que transitam o universo do popular, procurarei explicar esse conceito fundamentado nos estudos de Michael Bakhtin ao discutir a cultura popular na Idade Média e no Renascimento.

Segundo Bakhtin (1993Bakhtin, M. (1993). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. Hucitec; Editora da Universidade de Brasília. (Colonial Discourse and Post-colonial Theory: A Reader, 1965)., p.20), em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, a visão de mundo elaborada no correr dos séculos pela cultura popular se contrapõe, sobretudo na Idade Média, ao dogmatismo e à seriedade da cultura das classes dominantes,2 2 Referindo-se à discussão acerca das relações de poder entre subalternidade e hegemonia, Martin-Barbero (2001) diz que o período analisado por Bakhtin é exatamente aquele no qual a cultura popular passou por um processo de enculturação. Em prol da coesão social, as classes dominantes achavam que as culturas populares e regionais deveriam ser destruídas, utilizando-se dos mais variados métodos e mecanismos (a caça às bruxas e o surgimento e desenvolvimento das prisões mencionadas por Foucault são bons exemplos), porque simbolizavam, no contexto absolutista, uma fragmentação do poder. ao mesmo tempo em que estão em profunda interação pelo processo que designa como circularidade. Esse autor afirma que a comicidade se liga diretamente aos temas carnavalescos da cultura popular por meio da circularidade das práticas discursivas presentes naquela época.

Ginzburg (1987Ginzburg, C. (1987). O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução Maria Betânia Amoroso. Companhia das Letras. (Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del ‘500, 1976).), em sua obra O queijo e os vermes, cita Bakhtin para entendermos como o centro na cultura popular é configurado na circularidade das práticas discursivas. Um exemplo de circularidade é representativo, segundo o autor, quando Bakhtin fala do diálogo entre “[...] mito e riso no qual confluem a exaltação da fertilidade e da abundância, a inversão brincalhona de todos os valores e hierarquias constituídas, o sentido cósmico do fluir destruidor e regenerador do tempo” (op.cit.: p.19). Portanto, segundo Ginzburg, há, por um lado, uma dicotomia cultural, mas, por outro, uma circularidade das práticas discursivas enquanto um influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica.

Um outro exemplo concreto de circularidade das práticas discursivas pode ser visto no caso do Menocchio, de Ginzburg (1987Ginzburg, C. (1987). O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução Maria Betânia Amoroso. Companhia das Letras. (Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del ‘500, 1976).). A partir dos registros encontrados nos arquivos da Cúria, esse pensador percebe a complexa circularidade das práticas discursivas presente nesse indivíduo que, embora egresso das classes populares, sabia ler e com certeza lera certos textos produzidos no âmbito das classes dominantes, filtrando-os através dos valores da classe popular. Ele definiu a “cultura popular” pelas relações que mantém com a cultura dominante, filtrada pelas classes subalternas de acordo com seus valores e condições de vida.

Bakhtin (1993Bakhtin, M. (1993). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. Hucitec; Editora da Universidade de Brasília. (Colonial Discourse and Post-colonial Theory: A Reader, 1965).), ao notar que havia um denso diálogo entre a cultura cômica popular e a oficial no período do Renascimento, observa nesse momento que as fronteiras entre essas duas culturas ficaram sem definições e pouco precisas. Para Bakhtin, essa relação entre as culturas, ao mesmo tempo em que é tranquila, também é marcada pelo desacordo e pelas assimetrias. A partir dessas reflexões sobre a história do riso (expressão popular) e de sua clara presença na cultura oficial no Renascimento é que Bakhtin formula seu instrumental teórico e seu conceito fundamental de circularidade, mencionando diversos exemplos de como ela ocorre. Um exemplo da circularidade da época estudada por Bakhtin e a atual entre as diversas culturas pode ser observado na religiosidade, na qual muitos líderes protestantes, a fim de se tornarem mais próximos do povo e obterem a sua confiança, passam a usar o cômico em seu vocabulário, em seus panfletos e tratados teológicos. Naquele período, somente quem utilizasse o riso era capaz de aproximar-se do povo, que desconfiava do sério e fazia conexões entre a verdade e o cômico.

Ainda com relação à linguagem, Bakhtin (1993Bakhtin, M. (1993). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. Hucitec; Editora da Universidade de Brasília. (Colonial Discourse and Post-colonial Theory: A Reader, 1965).) cita outro significativo exemplo de circularidade cultural na obra de Rabelais, em que pela primeira vez as fontes orais, as palavras vindas do popular conseguiram entrar para o sistema de linguagem escrita e impressa, compartilhando “de um contexto livresco, de um pensamento livresco sistemático, de uma entoação escrita livresca, de uma construção sintática escrita e livresca.” (op.cit.: p.402). Surgiu assim um interesse científico pelos dialetos que não mais coexistiam e vieram a iluminar-se paralelamente. A partir daí a literatura e a linguística não estavam mais focadas em sua própria língua, considerada como única e incontestável, mas no limiar de inúmeras línguas.

Dessa forma, o conceito de circularidade pressupõe que elementos da cultura popular dialoguem e venham compor a cultura de elite, assim como elementos da cultura de elite sejam achados na cultura popular. Para Bakhtin, a obra de Rabelais é o exemplo concreto dessa circularidade, uma vez que, como literatura, compõe a cultura de elite do Renascimento, porém seu tema é a cultura popular. O conceito de circularidade permite problematizar a influência paralela e simultânea entre a cultura popular e de elite e perceber a imprecisão de suas fronteiras, sugerindo, assim, um fluxo regular de infiltração entre elas. Permite abordar a cultura de uma perspectiva social, enfatizando seu universo de complexidade e de diversidade de valores e sentidos. Partindo do princípio de circularidade, Bakhtin revelou que a cultura popular e de elite têm em comum padrões e signos.

Nesta perspectiva, ao se admitir a existência de várias culturas e vários discursos, deve-se pensar de que maneira existe uma relação entre eles por meio desse processo de circularidade. Isso contribui para que entendamos as práticas discursivas nas políticas de representação como em constante diálogo entre subalternos, de um lado, e hegemônicos, de outro. Em outras palavras, o estabelecimento desse embate discursivo das alteridades é de suma importância para observarmos a (co)construção da identidade social. A partir de agora, proponho-me assumir uma reflexão mais sobre a integração e a interação do que sobre divisão e oposição entre as culturas populares e de elite. Analisar a cultura a partir de uma perspectiva que contemple sua pluralidade e dinâmica vem atraindo grande número de pesquisadores e é sob esse aspecto que o conceito de circularidade das práticas discursivas, do teórico social e literário Mikhail Bakhtin, será empregado para a ampliação do conceito de representação que aqui assumo. Esse conceito, ao permitir que percebamos a existência de uma intensa relação de permuta contínua e permanente entre as diversas culturas - presentes numa determinada sociedade na qual as culturas transitam em vários sentidos, estabelecendo incessantes interações, determinadas por realidades históricas específicas - também permite-nos entendê-las não como puras e secularizadas, mas estando em transformação ao mesmo tempo em que permanecem em espaços e tempos definidos por meio de estratégias políticas encontradas na circularidade das práticas discursivas que compõem as políticas de representação.

Tanto do ponto de vista foucaultiano, pelo modo como é entendido o conceito de prática discursiva, quanto do ponto de vista bakhtiniano, pela forma como é compreendido o processo de circularidade, todo estado de poder é sustentado seja por aquilo que não constitui o mesmo e que, por isso, lhe dá existência, seja por uma microfísica (que também é uma espécie de alteridade) que o alimenta e o mantém.

De maneira geral, os sujeitos sociais significam-se significando os seus outros e, ao fazê-lo, instituem uma relação de força. Nesse sentido, a significação do mundo e das relações sociais passa necessariamente pela afirmação de vontades e interesses específicos que vão gerar, por sua vez, processos de significação específicos ou práticas discursivas cujos limites são definidos pelo embate de forças cujos esforços são voltados para um controle na produção de sentido. Ou seja, essas formas específicas de organização do mundo envolvem uma história de práticas discursivas cujo principal distintivo é a luta pela hegemonia na produção dos sentidos. Essa luta pelo controle da produção dos sentidos envolve, por sua vez, esforços que produzem tanto a estabilização de sentidos quanto o seu deslizamento.

A significação discursiva, produzida politicamente, é, pois, um lugar de estabilidades e instabilidades. Aqui procuro investigar a representação e a (co)construção da identidade social por meio de práticas discursivas de sujeitos sociais desta prática da cultura popular pernambucana (grupo indígena Xucuru e sua prática popular de toré). Parto da hipótese de que a identidade social desses sujeitos representantes de suas práticas populares é transformada politicamente e se (co)constrói na circularidade, por meio de suas próprias práticas discursivas ao se representarem. Por sua vez, as práticas discursivas serão analisadas por meio de referentes linguísticos que possibilitam a reafirmação, a legitimação e a ressignificação de estereótipos acerca dos sujeitos sociais e de suas práticas da cultura popular pernambucana.

Ademais, justifico a escolha da cultura popular pernambucana para este estudo e, especificamente, das práticas da cultura popular da região do Moxotó citadas anteriormente, pelo fato de tê-las observado desde o mestrado, quando estudei a cultura popular dessa região e percebi uma “crise de identidade” nesse âmbito social por ocasião do contato com outras ideologias culturais. Além disso, também verifiquei a presença de um aspecto não-conformista dos atores sociais deste cenário da cultura popular, como forma de contestação às normas culturais ditadas por práticas discursivas de setores hegemônicos. Por fim, um outro motivo que me chamou a atenção para focar meus estudos nesse cenário cultural foi a efervescência marcante nessa região de um hibridismo cultural, mas, ao mesmo tempo, marcada por um discurso de manutenção de uma “tradição”.

2. Dos sujeitos sociais e das práticas da cultura popular pernambucana

O povo indígena Xucuru habita na Serra do Ororubá, no Município de Pesqueira3 3 Pesqueira teve origem no local que era conhecido por Cimbres, ao pé da Serra do Ororubá, Sertão do Moxotó, em Pernambuco. Esta cidade está localizada acerca de 220 Km da capital pernambucana, Recife. Em 1800, Manoel José de Siqueira, capitão-mor, fundou uma fazenda, edificou uma grande casa para sua residência, além de outras para moradores, senzalas para escravos e, em 1802, uma pequena igreja sob a invocação de Nossa Senhora Mãe dos Homens. O nome da fazenda (depois povoação) teve origem na existência de um poço abundante em pescado, conhecido de todos os que por ali passavam como “Poço da Pesqueira” — designação, com o passar do tempo, simplificada para Pesqueira (http://www.revista.cultura.pe. gov.Br/junho_2000/cen_ situação.html). , no interior do Estado de Pernambuco.

Sou indígena da tribo xucuru do Ororubá de Pesqueira de Pernambuco. Agora que fizemo, nós dividimo a área, tamo dividido, tem dois xucuru, xucurus de Cimbres e xucurus de Ororubá, sendo um só, mas dividido (…) (A.R., indígena da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE)

Segundo estudo sobre esse grupo, em um levantamento realizado pelos próprios indígenas em 1998, a população Xucuru foi contabilizada em cerca de 8.000 indivíduos, sendo considerado um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil. A tribo Xucuru é formada por 23 aldeias, espalhadas pela reserva, algumas de acesso muito difícil. A região estudada apresenta várias características que, à primeira vista, podem identificá-la como uma área de reserva indígena. As habitações locais são construídas de material como taipa ou tijolos simples, esse tipo de habitação é comum em toda a zona rural do Estado de Pernambuco.

Foto 1
Casa da tribo Xucuru. Pesqueira-PE, 17/07/2002 (Foto: Jorge Farias Jr).

O intenso processo de miscigenação pelo qual passaram os grupos nativos de indígenas da tribo Xucuru alterou as características físicas dessa tribo ao ponto dela diferenciar-se da imagem criada pelo senso comum sobre o que vem a ser um indígena da sociedade brasileira. Assim, muitos indígenas fogem completamente do padrão “olhos puxados e cabelos lisos” que costuma ser atribuído a eles. A influência dos costumes e do modo de vida ocidental é visível nas aldeias. Calças jeans, sandálias industrializadas, celulares e televisores são comuns e já integram o universo desses indígenas.

Foto 2
Pajé da tribo Xucuru e sua esposa. Pesqueira-PE, 17/07/2002 (Foto: Jorge Farias Jr).

Os indígenas da tribo Xucuru afirmam que precisam manter vivas suas tradições, principalmente com relação à prática do toré4 4 De acordo com os informantes, “o toré, da cultura indígena, invoca os caboclos e seus poderes”. Ações realizadas por “beatos ou milagreiros”, intervenções feitas por médiuns que se acreditam dotados de poderes especiais e “simpatias” capazes de afastar doenças também fazem parte do ritual da medicina popular. :

dançar o toré, é a tradição da gente (…) a tradição é essa mesma, é o toré. (A.R., indígena da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE).

homens e mulher, desde pequenininhos todo mundo dança, meus pais, meus avô, meus bisavôs, tudo dentro da aldeia (S.J.N, indígena da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE).

O toré é um ritual, ao mesmo tempo religioso e de divertimento, marcado por fortes crenças populares, que é praticado por todos os indígenas da tribo.

o toré é desde o começo, é a dança religiosa, o toré é uma religião indígena, é igualmente uma missa que um padre diz, qualquer um padre (…). Tem dança também. A gente tem o lazer da gente também. (A.R, indígena da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE).

O toré é dançado da seguinte maneira: um pequeno grupo de seis homens coloca-se à frente do círculo que se forma e que não é fechado. O “bacurau”, indígena do sexo masculino, faz parte desse pequeno grupo e é responsável por iniciar cada canção do toré. Ele também fica com a “maraká”, instrumento de percussão chacoalhante que ajuda a ritmar as músicas. Os outros, homens, mulheres e crianças, vêm logo atrás, em fila indiana. À parte, ficam os zabumbeiros e o mestre da gaita, que juntos tocam cada canção. Esta é a abertura inicial do ritual e pode ser dirigida pelo mestre de gaita ou pelo “bacurau”.

sobre o toré é assim, muita gente não dança o toré, junto com nós, só dança mais no dia do São João, vão buscar lenha no mato, todo mundo faz a fogueira do São João, então todo mundo vem dançar o toré, onze mulher, faz aquelas promessas, aquelas graças pra alcançar dançando o toré, arrodeia a igreja três vez e fica arrodeando a fogueira. (S.J.N, indígena da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE)

O ritmo cadenciado do toré também é marcado pelas batidas dos “jupagos” no chão. Segundo informantes, somente os homens Xucurus portam os “jupagos” durante o toré.

O jupago é um instrumento, é um pau comprido, com uma espécie de raiz em formato de bola em sua base, feito da madeira de uma árvore chamada candeeiro. (A.R, indígena da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE)

3. Analisando as práticas discursivas da cultura popular pernambucana

A partir de agora observemos como se constituem as práticas discursivas dos sujeitos sociais da tribo indígena Xucuru a partir dos referentes utilizados por eles para representarem a si mesmos e à sua cultura. O informante indígena, ao explicar sobre seu ritual, o toré, sente a necessidade de explicá-lo a partir da construção de uma prática discursiva pautada na ritualística da Igreja Católica, deixando evidente em seu discurso o hibridismo cultural e o sincretismo “imposto” pelo discurso do colonizador representado pela personificação do europeu e de sua ideologia religiosa.

o toré é desde o começo, é a dança religiosa, o toré é uma religião indígena, é igualmente uma missa que um padre diz, qualquer um padre. Se o índio quiser ir pra igreja, que o índio foi discriminado, pela igreja, e ainda hoje é. O índio é discriminado pela igreja, que ainda hoje está sendo. Nós tamo aqui através disso também, porque tem o missionário indígena, o missionário indígena é o que trabalha com índio, mas ele trabalha pra um pouco de índios e roubando todos. Aqui é assim, é o que está ocorrendo aqui. Mas que a dança do toré é igual à missa do padre, do branco (...) Não, sobre o toré é assim, muita gente não dança o toré, junto com nós, só dança mais no dia do São João, vão buscar lenha no mato, todo mundo faz a fogueira do São João, então todo mundo vem dançar o toré, onze mulher, faz aquelas promessas, aquelas graças pra alcançar dançando o toré, arrodeia a igreja (Católica) três vez e fica arrodeando a fogueira. (A.R., pajé da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE)

Primeiramente, o informante indígena apresenta o toré a partir de associações com o universo do outro, a igreja católica. Os referentes linguísticos acionados para designar a prática discursiva presente no universo indígena Xucuru são observados por meio do termo (toré = dança religiosa = religião indígena), a fim de representar o entendimento social deste indígena e de sua comunidade sobre sua crença religiosa. Na sequência, seu discurso passa a trazer referentes linguísticos para construção de sentidos a partir de comparações com referentes advindos do discurso dominante legitimado pelo colonizador europeu. Há uma necessidade de contato e comparação com o universo do outro, do colonizador branco, para construir significados de conhecimento sobre o seu próprio ritual. Esse processo de associação e comparação verificado pelos seguintes referentes (missa; padre; igreja; missionário; São João; fogueira de São João) se estabelece no discurso deste sujeito, enquanto necessidade para representar a imagem de seu próprio grupo social, permitindo, assim, a constatação de que as práticas discursivas que se fazem recorrentes no cotidiano do grupo Xucuru são práticas em que circulam o discurso fundante do seu colonizador e, consequentemente, as práticas discursivas deste permitem a (co)construção da identidade social deste grupo.

Esse processo de representação por meio do discurso hegemônico também pode ser observado num trecho de relato, no qual o informante fala das entidades espirituais da prática do toré, mas respaldando-se no sincretismo religioso com as entidades representativas do Catolicismo.

É nossa religião, então todo mundo pode pedir, né? Confiando em Tupã. Faz um pedido a Tupã e recebe sua graça, e a Deci, aí pede a Deci e a Tupã (…) Nossa Senhora, a mãe de Jesus, Deci. (…) Jesus é tupã. (A.R., pajé da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE)

No trecho acima, podemos perceber que o informante inicia sua fala utilizando-se do termo religião enquanto referindo-se à prática do toré. Em seguida, o informante apresenta as entidades espirituais, oriundas da prática discursiva de sua comunidade, representadas pelos referentes (Tupã; Deci) e associadas, sincreticamente, às entidades da prática discursiva do Outro dominante, representadas a partir de referentes que remetem ao Cristianismo (Jesus; Nossa Senhora), mais especificamente, aqui, representativas do Catolicismo. Ao representar suas entidades por meio desta analogia sincrética com as entidades representativas da prática discursiva hegemônica, o informante (co)constrói e deixa emergir uma identidade social marcadamente subalternizada à ideologia dominante. Em outras palavras, o sujeito social desse discurso reativa e mobiliza - por meio dessas práticas discursivas, a partir do momento em que faz a analogia para representar sua cultura - a hegemonia do discurso que se construiu desde o início da colonização no Brasil. Há uma necessidade dessas práticas serem comparadas para, assim, estabelecerem um sentido de representação de seu próprio discurso religioso. Há a instauração e emergência do discurso hegemônico pela circularidade que se estabelece nas práticas, mas que, ao mesmo tempo, cliva o discurso desta comunidade indígena subalternizando-a, mantendo-se, assim, a legitimação do discurso dominante.

Tanto no exemplo da representação do toré quanto no exemplo da representação das entidades espirituais dessas práticas discursivas, esse jogo de poder pela linguagem se estabelece perpassando o discurso indígena Xucuru pelo fato de se deixar subalternizar por um discurso hegemônico que vem desde o processo de colonização. A identidade social desse grupo, mesmo sendo representada pela discursividade de um sujeito individual, expõe um reflexo de um discurso que predomina em seu meio social, a saber, o de dominância de uma cultura sobre a outra. Isto é, esse grupo indígena, ao se representar a partir de seu próprio discurso, sente a necessidade de reafirmar sua representação por meio do discurso do ‘outro’ hegemônico.

Como vimos acima, percebemos que a identidade social dos sujeitos representantes da tribo Xucuru é (co)construída na circularidade das práticas discursivas que transitam no imaginário social de toda esta comunidade indígena, mas também está em ‘negociação’ com as práticas discursivas do ‘outro’, aqui representadas pelo colonizador branco e a religião do Catolicismo. Percebemos os entraves ideológicos que expressam uma identidade social (co)construída na circularidade desses discursos em suas práticas discursivas. O discurso indígena Xucuru é perpassado pelo discurso do ‘outro’ (discurso religioso católico) ao verificarmos a presença de referentes linguísticos, marcados em itálico abaixo, os quais são advindos do discurso religioso do Catolicismo, como em: “todo mundo faz a fogueira de São João, então todo mundo vem dança o toré, onze mulher, faz aquelas promessas, aquelas graças pra alcançar dançando o toré, arrodeia a igreja (Católica) três vez e fica arrodeando a fogueira”. Assim, como no Menochio ginzburgiano, esse grupo detém o conhecimento da cultura dominante que se impôs sobre sua cultura. É interessante a expressão do jogo de poder hegemônico que se estabelece, visto que o inverso não ocorre.

Esse exemplo, ao mesmo tempo em que se constitui na circularidade das práticas discursivas presentes de ambos os lados, do colonizado e do colonizador, também serve para comprovar ou desconstruir o que o discurso hegemônico tenta impor ao representar a cultura popular - o fato de que há um “purismo” embutido nesta. Pelo trecho da entrevista que apresentarei abaixo, no qual um indígena Xucuru explica as mudanças que ocorrem com as vestimentas em seu grupo, poderemos verificar que o processo de transformação está a todo momento presente nesse grupo.

o nosso toré sempre, sempre foi assim, o nosso penuacho era assim, mas depois que entrou um novo cacique aí formou os penuachos tudo diferente. Agora que fizemo, nós dividimo a área, tamo dividido, tem dois xucuru, xucurus de Cimbres e xucurus de Ororubá (…) (S.J.N., indígena da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE)

Neste trecho acima da entrevista, os referentes relacionados ao toré (penuacho; novo cacique; penuachos diferente) estabelecem o sentido que permitem-nos observar que se trata de um discurso sobre indígenas, visto que estes referentes acionam nosso conhecimento de mundo no que se refere a termos de origem indígena. Ao mesmo tempo, estes referentes materializam a autoridade discursiva de quem enuncia o discurso e o lugar de onde este discurso provém, a saber, o fato de que com a instituição de um “novo cacique”, os “penuachos” foram ressignificados, por meio da prática discursiva, para esta comunidade indígena. Pressupõe-se a partir dessa inferência que o cacique detém um poder hierárquico como membro desse grupo, mas que, ao mesmo tempo, também é questionado pelos outros membros os quais, ao aceitarem as modificações ocorrentes no grupo, mobilizam-se e agem no sentido de se dividirem em duas tribos distintas.

É interessante que mesmo diante das transformações que o grupo Xucuru vai sofrendo, o que parece inevitável, há a representação de um discurso de “manutenção” de uma tradição, dançar o toré, é a tradição da gente. Um discurso que estabelece uma ideologia perversa que determina às práticas discursivas de grupos representativos da cultura popular a (co)construção de uma identidade social que deve ser ‘fixa’ e ‘pura’, a fim de que seja preservada. Esse receio do grupo em não perder suas raízes se apresenta no discurso deste sujeito social, por meio do referente que associa o toré à tradição de seu povo e aciona um sentido que repousa no senso comum de que as práticas sociais/discursivas de grupos da cultura popular não podem se modificar, são legados de uma tradição popular. Um outro exemplo interessante da relação de dominância do discurso hegemônico sobre o subalterno pode ser verificado quando o informante constrói um discurso pautado em elementos da cultura dominante.

É sempre assim, uma pituzinha pra gaita, né? Pra lavar a gaita. (…) porque, às vezes, aquele que vem (referindo-se a entidade espiritual) pega na gaita pra não deixar tocar. Enquanto não der pinga a ela, pra ele, dá pitu a ele, pra ele beber junto com a gaita, aí a gaita limpa, se não der ela não toca, fica muda (…) é a jurema (S.J.N., indígena da tribo Xucuru, em entrevista concedida ao pesquisador em 17/02/2002, em Pesqueira-PE)

Neste exemplo acima, podemos verificar a circularidade dos discursos presentes na prática discursiva do grupo Xucuru ao constatarmos que esta prática é perpassada pelo discurso do ‘outro’. Isto é, quando o informante faz uso dos referentes, pituzinha, pinga, pitu, como termos substitutos da bebida alucinógena de origem indígena jurema, remete, a partir de sua prática discursiva, à ideologia da cultura dominante. Os sentidos acionados permitem-nos entender que pituzinha, pinga pitu, como bebida industrializada, torna-se protagonista dessa prática em substituição da bebida ‘tradicional’ deste grupo. As práticas discursivas e sociais, aqui, são ressignificadas pelo discurso dominante, chegando mesmo a modificar completamente a significação simbólica que outrora a jurema detinha para o grupo Xucuru. Em outras palavras, há uma mudança, de fato, no ritual, a partir da incorporação, não unicamente por meio dos referentes pituzinha, pinga, pitu, mas, principalmente, pela ressignificação deste processo constitutivo do ritual do toré.

Como verificamos nas análises dos momentos que constituem as práticas discursivas do povo Xucuru, a identidade social deste grupo está se transformando nesse contato de circularidade desta com as práticas discursivas do colonizador, com o diferente, com o discurso dominante. Isto fica mais evidente quando entendemos esse lugar de circularidade dos discursos que, por um lado, repercute nas práticas discursivas do colonizado, mas que, por outro lado, está constantemente em “negociação” e que também se concretiza em um ritual sempre renovado, até mesmo pelas roupas industrializadas que os indígenas, em questão, vestem. Ainda mais, com expressão de um estereótipo de subalternizado que carrega a máxima tentativa de resistir ao discurso da hegemonia, do colonizador.

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Ritual do toré Xucuru em frente à Delegacia de Pesqueira-PE, 17/07/2002 (Foto: Jorge Farias Jr)

Na foto acima do grupo Xucuru, constatamos que esse processo de transformação identitária que o grupo passa se dá pela legitimação do padrão social nos modos de se vestir e de se portar, que antes não faziam parte dessa tribo. Observamos que todos os agentes sociais que representam o toré, enquanto uma prática de protesto pela destruição de sua cultura, trajam-se, ao mesmo tempo, com suas vestimentas ‘tradicionais’, mas também com roupas industrializadas que foram trazidas pela cultura que se sobressaiu neste contato, uma cultura hegemônica. Esse processo de circularidade dos discursos nessa prática discursiva que se estabelece permite-nos observar que mesmo sendo a cultura popular perpassada por um discurso hegemônico, que se impõe, há uma tentativa de sobrevivência por parte dos sujeitos sociais subalternizados.

4. Considerações Finais

Entendido como prática de cultura popular, o toré, a partir das análises até aqui, caracteriza-se como possibilidade de reformulação e resistência em que o grupo se expressa e se reconhece em suas condições sociais, representando-se por meio de uma prática discursiva, determinada, presente e viva no interior da prática discursiva da cultura dominante.

Assim, é em meio a essa violência estabelecida pelo poder hegemônico que a identidade social é marcada e (co)construída num relato que mostra a exclusão do discurso indígena estabelecida historicamente. Em outras palavras, essas práticas discursivas, observadas no âmbito desta parcela da cultura popular pernambucana, são marcadas pelos referentes linguísticos constitutivos da materialidade do discurso indígena sobre suas práticas sociais/discursivas. Os estudos destas práticas apontam, aqui, para um passado longínquo e que foi construído pela imposição do colonizador, do branco.

Por fim, conclui-se que a representação das práticas discursivas que permeiam e predominam no discurso, da comunidade indígena Xucuru, denuncia a subalternidade e o silenciamento, embora em um processo de circularidade desses discursos fronteiriços e confrontantes. Ou seja, por meio da análise, efetivada por este estudo, comungo, com o ponto de vista de Spivak, quando diz que o subalterno não consegue ser puramente representado, mas, ao ter sua voz ouvida, adentrando na circularidade das práticas discursivas dominantes, conquista o espaço de autorepresentação, não somente enquanto agente de sua voz individualizada, mas, também, de uma voz coletiva de sua comunidade, contribuindo, assim, para a (co)construção de uma identidade social do meio do qual provém.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), número 147406-5, durante o período de doutoramento sanduíche, no Department of Anthropology (Center for Language, Interaction, and Cultur - CLIC), University of California - Los Angeles (UCLA).

Referências

  • Bakhtin, M. (1993). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. Hucitec; Editora da Universidade de Brasília. (Colonial Discourse and Post-colonial Theory: A Reader, 1965).
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  • Foucault, M. (1986). A Arqueologia do saber. Forense. (L’archéologie du savoir, 1969).
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  • Martín-Barbero, J. (2001). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução Ronald Polito, & Sérgio Alcides. 2. ed. Editora da UFRJ. (De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonía, 1987).
  • Spivak, G. C. (1994). Can the subaltern speak?. In Colonial Discourse and Post-colonial Theory - A Reader. Patrick Williams & Laura Chrisman (Eds.). (pp. 66-111). Columbia University Press.
  • 2
    Referindo-se à discussão acerca das relações de poder entre subalternidade e hegemonia, Martin-Barbero (2001Martín-Barbero, J. (2001). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução Ronald Polito, & Sérgio Alcides. 2. ed. Editora da UFRJ. (De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonía, 1987).) diz que o período analisado por Bakhtin é exatamente aquele no qual a cultura popular passou por um processo de enculturação. Em prol da coesão social, as classes dominantes achavam que as culturas populares e regionais deveriam ser destruídas, utilizando-se dos mais variados métodos e mecanismos (a caça às bruxas e o surgimento e desenvolvimento das prisões mencionadas por Foucault são bons exemplos), porque simbolizavam, no contexto absolutista, uma fragmentação do poder.
  • 3
    Pesqueira teve origem no local que era conhecido por Cimbres, ao pé da Serra do Ororubá, Sertão do Moxotó, em Pernambuco. Esta cidade está localizada acerca de 220 Km da capital pernambucana, Recife. Em 1800, Manoel José de Siqueira, capitão-mor, fundou uma fazenda, edificou uma grande casa para sua residência, além de outras para moradores, senzalas para escravos e, em 1802, uma pequena igreja sob a invocação de Nossa Senhora Mãe dos Homens. O nome da fazenda (depois povoação) teve origem na existência de um poço abundante em pescado, conhecido de todos os que por ali passavam como “Poço da Pesqueira” — designação, com o passar do tempo, simplificada para Pesqueira (http://www.revista.cultura.pe. gov.Br/junho_2000/cen_ situação.html).
  • 4
    De acordo com os informantes, “o toré, da cultura indígena, invoca os caboclos e seus poderes”. Ações realizadas por “beatos ou milagreiros”, intervenções feitas por médiuns que se acreditam dotados de poderes especiais e “simpatias” capazes de afastar doenças também fazem parte do ritual da medicina popular.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2020
  • Aceito
    19 Abr 2022
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