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O RACISMO COMO HISTÓRIA-SÍNTESE: YNAÊ LOPES E A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL

RACISM AS HISTORY-SYNTHESIS: YNAÊ LOPES AND THE INTERPRETATION OF BRAZIL

EL RACISMO COMO HISTORIA-SÍNTESIS: YNAÊ LOPES Y LA INTERPRETACIÓN DE BRASIL

LOPES, Ynaê. . Racismo brasileiro: uma história da formação do país . São Paulo: Todavia, 2022.

Nesta resenha, pretendo apresentar criticamente o livro Racismo Brasileiro: uma história da formação do país, escrito por Ynaê Lopes, a partir das suas relações com a tradição do ensaísmo histórico-sociológico brasileiro e sua leitura antirracista das relações sociais e da história do país. Ynaê Lopes é historiadora com doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) com larga experiência no ensino de História e no estudo das relações étnico-raciais nas Américas.

Em texto clássico sobre o ensaio, Adorno (2003ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.) definiu esse estilo de escrita como um pêndulo entre a arte e a ciência que conviveria com especial propensão integradora, ao mesmo tempo em que, necessariamente imperfeita e inacabada, resultaria em uma síntese cambiante, um amálgama entre a ordem dos fatos e a ordem dos conceitos. Essa insinuação para a síntese do ensaio seria o movimento que perpetuaria o seu voo ao infinito. Outra característica fundamental do ensaio, seguindo os passos de Adorno, é que o ensaio atuaria no calor do momento, na contemporaneidade explícita do pensamento e do diálogo que o ensaísta necessita efetuar. Assim, “a atualidade do ensaio é anacrônica. A hora lhe é mais desfavorável do que nunca” (ADORNO, 2003ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 44).

Na tradição brasileira, autores como Antônio Candido (2006CANDIDO, Antônio. A Sociologia no Brasil. Tempo Social, USP, v. 18, n. 1, p. 271-301, 2006. <https://doi.org/10.1590/S0103-20702006000100015>
https://doi.org/10.1590/S0103-2070200600...
), Afrânio Coutinho (1997COUTINHO, Afrânio. Ensaio e Crônica. In: COUTINHO, Afrânio. (Dir.) A Literatura no Brasil. vol. 6, Rio de Janeiro: Global, p. 117-143, 1997.) e Florestan Fernandes (1977FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977.) já chamaram a atenção para a constituição de uma tradição ensaística no país, em especial, em sua matriz histórico-sociológica. Cronologicamente, tal matriz está situada entre o final do século XIX e meados do século XX. Nas florações dessa tradição ensaística, os elementos da sociedade brasileira em seu período colonial ainda se fariam presentes, impedindo a consolidação plena de instituições políticas e valores da modernidade ocidental clássica (VIANNA, 1997VIANNA, Luiz Wenerck. A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997.). Nesses ensaios, encontra-se a ideia de que no Brasil contemporâneo a eles, Estado, economia e sociedade civil jamais teriam sido capazes de se diferenciar plenamente e, dessa forma, de se dinamizar a partir de lógicas e códigos próprios (BOTELHO, 2007BOTELHO, André. Sequências de uma sociologia política brasileira. Dados, Rio de Janeiro, v. 50, n. 1, 2007. <https://doi.org/10.1590/S0011-52582007000100003>
https://doi.org/10.1590/S0011-5258200700...
; TAVOLARO, 2005TAVOLARO, Sergio. Existe uma Modernidade Brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, p. 5-22, 2005. < https://doi.org/ 10.1590/S0102-69092005000300001>
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200500...
). Conceitos como patrimonialismo, clientelismo, patriarcalismo, familismo, agnatismo, entre outros, foram mobilizados para explicar a formação da sociedade brasileira. Aliás, Antônio Candido (2006) ainda advertiria para os títulos e subtítulos das obras ensaísticas publicadas no Brasil entre os anos 1920-1940, muitos deles passando exatamente essa ideia de formação - uma espécie de literatura da formação da sociedade brasileira.

Não menos fundamentais são os textos contra-hegemônicos do ensaísmo brasileiro saídos da lavra de intérpretes negros e negras do país. Autores como Abdias do Nascimento (1978NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.), Clóvis Moura (1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.), Beatriz Nascimento (2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2021.) e Lélia Gonzalez (1983GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, Luiz Antônio Machado et al. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília: ANPOCS, 1983.) utilizaram do ensaísmo e da sua capacidade de síntese para interpretar os fundamentos da sociedade brasileira na longa duração, mas com uma diferença fundamental da tradição ensaística predominante nos anos 1920-1940: o amálgama entre a ordem dos fatos e a ordem dos conceitos se estabeleceria pelo entendimento do racismo como elemento estruturante e estruturador da interpretação do Brasil. Nessa linhagem de interpretações negras do Brasil, nos temas das relações raciais ou “questão racial”, estariam o uso recorrente de termos como empoderamento, ancestralidade, militância, ativismo, protagonismo, luta e resistências. É nessa leitura contra-hegemônica da interpretação tradicional da história brasileira que se situa o livro de Ynaê Lopes, Racismo brasileiro: uma história da formação do país. Seu texto está dividido em três partes, que seguem as habituais divisões realizadas pela historiografia: Colônia, Império e República. Porém, adota uma perspectiva crítica do oficialismo dos grandes heróis e de uma história das elites, sendo na verdade, uma história “vista de baixo”.

A parte I, A Colônia, conta com os seguintes capítulos: a) Os fortes portugueses que navegam; b) Os negros da terra e os negros na terra; c) Corpo na América, alma na África; e d) Mestiçagem. O Império do Brasil, parte II, reúne os capítulos: a) Luzes, raça e escravidão no mundo em revolução; b) A soberania brasileira e a escolha pela escravidão; c) O Império do Brasil e sua paz ilegal e escravista; e d) Abolicionismos e racismos no Brasil escravocrata. Por fim, a última parte do livro, A República, contém os capítulos: a) A Primeira República e sua arquitetura da exclusão; b) Brasil, meu Brasil brasileiro; c) Ditadura militar e a aposta violenta na falsa democracia racial; e d) A carne mais barata do mercado é a carne negra.

Como se depreende dos capítulos, a análise de Ynaê Lopes focaliza as escolhas políticas que referendaram e constituíram o racismo ao longo do tempo, observando o processo paulatino de exclusões e violências que deitaram raízes desde a Colônia e que se fazem presentes até hoje. As grandes perguntas a serem respondidas, segundo a autora, são: como se estrutura o racismo ao longo da história? Quem promove o racismo no Brasil? E a quem interessa que se mantenha operante?

Resumindo o argumento, o racismo seria, desde as origens da colonização portuguesa na América, o dispositivo hierárquico de distribuição do poder e impeditivo da igualdade, constituindo-se na Colônia em um sistema de classificação fenotípica e social cujos fundamentos, religiosos e políticos, permitiram não só o ordenamento entre portugueses, indígenas e cativos importados, mas dos seus descendentes miscigenados, “filhos da terra”. O racismo engendrou o processo de violência da expropriação territorial e o extermínio dos modos de vida dos povos originários. As ações sociais contra-hegemônicas estariam nos agenciamentos coletivos das rebeliões e do quilombismo, no campo político-social, enquanto no campo cultural as resistências se localizariam no hibridismo e nas reinvenções culturais.

A escolha feita pelas elites no processo de Independência e ao longo do século XIX introduziria nova concepção de racismo pautada pela noção biologizante de raça. A formação do Estado-nação brasileiro se conectaria à era das revoluções através da Revolução Haitiana e de seus impactos sobre o continente americano, por um lado, e, pelo outro, pelo Iluminismo e suas concepções filosóficas de igualdade e liberdade. No caso brasileiro, resultaria enquanto ideologia a associação entre liberalismo e escravismo em uma conformação social estamental e rígida hierarquicamente. As ações sociais contra-hegemônicas estariam localizadas no abolicionismo como movimento social.

Na República, mais uma vez, processo político ausente de povo, o racismo explícito convertera-se para conviver com o republicanismo nas teorias de branqueamento da população que marcaram a Primeira República, no mito da democracia racial do período varguista, na repressão autoritária aos movimentos populares do regime civil-militar e na negação do racismo como política de Estado. Ao longo do século XX, a resistência popular se fez presente denunciando as diferentes formas de discriminação, ampliando os direitos sociais, reatualizando as práticas culturais e estabelecendo novos pactos sociais e políticos, como os direitos trabalhistas, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a caracterização do racismo como crime inafiançável, as cotas raciais na educação superior e no serviço público, configurando, enfim, ampla agenda antirracista centrada na mobilização de negros, negras e indígenas.

Cronologicamente, o livro adota a perspectiva da longa duração e a autora possui notável domínio historiográfico e capacidade de sinopse da história brasileira. É um livro de fácil leitura, sem academicismos ou vícios de cientificismo, e feito para alcançar público mais amplo, destinado a romper os muros invisíveis das universidades e centros de pesquisa. Constitui, portanto, excelente material de apoio e suporte na preparação de aulas e no ensino de História e Sociologia, tanto no Ensino Médio, quanto nos primeiros contatos bibliográficos com a historiografia brasileira. Entretanto, o livro não foi pensado a ser leitura prazerosa ou diletante. Muito pelo contrário, a intenção da autora é causar desconforto e incômodo. Se o racismo é um sistema de poder e de opressão historicamente construído, esse sentimento de desconforto e incômodo pode ser uma das formas de exercitarmos a construção de um mundo sem racismo. Afinal, como lembra Ynaê Lopes, uma postura antirracista não é um lugar a ser alcançado, senão o próprio caminho a ser trilhado.

Em suma, o livro de Ynaê Lopes se enquadra em uma tradição de pensamento e da formação de uma consciência histórico-sociológica na qual, mais do que simplesmente relacionar poder e sociedade, se ambiciona especificar os fundamentos e a dinâmica social do racismo brasileiro. Seria através desse tipo de ensaio que se ganharia inteligibilidade a tendência a relacionar aquisição, distribuição e organização do poder a uma estrutura social hierarquizada racialmente. Em seu ensaio histórico-sociológico, Ynaê Lopes concebe o racismo na longa duração (GUIMARÃES, 2023GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Racismo brasileiro na longa duração. Afro-Ásia, Salvador, n. 66, p. 694-703, 2023. <https://doi.org/10.9771/aa.v0i66.52090>
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). O racismo, portanto, seria a história-síntese do Brasil. Mas, como nos lembra Adorno (2003ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 44), “a atualidade do ensaio é anacrônica. A hora lhe é mais desfavorável do que nunca”.

REFERÊNCIAS

  • ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I São Paulo: Editora 34, 2003.
  • BOTELHO, André. Sequências de uma sociologia política brasileira. Dados, Rio de Janeiro, v. 50, n. 1, 2007. <https://doi.org/10.1590/S0011-52582007000100003>
    » https://doi.org/10.1590/S0011-52582007000100003
  • CANDIDO, Antônio. A Sociologia no Brasil. Tempo Social, USP, v. 18, n. 1, p. 271-301, 2006. <https://doi.org/10.1590/S0103-20702006000100015>
    » https://doi.org/10.1590/S0103-20702006000100015
  • COUTINHO, Afrânio. Ensaio e Crônica. In: COUTINHO, Afrânio. (Dir.) A Literatura no Brasil vol. 6, Rio de Janeiro: Global, p. 117-143, 1997.
  • FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977.
  • GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, Luiz Antônio Machado et al Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos Brasília: ANPOCS, 1983.
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Racismo brasileiro na longa duração. Afro-Ásia, Salvador, n. 66, p. 694-703, 2023. <https://doi.org/10.9771/aa.v0i66.52090>
    » https://doi.org/10.9771/aa.v0i66.52090
  • LOPES, Ynaê. Racismo brasileiro: uma história da formação do país São Paulo: Todavia, 2022.
  • MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro São Paulo: Editora Anita, 1994.
  • NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
  • NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2021.
  • TAVOLARO, Sergio. Existe uma Modernidade Brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, p. 5-22, 2005. < https://doi.org/ 10.1590/S0102-69092005000300001>
    » https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000300001
  • VIANNA, Luiz Wenerck. A Revolução Passiva: iberismo e americanismo no Brasil Rio de Janeiro: Revan, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2023
  • Aceito
    24 Abr 2023
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