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PAS: um perfil neoliberal de gestão de sistema público de saúde

Resumos

NO PRESENTE artigo trata-se de analisar o Plano de Assistência à Saúde da Prefeitura do Município de São Paulo na perspectiva da gestão dos sistemas de saúde e da preservação dos direitos sociais. Apresenta-se uma breve retrospectiva da construção da saúde enquanto um direito social nas sociedades contemporâneas e traça-se o quadro das políticas de saúde no Brasil, em anos recentes, enfatizando seu processo de descentralização para a esfera municipal. Examina-se o PAS como alternativa de gestão e conclui-se pela incapacidade da sua regulação pelas forças de mercado e a sua inconsistência ideológica frente aos preceitos liberais para o setor saúde. Encerra-se com um breve balanço dos legados proporcionados por essa experiência de gestão.


IN THIS ARTICLE is analysed the Health Care Plan (Plano de Assistencia à Saúde - PAS) of the municipality of São Paulo from the perspective of the health system management and of preservation of social rights. It is presented a brief historical retrospective of the construction of health as a social right in contemporary societies, and a picture of health policies in Brazil in recent years emphasizing its decentralization process towards the municipal level. It is also examined the PAS as a management alternative and it is concluded that market forces are unable to regulate it and that it has ideological inconsistencies when faced to the liberal principles in force in the health sector. The author finishes the article with a brief balance of the legacy provided by this management experience.


DOSSIÊ SAÚDE PÚBLICA

PAS: um perfil neoliberal de gestão de sistema público de saúde

Paulo Eduardo Elias

RESUMO

NO PRESENTE artigo trata-se de analisar o Plano de Assistência à Saúde da Prefeitura do Município de São Paulo na perspectiva da gestão dos sistemas de saúde e da preservação dos direitos sociais. Apresenta-se uma breve retrospectiva da construção da saúde enquanto um direito social nas sociedades contemporâneas e traça-se o quadro das políticas de saúde no Brasil, em anos recentes, enfatizando seu processo de descentralização para a esfera municipal. Examina-se o PAS como alternativa de gestão e conclui-se pela incapacidade da sua regulação pelas forças de mercado e a sua inconsistência ideológica frente aos preceitos liberais para o setor saúde. Encerra-se com um breve balanço dos legados proporcionados por essa experiência de gestão.

ABSTRACT

IN THIS ARTICLE is analysed the Health Care Plan (Plano de Assistencia à Saúde – PAS) of the municipality of São Paulo from the perspective of the health system management and of preservation of social rights. It is presented a brief historical retrospective of the construction of health as a social right in contemporary societies, and a picture of health policies in Brazil in recent years emphasizing its decentralization process towards the municipal level. It is also examined the PAS as a management alternative and it is concluded that market forces are unable to regulate it and that it has ideological inconsistencies when faced to the liberal principles in force in the health sector. The author finishes the article with a brief balance of the legacy provided by this management experience.

O PERÍODO QUE SE INICIA após a Segunda Guerra Mundial inaugura uma nova era caracterizada por enorme desenvolvimento científico, tecnológico e das estruturas sociais, causando grande impacto nos bens disponíveis. Nesse período consolida-se um padrão de proteção social nos países capitalistas centrais que, impulsionado pelo keynesianismo e pelo socialismo vigente no Leste europeu, se consagra sob a denominação de Estado de bem-estar social (Hobsbawm, 1995).

O vigoroso movimento sacode as velhas estruturas de proteção social, impondo-lhes substanciais reformas cujo principal sentido é o de promover a inclusão social sob a égide de um Estado provedor das condições mínimas de subsistência. Desse fato resulta um robusto programa de políticas sociais que concorre para a consolidação da cidadania e a efetivação de um novo patamar para os direitos sociais.

Nos países capitalistas periféricos o movimento repercute desigualmente em função das especificidades presentes em cada um deles; no entanto, em todos apresenta-se como padrão mitigado frente ao movimento originário. Desse modo, na periferia capitalista desenvolvem-se sistemas de proteção específicos, geralmente vinculados ao mercado formal de trabalho, compondo na maioria das vezes sistemas previdenciários solidários sob a égide do regime de repartição simples. É o caso do Brasil, e da maioria dos países latino-americanos, que jamais conheceu um mecanismo de proteção assemelhado ao Estado de bem-estar social.

No pós-guerra, o termo reforma assume o significado de efetivamente buscar minimizar as desigualdades econômicas e sociais produzidas pelo capitalismo. Dessa forma, no plano etimológico reforma e revolução constituíam elementos polares que guardavam entre si uma relação de distinta radicalidade na busca da inclusão social e da melhoria das condições sociais para grandes contingentes da população. Portanto, vale sublinhar que havia uma disputa política entre reforma e revolução, mas cujo escopo era comum, isto é, a promoção da inclusão social. Assim, no plano político, à revolução se associava a organização social de tipo socialista vigente no Leste europeu, enquanto que o reformismo prevalecia no mundo capitalista do Ocidente. Nesses casos, destaca-se que tais reformas em curso nos países capitalistas centrais significaram um movimento na direção à desmercantilização dos direitos sociais e em prol de inscrever o acesso à saúde, à educação, à moradia e à renda mínima necessária para a sobrevivência, no rol dos direitos sociais.

Contudo, a partir da década de 60 começam a aparecer os primeiros sinais de crise nos sistemas de bem-estar social e no paradigma econômico keynesiano que o sustentava, resultando numa série de ajustes na seguridade social (Evans, 1994). Nesse momento os preceitos de Keynes entram em declínio, e são substituídos por determinados princípios liberais que sustentarão as políticas econômicas de corte monetarista (Hobsbawm, 1995). Os anos 70 representam o ápice do processo de ajustamento, tendo como principal diretriz a estrita obediência aos princípios da racionalidade econômica em detrimento dos impactos sociais por ele produzidos. A essa época, as forças políticas e econômicas dominantes questionam intensamente algumas das importantes conquistas sociais do período reformista do pós-guerra, tal como ocorreu na França, na Itália e principalmente na Inglaterra, alçada à condição de modelo liberal a ser seguido, sob o comando da senhora Thatcher. Assim, o hemisfério Norte, em ambos os lados do Atlântico, assiste à consolidação da hegemonia política dos governos liberais que alcança até os países escandinavos, antes considerados o reduto do Estado providência.

No plano social, o processo que atinge os países do capitalismo central se configura como um verdadeiro movimento de contra-reforma intentando subtrair direitos sociais consagrados no padrão original do welfare State. Já o setor saúde vai progressivamente ganhando uma dimensão econômica, ao responder por 7% a 15% do PIB desses países. De fato, segundo Medici (1995), a preocupação dos países desenvolvidos com os gastos em saúde acentua-se em meio à crise do financiamento do setor, em que constituem seus determinantes mais significativos: a extensão de cobertura dos serviços; o envelhecimento da população a demandar maiores cuidados tecnológicos; a incorporação de tecnologia; a superposição de cobertura por diversos serviços; o papel dos profissionais médicos na intermediação dos preços dos insumos e dos serviços de saúde.

Nesses termos, a temática da saúde é reuniversalizada, agora porém mediante uma vertente predominantemente economicista e no âmbito das mudanças da nova ordem econômica mundial (Polanyi, 1980), em que às políticas sociais resta apenas o caminho da eficiência, da eficácia e da privatização (Laurell & Arellano, 1996).

A face mais visível e operacional desse movimento constitui o binômio custo/efetividade como critério prioritário de alocação de recursos na saúde, sobretudo em conjunturas como as atuais, em que o receituário liberal recomenda vigorosos ajustes fiscais por parte do Estado. Vale apontar que nessa equação o fator de discriminação não é a efetividade, mas o custo, uma vez que a otimização alocativa se dá pela redução do gasto vis a vis o incremento do impacto da intervenção proposta. Tal tipo de abordagem leva não só à contraposição entre ações socialmente necessárias, como as de vacinação versus a oferta de serviços de alta complexidade, mas também à predominância da vertente tecnocrática no processo de decisão política referente à alocação dos recursos disponíveis. Ademais, a despeito da necessidade de se construírem novos parâmetros para a avaliação da alocação de recursos na área da saúde, a sua realização a partir da clonagem das categorias operativas de uso corrente na economia para resolver problemas de custo/benefício (neste caso, o benefício corresponde à efetividade), leva a um processo acelerado de amesquinhamento da política de saúde.

As experiências inovadoras de gestão

no sistema público de saúde

Nas últimas décadas, o setor saúde vem passando por profundas transformações (Cohn, 1995). Se o início dos anos 80 demarca o processo de reforma do setor decorrente da crise financeira da Previdência Social, a década de 90 será marcada pela disputa entre diferentes concepções sobre as mudanças no sistema de saúde brasileiro. A referência desse processo é a implementação dos preceitos da Constituição de 1988 incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Não obstante os embates envolvendo a operacionalização do SUS, e que se desenvolveram no período, a necessidade da racionalização do sistema de saúde emerge como consenso, elegendo-se a descentralização como pedra de toque para a sua reformulação.

A forma como se dá a integração da economia brasileira ao processo de globalização submete o setor saúde à crescente tensão envolvendo os princípios e diretrizes constitucionais do SUS e as políticas de ajuste implementadas pelo Estado.

Já o delineamento do novo modelo de gestão da saúde no Brasil, entretanto, veio aprofundar a reforma iniciada na década de 80, na direção de uma política de descentralização da saúde. E durante o percurso de implantação do SUS, a partir de 1988, a tônica em torno da questão da descentralização ganha maior concretude exatamente no processo de definição das competências das instâncias de governo, quando da ênfase ao poder local – o município – frente às responsabilidades pelas ações e serviços de saúde, em cooperação técnica e financeira entre a União e o respectivo estado.

O período aberto com a posse do governo Fernando Henrique Cardoso caracterizar-se-á pela promoção de alterações substantivas no processo de reformulação do sistema de saúde. Radicalizam-se algumas diretrizes e são introduzidas novas concepções, estas mais claramente identificadas com as prescrições das agências multilaterais para os países em desenvolvimento.

Dessa forma, a descentralização da saúde passa a ser enunciada mais por seu componente racionalizador do que propriamente pelas suas potencialidades no incremento da democratização da instância municipal, como até então formulada pelo discurso dos municipalistas da saúde. Ao menos no plano discursivo a nova postura encontra-se de acordo com os preceitos correntes prescritos pelo Banco Mundial para a reformulação dos sistemas de saúde dos países em desenvolvimento (Elias, 1997).

Assim, se a NOB-93 significou o início da descentralização e do repasse financeiro direto do governo federal para os municípios (sem a intermediação da esfera estadual), a NOB-96 representa a centralidade do modelo de gestão com a busca do (re)equilíbrio entre as esferas de governo.

Vale sublinhar que a NOB-96 começa a ser implantada num cenário em que a área da saúde sente intensamente os reflexos das políticas de ajuste adotadas pelo governo federal para combater o déficit público e promover o pagamento do serviço das dívidas interna e externa. Em conseqüência, verifica-se a retração do Estado como produtor de serviços de saúde, ensejando a busca de parcerias com a iniciativa privada.

Este processo de reorientação do sistema de saúde, apesar dos problemas e das dificuldades que vem enfrentando na prática, durante a última década fez emergir um conjunto heterogêneo de novas experiências na gestão da saúde no nível local. Tal conjunto de experiências (Heimann, 1998), no entanto, é quase tão diverso quanto a própria diversidade da realidade brasileira; mas também, ao mesmo tempo, aponta que em vários casos os municípios foram capazes de exercitar, em graus variáveis e segundo a orientação ideológica predominante na administração, a busca de encaminhamentos para as questões postas pelo esgotamento do modelo tradicional de gestão da saúde.

O PAS como alternativa de gestão

O PAS pode ser considerado uma antecipação dos arranjos institucionais do Plano Diretor da Reforma do Estado, elaborado pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado, que produziu a figura da propriedade pública não-estatal materializada nas organizações sociais.

Ao elaborarem um diagnóstico que responsabiliza centralmente o modelo de gestão vigente, caracterizado como administrativamente rígido e desvinculado do desempenho individual dos trabalhadores e das unidades a que pertencem, os formuladores do PAS concebem as mudanças no sentido de dotar os serviços governamentais de instrumentos capazes de aproximá-los da modalidade privada de produção de serviço. Ainda segundo eles, o desafio a ser superado consistia em implementar um modelo de gestão que favorecesse a busca da eficiência e da qualidade considerando a captação como parâmetro de repasse de recursos. No que concerne à distribuição, deve-se considerar o desempenho operativo do serviço, de modo a criar condições para estimular a competição no atendimento e alterar a forma jurídica de contratação de pessoal (Elias et al., 1998).

De modo que, do ponto de vista da gestão, o PAS funda-se em três elementos concebidos nos marcos da agenda neoliberal:

  • co-parceria na gestão dos serviços de saúde, na qual a municipalidade concorre com os bens móveis e imóveis e as entidades privadas (no caso as cooperativas de trabalho) oferecem os recursos humanos com vistas à descentralização do gerenciamento e sua transferência para os agentes privados;

  • flexibilização administrativa da relação de trabalho, pela adoção da modalidade de cooperativa de trabalho;

  • financiamento vinculado a fundo público, nos moldes de pré-pagamento, com a adoção da modalidade de captação por habitante da área geográfica abrangida pelo serviço.

Ainda na ótica da gestão, fica evidente que o PAS consagra como traço marcante o primado da separação entre financiador e produtor de serviços, (re)formulando a relação público/privado na qual ao ente público reserva-se o papel de agente financiador (dada a sua natureza incompetente na produção de serviços) enquanto que a produção de serviços é consagrada ao ente privado (pela sua natureza competente como agente da produção). Aliás, sob essa perspectiva, o PAS nada inova, pois é bem conhecido o papel desempenhado historicamente pelo Estado brasileiro como organizador dos consumidores, provedor do financiamento e articulador dos interesses estruturados em torno da saúde, sobretudo daqueles articulados com os produtores privados de serviços, insumos e equipamentos.

Por outro lado, o PAS mostra sua face mais contemporânea e sintonizada com o ideário globalizado da saúde ao afirmar-se como uma alternativa de gestão que se estrutura pela valorização do gerenciamento dos serviços e dos recursos humanos. Também contempla uma concepção de Reforma do Estado, ao concorrer para a desregulamentação dos procedimentos da administração pública de modo a contornar a legislação vigente, sobretudo a Lei das Licitações.

Vale ainda notar que a conformação geral do PAS segue o ideário difundido pelo Banco Mundial para a reforma dos sistemas de saúde nos países do Sul, e que consagra a precedência da razão econômica no direcionamento das políticas sociais. Assim, a sua estrutura de financiamento provém exclusivamente de fundos públicos municipais por intermédio do orçamento da Secretaria Municipal de Saúde, enquanto a produção de serviços é transferida para os agentes privados representados pelas cooperativas dos profissionais universitários (Cooperplus) e a dos em nível médio e elementar (Coopermed).

Contudo, a partir de 97 a Secretária Municipal de Saúde vem pleiteando o repasse de recursos do SUS para contribuir na manutenção do PAS. Dado que, por diversas ordens de razões, o município de São Paulo até o momento não se integrou ao processo de municipalização das ações e serviços de saúde em curso no âmbito do SUS, o PAS foi desenhado para operar basicamente a partir da rede de serviços municipais de saúde existente (1 1 Composta por 14 unidades hospitalares – apenas quatro delas equipadas com procedimentos de alta complexidade –, 14 hospitais-dia de saúde mental, 13 prontos-socorros, 16 centros de convivência, 11 ambulatórios de especialidades, duas clínicas de atendimento odontológico, uma de atendimento à criança e 140 unidades ambulatoriais – as ex-Unidades Básicas de Saúde (UBS) atuais Postos de Assistência à Saúde (PAS). ) (Elias et al., 1998).

No entanto, a capacidade instalada da rede municipal anterior à sua implementação, respondia em média por cerca de 15% da produção de serviços ambulatoriais e aproximadamente 5% das internações hospitalares. Já o PAS propõe-se a cobrir 4.950.000 habitantes, ou 46% da população paulistana estimada para 1996. Entretanto, sua rede de serviços é insuficiente para satisfazer ao atendimento da população-alvo segundo os parâmetros técnicos recomendados, além de se apresentar desigualmente distribuída entre os Módulos no que toca à relação equipamento/população, seja por tipo, seja por grau de complexidade dos equipamentos (Cohn & Elias, 1997).

A limitação da capacidade instalada frente à demanda dos munícipes, restringe o alcance populacional do PAS qualificando-o como um projeto voltado para o atendimento apenas de parcela da população. Ao mesmo tempo, ele se contrapõe às tendências atuais da descentralização da saúde conduzida pela União, ao praticamente congelar a participação do município na produção de serviços e ao cristalizar a dicotomia dos sistema de saúde governamental no município de São Paulo – em que convivem o PAS e a rede de serviços operada pela Secretaria de Estado da Saúde.

O descompasso existente no PAS entre a demanda potencial e a sua capacidade de produção de serviços, associado à modalidade de repasse de recursos por captação, resultou na criação da esdrúxula figura da população potencialmente cadastrável (PPC) como fator do repasse financeiro para os Módulos (Elias et al., 1998). Deve-se sublinhar que tal procedimento implica a descaracterização da modalidade de captação como forma de subsídio à demanda e instrumento de racionalização do gasto – dois pilares do pensamento liberal na saúde –, e a manutenção da tradicional estrutura de gastos por subsídio à oferta, vigente há décadas no financiamento público do sistema de saúde no Brasil.

Desse modo, o PAS se qualifica como um herdeiro bastardo do pensamento neoliberal, uma espécie de entidade macunaímica na saúde, típica de um certo liberalismo que viceja intensamente ao Sul do Equador.

Não obstante, também o modo como o PAS vinha sendo operado sofre rude golpe na atual administração: em decorrência da eclosão da quebra financeira da Prefeitura do Município de São Paulo, engendrada já na administração Maluf, ao transformar-se em estrutural desde o último ano provoca graves repercussões nas disponibilidades orçamentárias da municipalidade, atingindo o PAS com a diminuição de cerca de 20% nos aportes globais mensais do seu financiamento.

Em decorrência da persistência dessa situação, mais recentemente inicia-se um entendimento entre as Secretarias Estadual e Municipal de Saúde com impacto sobre a organização do PAS. A minuta do entendimento prevê integrar as respectivas redes de serviços ambulatoriais (os centros de saúde e os postos de assistência médica) sob comando do município, porém agora sob a modalidade de gestão prevalecente nos serviços estaduais, ou seja, a gestão direta pelo poder público. Já as respectivas unidades hospitalares continuariam dicotomizadas, mantendo-se as formas atuais de gestão, ou seja, o PAS no âmbito do município, e as organizações sociais e a administração direta na esfera estadual. A contrapartida dessa operação para o município dar-se-ia na viabilização político-administrativa do repasse dos recursos financeiros para o PAS mediante credenciamento das cooperativas junto ao SUS.

Se tal acordo prosperar, significará a expansão da concepção da atual administração estadual para a gestão do sistema de saúde, em que as organizações sociais constituem a modalidade de gestão por excelência para as unidades hospitalares, e os serviços ambulatoriais de atenção básica sob a batuta da administração direta. Destaca-se que, para além das desvantagens na integração entre a rede básica e os serviços hospitalares pela implementação desse tipo de proposta, a sua adoção significará o fim do PAS tal como historicamente concebido, e certamente provocará a diminuição do interesse político que suscitou, restringindo-se apenas a mais uma modalidade de gestão de unidades hospitalares em detrimento da sua dimensão original, isto é, como alternativa de gestão de sistemas de saúde.

O PAS e as diretrizes constitucionais da saúde

Diante dos preceitos constitucionais, o PAS comporta-se de acordo com o clássico padrão do sistema de saúde brasileiro pelo qual o principal desafio é incorporar tais preceitos ao cotidiano dos serviços de saúde de modo a qualificar a noção de cidadania, tal qual ocorre nos países tributários dos sistemas de proteção social.

No que se refere à universalidade, o PAS atende formalmente a esse princípio na medida que contempla o atendimento a qualquer munícipe paulistano demandando seus serviços, ainda que seus postulados façam a universalidade se restringir apenas à população residente em São Paulo. Por decorrência, a modalidade de credenciamento dos seus usuários pela utilização de cartões magnéticos abrangendo a população residente na área de cada Módulo, resulta em um mecanismo adotado unilateralmente e que, se por um lado impede a invasão populacional dos municípios circunvizinhos, por outro não evita a evasão de munícipes paulistanos para os serviços de saúde dos demais municípios da região metropolitana.

Ressalta-se, no entanto, que no caso brasileiro a efetivação da universalidade exige a ampliação da cobertura dos serviços de saúde. Como indicado anteriormente, tal situação não se verifica na cidade de São Paulo, mesmo considerando-se a cobertura potencial resultante da somatória dos serviços geridos pelo PAS e os próprios e/ou contratados pelo SUS. Assim, a universalidade não se efetiva enquanto direito social no cotidiano dos usuários do PAS, situação esta análoga àquela do SUS.

No que se refere ao princípio da eqüidade, este se apresenta conexo ao da universalidade, visto que historicamente a lógica que vem presidindo a alocação dos equipamentos públicos de saúde caracteriza-se pela concentração em áreas urbanas já melhor aquinhoadas por equipamentos sociais, em detrimento das regiões mais periféricas da cidade. No caso do PAS, uma vez mais a situação não se mostra diferente do clássico padrão vigente no sistema de saúde, o que resulta no desfavorecimento dos estratos sociais mais necessitados. Embora o advento do PAS tenha ampliado a oferta de alguns serviços – como leitos hospitalares para parto –, a sua distribuição não se deu de modo homogêneo e apresentou pequeno impacto frente às necessidades dos usuários. Em certos casos, alguns serviços prestados pela rede municipal de saúde foram completamente desativados sem qualquer tipo de cuidado com a (re)alocação da demanda.

Em suma, no que diz respeito ao atendimento aos preceitos constitucionais da saúde, o PAS compartilha diversos dos desafios colocados para o SUS, sobretudo no que se refere aos princípios da eqüidade e da universalidade da assistência à saúde (Elias et al., 1998). Vale sublinhar que o PAS se restringe à prestação de assistência médica, entendida em termos bastante restritos, pois não incorpora na sua rotina de serviços sequer as atividades de prevenção mais rotineiras – como a vacinação e a educação em saúde.

Considerações finais

A formulação do PAS tem como pressuposto a falência estatal na produção dos serviços de saúde. Segue as prescrições das agências internacionais, pautadas na separação entre as atividades de produção e de financiamento na prestação da assistência, de maneira a consagrar a precedência da regulação de mercado sobre a do Estado.

Em outros termos, essa proposta reserva fundamentalmente ao Estado a função de provedor da universalização dos serviços básicos de saúde, deixando ao mercado o acesso aos serviços mais especializados e de alta complexidade tecnológica.

Nesse sentido, o PAS pretende-se uma alternativa de racionalização dos serviços de saúde sob regulação de mercado e com ênfase no custo-benefício das ações e serviços, avaliados principalmente em função dos gastos financeiros.

Contudo, é necessário ressaltar que, dentre os elementos constitutivos do seu ideário, apenas a autonomia dos agentes prestadores de serviços se efetivou no cotidiano. A regulação pelo mercado – representada pela competição entre as cooperativas – e a racionalização dos serviços em moldes capitalistas, com vistas à diminuição dos gastos em saúde, encontram-se muito distantes de ser incorporadas ao cotidiano do funcionamento dos Módulos.

Frente à incapacidade das forças de mercado em lidar com a estrutura do PAS, e o enunciado ideológico da eficácia na alocação dos recursos financeiros, mais recentemente a administração municipal é (re)convocada a desempenhar o pretenso papel do mercado, no intuito de resguardar a economia do gasto público, esta uma das grandes bandeiras propagandísticas utilizadas quando do lançamento do Plano. Ilustra tal situação a montagem, na esfera central da Secretaria de Saúde, de uma ampla e onerosa estrutura voltada para o controle do custo de milhares de insumos e serviços consumidos pelos hospitais e unidades de saúde, com vistas a promover a melhoria da racionalidade no gasto dos serviços.

Se nos países capitalistas centrais a maior autonomia dos agentes privados não oferece maiores riscos frente aos interesses gerais da sociedade dado o padrão de cidadania que neles impera, o mesmo não ocorre na periferia do capitalismo, sobretudo no Brasil, onde a efetivação dessa cidadania é incipiente, restrita e dependente basicamente da interação do cidadão (brasileiro) frente ao sistema produtivo.

No caso brasileiro, o incremento do grau de autonomização dos agentes prestadores de serviço público de saúde coloca em questão a adoção dos princípios republicanos diante dos inúmeros processos decisórios relacionados à prestação de serviços, sejam aqueles vinculados mais diretamente aos aspectos financeiros (aquisição de bens, materiais e pagamento de serviços), sejam os estritamente relacionados ao gerenciamento dos serviços. Ilustram tais aspectos os inúmeros processos de inciativa do Ministério Público junto às cooperativas do PAS, buscando ressarcimento ao poder público de valores por malversação de recursos e improbidade administrativa perpetrados pelos agentes privados.

Enquanto proposta de gestão, o PAS não se configura como uma simples privatização da saúde, dado que não há transferência para os agentes privados da autonomia decisória e financeira na formulação da política de saúde, que continua sob a égide da Secretaria Municipal de Saúde. Dessa forma, ocorre uma delegação do poder público a entes privados com a transferência da autonomia administrativa e gerencial na produção dos serviços de saúde, ainda que de grande alcance por envolver muitas atividades e setores municipais, mas sem abranger a transferência do poder decisório e da responsabilidade do Estado como provedor dos serviços de saúde.

Na forma peculiar de articulação engendrada pelo PAS, dois elementos destacam-se como fundamentais: o incremento da autonomia do gestor dos serviços, principalmente com relação ao manejo dos recursos financeiros transferidos para as cooperativas; e a flexibilização administrativa da relação de trabalho dos funcionários públicos, possibilitando remuneração diferenciada e controle mais eficaz da força de trabalho.

Por tudo isso o PAS, que no nascedouro apresenta nítida inspiração nos preceitos da economia liberal implementados na Europa na década de 70, principalmente na Inglaterra durante o período Thatcher, acaba padecendo do não-reconhecimento dessa sua paternidade ideológica, após enfrentar o filtro histórico, político e social brasileiro, e as injunções resultantes da cultura da administração pública municipal, do governo Maluf em particular. Em outras palavras, mesmo do ponto de vista dos reformadores neoliberais mais relevantes, o PAS significa uma desfiguração grosseira desse ideário aplicado à saúde e, portanto, contrário ao que prometia a propaganda oficial quando de seu lançamento, razão principal do vigoroso apoio recebido por parte da grande imprensa paulista.

A despeito do intenso debate construído ao seu redor, e por força dessa nova proposta da administração Maluf, que muitas vezes produziu muito mais calor do que propriamente luz, mais uma vez contribuindo para a despolitização da discussão, é inegável que o PAS encerra várias lições.

A primeira delas diz respeito à introdução de uma mentalidade empresarial no setor público que, a despeito dos possíveis benefícios dela advindos – como a capacidade de iniciativa e agilidade na resolução de problemas – traz consigo o uso de um arsenal gerencial e administrativo freqüentemente restritivo do ponto de vista do usuário. Desse fato provém o desconhecimento do potencial de seletividade da clientela resultante das mudanças operadas nos serviços, como revelam as entrevistas com diversos quadros gerenciais do PAS (Cohn & Elias, 1997).

Do mesmo modo, o PAS sinaliza para o desenvolvimento de experiências de produção não-lucrativa de serviços de saúde em larga escala, sob a forma efetivamente cooperada, contribuindo na direção do enfrentamento da crescente mercantilização do setor saúde, mais expressiva justamente nos pólos mais industrializados do país.

Finalmente, e não menos importante, foi o crescimento no debate público acerca de modalidades alternativas de gestão na saúde a partir da proposta do PAS, o qual, além de corroborar o esgotamento do modelo de gestão então vigente, cujos sinais já se evidenciavam no início dos anos 90, deslocou o foco da discussão da ênfase no modelo assistencial para a ênfase na gestão do sistema.

Esse também parece ser um legado dos mais significativos frente ao enfoque mais tradicional das questões da reforma do sistema de saúde no Brasil. Contudo, o legado terá que ser aproveitado com bastante sapiência, impondo-se antes de tudo o questionamento da gestão em termos dos seus objetivos, meios e finalidades, isto é, para o que e para quem se destina.

Mesmo assim, as contradições, acertos e desacertos do PAS apontam para a necessidade de se estudar e buscar compreender as diferentes experiências de gestão em curso no país, com vistas a contribuir para a efetivação de gestões inovadoras que busquem maior igualdade frente às atuais e graves iniqüidades da política de saúde no país.

Nota

Paulo Eduardo Elias é professor doutor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).

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    Composta por 14 unidades hospitalares – apenas quatro delas equipadas com procedimentos de alta complexidade –, 14 hospitais-dia de saúde mental, 13 prontos-socorros, 16 centros de convivência, 11 ambulatórios de especialidades, duas clínicas de atendimento odontológico, uma de atendimento à criança e 140 unidades ambulatoriais – as ex-Unidades Básicas de Saúde (UBS) atuais Postos de Assistência à Saúde (PAS).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 1999
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