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Contradições na pesquisa e pós-graduação no Brasil

Resumo

O progresso científico brasileiro tem sido submetido a um processo de busca e avaliação por metas internacionais e tem alcançado resultados notáveis. O mesmo não acontece com o desenvolvimento tecnológico, nem tampouco com a educação. E, com notáveis exceções, o progresso científico não tem sido capaz de se traduzir em ganhos de competência e melhoria na qualidade de vida. Investigam-se os resultados alcançados e em C&T (ciência e tecnologia) e em formação de pesquisadore, diante da hipótese de que severas contradições entre o que se tem oferecido em termos de formação de pesquisadores e de resultados científicos e tecnológicos estão em conflito com as necessidades de uma sociedade que se esforça para alcançar patamares toleráveis e comparáveis a outras nações em termos de desenvolvimento compartilhado por todos. Conclui-se que, de fato, torna-se necessário um esforço maior da comunidade científica para tornar mais efetivos e pragmáticos, no novo ambiente socioeconômico, os resultados das pesquisas e da formação de pesquisadores, como meio de tornar a sociedade a maior beneficiária do conhecimento.

Palavras chaves:
Educação; Doutores; Ciência e tecnologia; Pesquisa aplicada; Pós- graduação; Sociedade

Abstract

Scientific progress in Brazil has been subjected to a process of search and evaluation set by international targets and has achieved outstanding results. However, the same is not true for technological development or for school education. With notable exceptions, scientific progress has not translated into competence gains and improvements in the quality of life. The results achieved in science and technology and in the education of researchers are examined here to evaluate the hypothesis that severe contradictions exist between the education of researchers and scientific and technological results, which are in contrast with the needs of a society that strives to achieve tolerable standards, comparable to those of other nations. The discussion points to a strong trend to academicism, both in education and in research, that seeks to repeat results achieved by already developed societies. As a conclusion, greater effort from the scientific community is necessary in the new organizational environment to attain more effective and pragmatic results in research and in the development of researchers and teachers, as a means of making the society the largest beneficiary of knowledge.

Keywords:
Education; Research challenges; Science and technology; Applied research; Graduation; Society

Introdução

Professores e pesquisadores têm convivido por décadas com a ideia de baixa produtividade e baixa eficiência no sistema de produção científica e formação de pesquisadores no Brasil. Um sobre-esforço significativo dos pesquisadores na busca de qualidade e quantidade no sistema vem se desenvolvendo desde meados da década de 1990. O sistema tem perseguido metas numéricas estabelecidas com base em tempo de formação e qualidade da pesquisa científica, estabelecidas pelos próprios representantes dos pesquisadores e professores. Uma corrida para formar mestres e doutores em um crescente número de programas de pós-graduação se estabeleceu no país. Ao mesmo tempo, ocorre um esforço excepcional de pesquisadores e professores, em um ambiente geralmente burocratizado e pouco favorável, para alcançarem níveis de qualidade e produtividade de países desenvolvidos. Qual o significado dessa corrida?

Na última década temos verificado um progresso significativo na atividade científica e tecnológica no Brasil. Um esforço especial foi aplicado para facilitar o desenvolvimento tecnológico e mais recentemente estimular a chamada inovação, acompanhando uma tendência internacional. Não interessou, neste estudo, compreender as eventuais motivações filosóficas ou ideológicas que levaram a esse estágio de desenvolvimento, se a motivação capitalista ou alguma outra, alternativa. Interessou aprofundar a análise das características de nossa evolução recente em C&T (ciência e tecnologia) em comparação com nossas carências e com trajetórias em outras nações, tendo em vista que esse progresso científico não tem se revelado em termos de relevância social.

De fato, o progresso científico e tecnológico gera oportunidades para ampliar a diferença entre o que uma sociedade tem e o que se pode ter, e dentro dessa sociedade, o que as classes mais ricas têm e o que as mais pobres podem ter, ampliando a diferença social. Ao mesmo tempo, essa diferença gera as oportunidades para os meios de produção, é aproveitada pelos detentores de capital e competência - em especial do mundo industrial - para a produção de novos bens e serviços, utilizando-se de procedimentos ora nocivos, ora benéficos para a humanidade. Como consequência, os sistemas produtivos, especialmente aqueles situados já nas fronteiras tecnológicas, nos países já concentradores da riqueza, se envolvem na orientação do progresso científico e tecnológico, porém não necessariamente objetivando o seu potencial de melhora na qualidade de vida e na redução do sofrimento e das diferenças sociais no mundo, mas apenas o de progresso econômico, que se reflete no aumento sem precedentes da concentração de renda na sociedade pós-moderna (Davies et al., 2016DAVIES, J.; LLUBERAS, R.; SHORROCKS, A. Credit Suisse Global Wealth Databook. Disponível em: <https://www.credit-suisse.com/us/en/.../global-wealth-report.html>. Acesso em: out. 2016.
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). Constitui um desafio para a comunidade científica identificar essas contradições para não ser refém da corrente apenas desenvolvimentista, cujas buscas estão delineadas em tendências estabelecidas em centros cujos interesses de dominação são contraditórios com os de uma sociedade civilizada! Alguns aspectos desse problema fizeram parte de um interessante fórum de reflexões na Unicamp (2002)UNICAMP. Os desafios da pesquisa no Brasil. Caderno Temático. Supl. Jornal da Unicamp, Campinas, p.1-4, 2002. e foram abordados também por Brito Cruz (2010)BRITO CRUZ, C. H. Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil: desafios para o período 2011 a 2015. Interesse Nacional (Jun/2010). Disponível em: <http://www.ifi.unicamp.br/~brito/artigos/CTI-desafios-InteresseNacional-07082010-FINAL.pdf>.
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, porém não têm sido uma temática frequente no meio acadêmico e tecnológico. Pode-se lembrar do lema da Associação Americana para o Progresso da ciência (AAAS): "Advancing Science, Serving Society" (Progredindo a ciência, servindo a sociedade).

Dessa forma, o Brasil, que tem a universidade, USP, que mais forma doutores no mundo, chegou atualmente a mais de 200 mil doutores e 700 mil mestres, formados a menos de 15 anos. Se considerarmos o número de habitantes, nosso índice de 1,9 doutor por mil habitantes (segundo o IBGE, 2010IBGE - Censo Demográfico 2010: educação e deslocamento. 2010. Disponível em: <https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/educacao_e_deslocamento/default.shtm>.
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) pode parecer baixo, comparado a 8 e 4 para os Estados Unidos e a França, respectivamente. Mesmo assim, nosso índice é quase o dobro da média mundial. Porem é estranho, ao mesmo tempo revelador, que os maiores índices, comparáveis aos maiores índices do mundo, estejam em locais de domínio da burocracia: Brasília, com 5, seguido pelo Rio de Janeiro, com 4 doutores por habitante.

O número de programas de doutorado duplicou entre 2000 e 2010, superando 1.600, num aparentemente invejável progresso. Na primeira metade da década de 1990 formávamos menos de dois mil doutores por ano. Passamos de 4 mil em 2000 para 15 mil em 2015. Uma progressão geométrica, com taxa de crescimento de 20% ao ano, incomparável no mundo ocidental. Se considerarmos o número de mestres, a progressão é semelhante: em 10 anos (2001-2010) passamos de 20 mil para 40 mil mestres por ano e cerca de um terço dos mestres conclui o doutorado.

O Brasil assume uma posição boa no ranque da produção científica mundial, com 2,8% da produção de documentos. Em termos de documentos científicos produzidos (28 mil em 2012), estamos em posição privilegiada, ocupando a 16ª posição, entre os países desenvolvidos (Scimago, 2012SCIMAGO. Scimago Institutions Rankings. 2012. Disponível em: <http://www.scimagoir.com/>.
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), com 0,15 documento por doutor, um índice na mesma ordem de grandeza dos Estados Unidos, com 315 mil, ou França, com 57 mil documentos científicos. A mesma posição é notável quando se considera o índice de citação.

Esse quadro comparativo nos coloca numa posição confortável em termos de recursos, tendo em vista que também aplicamos em P&D um percentual do PIB em torno de 1%, e temos uma boa infraestrutura cientifica (33º país no ranque mundial), o que também nos coloca em posição comparável aos países desenvolvidos.

O que é contraditório nesse quadro otimista é o potencial de retorno que esse avanço intenso na atividade científica poderia ter trazido em benefícios para a sociedade brasileira, o que não tem se realizado e se conservam sequelas persistentes:

  • Infraestrutura básica e educação básica de nação subdesenvolvida (quinquagésimo lugar no ranque internacional);

  • Carência de competência profissional nas mais diferentes áreas, começando pela educação, passando por saúde, engenharia, recursos naturais até a pesquisa científica, para atender as demandas da realidade nacional (produtividade e eficiência, 52º lugar);

  • Uso de energia, como força de trabalho, e recursos naturais nos níveis de nação subdesenvolvida, o que resulta em baixa produtividade;

  • Degradação ambiental extensiva (os primeiros lugares em desmatamento, poluição hídrica, uso de agrotóxicos);

  • Produção agrícola voltada para exportação de produtos in natura e para uso como combustível (soja, cana-de-açúcar);

  • Produção mineral atendendo a demanda externa de minério (metade é de minério de ferro) e baixo desembolso em pesquisa mineral para novos depósitos: menos de 2% do valor da produção, muito abaixo de 10% a 20% em outras nações comparáveis;

  • Saneamento urbano intolerável (despejo sem tratamento em dois terços da coleta de esgotos);

  • Meio urbano caótico e violento (primeiro lugar em mortes violentas no mundo, da ordem de 60 mil por ano).

De certa forma, a corrida acadêmica, lembrada inicialmente, traz a lembrança de outras corridas científicas e tecnológicas induzidas e bem-sucedidas, segundo a própria óptica da C&T, a da Big Science, liderada pela física. Lembremos a corrida pela produção da bomba atômica, com o vitorioso Projeto Manhattan, reunindo uma plêiade internacional de notáveis cientistas nos Estados Unidos. Também a corrida espacial com a grande conquista russa com o Sputnik e a americana com o Projeto Apollo. Não interessa comparar, em vista da diferença de impacto mundial. Porém a comparação faz sentido quando se pergunta e daí? Chegamos a uma capacidade destrutiva global, e agora? Chegamos à Lua, e agora? No espaço, ultrapassamos as fronteiras do domínio do sistema solar. Um dos maiores programas da Big Science foi o do Genoma Humano, iniciado em 1988, envolvendo 14 nações; um programa, de interesse militar dos Estados Unidos, que levaria ao código da vida, da saúde e das doenças e das armas biológicas (Projeto Genoma; genoma.ib.usp.br/sites/default/files/projeto-genoma-humano.pdf)! A Big Science agora era dominada pela Química e Biologia. Em cada um desses projetos, foram gastos muitas dezenas de bilhões de dólares e um esforço humano sensacional, sob uma perspectiva de estratégia de dominação tecnológica e utilização bélica, com poucas e notáveis vozes dissonantes, abafadas pela magnificência das conquistas científicas e tecnológicas alcançadas.

Se a capacidade humana de concentrar esforços e recursos tem um poder de realização científica e tecnológica tão grande e surpreendente, por que não se organiza esse esforço, destinando tais competências e recursos para a solução de alguns problemas críticos que afetam a humanidade, especialmente no que diz respeito a suprimento de água e de alimento, em programas de educação, de saúde, de saneamento e qualidade ambiental?

A pesquisa científica orientada pelas demandas externas à ciência ou a ciência aplicada passaria a ser "[...] claramente um requisito cada vez mais importante no serviço da ciência à nação", alertava Haskins (1973)HASKINS, H. Ciência e propósito social. In: SHANNON, J. A. Science and the evolution of Public Policy. The Rockefeller University Press, 1973. p.25-45.. Não se trata apenas de um sentimento relativo à demanda social decorrente da sociedade do conhecimento. Há um século, uma descoberta científica levava muitas décadas para se tornar um produto utilizável, e por isso sua importância prática era pouco notada. Entretanto, na atualidade, a revolução tecnológica aproximou a descoberta da invenção, permitindo que uma descoberta científica possa ser convertida em benefício social e econômico em um ou dois anos. Essa novidade permite tornar visível e perceptível a utilidade da ciência, porém demanda um avanço em pesquisa aplicada de forma a decodificar e explicitar desdobramentos da descoberta científica que possam ser utilizados e resultem em produto ou serviço de utilidade e aplicação imediata na melhoria da civilização. E em muitos programas a pesquisa básica se une à aplicada e se estende à tecnológica e à utilização prática.

Por pesquisa científica básica, trata-se daquela que objetiva a descoberta de um conhecimento demandado pela própria ciência; já em pesquisa científica aplicada, o objetivo é a descoberta de um conhecimento que se caracterize por ser solução para um problema prático real. Muitas vezes exige a pesquisa básica associada, porém outras se utilizam de um estoque de conhecimento científico já consolidado. Difere, naturalmente, da aplicação do conhecimento científico, pois nesse caso não envolve descoberta, apenas o uso do conhecimento científico na rotina operacional. Nesse caso a investigação, se necessária, é sobre o objeto particular para viabilizar o uso transformador do conhecimento. Já a pesquisa tecnológica objetiva a invenção de um produto ou processo, enquanto a inovação objetiva a agregação de um atributo novo a um produto ou processo conhecido. A pesquisa científica aplicada se aproxima da tecnológica no sentido de que ambas buscam um resultado de valor econômico ou social; mas a primeira busca a descoberta de algo já existente (um objeto ou relação desconhecidos), enquanto a segunda busca a invenção de algo até então inexistente.

Em virtude da aliança entre ciência e tecnologia e do poder transformador e dominador de seu desenvolvimento, os estados aplicam montantes significativos, competindo com recursos de outras áreas, com vista a obterem o máximo aproveitamento do conhecimento científico. Por tal razão objetiva e prática, e pelo estoque de conhecimento disponível, não tem sido priorizado o que é melhor para a ciência, para o seu progresso, ou para o cientista, ou para o laboratório. Mas sim, quais pesquisas vão resultar em maior poder, mais benefícios econômicos, sociais, em melhor qualidade de vida, em qualidade ambiental, para o presente e para o futuro.

De qualquer forma, a dedicação integral à busca de conhecimento por parte de muitos cientistas, no passado e no presente, independente de sua aplicação, atesta o valor e o prazer da atividade investigativa e do saber. Entretanto, em termos de prioridade, deixando-se de lado os projetos belicistas, destacam-se os focos da pesquisa e desenvolvimento mais valorizados pela sociedade, os quais se refletem em maior aplicação de esforço humano e recursos partilhados por todos (Bozeman; Sarewitz, 2005BOZEMAN, B.; SAREWITZ, D. Public values and public failure in U.S. science policy. Science and Public Policy. v.31, n.2, 2005.). De um modo geral, tem-se verificado que a saúde, o ambiente, a segurança e a educação não têm sido vistos como importantes campos de investigação por si mesmos, embora constem das principais preocupações da sociedade, pela sua importância enquanto fator de qualidade de vida. Tal diagnóstico pode ser confirmado pela distribuição dos recursos aplicados em P&D no Brasil (Gráfico 1). Tais temas têm sido abordados de forma reducionista, ou seja, abordados dentro de segmentos tradicionais, disciplinares e cartesianos da ciência, como física, química, biologia, matemática, pedagogia etc., muitas vezes limitados pela tradição departamental vigente nas instituições.

Gráfico 1
Distribuição e evolução dos recursos em pesquisas aplicadas (10 bilhões de reais em 2013, ou cerca de 10% do total gasto em C&T no ano) por área econômica e/ou social de utilização. Notar a pobreza dos recursos aplicados em pesquisas orientadas para objetivos nos domínios de defesa e segurança, energia, ambiente, água, saneamento, recursos naturais, atmosfera e serviços sociais (MCTIC, 2015MCTIC. Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação: Dispêndio nacional em pesquisa e desenvolvimento (P&D), em valores correntes, por setor institucional. Disponível em: <https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/indicadores/arquivos/Indicadores. 2017.pdf>. Acesso em: jul. 2017.
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).

Nos relatórios Unesco 2010 (Hollanders; Soete, 2010HOLLANDERS, H.; SOETE, L. O crescente papel do conhecimento na economia global. UNESCO Science Report 2010 - Executive summary, 2010. p.1-34. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001899/189958e.pdf>.
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) e Unesco 2030 (Soete et al., 2015SOETE L.; SCHNEEGANS, S.; ERÖCAL, D.; ANGATHEVAR, B.; RASIAH, R. A world in search of an effective growth strategy. UNESCO Science Report 2030. Paris, 2015.), seus autores destacam quatro aspectos importantes da C&T na atualidade: (1) a disparidade na renda per capita das diferentes nações e o volume de recursos destinados à C&T, ressaltando-se que os Estados Unidos aplicam quase 30% de todo o orçamento mundial em C&T e que quatro das cinco mais destacadas universidades estão em seu território; (2) facilidades oferecidas pela disseminação do conhecimento e da tecnologia digital têm permitido a economias emergentes desafiarem os centros tradicionais; (3) há um estoque de conhecimento a ser apropriado por outras nações menos desenvolvidas e transformado em oportunidades para alcançarem níveis mais altos de bem-estar social e produtividade; (4) uma maior colaboração entre universidades, centros de excelência e indústrias, com aporte de financiamento competitivo para a pesquisa, tem favorecido a integração da pesquisa básica com a tecnologia e inovação; (5) a preocupação com as mudanças ambientais especialmente mudanças climáticas, desastres naturais, sustentabilidade e energia, tem levado diversas nações a uma aliança norte-sul, para melhor observação da terra e a investimentos em energias alternativas e adaptação a mudanças desastrosas; (6) a globalização não tem promovido uma disseminação de conhecimento e competências, mas apenas oferece oportunidades para mais fácil associação entre grupos e nações para apropriação e desenvolvimento de conhecimento, tendo se revelado mais uma diferenciadora do que aproximadora das nações.

Diante desse contexto e considerando tendências internacionais de atribuir maior peso à relevância social da pesquisa, podemos avaliar os potenciais e os vieses na pesquisa em pós-graduação no Brasil enquanto formadora de profissionais para a geração, desenvolvimento e uso do conhecimento científico e tecnológico, em uma sociedade cheia de carências. Fundamentalmente uma dicotomia é destacada. Até onde cabe a uma sociedade pobre concentrar sua capacidade de desenvolvimento de alto risco e custo nas fronteiras da ciência acadêmica, lideradas por nações com interesses de dominação mundial, e descuidar da apropriação do conhecimento e seu desenvolvimento para uso na solução de seus problemas mais básicos e dramáticos? É verdadeiro o adágio que para aplicar a ciência é necessário ter a ciência. Porém não basta ter a ciência; ela não se aplica sozinha; há um gap entre o conceito e sua aplicação que é necessário superar, por meio da pesquisa. Ao mesmo tempo, diferentemente do passado, tornou-se difícil avançar no conhecimento científico sem uma elevada competência tecnológica.

Outra questão é relevante na discussão: o que leva uma sociedade a adotar ou rejeitar uma tecnologia? Certamente sua educação e cultura, social, religiosa e técnica, como nos revela a história (Diamond, 2003DIAMOND, J. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Uma sociedade preparada é receptiva à incorporação do conhecimento tanto científico como tecnológico e é capaz de desenvolvê-lo. Não apenas de usá-lo como produto de consumo. Então a educação e a preparação para a sociedade do conhecimento científico e tecnológico desempenham um papel fundamental.

As causas dessa situação têm sido investigadas do ponto de vista sociológico, político e econômico. Aqui procuramos as razões internas ao próprio mundo da C&T. Dados existem em abundância e com fácil acesso nos sites da Unesco (UNESCO Science Reports; http://unesdoc.unesco.org/) e da OECD (Organization for Economic Cooperation and Development; stats.oecd.org/) e em instituições brasileiras, como MEC (Ministério da Educação) e MCTIC (Ministério da Ciência Tecnologia, Inovação e Comunicações), referidas no texto.

Conflitos e contradições na formaçao do pesquisador no Brasil

No domínio nacional, e diante do bem-sucedido programa de pesquisa e pós-graduação, nesses últimos 15 anos, descortinou-se um cenário no qual podemos evidenciar conflitos que estão por trás do atraso cultural, científico e tecnológico brasileiro. Esse atraso tem dificultado a conciliação do fato de determos uma fatia significativa da economia mundial (6o ou 7o lugar) com o fato de ter a nação uma qualidade de vida sofrível para a grande maioria da população (em torno do 50o lugar no mundo), apesar da grande disponibilidade de recursos naturais. Vamos partir de três afirmações fundamentais: (1) o progresso e a aprendizagem somente existem se houver motivações e após o atendimento das necessidades básicas; (2) a valorização e a utilização do conhecimento científico e tecnológico dependem de a sociedade ser preparada e receptiva a esta prática; (3) a educação efetiva depende fundamentalmente da preparação dos professores.

Admitindo que a primeira condição é satisfeita para 90% da população brasileira, a mais desconcertante condição seguinte é a do analfabetismo, a qual nos coloca atrás da centésima posição entre as nações e provoca uma catastrófica incapacidade de desenvolvimento pessoal, social e cultural. Da população ativa de 130 milhões de habitantes, 12% são analfabetos plenos, incapazes de ler uma palavra; e apenas 17% são considerados alfabetizados funcionais (IBGE, 2010IBGE - Censo Demográfico 2010: educação e deslocamento. 2010. Disponível em: <https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/educacao_e_deslocamento/default.shtm>.
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), ou seja, capazes de ler e interpretar um texto, o que significaria capacidade de se beneficiar do conhecimento disponível, embora um terço tenha concluído o ensino médio e um sétimo, o ensino superior: 4% são mestres e 2% são doutores.

Da população em idade escolar em 1995, 10% não acessaram a escola, 25% não terminaram as séries iniciais do Ensino Fundamental e 35% não concluíram essa fase; 50% abandonaram a escola antes do final do Ensino Médio e 20% concluíram o Ensino Superior até 2011 (SAEB, 2011SAEB. Resultados. INEP-ME, 2011. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/web/guest/educacao-basica/saeb/resultados>.
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). A grande perda escolar ocorre nos ensinos Fundamental e Médio, um período em que poderia se consolidar capacidade de interpretação de textos, de utilização de conceitos científicos e realização de operações matemáticas.

Qual seria a razão para uma evasão escolar tão grande? As causas são conhecidas, destacando-se:

  • Professores despreparados para lidar com os modernos desafios da aprendizagem;

  • Escolas antiquadas, com infraestrutura, instalações e mobiliário primitivos;

  • Programas e práticas de ensino aprendizagem obsoletos.

Carências socioculturais

Ao lado da desanimadora condição social, a ausência de letramento e de convívio com o conhecimento e competências por parte dos pais leva os responsáveis e convivas com o estudante à desconsideração com sua busca por uma realidade nova. Utilizam-se de argumentos como a inutilidade dos conteúdos apresentados pelas escolas aos alunos e a ausência de aprendizagem prática que os auxiliem a enfrentarem as dificuldades naturais de sua comunidade e a construírem novas oportunidades.

O fato é que ocorre uma perda de 70% a 80% dos potenciais usuários do conhecimento científico e tecnológico, os quais vão abandonando esse caminho de competências a adquirir, constituindo uma considerável parcela da população. Essa parcela simplesmente se coloca à margem da sociedade do conhecimento, é alvo fácil da propaganda enganosa, e perpetua, ou mesmo potencializa, inspirada na mídia, os hábitos e costumes de uma sociedade primitiva, da lei da vantagem, da excessiva tolerância com a ignorância, a mentira, o furto, o desrespeito ao próximo, a miséria, a poluição, o esgoto a céu aberto, a depredação do patrimônio público etc. A parcela que progride para os estudos superiores sofre a influência da simpatia com os assuntos que conheceu e de que aprendeu a gostar. As ausências e fragilidades de seu aprendizado condicionam suas escolhas. Assim abdica das opções pelas ciências da natureza e suas tecnologias, em virtude da carência de laboratórios e fragilidade das práticas em física, química, ciências da terra e matemática, fundamentais para encontrar compreensão e utilidade nas ciências. É notável, por exemplo, a redução progressiva (de 14% para 11,5%, entre 2000 e 2012) da fração de estudantes de engenharia, resultante da desmotivação com o ensino excessivamente teórico de matemática e física no ensino básico e no ciclo básico do Ensino Superior. Certamente exige alguma estratégia para reverter essa tendência. Várias nações desenvolvidas têm implantado programas de interação prática do ensino baseado em problemas reais, com experiências fora da escola, como o programa STEM (NSTC, 2013NSTC. Federal Science, Technology, Engineering and Mathematics Education, 5-Year Strategic Plan. Executive Office of the President - National Science and Technology Council, 2013. 127p.) nos Estados Unidos e similares na Europa para estimular as opções tecnológicas. A França, por exemplo, a partir de 2002, introduziu por lei a educação centrada na lógica do desenvolvimento de habilidades ou competências em substituição à centrada em conhecimento ou compreensão (STWG, 2010, p.18). No Brasil, a BNCC (2016)BNCC. Base Nacional Curricular Comum. MEC, 2016. 301p. Disponível em: <http://www.basenacionalcomum.mec.gov.br/>.
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mantém o viés academicista, reforça a formação básica na compreensão dos assuntos e não na aquisição de habilidades; essa prática se reflete na maior dificuldade de motivação do estudante para a aprendizagem e para a sua permanência na escola.

O atraso educacional se reflete na cultura, considerando cultura como o conjunto de padrões de respostas que uma sociedade pratica diante dos desafios. As sociedades que descobriram e incorporaram mecanismos e meios de responder com mais inteligência e conhecimento a esses desafios de demandas básicas se impuseram naturalmente na evolução histórica. Pela educação preparam-se as gerações sucessivas capazes de avançar além dos limites das gerações atuais, promovendo o avanço cultural.

Como no Brasil apenas 12% da população ativa têm nível universitário, comparado com 55% na Rússia, 40% nos Estados Unidos e quase 30% nos países da OECD (Gráfico 2), isso nos dá a dimensão do potencial de valorização do conhecimento. Segundo um levantamento sobre as condições de desenvolvimento da sociedade brasileira comparada às de outras nações (IMD, 2016IMD. World Competitiveness Ranking, 2016. Disponível em: <https://www.imd.org/wcc/world-competitiveness-center-rankings/World-competitiveness-yearbook-ranking/>. Acesso em: out. 2017.
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), o critério “Ciências nas Escolas” é o mais desfavorável entre trinta principais critérios, e nesse item, o país se situa em 60º lugar no ranque mundial. Como o ensino técnico e tecnológico ainda não alcançou um padrão compatível com outras sociedades, tanto em abrangência populacional como em competência, podemos considerar que é justamente a fração da população com formação universitária que desempenha atividade econômica, que é capaz de compreender, traduzir e se orientar pelo conhecimento científico disponibilizado, em sua visão de mundo e exercício profissional. Então, no Brasil, 88% da população são incapazes de conviver na sociedade do conhecimento, pois esse saber não a alcança. Nesse caso, concluímos que o potencial de aproveitamento do conhecimento científico e técnico torna-se reduzido e amplia-se o fosso entre esse conhecimento e a rotina dos projetos e operações na indústria, no comércio ou nos serviços.

Gráfico 2
Distribuição da população ativa nas faixas de educação em diferentes países e comunidades em comparação com o Brasil (RUS = Federação Russa; EU = União Europeia; Port: Portugal) (OECD: http://www.keepeek.com/Digital-Asset-Management/oecd/education/education-at-aglance-2010/).

Além disso, o Ensino Superior apresenta um nível de eficiência muito aquém do desejado, estando situado na 53a posição no ranque mundial (IMD, 2016IMD. World Competitiveness Ranking, 2016. Disponível em: <https://www.imd.org/wcc/world-competitiveness-center-rankings/World-competitiveness-yearbook-ranking/>. Acesso em: out. 2017.
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), uma posição pior que a do Ensino Médio. Na avaliação do INEP (2013)INEP. Censo Escolar da Educação Básica. 2013. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/resumos_tecnicos/>. Acesso em: 15 ju. 2017.
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, num universo de 14 mil cursos de nível superior, apenas 5% eram considerados bons (conceitos 4 e 5), 30% ficam na média (3), como satisfatórios, e outros 65% como insuficientes (menor de 3). Isso é apenas um reflexo numérico do que já é conhecido e que tem resistido aos projetos de melhoria do ensino. Qual seria a razão para uma resistência tão severa à adoção de práticas de ensino-aprendizagem ajustadas a um novo paradigma de apropriação e uso do conhecimento?

Destaca-se ainda que as questões práticas das ciências – aquelas relacionadas ao entendimento e solução de problemas reais – são esquecidas, como nos lembra a BNCC (2016)BNCC. Base Nacional Curricular Comum. MEC, 2016. 301p. Disponível em: <http://www.basenacionalcomum.mec.gov.br/>.
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, focadas em compreensão e não em habilidades ou competências como nas reformas feitas em outras nações, como França (FPWG, 2010FPWG, 2010. Referencing of the French National Framework of Qualifications (NFQ) in the light of the European Qualifications Framework for Lifelong Learning.. French Project Working Group, Europe Qualifications Framework, p.60.) ou Estados Unidos (NSTC, 2013NSTC. Federal Science, Technology, Engineering and Mathematics Education, 5-Year Strategic Plan. Executive Office of the President - National Science and Technology Council, 2013. 127p.); em especial, são ausentes as ciências que tratam do local e regional, como as ciências agrárias, ou da terra e do ambiente, no ensino básico

O desempenho na aprendizagem

Outro agravante é o da aprendizagem: o desempenho aceitável nessas diferentes séries, avaliado por meios independentes (DAEB, 2015DAEB. Resumo técnico-Resultados do índice de desenvolvimento da educação básica 2005-2015. Disponível em: <https://undime.org.br/uploads/documentos/phpy1Z3G1_57d1b82903de2.pdf>. Acesso em: out. 2017.
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), com valores diferentes para as fases, mostra que, em média, apenas um terço tem nível aceitável compatível com a fase, nos Ensino Fundamental e Médio, e a metade no Ensino Superior. Em uma avaliação independente, o teste internacional PISA (2015)PISA - OECD. 2015. Disponível em: <https://www.oecd.org/pisa/PISA-2015-Brazil-PRT.pdf.>. Acesso em: 10 mai. 2016.
https://www.oecd.org/pisa/PISA-2015-Braz...
coloca a população do ensino médio do Brasil em situação constrangedora, em torno do 50o lugar no ranque internacional, muito distante dos países com os quais nos comparamos em termos de atividade acadêmica e econômica.

Esse atraso escolar brasileiro, claramente uma sequela histórica, se reflete na cultura, enquanto resposta de uma sociedade aos desafios naturais e antrópicos que tem de enfrentar, correspondendo a seu capital cultural. Da mesma forma, essa parcela elevada da população, de cerca de 80% de analfabetos e analfabetos funcionais, é culturalmente limitada, por sua incapacidade de compreensão dos discursos e escritos, pela inabilidade para lidar com conceitos e relações técnico-científicas; é incapaz de entender normas e regras sociais e ambientais, de realizar operações numéricas básicas, de aplicar informações fundamentais dos receituários e catálogos de instruções de remédios, equipamentos e utilidades domésticas.

Constitui-se numa forma de analfabetismo científico que a torna, em grande parte, incapaz de se beneficiar da sociedade do conhecimento. Esse atraso tem caracterizado as nações latinas e se reflete e se estende também como atraso metodológico em ciência e tecnologia, no “Como fazer?”, tanto no como fazer para descobrir quanto no como fazer para inventar ou inovar ou usar. É interessante notar que essa cultura implica desapego pela propriedade intelectual, que caracteriza a comunidade científica, implicando pouco interesse pela descoberta científica, pela invenção e, consequentemente, pela publicação e pela leitura e citação de artigos científicos.

A maior parte de nossas monografias, dissertações e teses não é publicada, nem mesmo nos sites das próprias instituições. Para cada três teses de doutorado e seis dissertações de mestrado, têm-se apenas quatro publicações em revistas indexadas, o que é um número extremamente baixo, tanto em relação a outros países como aos próprios valores históricos da pós-graduação no Brasil.

Tal anacronismo com a sociedade do conhecimento reflete-se também na pobreza do mercado editorial e, em especial, na produção de revistas técnico-científicas, tanto de validação do conhecimento (peer review e indexadas) como de divulgação. Adicionalmente se reflete, de forma dramática, na produção tecnológica.

Viés acadêmico

O desenvolvimento tecnológico brasileiro é importado, como se percebe por uma simples listagem de peças ou equipamentos de uso diário, tanto em laboratórios como na indústria, como também no ambiente doméstico. A participação brasileira na pesquisa e desenvolvimento tecnológicos é reduzida: nas engenharias, ciências dos materiais e computação, sendo pouco superior à metade das médias mundiais; é similar para as artes e ciências humanas (MCTIC 2015MCTIC. Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação: Dispêndio nacional em pesquisa e desenvolvimento (P&D), em valores correntes, por setor institucional. Disponível em: <https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/indicadores/arquivos/Indicadores. 2017.pdf>. Acesso em: jul. 2017.
https://www.mctic.gov.br/mctic/export/si...
). Em compensação, em biologia, agronomia e veterinária disparamos com mais do dobro da média mundial.

Os brasileiros são responsáveis por apenas 0,03% das 140 mil patentes requeridas anualmente (2011; in WIPO, 2014WIPO. World Intellectual Property Indicators. 2014. Disponível em: <http://www.wipo.int/edocs/pubdocs/en/wipo_pub_941_2014.pdf>. (Acessso em: 10 out. 2016) .
http://www.wipo.int/edocs/pubdocs/en/wip...
) no mundo. Comparativamente são responsáveis por 1,3% da produção de documentos científicos citáveis, e 2,7% de artigos em revistas indexadas. Pode-se dizer que os pesquisadores brasileiros (atuando no Brasil) publicam 28 artigos científicos para cada patente registrada. Esse índice é bem menor nos outros países com os quais nos comparamos academicamente: 7 nos Estados Unidos; 8 na China e na Alemanha; 9 na França; e 10 na média dos principais países do Tratado Internacional de Cooperação de Patentes (PCT). Por outro lado, verifica-se que no Brasil uma significativa parcela de registros de invenção e inovação é feita por indivíduos, com uma pequena participação da universidade ou centros governamentais de pesquisa. Essa verificação reforça a hipótese de estratégia inadequada. Apesar dos estímulos governamentais ao setor privado para pesquisa em tecnologia e inovação, permanecemos longe do despertar: na classificação do índice de inovação ficamos na 64a posição, em 2013, segundo o WIPO (https://www.globalinnovationindex.org/.../file/.../gii-2013-cover.), uma posição ainda mais constrangedora que a da classificação no ranque de educação básica (PISA), ou da qualidade do Ensino Superior.

Não é de estranhar o viés acadêmico na pesquisa no Brasil. E ao mesmo tempo, como consequência, o viés na balança comercial: enquanto aumenta nossa exportação de insumos básicos de baixo valor agregado (minérios, petróleo, grãos), reduz-se a de produtos industriais, especialmente os de média e alta base tecnológicas Algumas forçantes podem ser consideradas:

(1) Estado afastado da promoção direta da pesquisa científica aplicada e da pesquisa tecnológica, através de instituições específicas.

Existem cerca de 40 instituições governamentais (federais e estaduais) de P&D, entretanto são sufocados por falta de recursos, pessoal e instalações, utilizando-se de apenas 1% dos recursos públicos de P&D. Destacam-se os resultados da Embrapa, porém ressalta-se o uso de cerca de 12% dos recursos de P&D. Os estaduais têm sido forçados a vender serviços.

Dezenas de “Institutos” de C&T foram criados de forma fictícia pelo CNPq nas universidades, a partir de 2008, porém sem os elementos legais e materiais necessários para dar a capacidade gerencial e operacional e autonomia que caracteriza um instituto. Os centros ou núcleos ou institutos de pesquisa universitários têm um apelo diferente, naturalmente acadêmico, e privilegiam a pesquisa científica básica por questões conjunturais: recursos limitados, emergência de resultados na forma teses, laboratórios de fronteira, foco na publicação e intercâmbio internacional etc. Os esforços de indução e redirecionamento estratégico da missão universitária adicional para as pesquisas aplicadas e tecnológicas não conseguiram alterar essa tendência. Dos quase R$ 100 bilhões investidos em C&T no país em 2013, apenas cerca de R$ 10 bilhões o foram em pesquisa aplicada, classificada como tendo objetivos sociais e/ou econômicos (MCTIC, 2015MCTIC. Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação: Dispêndio nacional em pesquisa e desenvolvimento (P&D), em valores correntes, por setor institucional. Disponível em: <https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/indicadores/arquivos/Indicadores. 2017.pdf>. Acesso em: jul. 2017.
https://www.mctic.gov.br/mctic/export/si...
), descontando-se os recursos investidos em instituições de ensino e sem orientação definida. Desses R$ 10 bilhões, 90% foram utilizados em três áreas: agricultura, desenvolvimento industrial e saúde (Gráfico 1).

Pode-se afirmar que, em decorrência dessa estrutura institucional, os resultados da pesquisa no Brasil são muito mais acadêmicos que em outros países, não resultando em retorno social e econômico, em patentes, por exemplo.

Tabela 1
Produção em documentos científicos (Scimago, 2012SCIMAGO. Scimago Institutions Rankings. 2012. Disponível em: <http://www.scimagoir.com/>.
http://www.scimagoir.com/...
) e patentes registradas (WIPO, 2012) em 2011

(2) A ausência de centros de P&D na indústria, com raras exceções, como Petrobras e Embraer. Apesar das agências de financiamento à P&D terem adotado mecanismos de financiamento e favorecimento da pesquisa científica aplicada e da tecnológica na empresa privada, o sucesso não é o esperado. Na média, as empresas no Brasil aplicam em P&D apenas 0,3% do lucro líquido (p. ex., 2004; MCTIC, 2017MCTIC. Brasil: Dispêndios públicos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), por objetivo. 2015. Disponível em: <http://www.mctic.gov.br/mctic/opencms/indicadores/recursos_aplicados/indicadores_consolidados/2_1_6.html>.
http://www.mctic.gov.br/mctic/opencms/in...
)! Uma seleta fatia de cerca de 300 empresas pequenas e médias chega a empregar até 2% do faturamento em pesquisa científica aplicada e pesquisa tecnológica (Brito Cruz, 2010BRITO CRUZ, C. H. Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil: desafios para o período 2011 a 2015. Interesse Nacional (Jun/2010). Disponível em: <http://www.ifi.unicamp.br/~brito/artigos/CTI-desafios-InteresseNacional-07082010-FINAL.pdf>.
http://www.ifi.unicamp.br/~brito/artigos...
).

O que fazem os doutores no Brasil?

O papel desempenhado pelos doutores no Brasil mostra uma diferença brutal com relação a outros países. A partir de um levantamento do emprego dos doutores formados entre 1996 e 2006, feito na Capes, verificava-se um expressivo predomínio de ocupação no mundo acadêmico (88%), seguido da administração (9%) e indústria (2%) (CGEE, 2010CGEE. Doutores 2010: Estudos da demografia da base técnico-científica brasileira. 2010. Disponível em: <http://www.cgee.org.br/publicacoes/doutores.php>. Acesso em> ago. 2015.
http://www.cgee.org.br/publicacoes/douto...
, Capes, Doutores 2010). Constitui-se num fato revelador da notável distorção – inteiramente descabida para uma nação que necessita desenvolvimento. Com a base de doutores do mesmo período na Capes (cerca de 50 mil, num universo de 200 mil doutores), porém utilizando-se da declaração pessoal de tipo de atividade, os números ficam um pouco diferentes: 76,8% na universidade, 20% na indústria, e 4% na administração. Isso indica uma grande fração de doutores como autônomos, não incluídos nos registros de empregos, a RAIS. Provavelmente reflete os serviços temporários prestados por doutores em universidades e faculdades particulares.

Tem-se verificado uma estabilidade ou mesmo redução do número de pesquisadores em empresas, atualmente da ordem de 26% do total, comparados a 68% nas universidades e apenas 6% em órgãos de pesquisa governamentais.

De qualquer forma, tem sido verificada essa notável discrepância em relação a outros países e comunidades de nações: doutores vão para o mundo acadêmico, reforçando a orientação academicista. Tal orientação, em virtude da liberdade de escolha de temas de investigação e pesquisa científica, acaba privilegiando a pesquisa básica acadêmica, voltada para as próprias demandas da ciência e indagações da academia. Associa-se a essa atratividade do mundo acadêmico a falta de preparo e de oportunidade de atuação no mundo da produção e dos serviços.

Doutores para a pesquisa ou...

A ocupação dos doutores com o ensino nas instituições de Ensino Superior – faculdades, centros e institutos universitários e universidades, em franca expansão no Brasil, com mais de 20 mil cursos – tem sido o resultado da busca do status das instituições universitárias, atendendo a própria legislação nacional, e da oferta de pós-graduação senso lato. A evolução do quadro de docentes no Ensino Superior mostra a duplicação do número de doutores docentes em 12 anos (cerca de 250 mil mestres e doutores; MEC-DEED, 2013MEC-DEED, RESUMO TÉCNICO CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR 2013. INEP, MEC. .pdf. 80p.). Essa é de longe a principal ocupação dos doutores e mestres. Entretanto, nos programas de PG a preparação para atuar como professor e atender os novos desafios do ensino-aprendizagem não está presente.

Discussão

A desmotivação pela pesquisa científica aplicada, pela publicação e pela aplicação prática do conhecimento gerado, além de patentes, estimula uma atuação socialmente alienada do pesquisador e ao mesmo tempo a falta de percepção pela sociedade da importância da pesquisa científica. Na universidade não existem mecanismos de indução para atuação em pesquisa científica aplicada ou pesquisa tecnológica, em vista da dificuldade que esse tipo de pesquisa tem para produzir resultados publicáveis em revistas que atendam o padrão de qualidade classificado pelo próprio mundo científico. Além disso, a pesquisa científica básica – conhecer por conhecer, acadêmica – é mais atraente por seu romantismo, por seu potencial de láureas e seu descompromisso com soluções irreversíveis, imediatas ou próximas para os problemas do mundo real.

Pesquisa induzida – Os mecanismos de indução de pesquisa científica aplicada e tecnológica, de que as agências de financiamento têm se utilizado, tem sido facilmente negligenciados, pois existe uma forte corrente do mundo acadêmico que defende a primazia da pesquisa científica básica, na assunção de que a descoberta de encomenda e a invenção e a inovação dependem de uma disponibilidade prévia de conhecimento científico, que teria de ser gerado sem preocupação com resultados práticos. Tal visão iluminista e acadêmica, desconsiderando que as grandes descobertas do último século já decorreram de demandas dos usuários e não um apelo de progresso científico, dominou a política de financiamento até a década de 1980 no Brasil e ainda domina em países latino-americanos. Tal convicção tem apelo e poder político e está inscrita, incompreensivelmente, na Constituição brasileira em seu artigo 218, Par. 1º: “A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências”! Como explicar essa prioridade constitucional à pesquisa básica?

Essa determinação revela justamente que o desenvolvimento científico de uma nação depende de uma estratégia. A estratégia adotada não conduz ao desenvolvimento científico e tecnológico da sociedade, pois isso é diferente do progresso e desenvolvimento da ciência. Nesse caso – da pesquisa científica básica –, trata-se de resolver os problemas da ciência; no outro, os problemas da sociedade, usando dos recursos do conhecimento científico e tecnológico disponíveis.

Esse viés para a pesquisa básica se traduz na aplicação de recursos: o Brasil aplica uma fração de 60% a 70% dos recursos em P&D na pesquisa básica (Brito Cruz; Chaimovich, 2010BRITO CRUZ, C. H. B.; CHAIMOVICH, H. Brasil. Relatório Unesco sobre ciência. Unesco. 2010, p.35-55.), enquanto em outras nações desenvolvidas essa porcentagem é inferior a 25% (Soete et al. 2015SOETE L.; SCHNEEGANS, S.; ERÖCAL, D.; ANGATHEVAR, B.; RASIAH, R. A world in search of an effective growth strategy. UNESCO Science Report 2030. Paris, 2015.).

Pesquisar para publicar – Publicam-se ao todo 17 mil documentos científicos (OECD, 2011OECD. Publications. OECD.org., 2011. Disponível em: <http://www.oecd.org/publications/>. Acesso em: set. 2012.
http://www.oecd.org/publications/...
) de origem brasileira. Isso corresponderia à obra esperada de 17 mil pesquisadores, para 140 mil pesquisadores no Brasil (MCTI, 2012). Entretanto, temos 115 mil doutores atuando nas instituições de Ensino Superior, considerando apenas os formados entre 1996 e 2006, no auge de sua produtividade. Por outro lado, 28 mil grupos de pesquisa são registrados no CNPq (2010CNPq. Censos realizados - Plataforma Lattes - CNPq., 2010. Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/web/dgp/censos-realizados/>. Acesso em: nov. 2017.
http://lattes.cnpq.br/web/dgp/censos-rea...
, MEC, 2012)MEC. Formação dos professores nas instituições de ensino superior públicas: DESENVOLVIMENTO, APRIMORAMENTO E CONSOLIDAÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO NACIONAL DE QUALIDADE. 2012. Portal do MEC Disponível em: <.http://portal.mec.gov.br>.
http://portal.mec.gov.br...
. Assim, esperar-se-ia uma produção científica muito maior que a atual, mesmo considerando que houve uma variação positiva significativa nos últimos sete anos. Certamente são gerados cerca de 50 mil documentos em ciência e inovação por ano no país, tendo em vista que foram formados mais de 15 mil doutores e de 40 mil mestres por ano. Deveríamos esperar um melhor aproveitamento desse material em termos de publicações técnicas e científicas e resultados práticos.

A corrida estimulada para a pesquisa científica e a publicação gerou a síndrome “publish or perish”, que levou à duplicação das revistas com revisão pelos pares a cada 10 anos, alcançando 25 mil títulos indexados em 2009 (Vajou, 2014VAJOU, M. La publicatión scientifique: une industrie et un écosystème en mutation. Seminaire SCiScl-OST, 29/set/2014. 2014.). Metade das revistas científicas é objeto de negócio, com fins lucrativos. A indústria editorial científica implantou uma especialização editorial, com busca de eficiência, qualidade, periodicidade e rapidez, com ampla divulgação mesmo na mídia comum, acompanhada de exigências mais severas de qualidade e edição. Nesse mercado, sistemas de quantificação e qualificação da produção científica foram implantados por empresas internacionais, com a inevitável comparação internacional de produtividade. O pobre mercado brasileiro se alinhou a essa corrida.

Gráfico 3
Gráfico comparativo mostrando os setores de atuação dos doutores pesquisadores: (A) Nas universidades brasileiras, quase tantos doutores quanto nas americanas; (B) A pequena fração de doutores na indústria e em centros de pesquisa governamentais e sua concentração nas universidades. (Dados: http://www.keepeek.com/Digital-Asset-Management/oecd/education/education-at-a-glance-2010/).

Gráfico 4
(A) Dispêndio em PPA$ (paridade de poder aquisitivo, dólar de 2008), em C&T por artigo publicado (dados referentes a 2008: www.ocde.org e SCI, www.scimagojr.com/countryrank.php). (B) Recursos aplicados em P&D por pesquisador em diferentes nações, revelando uma situação bastante favorável para o brasileiro (PPA$, valor paritário comparado ao do dólar de 2005) (fonte dos dados: Unesco, 2015).

Ao mesmo tempo em que essa comparação internacional mostrava caminhos para os países novos em P&D, facilitava a identificação de fragilidades e desvios, favorecia também a busca de temas de interesse internacional, na fronteira da ciência e resultados geradores de manchetes; exigia dados novos, fornecidos por laboratórios e equipamentos na fronteira da modernidade, mesmo que em prejuízo de ideias inovadoras e sustentáveis; provocava uma busca de meios para alcançar índices mais favoráveis, multiplicando os artigos e os autores e ao mesmo tempo a autocitação. Os usuários desse sistema de publicações científicas sustentavam um mercado de 23 bilhões de dólares (2011) e uma indústria de lucros fabulosos (até 35% sobre o capital), com crescimento de 10% ao ano (Vajou, 2014VAJOU, M. La publicatión scientifique: une industrie et un écosystème en mutation. Seminaire SCiScl-OST, 29/set/2014. 2014.).

A consequência mais discriminadora foi o estabelecimento de índices nacionais de qualificação das revistas e também parâmetros para os índices de produtividade e citação dos pesquisadores, o que demanda publicar em inglês e em revistas de elevada circulação internacional. Como consequência, ocorreu um natural desinteresse pelos editores e publicações nacionais e institucionais, reduzindo também a possibilidade de publicar artigos não compatíveis com o padrão internacional, e com contribuição científica de interesse regional.

As exigências de qualidade, as pesquisas de fronteira e as dificuldades de publicação em língua inglesa e em revistas indexadas tornaram mais reduzida proporcionalmente nossa produção científica. Certamente ocorreu nesse período de mudanças uma imensurável parcela de resultados científicos perdidos, por sua incompatibilidade com os novos padrões internacionais. Porém, ao se supervalorizar esse tipo de publicação internacionalizada e indexada, como é exigido em certas avaliações nacionais, e considerar o dispêndio total de recursos públicos e o número de artigos em revistas indexadas, comparativamente a outras nações (Gráfico 2) deparamos com nova contradição: elevado o custo de nossa contribuição científica medido pelas publicações: 300 mil dólares por artigo, superior às nações ricas, com as quais nos comparamos em produção científica (OECD, 2010OECD,. Publications. OECD.org. 2010. Disponível em: <http://www.oecd.org/publications/>. Acesso em: jul. 2011.
http://www.oecd.org/publications/...
; SCI, 2008SCI. Science Citation Edition for 2008., 2008. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/>. Acesso em: 2010.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
).

Para evitar significativa perda de documentos que não alcançam as revistas indexadas, emerge uma promissora alternativa aos pesquisadores: utilizarem-se adicionalmente de repositórios institucionais, os quais já adquiriram padronização e status internacionais.

Pesquisa para a academia? – Diferentemente do Brasil, a participação da indústria na ocupação dos pesquisadores é grande nos países desenvolvidos, ficando um número relativamente pequeno na atuação nas universidades. Apesar de termos no Brasil apenas um sexto do número de doutores pesquisadores dos Estados Unidos, temos quase o mesmo número de doutores atuando em universidades (110 para 125 mil). A questão é emblemática e ressalta o academicismo brasileiro, uma vez que no meio acadêmico a pesquisa não se torna instrumento de políticas públicas, como seria esperado nos centros governamentais de pesquisa. O excepcional contingente de doutores nos centros universitários encontra dificuldades de se preparar para a pesquisa.

Apesar da instabilidade e flutuação na disponibilidade de recursos para P&D, os pesquisadores brasileiros dispõem de fração invejável dos recursos quando comparado com outros países (Gráfico 3), em situação melhor que muitas outras nações como Coreia do Sul, França ou Reino Unido. A relação é compatível com a das publicações e revela um aspecto exótico da atividade científica e da formação de pesquisadores no Brasil, quando comparado ao de outras nações desenvolvidas: uma elevada concentração de recursos naqueles setores, pesquisadores e grupos de pesquisa de maior sucesso internacional. Em si, do ponto de vista da própria evolução da produção de conhecimento, o fenômeno é louvável. Porém, do ponto de vista do custo-benefício para a sociedade que o financia, esse processo não é justificável. Os resultados, enquanto ganhos na melhora na qualidade de vida ou no usufruto desse processo, são significativos? Não caberia à própria comunidade científica avaliar o mérito extrínseco desse processo, ou seja, fora da academia?

A carreira acadêmica no Brasil valoriza acentuadamente o título de doutor, independentemente de sua competência ou função de pesquisador e professor, ou a especialidade. Essa valorização se faz tanto pelo acréscimo no valor pecuniário da hora de serviço e do salário como na avaliação de mérito da instituição ou curso. Como exemplo, muitos cursos técnicos, mesmo de nível médio, dão preferência para contratação de doutores, mesmo que sua formação se distancie do propósito do curso e que não haja qualquer perspectiva de pesquisa em sua área de formação. O título de doutor cria um diferencial de prioridade e de salário tão elevados, que o torna um fim em si mesmo.

Esse viés é ao mesmo tempo forçante e resultante da prática e da política científica e tecnológica do país, ao tratar-se do perfil dos programas de pós-graduação. Vimos que mais de três quartos dos doutores brasileiros estão atuando no Ensino Superior, diferentemente do que ocorre na maioria das nações. Entretanto, nos programas de doutorado não estão incluídas disciplinas ou práticas formadoras de professores, especialmente tendo em vista o quadro de mudanças dramáticas nos processos de ensino-aprendizagem na sociedade do conhecimento, onde o professor não é mais aquele que detém o conhecimento e ensina, não é mais o referencial do saber, a quem o aluno recorre para receber transferências discursivas, orais ou escritas. A formação desse novo professor – o líder, o orientador, o motivador, aquele que conhece os caminhos da aprendizagem e vai conduzir seus estudantes neste caminho –, essa formação não está abrangida pela formação de doutores, os futuros professores e formadores de professores.

Os diversos programas restringem-se ao aprofundamento da graduação e à reprodução extensiva de pesquisas já realizadas, indiferentemente do objetivo epistemológico da descoberta científica ou invenção tecnológica. Identificar os gaps no conhecimento e na sua aplicação e transformá-los em problemas científicos ou tecnológicos é o primeiro passo na formulação de projetos de pesquisa científica básica e aplicada e tecnológica. Lembra-nos Goethe: “Não basta saber, é preciso aplicar, não basta querer, é preciso fazer”.

A pesquisa científica aplicada não se refere à pesquisa operacional, de simples aplicação do conhecimento, mas de pesquisa científica cujo objetivo não se limita ao progresso científico, mas sim resolver um problema – não interno da ciência, mas externo, do mundo real, da sociedade e de seu ambiente –, porém que demanda conhecimento científico novo. Consecutivamente ocorre associado o progresso científico, porém, ao mesmo tempo ou antecipadamente, ocorrerá um benefício para a sociedade que o financia. É uma questão de escolha de problemas e de métodos. Fazemos parte de uma sociedade pobre e cheia de sequelas e carências, muito mais extensivas e severas que aquelas das sociedades com as quais nos comparamos em termos de ciência. Consequentemente, a pesquisa científica aplicada e o desenvolvimento tecnológico e social, voltados para a solução de problemas característicos da nossa fase de inserção no mundo globalizado, merecem ser prioridades nacionais e dos centros de pesquisa, principalmente os de excelência.

Certamente não faltou reconhecimento dessas prioridades em níveis de governança do país e de sociedades científicas, como a criação, há duas décadas, dos fundos setoriais para desenvolvimento científico e tecnológico (energia, água, petróleo, ambiente etc.), incubadoras, lei da inovação, marco regulatório de C&T. Porém falta interesse das instituições empresariais – que apostam na importação e economia de custos, e vêm a pesquisa científica como de interesse apenas acadêmico; falta a criação de fato e o fortalecimento dos centros governamentais, com recursos orçamentários próprios, como centros de pesquisas aplicadas, diferentemente dos núcleos universitários, os quais buscam índices acadêmicos para a própria promoção.

O crescimento na formação de doutores desde a década de 1990 tem sido expressivo. Destacam-se as áreas de humanidades, de agropecuária e de multidisciplinaridade, com 15% de crescimento anual. Áreas como engenharias, medicina e ciências da natureza tiveram menor crescimento (10%), embora ainda significativo. Pode-se dizer que justamente as áreas geradoras de tecnologias físicas têm tido o menor crescimento. Entretanto, os ganhos em mudanças na educação e no entendimento e equacionamento dos dramas sociais, em inclusão, em política, em economia, em justiça, em gestão pública, em saúde e segurança públicas, não são visíveis; ao contrário, tem-se a percepção, cotejada por índices internacionais, de nos afastarmos cada vez mais das sociedades desenvolvidas, exceto por alguns programas bem-sucedidos de redução da pobreza. Estariam os novos doutores sendo preparados para enfrentar com maior compreensão e competência esses desafios? Para retirar a sociedade brasileira dos índices mais perversos de analfabetismo, de doenças, de violência, de corrupção? Ou ainda, de o país deixar de ser exportador de matéria-prima e importador de tecnologia? Ou estaria priorizando a formação de doutores para aumentar a contribuição brasileira ao progresso da ciência e os nossos índices de publicação?

A instabilidade dos centros autônomos de pesquisa

Por longo tempo e antes da década de 1980, instituições autônomas e públicas de pesquisa científica e tecnológica estaduais e federais desempenharam importante papel no avanço da pesquisa científica aplicada, a exemplo do IPT-SP. Com o domínio da ideologia do Estado mínimo, ocorreu generalizada mudança jurídica, de objetivos e de financiamento, resultando em perda significativa de geração de conhecimento e competências; o foco passou a ser faturamento com aplicação de conhecimento. Núcleos e centros empresariais não ocuparam esse espaço. Restou ser a pesquisa científica feita quase inteiramente nas universidades públicas. Entretanto a universidade encontra dificuldades para contratar pesquisadores. Nas universidades privadas, a pesquisa é restrita, pois não há financiamento público para os dispêndios com pesquisadores e auxiliares, e este não pode ser um custo do estudante.

Por essas razões torna-se relevante a responsabilidade da universidade pública com projetos que resultem em benefícios sociais e econômicos reais e perceptíveis à sociedade. Nos projetos de pesquisa científica, estender a pesquisa até o compromisso de atender as necessidades dos possíveis usuários do conhecimento e não se limitar a preencher um vazio no conhecimento científico e publicar um artigo. Essa demanda tem ocorrido com frequência nos editais de financiamento, porém a própria comunidade acadêmica tem resistido a atender a função social esperada. A universidade necessita assumir com vigor o que Audy (2017)AUDY, J. A inovação, o desenvolvimento e o papel da Universidade. Estudos Avançados, v.31, n.90, p.75-87, 2017. Disponível em: <https://dx.doi.org/10.1590/s0103-40142017.3190005>.
https://dx.doi.org/10.1590/s0103-4014201...
chamou de a “Terceira missão e a atuação como vetor de desenvolvimento econômico e social”.

Deve ser ainda considerado que existe disponível um elevado estoque de conhecimento científico a ser apropriado pelos países em desenvolvimento (Unesco, 2015UNESCO, 2015. UNESCO science report, towards 2030: executive summary. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002354/235407e.pdf>.
http://unesdoc.unesco.org/images/0023/00...
); e que há um distanciamento grande entre a capacidade científica e tecnológica dos países desenvolvidos e daqueles em desenvolvimento: somente os Estados Unidos investem um terço de todos os recursos globais aplicados em pesquisas científicas e tecnológicas. Ou seja, o potencial de contribuição para o progresso da ciência é pequeno, porém o potencial de apropriação adequação e aproveitamento do conhecimento disponível na qualidade de vida é elevado.

Conclusões

É frágil o debate sobre o papel da pesquisa científica em uma sociedade financeiramente pobre e social e culturalmente cheia de carências. Entretanto, a maior responsabilidade social do professor pesquisador pode representar uma grande diferença tanto em seu próprio campo de ação como na maior participação no debate político, aproximando a política científica e tecnológica da ordem das demandas e das políticas públicas e das perspectivas de futuro da sociedade.

O desenvolvimento excepcional nas duas últimas décadas da infraestrutura científica, em paralelo com a pós-graduação, coloca a ciência brasileira em posição confortável entre os países desenvolvidos. Destoa desse quadro exitoso a condição de pobreza e carências generalizadas na sociedade brasileira.

A sociedade tem que estar preparada para se beneficiar do progresso e ao mesmo tempo valorizá-lo, distinguindo o que é quinquilharia e consumismo do que é qualidade de vida sustentável. Isso significa um papel mais objetivo na formação de professores, especialmente em cursos de pós-graduação. Uma sociedade dominada pela alienação científica e tecnológica é incapaz de reconhecer o valor do conhecimento e das novas formas de lidar com os problemas novos e gigantescos, fazendo apenas a opção fácil pelos meios modernos de se divertir e se alienar mais.

Volume significativo de recursos é usado em importantes projetos de pesquisa, situando a produção científica brasileira em níveis internacionais. Entretanto, parece pouco inovadora, pouco criativa e muito reprodutiva de padrões e temas academicistas; é notável a ausência de esforços disseminados para fortalecer a pesquisa científica aplicada, mais que a pesquisa básica, preferência que é frustrada na própria Constituição brasileira. Não valoriza a transformação da descoberta científica, parte do elevado estoque de conhecimento disponível, em conhecimento aplicado que possa ser objeto de uso disseminado na ação social e ambiental e na investigação tecnológica.

Embora os índices sejam importantes mensuradores da produtividade e desempenho de um grupo de pesquisas, não refletem o principal objetivo na pesquisa científica e tecnológica que poderia ser seu uso e aplicação para a melhor qualidade de vida da sociedade que a financia, além da necessária publicação dos resultados. Uma sociedade na qual o conhecimento científico e tecnológico, até mesmo a própria leitura, é pouco presente em sua cultura tem dificuldades em receber e fazer uso dos avanços científicos e tecnológicos, razão pela qual ocorre uma defasagem entre o que a pesquisa científica gera e o que pode ser aproveitado socialmente.

A carência de instituições dedicadas à pesquisa aplicada, tanto federais como estaduais, tornou a pesquisa aplicada subsidiária no Brasil, deixando o país de se beneficiar do elevado estoque de conhecimento disponível, para privilegiar a geração não competitiva de conhecimento novo, com um custo excessivo para uma sociedade cheia de problemas e carências. Como principal sede de conhecimento, competência e pesquisas, resta à universidade oferecer à sociedade que a financia o retorno social de suas pesquisas.

Verifica-se que a pesquisa científica nacional, em seus objetivos, aparece bastante desvinculada dos problemas reais da nação. Comparativamente a outras nações, pesquisa-se principalmente para resolver problemas e interrogações da própria ciência, a pesquisa acadêmica. Essa é uma tendência projetada pela nossa herança cultural. As próprias referências temáticas são importadas. Destaca-se, como exemplo de superação, o sucesso da pesquisa brasileira na agropecuária, tanto em termos estratégicos, de resultados científicos, tecnológicos e práticos, como de publicações científicas. Em algumas ciências, como nas geociências e nas ciências sociais e tecnologias, temas regionais podem ser mais importantes, embora a regionalidade não implique limitação científica em virtude de seu potencial de extensão ao mundo globalizado. Nota-se, entretanto, que essas mesmas ciências, com foco regional, são quase ausentes tanto no ensino básico como nos cursos de graduação.

Uma aliança entre a pesquisa científica e a preparação para a ciência demanda trazer o conhecimento científico para o mundo real dos estudantes; não o contrário. Para isso os pesquisadores e professores ficam diante do desafio de abordar os problemas reais da sociedade e transformá-los em objetivos da pesquisa científica e tecnológica; um compromisso da pesquisa científica em gerar conhecimento não apenas para a própria ciência, mas em paralelo estender o conhecimento até a solução para problemas reais da sociedade.

O alcance de resultados científicos, mais contributivos para o conhecimento e socialmente relevantes, depende de uma maior compreensão por parte de estudantes, professores e pesquisadores dos objetivos, dos métodos e meios da pesquisa científica, de forma a transformar problemas reais em problema científico e incluir entre os objetivos as soluções para os problemas reais.

O maior desafio é a motivação e transformação de professores, estudantes, profissionais e doutores para trazer e se apropriar na prática do estoque de conhecimento científico e tecnológico existente e aplicável ao cotidiano, até os laboratórios escolares, estúdios, gabinetes, empresas e centros de pesquisa. Para não perder a excelência conquistada, parece necessário enraizar os ganhos com as pesquisas aplicadas, nos novos ambientes de organização institucional, técnica, social e econômica, na solução dos problemas da sociedade que a financia, disseminando a pesquisa científica e tecnológica com foco na relevância social.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2017
  • Aceito
    08 Fev 2018
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