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Alfredo Bosi: duas aproximações

RESUMO

Em dois momentos é lembrada a personalidade de Alfredo Bosi e é comentado um de seus livros mais marcantes, O ser e o tempo da poesia. O autor do presente texto se vale de seus testemunhos pessoais, como aluno, colega e amigo do grande professor e multiplamente empenhado intelectual, destacando em seguida as qualidades e o devotamento que marcaram a atenção e a paixão de Alfredo Bosi pela Poesia.

PALAVRAS-CHAVES:
Alfredo Bosi; Magistério e Crítica literária; Teoria da poesia; Linguagem poética

ABSTRACT

In two moments, we remember the personality of Alfredo Bosi and comment on one of his most remarkable books, O ser e o tempo da poesia, relying on my own personal testimony, as a pupil, colleague and friend of the great professor and committed intellectual, and highlighting the qualities and devotion that characterized Bosi’s methodical attention to and passion for poetry.

KEYWORDS:
Alfredo Bosi; Teaching and literary criticism; Theory of poetry; Poetic language

Da pessoa

Em diversas sessões de homenagem a Alfredo Bosi, que nos legou uma obra crítica, ensaística e historiográfica tão densa e tão provocadora, tenho prestado meu depoimento como antigo aluno seu, de sua primeira turma no curso de Literatura Brasileira, em 1971, e depois colega de área, ao longo de 50 anos. Venho reafirmando que, para os alunos daquela turma em seu último ano de graduação, saltou à vista a figura do jovem professor que acabara de migrar da área de Italiano para a área de Literatura Brasileira e que, no ano anterior, publicara uma tão instigante História concisa da Literatura Brasileira. Foi enorme o impacto daquela aula, daquele curso seminal, daquela pessoa de professor. Era como se os quadros de estudo de literatura que tínhamos precariamente formado em nossas cabeças, naqueles tumultuados anos de radicalização da ditadura militar, vissem rompidas suas margens canônicas ou aventurosas para se submeterem a desdobramentos de análise mais amplos e absorventes, a exposições e interpretações críticas anguladas de maneira singularmente sensível. Naquele professor combinavam-se, de modo discreto, erudição consequente, agudeza crítica, delicadeza pessoal e rigorosa determinação ética. Não é preciso dizer que tudo isso repercutia também com particular vigor político, naqueles anos pesados. Tem sido esse, em síntese, o caráter dos depoimentos que venho prestando.

Confesso agora que sempre saí desses depoimentos com uma funda sensação de incompletude. No caso especial de Alfredo Bosi, a soma de qualidades intelectuais e afetivas, ainda que reconhecidas de perto, fica longe de espelhar o sentido da notável composição delas, de seu enraizamento na força magnética em sua pessoa. Certa vez deu ele mesmo este testemunho pessoal dos embaraços nossos quando se trata de querer propriamente definir alguém: “É difícil dizer as coisas. É difícil dizer as pessoas”. Muito raramente a ideia de que um indivíduo, a par de ser propriamente indizível, seja também indivisível, se ajusta a uma figura humana como a dele. No mundo acadêmico, costuma-se silenciar sobre esse lado indizível do âmbito mesmo da pessoa; costuma-se passar ao largo das tentativas de alguma fiel notícia dela. Com isso, perde-se, a meu ver, a identificação de um centro subjetivo que é a base mesma de todas as atividades e todos os valores objetivados criticamente pela pessoa. É com uma franca sensação de limites meus que me aproximo, agora por alguma memória circunstanciada, do peso da humanidade do Bosi - um legado seu que marca o trâmite de suas reflexões, de seus ensinamentos, de seus compromissos culturais e políticos.

A singularidade do crítico está, de fato, na aliança orgânica que ele promove entre todos os tempos que frequenta e interpreta, do mais íntimo ao mais aberto, na busca da compreensão integradora dos seres e dos fatos que elege para reconhecer; está no enlace entre a aposta espiritual e o rigoroso racionalismo, que se espelham mutuamente e se avaliam o tempo todo, parceiros difíceis na inteligência do mundo. Tal organicidade, como se sabe, é cada vez mais rara em nosso tempo, marcado pelos extremos da mediação e da imediação, tempo em que a hipercultura e a contracultura referenciam-se mutuamente. A paixão pelo equilíbrio possível, cultivada e manifesta por Bosi, soará escandalosa entre os convites extremos da modernidade, assim como a busca do preciso significado das palavras, escavado na etimologia e na filologia, parecerá operação anacrônica para quem cultua a autonomia dos significantes ou o status ocasional de alguma convicção apressada.

A convicção religiosa de Alfredo Bosi, consequente, solidária e de vocação prática, jamais o poupou de uma persistente investigação dialética. Sua fé incorporava decisões de raiz verdadeiramente social e concretamente política, manifestas nos seus gestos, nas suas escolhas de vida, na condução das aulas, nos textos que ia escrevendo. Fazendo-se hegelianamente histórica, sua vocação exigente de pensador, animado por um amplo sentido de espiritualidade, sempre me pareceu ter algo de dramático, advindo de seu compromisso com os outros e de sua disciplina militante: orientava-o permanentemente um senso de dever e de inclinação para o próximo, seu devotamento à reserva de resistência cultural que reconhecia nos grupos sociais marginalizados.

O valor da gravidade, por vezes solene, que caracterizava sua conduta habitual, abria-se muitas vezes em sorriso franco, em fino humor, que dialogava divertidamente com seu terno e seus gestos discretos. Há em certas pessoas rasgos de felicidade que se expandem e motivam quem esteja em sua cercania: mais fortes ainda se fazem quando os sabemos combinados com a consciência dramática de tudo o que se lhes opõe. O riso aberto ou um severo baixar de olhos eram expressões fortes de suas alternativas de humor, respostas a situações pessoais ou a grandes repercussões históricas, como a Revolução dos Cravos ou a queda de Allende.

Como se vê, continuo teimosamente a querer recuperar algo do calor e da personalidade do nosso amigo professor. Certa vez, numa conversa, com a inflexão de uma lição fundamental, expressa com máxima concisão, me disse que o “essencial em nossa vida está na objetivação da nossa subjetividade”. Ficou em mim essa formulação sintética que parece, no entanto, movimentar ao infinito a energia íntima das criaturas - essa energia que precisa se converter em forma social, assim como as formas sociais já se entranharam na composição de nossa intimidade. Para esse estudioso incansável que busca o esclarecimento de tudo, a localização dos impasses e a racionalização dos desafios, as verdades objetivas e os enigmas persistentes não se excluem, mas participam dramaticamente da composição do pensamento sensível. O que o impulso religioso aceita manter como mistério surge muitas vezes, para a empreitada intelectual, como enigma. Diante do Drummond de Claro enigma, sobretudo em “A máquina do mundo”, como também na presença do incontornável Machado de Assis, seja o de Brás Cubas, seja o do Conselheiro Aires, os enigmas dos olhares ganham espaço para acusarem os limites mesmos da nossa compreensão, e se transfundem na forma da ambígua indisposição do caminhante mineiro ou no olhar de bruxo que o narrador machadiano camufla na objetivação de suas penetrações analíticas.

A concentração de Bosi na obra de Machado de Assis, que ele veio analisando ao longo da vida, em diferentes vieses, terá constituído uma das formas mais dramática de sua atuação crítica. Sempre me impressionou sua indignação moral com o narrador do conto “Noite de almirante”, no qual este avalia a quebra de um juramento amoroso como estrita fidelidade à natureza humana. Era um dos seus primeiros momentos machadianos, no longo ensaio “A máscara e a fenda”, em que o leitor crítico arguto, provocado pelo complexo da escritura e do universo machadianos, se contrapunha firmemente ao relativismo desse autor, acusando-lhe a ideologia naturalista da época e o cinismo de base que compunha o ceticismo de sua narração. Muitos anos mais tarde, depois de vários e fecundos estágios interpretativos na obra do nosso ficcionista maior, Bosi manifestaria, no final do penetrante ensaio “Um nó ideológico - sobre o enlace de perspectivas em Machado de Assis”, de seu livro Ideologia e contraideologia, essa surpreendente proposição: “Depois de puxados os fios existenciais e ideológicos enovelados na fatura das Memórias póstumas, o melhor talvez seria atá-los de novo e deixar que formem o nó como fez com eles Machado de Assis” (Bosi, 2010_______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010., p.421).

É uma lição profunda de crítica, que reconhece e sobreleva a grandeza específica de seu objeto complexo. Uma obra tanto pode ser devassada pela atenção aplicada e criteriosa de um seu leitor, que lhe rendeu o tributo de uma responsabilidade máxima, como pode ser reacomodada em seu ponto de partida, de onde derivam suas arestas e sua trama, para se reafirmar em suas provocações originais. Traçar os contornos de um objeto reconhecido como enigma, em vez de buscar “explicá-lo” em moldes definitivos, não é renunciar à sua interpretação: é ser justo com a natureza mesma dele, que uma vez admitida se esclarece como espelhamento dos enigmas que somos também nós, intérpretes situados entre fronteiras que devem ser admitidas para alcançarem a objetivação que lhes compete. Refazer os nós autorais, depois de acusá-los em sua forma específica, é contar com uma tradição crítica em que os problemas podem se repropor justamente por estarem vivos.

De um livro

Num dos seminários em homenagem a Alfredo Bosi, foi proposta uma abordagem de sua amorosa e penetrante dedicação à poesia, aos sentimentos poéticos, à elaboração material dos poemas. Incumbi-me de comentar um de seus livros mais marcantes, desde logo referência em cursos de Letras de todo o país: O ser e o tempo da poesia. Está entre suas primeiras obras, mas testemunha inequivocamente o poder de sua contribuição para quem deseja pensar a natureza e o peso social do gênero poético. O texto que segue foi lido por mim nesse seminário.

Ao reler os ensaios de O ser e o tempo da poesia, livro de 1976, que se seguiu à então já celebrada História concisa da Literatura Brasileira, de 1970, percebi mais uma vez o empenho de Alfredo Bosi em reconhecer a poesia como uma especial disposição criativa, manifesta no corpo da linguagem, que situa o homem no tempo histórico e encarna as ansiedades e atribulações de seu espírito. Foi para atender a essa conjunção que propus como título de minha fala “Os poemas da poesia” - um modo de relevar os Fazeres, que são os poemas realizados, na mira do sentido de um amplo e maiúsculo Fazer, que é o permanente horizonte prospectivo da Poesia. Ou, para ecoar o idealismo de Giambattista Vico, que Bosi atualizou no ensaio final de seu livro: verum et factum convertuntur: “O verdadeiro e o que já foi feito convertem-se mutuamente”. Cabe-me um esforço para em breve tempo sugerir uma síntese dos passos que me parecem constituir núcleos da trajetória de Alfredo Bosi pelas configurações da linguagem da poesia.

Estou falando de O ser e o tempo da poesia como um livro de ensaios, mas talvez seja melhor considerá-lo como uma sucessão de capítulos, capítulos orgânicos de um pensamento aplicado e expansivo que persegue a constituição da forma, da produção, da recepção e do sentido da linguagem poética, desde sua base fonêmica até sua realização maior numa significação histórica. No título desse livro, a palavra ser habilita-se a funcionar como verbo e substantivo. Verdade íntima substancial e experiência ativa convertem-se uma na outra. Na esteira dessa formulação, nosso desejo de significar deve empenhar-se numa ação significativa, assim como toda ação deve atender ao compromisso com alguma plenitude de sentido.

Para a 6ª edição de O ser e o tempo da poesia, de 2000, que aproveitarei aqui para todas as citações, Bosi escreveu um prefácio no qual revalidou suas convicções acerca da linguagem poética, sobretudo o caráter de resistência que a poesia assume na modernidade. Ao lembrar o contexto em que escreveu esse livro, Bosi ressalta aquela prevalência, por vezes mecanizada, do conceito estruturalista de sistema, com o empalidecimento da condição sensível do sujeito, e a necessidade seguinte de se dialetizar o conceito de historicidade, lembrando que na poesia ocorre um encontro dos tempos. Há o tempo criado e presentificado pela linguagem, há o tempo vivido como continuidade pelo homem e o tempo vetorial de seus mitos e suas aspirações. A dificuldade dessas convergências se expõe nesta frase cética de Georg Simmel: “Este conflito entre o todo, que impõe a unilateralidade da função parcial sobre seus elementos, e a parte, que por si luta para ser um todo, é insolúvel” (Simmel apud Bosi, 2000_______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2000., p.14). Bosi, como o Ferreira Gullar do poema “Traduzir-se”, não desdenha, no entanto, a possibilidade de a Arte ser a tradução possível de uma parte na outra, considerando-se assim o anseio maior e quase visionário do que seja uma verdadeira participação.

Para bem reconhecer o desejo humano de buscar e realizar a poesia, Bosi promove uma atenta verificação, em certa medida, técnica, do funcionamento da linguagem verbal que rumará para a poesia. Para isso mergulha na composição mesma do que dá concretude ao ser do poema: sua voz, sua fala, sua oralidade, sua sonoridade. Em nenhum momento Bosi concede ao texto poético a possibilidade de obliterar a voz e a fala. Mesmo para a prosa de ficção Bosi chegou a recomendar uma leitura em voz alta, para a captação do tempo próprio e das entonações singulares das falas do narrador e das personagens. Com mais razões, a poesia nos reclama para ouvir e interpretar a fala do outro que aspira a ser também nossa.

No primeiro capítulo de seu livro, Bosi trata da produção e repercussão da imagem, da disposição humana primordial de suprir o intervalo entre o nome e a coisa - nomeação do que está ausente, suplência a princípio fantasmática, com seu peso primitivo de aparição, mas logo integrada e elevada no discurso ao campo de uma significação simbólica articulada. O fascínio da imagem, lembra o crítico, não se encerra nela mesma, mas na força que adquire no movimento de todos os recursos do discurso poético. O ser e o tempo da poesia é, de fato, um levantamento crítico, minucioso e cumulativo de todos os componentes da poesia assumidos na linguagem corrente de um poema. Ou, para dizer com suas palavras: “Entre as imagens cerradas nos seus limites e a forma em movimento do poema aconteceu de passar a flecha do discurso” (ibidem, p.47). A imagem, como os demais elementos da linguagem poética, não existe como um já feito, não se apresenta como um fetiche desfrutável, ou como um enigma de autofruição: na articulação poética tudo está se fazendo em processo. Será esta uma das lições: é preciso reconhecer a força do particular como parte de uma dinâmica na qual cada elemento tanto oferece como capta uma energia própria. No movimento do discurso, a imagem se processa como temporalidade e entra numa cadeia de predicações. Outra lição: toda predicação supõe o ponto de vista que participa do objeto. Insinua-se já neste primeiro capítulo do livro a perspectiva humana de toda criação expressiva.

Ponto de vista, perspectiva, tom, são para esse crítico, como se sabe, angulações já valorativas de um olhar e de uma fala a partir dos quais se produz o sentido das coisas. Pelo foco da matéria verbal imagética-discursiva constitui-se e interpreta-se o mundo representado. Bosi nos lembra ainda o quanto a imagem verbal se produz materialmente não como ícone plástico, mas como som de um signo, na cadeia sonora do discurso: é o apoio sensorial das sonoridades que dá lastro para a sua formação no nosso imaginário e para suas projeções de sentido. Nas palavras do autor, “Se no fim do trajeto a imagem parece ter ultrapassado o discurso, levando-o a uma transcendência, a transcendência também opera em sentido contrário: para levar a figura à plenitude foi necessário desatar a corrente das palavras” (ibidem, p.46). É uma lição de dialética aplicada à interpretação de um poema, comprometida tanto com suas formas de predicação interna como com sua relação com a vida. Movida pelo e para o discurso, a imagem leva o crítico a reconhecer a força geradora que propulsiona a linguagem poética: o som dos signos expandindo-se na música da frase.

Ao relevar esses componentes da sonoridade do poema, Bosi parte do nosso corpo, da criatura que se exprime, corpo onde o som não apenas se gera como também se imprime num trajeto sensorial que vem do ar dos pulmões e chega à emissão oral. O crítico considera, com lealdade por muitos já esquecida, o que devemos às vibrações da fala em nosso corpo para a constituição de uma linguagem expressiva. A sensibilidade do leitor Bosi não subestima, na produção da cultura letrada, a força mesma da natureza que está em nós. “A subjetividade do corpo, que vive a significação, é responsável pelo nexo entre som e sentido” (ibidem, p.74).

Nas relações armadas entre o som e o sentido do signo, Bosi pondera entre o que há de motivado e o que há de convencional nesse processo, remontando ao debate platônico do Crátilo e avançando para lições de Saussure. Partindo da âncora do corpo e chegando ao campo da predicação mais sofisticada, Bosi não quer subestimar nenhum elemento da linguagem poética. No capítulo “O som no signo”, o leitor acompanhará o autor nessa viagem em que a matéria verbal, identificada em seu nascedouro no corpo motivado, gerada em sua realização fônica por uma necessidade de expressão, “percorre todos os níveis do código: não só os sons, mas as formas gramaticais, o vocabulário, as relações sintáticas. [...] Os níveis mais altos, ‘corticais, da linguagem dispõem com grande liberdade das potências do som e as dobram a seus fins” (ibidem, p.63). A caminhada, telúrica na base, é para o alto.

Como não atentar, aqui e em todos os capítulos desse livro, para a inescapável tensão com que Bosi se propõe a avaliar todos os elementos da criação poética, que deve ser a um só tempo recolhida, compreendido e amado. Amado. O afeto é uma categoria permanente, na arte, de cuja produção Alfredo Bosi jamais descuida. Eu diria que esse afeto carregado de responsabilidade é uma das marcas mais poderosas e identificadoras de sua personalidade crítica. Nos tempos que atravessamos, constitui uma bem-vinda e irrecusável provocação. Trata-se, sempre, de objetivar a subjetividade.

Num salto final de suas reflexões sobre a sonoridade expressiva do signo, o crítico dá conta da conversão poética do som imanente no sentido desejado: “A invenção poética arma contextos tão variados e tão estimulantes que arrancam os fonemas de sua latência pré-semântica e os faz vibrar de significação. [...] Integrar o som no signo não é esvaziá-lo de suas latências simbólicas, é respeitar o modo de ser do signo” (ibidem, p.66). Observações como esta me levaram, como discípulo seu, a considerar que na interpretação da literatura reconhecer os limites definidos de um objeto artístico é a forma mais justa de reconhecer sua capacidade de expansão.

As reflexões de Bosi sobre o caráter da sonoridade e da musicalidade do discurso poético sobrelevam o caráter essencialmente temporal da linguagem dos poemas. Do fonema ao signo, do signo ao discurso, da palavra à frase, a linguagem poética articula tempo e movimento, ritmo e andamento, expressando-se tanto nos ritos primitivos da repetição e da regularidade métrica, como nos poemas modernos, em que se promovem as potências musicais da frase prosaica. Bosi lembra Walt Whitman e Manuel Bandeira para reconhecer esse estado moderno de liberdade que é também um estado de dessacralização de cânones clássicos. A oralidade sugere uma nova entoação, o andamento de uma fala, no qual se dá a empatia entre o leitor e o texto: no andamento, conjugam-se fôlego, intenção, duração; o andamento conduz as medidas internas do ritmo; o andamento é tempo qualificado. É o forçoso convite ratificado por Bosi para promover a leitura em voz alta dos poemas, capaz de registrar no corpo nosso e no tempo articulado do discurso poética a empatia, o afeto, a paixão - aquela mesma empatia que o nosso professor de literatura demonstrava ao ler um poema na classe, em voz alta e emocionada. Lembra-nos ele: “A frase bem entoada nos dá, sinteticamente, o aspecto lógico da predicação e o estado sensível do canto” (ibidem, p.119). Se não exagero, esta também pode ser uma profissão de fé de um crítico que jamais separou o interesse intelectual pela predicação qualificativa do estado de sensibilidade no qual a crítica cultural opera. De fato, ao se ler a produção de Bosi, a ação desejosa do espírito - grifo: do espírito - é tão acentuada e surge com uma força de realidade tão provocadora que nos parece estranho ser tão pouco frequentada em nosso meio acadêmico e na crítica em geral.

Se em cada um dos capítulos de O ser e o tempo da poesia há, digamos, um reconhecimento técnico dos recursos ativados pela linguagem poética, tal reconhecimento objetivo jamais se apresenta dissociado do valor nele implicado. A viva sonoridade da poesia em voz alta é uma prova decisiva para a intenção intelectual do sentido. Bosi não quer perder de vista a relação crucial entre a lógica do sentido e o acolhimento da sensibilidade. Nessa ordem de considerações, também as pausas e os silêncios da linguagem poética, analogamente ao que ocorre na música, estão carregadas de sentido, pontuam as ênfases do discurso não como intervalos vazios, mas com a tensão expectante entre o que foi e o que virá.

Há, de fato, em sentido amplo, um encontro dos tempos na poesia. Ela se faz como tempo de uma determinada linguagem dentro de um marcado tempo histórico, ao qual se liga, mas do qual também se separa na força de vocação de sua temporalidade própria. Bosi se vale da Commedia de Dante para lembrar que se a estruturação dos ciclos do Inferno nesse grande poema pode remeter à Ética de Aristóteles, o sentido poético dialetiza o sistema ideológico de referência. Num parêntese, me pergunto se essa não é uma disposição útil para se considerar a poesia de João Cabral. Nas palavras do crítico, a linguagem poética faz estalar a moldura pseudoeterna da redução ideológica. Bosi já está, aqui, considerando as circunstâncias em que a poesia oferece forte resistência à má positividade das ideologias.

Ao considerar o encontro dos tempos, Bosi prefigura o capítulo que se destacou na recepção do livro O ser e o tempo da poesia, “Poesia-resistência”, provavelmente por representar este capítulo um possível ponto de chegada pretendido pelo autor em todas as suas minuciosas averiguações da linguagem poética. Trata-se de sondar o alcance da poesia nos tempos que tanto lhe são hostis. “Poesia-resistência” fez uma espécie de carreira-solo nos estudos sobre poesia, despertou e desperta, como não poderia deixar de ser, um amplo debate sobre as convicções em que se apoia. A palavra resistência, diga-se, adquiria em nosso país especial relevância naqueles anos sombrios da década de 1970, embora as reflexões de Alfredo Bosi façam repercutir essa resistência num âmbito maior, como aquele em que também se aplica Adorno, com outros pressupostos, em seu ensaio “Lírica e sociedade”. Parece-me estar nestas palavras o centro de argumentação do ensaio “Poesia-resistência”: “A extrema divisão do trabalho manual e intelectual, a Ciência, e mais do que esta, os discursos ideológicos e as faixas domesticadas do senso comum preenchem hoje o imenso vazio deixado pelas mitologias” (ibidem, p.164). Há aqui um lamento e uma acusação, que, no entanto, não vivem de lamentar ou acusar: o passo seguinte e necessário é caracterizar as forças dominantes que levam a poesia, na modernidade, a assumir um específico caráter de resistência, modalizado em relações distintas com os tempos do passado, do presente e do futuro. Trata-se, sempre no apoio da voz, de evocar o mitopoético já constituído na História, provocar pela negatividade crítica as ideologias dominantes e convocar o futuro pela força das necessidades do presente.

Neste capítulo reforça-se ainda mais a estreita relação que o autor estabelece entre o ser e o tempo da poesia. Que resistência, afinal, se impõe? Parece-me que o ponto de partida é a assunção da consciência de um sujeito que se quer reconhecer nessa medida: o direito à subjetividade que deve se converter e se realizar num fato objetivo. É a ação dirigida pela ética, é a criação da palavra mobilizadora contra o domínio de qualquer discurso paralisante. Mas o caráter de resistência não pode se apoiar num fácil idealismo, muito menos em meras declarações de compromisso: Bosi escuta em vários poemas a urgente e necessária formação dos símbolos resistentes e dos recursos fundadores da poesia: as imagens, os ritmos, as pontuações, as inflexões, os andamentos vivos que assumem o vetor de uma linguagem libertária que resiste: na palavra composta poesia-resistência, assim mesmo, num amálgama, o hífen liga com força o que já não admite separação. É a resistência da giesta de Leopardi, flor aberta no cenário vulcânico com sua determinação de vitalidade; é a flor feia e desqualificada de Drummond, furando o asfalto com o ímpeto da necessidade profunda do poeta.

O parágrafo final de “poesia-resistência” reclama ser lembrado na íntegra. Ele é a resposta para quem pergunta, com sinceridade ou malícia, se a poesia não acaba por nos afastar de providências mais urgentes e necessárias:

O trabalho poético é às vezes acusado de ignorar ou suspender a práxis. Na verdade, é uma suspensão momentânea e, bem pesadas as coisas, uma suspensão aparente. Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela. E aproximando o sujeito do objeto, e o objeto de si mesmo, o poema exerce a alta função de suprir o intervalo que isola os seres. Outro alvo não tem na mira a ação mais enérgica e ousada. A poesia traz, sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual, ou contra a qual vale a pena lutar. (ibidem, p.227)

Essas palavras tão decididas recuperam e decantam pontos cruciais do reconhecimento, da análise e do sentido que Alfredo Bosi foi operando em suas entradas no ser e no tempo da poesia. Vê-se que os capítulos deste livro constituem-se, eles também, na sucessão mas sempre entre si, um discurso e uma predicação que supõem o comando de um espírito reflexivo minuciosamente analítico.

O capítulo final, “Uma leitura de Vico”, tributo de Bosi a seu mestre da cultura italiana, capítulo que aparentemente se afasta do caráter mais pontual dos momentos anteriores, é de fato um objetivo reconhecimento das lições dos ricorsi que Vico identificava no movimento dos tempos históricos, integrados em sua visão de uma história ideal. Não seria impróprio considerar que a entrada de Vico como arremate deste livro é uma espécie de demonstração prática que o tempo da poesia está longe de ser linear, em seus frequentes apoios nas simultaneidades, nas repetições, nas recorrências. O tributo às lições de Vico, do início do século XVIII, parece se apresentar ele mesmo como um dos ricorsi ao qual o próprio Bosi se entrega para considerar a linguagem da poesia na dinâmica e no encontro dos tempos.

Os ensaios desse livro são, nesse sentido, e em sua largueza, uma expressão crítica de um professor e de um intelectual que viveu em função da desafiadora construção da vida, a partir de um corpo sensibilizado em que atuam a consciência e a inteligência do mundo. Identificado com a prática da resistência, poética, cultural e política, que se impunha naqueles anos 1970, Alfredo Bosi expandiria análises das nossas diversas formações culturais em tensão social, da dialética da colonização, do papel do ensino público, do sentido da contraideologia, do estado de questão das humanidades. Em nenhum momento, porém, arrefeceria sua devoção matricial pela poesia e pelos poemas. Imagens, sonoridades, ritmos, inflexões, predicações, humores e silêncios ganharam em sua pessoa, em sua fala e em sua produção uma singularidade emocional e uma largueza crítica de tal ordem que o fazem presente e inesquecível dentro de nós - encarnação de uma perspectiva de valores abertos para as contingências e para os projetos de vida.


De acordo com informações do Professor Flávio Aguiar (FFLCH-USP): Os veteranos (de pé, da esquerda para a direita): Professores Antonio Candido, Alfredo Bosi, José Aderaldo Castelo e Décio de Almeida Prado. Os jovens: (de pé) José Miguel Wisnik; (sentados, também da esquerda para a direita) Zenir Campos Reis, Flávio Aguiar, Roberto Brandão, Amaury Sanchez, Antonio Dimas e Alcides Villaça. Por trás da câmera (uma Voitgländer alemã, modelo anos 1950), fotógrafa: Lígia Chiappini Moraes Leite. Local: uma esquina, perto do prédio da Administração da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Brasil. Data: segunda quinzena de dezembro, 1976.

Caiba como epílogo deste testemunho a frase do pintor russo Kandinsky que Alfredo Bosi, tão sintomaticamente, acolheu como epígrafe de seu livro Reflexões sobre a arte: “Todos os procedimentos são sagrados quando interiormente necessários”.

Referências

  • BOSI, A. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970.
  • _______. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1986.
  • _______. Machado de Assis - O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.
  • _______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
  • _______. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2023
  • Aceito
    02 Maio 2023
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