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“ARQUIVAR A PRÓPRIA VIDA” 25 ANOS DEPOIS: DIÁLOGOS COM PHILIPPE ARTIÈRES

« Archiver as propre » vie 25 ans après : dialogues avec Philippe Artières

“Arquivar a própria vida” 25 years later: dialogues with Philippe Artières

Resumo

Este artigo pretende estabelecer diálogos entre as reflexões de Philippe Artières (1998)ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998. no ensaio “Arquivar a própria vida”, com questões teórico-críticas dos estudos literários e do trabalho com acervos de escritores. As práticas de arquivamento podem ser acessadas a posteriori na condição de rastros dos escritores, por meio da ordem dos fundos e dos discursos produzidos pelos titulares e pelos arcontes. Documentos dos acervos literários Ildásio Tavares e Judith Grossmann são analisados, a partir das imagens teóricas do rastro, traço e da sobrevivência, inseridas no paradigma indiciário da crítica biográfica, na condição de a posteriori, proposta pela psicanálise.

Palavras-chave:
Arquivos pessoais; Práticas de arquivamento; Ildásio Tavares; Judith Grossmann

Résumé

Cet article vise à établir des dialogues entre les réflexions de Philippe Artières (1998)ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998. dans l’essai « Archiver sa propre vie », avec les questions théorico-critiques des études littéraires et le travail sur les fonds d’écrivains. Les pratiques archivistiques sont accessibles a posteriori dans l’état des traces d’écrivains, à travers l’ordre des fonds et les discours produits par les détenteurs et les Archontes. Les documents des collections littéraires Ildásio Tavares et Judith Grossmann sont analysés à partir des images théoriques de la « trace », « piste » et de la « survie », insérées dans le paradigme indicatif de la critique biographique, dans la condition d’a posteriori proposée par la psychanalyse.

Mots-clés:
Archives personnelles; Pratiques archivistiques; Ildásio Tavares; Judith Grossmann

Abstract

This article aims to establish dialogues between the reflections of Philippe Artières (1998)ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998. in the essay “Arquivar a própria vida”, with theoretical-critical questions of literary studies and work with collections of writers. Archival practices can be accessed a posteriori in the condition of traces of the writers, through the order of the funds and the speeches produced by the owners and the Arcontes. Documents from the literary collections Ildásio Tavares and Judith Grossmann are analyzed, from the theoretical images of the trail, trace and survival, inserted in the indicial paradigm of biographical criticism, as a posteriori, proposed by psychoanalysis.

Keywords:
Personal files; Archival practices; Ildásio Tavares; Judith Grossmann

De todas as coisas, as mais queridas

Por mim são as usadas

Bertolt Brecht (2019 [1924-1933]BRECHT, B. Berlim [1924-1933]. In: BRECHT, B. Poesia. São Paulo: Perspectiva, 2019.: 249),

De todas as coisas [ Von allen Werken]

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por

admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Antonio Cícero (1997CÍCERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1997.: 11),

Guardar

Em 1998, foi publicado o número 21 da Revista Estudos Históricos com o tema “Arquivos Pessoais”, reunindo o trabalho de pesquisadores nacionais e estrangeiros, por ocasião do seminário comemorativo aos 25 anos de criação do Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Tendo a instituição completado em 2023 o seu cinquentenário, aprecio as coincidências que giram em torno disso, resgatando um trecho do texto de apresentação daquele número por Priscila Fraiz: “No caso de uma instituição acadêmica como o CPDOC, criada e durante os primeiros anos conduzida pelo dinamismo de jovens pesquisadores — à época mais ou menos com a idade que hoje se comemora -, as razões para celebrar são de certa maneira evidentes” ( Fraiz, 1998aFRAIZ, P. CPDOC: 25 anos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 3-9, 1998a.: 3). Se, naquela época, o CPDOC beirava os seus 25 anos, aliás, idade média dos seus primeiros idealizadores, hoje, 25 anos depois, proponho uma reflexão quanto à repercussão da revista, ainda com os meus vinte e tantos.

A publicação logo se tornou uma referência incontornável para quem desenvolve atividades de pesquisa e organização de arquivos pessoais, considerando-se a “novidade” de algumas posições teóricas e metodológicas ali disponibilizadas em língua portuguesa para os leitores brasileiros. Neste texto, gostaria de dialogar, particularmente, com o ensaio “Arquivar a própria vida”, do historiador Philippe Artières (1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.), observando a pertinência das questões desenvolvidas acerca das práticas de arquivamento e a interlocução com reflexões que, dos anos 1990 para cá, se destacaram, sobretudo, nos estudos da literatura e dos acervos de escritores. Artières menciona três forças que motivam as pessoas a arquivarem a própria vida: a injunção social das instituições perante as quais nos tornamos cidadãos em posse de determinados documentos indicativos da nossa existência pública e privada; as práticas de arquivamento, que fazem parte da relação cotidiana de cada pessoa com os seus documentos ao estabelecerem os rituais de seleção e organização da própria vida documental; e a intenção autobiográfica, por meio da qual nos arquivamos para narrar a nossa vida e legar à posteridade uma imagem documental de nós mesmos.

Artières situa o arquivamento da própria vida na sucessão das várias técnicas de si com as quais o sujeito ocidental, desde a Antiguidade, produz a própria identidade, colecionando na vastidão do logos um conjunto de discursos, pensamentos e reflexões que lhe servisse de aparato discursivo para uma boa conduta. Tendo como ponto de partida o conhecido estudo de Michel Foucault sobre o desenvolvimento das formas de produção da subjetividade no Ocidente 1 1 Embora o tema seja trabalhado em mais uma obra de Michel Foucault, podemos citar a compilação do curso no Collège de France, entre 1981-1982. Cf. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, 2006. , o historiador argumenta que a variada paisagem dos arquivos pessoais, como, caixas de documentos, álbuns de fotografias, diários, cadernos de anotações e pastas classificadoras, tornam-se dispositivos por meio dos quais “fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 11). Diante da impossibilidade de tudo guardar — ao contrário de Funes, o memorioso, personagem que nada pode esquecer ( Borges, 2007BORGES, J. L. Funes, o memorioso. In: BORGES, J. L. Ficções (1944). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.) — a montagem dos arquivos pessoais precisa equacionar critérios de seleção e exclusão, conservação e descarte, particulares às condições da produção documental.

Nos anos 1990, observava-se a mudança do estatuto do arquivo nas ciências humanas, deixando de ser considerado um depósito de documentos acumulados no desempenho de uma atividade pessoal ou institucional. Com essa virada arquivística ( Eichhorn, 2013EICHHORN, K. The Archival Turn in Feminism: Outrage in Order. Philadelphia: Temple University Press, 2013.; Stoler, 2002STOLER, A. L. Colonial Archives and the Arts of Governance. Archival Science, London, n. 2, p. 87-109, 2002.), eram revisitadas as fontes documentais e os acervos das instituições, fazendo emergir as vozes soterradas, os sujeitos subalternizados e as narrativas historicamente apagadas do cânone oficial. Motivo pelo qual Kate Eichhorn e Ann Laura Stoler situam a virada arquivística no contexto da agenda política e acadêmica dos estudos pós-coloniais e dos estudos de gênero e sexualidade. Uma segunda tendência que ganhava força era a guinada subjetiva ( Arfuch, 2010ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.; Sarlo, 2007SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.) ou virada biográfica ( Dosse, 2015DOSSE, F. O desafio biográfico: Escrever uma Vida. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2015.) nos estudos universitários e nas produções artísticas em diversas linguagens. O interesse pelas histórias de vida, na perspectiva daqueles que presenciaram o passado, a valorização do testemunho autobiográfico e a produção dos discursos memorialistas das pessoas e das coletividades foram acompanhados, na indústria cultural, pela proliferação de biografias, autobiografias, diários, autoficções, junto com o sucesso midiático de entrevistas, documentários biográficos até a cultura contemporânea do talk show e do reality show.

No horizonte da virada arquivística e da guinada subjetiva, havia um terreno fértil para a reverberação do que discutia Philippe Artières, pois o interesse ou, dito de modo mais informal, a curiosidade pelas narrativas dos sujeitos quanto a própria vida também era despertada para as estratégias de escritores, artistas e intelectuais na constituição dos seus acervos e coleções. É possível exemplificar alguns consideráveis trabalhos acerca dos arquivos do intelectual e burocrata Gustavo Capanema ( Fraiz, 1998bFRAIZ, P. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 59-88, 1998b.); do antropólogo e educador Darcy Ribeiro ( Heymann, 2012HEYMANN, L. Q. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.); da escritora Carolina Maria Jesus( Fernandez, 2019FERNANDEZ, R. A poética dos resíduos de Carolina Maria de Jesus. São Paulo: Aetia, 2019.); do multiartista Hélio Oiticica( Coelho, 2014COELHO, F. Hélio Oiticica: o desejo de livro. O Percevejo Online, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 113-127, 2014.); da escritora, professora e crítica literária Judith Grossmann ( Santos, 2008SANTOS, L. M. N. de S. A pedagogia franqueada: Judith Grossmann e a cena teórico-crítica dos estudos literários no PPGLL, do ILUFBA. 2008. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.); e, também, da poeta Henriqueta Lisboa( Marques, 2015MARQUES, R. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.). Contudo, Artières destacava que o arquivamento da vida não se tratava apenas de um “privilégio de homens ilustres (de escritores ou de governantes). Todo indivíduo, em algum momento da sua existência, por uma razão qualquer, se entrega a esse exercício” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 31). Daí, justifica-se o ponto de partida do historiador ter sido a documentação do encarcerado Émile Nouguier, sentenciado no final do século XIX por assassinato, fazendo “um mergulho nos papéis singulares de um indivíduo comum que foi instado por um médico a arquivar a sua vida durante o seu encarceramento no presídio Saint-Paul de Lyon” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 18-19). Mais uma vez, ressoa no texto o veio foucaultiano do interesse pela vida dos sujeitos infames, tragados pelas estruturas de poder.

Analisando os diários produzidos por Nouguier, o historiador traça aproximações entre as práticas de arquivamento do eu e de escrita de si, tornando-as estratégias igualmente efetivas para a incessante construção e reflexão sobre a própria identidade. Cito-o: “Escrever um diário, guardar papéis, assim como escrever uma autobiografia, são práticas que participam mais daquilo que Foucault chamava a preocupação com o eu.” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 11). É possível interpretar a evolução do ensaio de Artières em dois momentos; a princípio, a caracterização das práticas de arquivamento como rituais cotidianos da vida moderna; e, na sequência, a exemplificação dessas premissas nos diários do Nouguier, pois a narrativa autobiográfica seria “a prática mais acabada desse arquivamento” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 11).

Os acervos de escritores, por sua vez, nos colocam em contato com as práticas de arquivamento de indivíduos que, pela natureza do seu trabalho artístico e intelectual com a palavra, são cotidianamente levados a refletir, de maneira direta ou indireta, sobre as materialidades dos seus processos de criação e de arquivamento. Além disso, o desenvolvimento da figura do autor na cultura moderna esteve relacionado à noção de obra como produção intelectual protegida por direitos autorais e patrimoniais. Para Reinaldo Marques, membro da equipe de pesquisadores do Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),

na montagem de seu arquivo pessoal, os escritores mostram-se bastante conscientes das implicações que isso acarreta para sua imagem pública. Tanto que recorrem a variadas práticas de arquivamento. Além de arquivar papéis e documentos de trabalho em pastas, gavetas ou armários, montar álbuns de fotografia, também se valem de formas mais sofisticadas de arquivamento de si: a prática da correspondência, a escrita de autobiografias e de memórias

( Marques, 2015MARQUES, R. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.: 59-60).

Por efeito, o arquivo do escritor tornou-se uma instância de legitimação da figura autoral, seja como prova documental da sua atividade criativa, seja como demonstração dos méritos literários e culturais do seu titular. Tais aspectos se acentuam, sobretudo, quando esse patrimônio bibliográfico e documental passa a integrar os acervos de instituições arquivísticas de natureza pública ou privada, tais quais arquivos públicos, centros de pesquisa, universidades e fundações culturais. Na passagem dos arquivos pessoais de escritores para os espaços institucionais ou, como propõe Marques (2015MARQUES, R. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.), quando o arquivo pessoal se torna um arquivo literário, novas camadas de sentido são acrescentadas à história documental pelos vários arcontes e profissionais que passam a gerir um determinado fundo. A partir das atividades de organização e pesquisa desenvolvidas por arquivistas, bibliotecários, historiadores e pesquisadores de literatura no âmbito das instituições, entram em cena critérios especializados de organização, acondicionamento, arranjo e estudo, por vezes, diferenciados daqueles adotados pela (des)organização documental do espaço privado. Talvez, em função disso, a mudança do estatuto de um arquivo “pessoal” para “literário” — analisada por Marques (2015MARQUES, R. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.) nesses movimentos de desterritorialização e reterritorialização dos acervos de escritores — sinalize o papel das instituições arquivísticas nos rituais de patrimonialização do campo literário.

Situado esse contexto da publicação do ensaio de Artières, gostaria de me encaminhar nas próximas seções para duas questões teóricas que se destacam no trabalho com documentos de escritores. Os hábitos que originam um acervo só podem ser acessados a posteriori, de maneira oblíqua, a partir da disposição do fundo documental e dos discursos produzidos pelos titulares acerca das suas formas de cuidar e guardar os seus espólios, bem como, por meio da atuação dos profissionais dedicados à organização e ao estudo de um acervo. De tal modo, recorremos aqui à noção de a posteriori e subsequentemente ( Nachträglichkeit, Nachträglich), considerada por Freud (1996aFREUD, S. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899). Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. 3.; 1996bFREUD, S. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. 12.) a condição de produção de sentidos sobre os acontecimentos. Embora não tenhamos pretensão, nem a proficiência para inventariar esse termo na vasta obra freudiana, podemos levantar alguns momentos-chave. Nos “Extratos dos documentos dirigidos a Fliess” (1950), publicado no primeiro volume da tradução standard brasileira, Freud (1996aFREUD, S. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899). Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. 3.) considerava a importância da temporalidade na inscrição e ressignificação dos registros psíquicos:

[…] os sucessivos registros representam a realização psíquica de épocas sucessivas da vida. Na fronteira entre essas épocas deve ocorrer uma tradução do material psíquico. […] sustento firmemente a crença numa tendência ao ajustamento quantitativo. Cada transcrição subseqüente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação

( Freud, 1996aFREUD, S. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899). Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. 3.: 176).

Em “Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II) (1914)”, Freud considera que, na posterioridade, podem vir a ser compreendidas e interpretadas experiências ocorridas nos primeiros anos de vida, mas que estavam desligadas das conexões de pensamento:

Há um tipo especial de experiências da máxima importância, para a qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram compreendidas na ocasião, mas que subseqüentemente foram compreendidas e interpretadas

( Freud, 1996bFREUD, S. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. 12.: 91).

Além disso, vale considerar que os discursos de um escritor quanto ao seu arquivo realizam uma espécie de dobra ficcional à “intenção autobiográfica” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 11) do arquivamento do eu. Em “O escritor como arquivista de si”, situado neste artigo, serão analisadas duas amostras documentais do Acervo de Escritores Baianos Universidade Federal da Bahia (UFBA) 2 2 Projeto de pesquisa desenvolvido de 2017 a 2022 com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenado por Evelina Hoisel. .

AS PRÁTICAS DE ARQUIVAMENTO A POSTERIORI

Em “Arquivar a própria vida”, Artières considera as práticas de arquivamento do eu instâncias privilegiadas para acessar as movimentações do sujeito ao montar uma imagem documental de si mesmo, sendo atravessado por critérios e preferências tão várias quantas sejam as mãos que manejam esses documentos. Todavia, por mais que se deseje fazer um “mergulho nos arquivos pessoais” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 18) para “explorar as práticas de arquivamento do eu” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 18), esse mergulho oferece uma visão turva, mas preciosa acerca dos hábitos, das preferências, dos rituais cotidianos de uma pessoa e, de modo mais amplo, das formas sociais e históricas de escrita e de arquivamento. As formas de constituição e organização de um acervo pessoal estão situadas no entrecruzamento da esfera individual e da esfera social, pois, ainda que sejam resultados de gestos muito particulares que acontecem na vida privada, também são indicativas das condições materiais e técnicas de uma época e dos recursos disponíveis a um determinado titular ou aos seus herdeiros.

É curioso observar que os saberes disciplinares, que historicamente se ocuparam da materialidade dos textos e dos arquivos, tentaram se aproximar, o quanto possível, de um último lampejo da intenção autoral e da origem dos documentos. De um lado; a filologia buscou estabelecer edições fidedignas aos textos clássicos e bíblicos, assim como a última vontade dos autores, fazendo o cotejo das variantes das obras, sob a suspeita de que a passagem do tempo corromperia o patrimônio documental da sociedade 3 3 Cf. O capítulo de Borges; Souza (2012: 16) apresenta as principais correntes da tradição filológica no Ocidente, destacando tanto na filologia clássica quanto na filologia moderna, que “o princípio da correção ( diorthosis) para o resgate da origem e da verdade dos textos corrompidos, ainda que por métodos e teorias diferentes, seja uma constante na tradição filológica ocidental, isto é, embora por caminhos diferentes, a práxis filológica no Ocidente quase sempre decorre de uma busca do sentido inaugural, no qual estaria a verdade incorruptível”. ; de outro, a arquivística, com o respect des fonds (respeito aos fundos), tornou cláusula pétrea a preservação do arranjo original feito pela entidade produtora dos documentos: “o arquivo deveria conservar o arranjo dado pela entidade coletiva, pessoa ou família que o produziu” ( Arquivo Nacional, 2005ARQUIVO NACIONAL. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.: 137). Contudo, essa cláusula pétrea precisa lidar diuturnamente com a impossibilidade de serem reconstituídos ab integro os movimentos e as intenções do titular de um arquivo e, de modo mais acentuado, com a possibilidade de disrupção à ordem que todo trabalho humano pode envolver, por mais rigorosos que sejam seus critérios de avaliação e acompanhamento 4 4 Brien Brothman, no ensaio “Orders of Value: Probing the Theoretical Terms of Archival Practice” (1991), levanta problematizações sobre o conceito de “ordem original”, distinguindo-a da “ordem arquivística: “Tal organização implica uma ‘ordem’ física e intelectual original que na verdade jamais existiu” (2018: 100). Eric Katelaar, em “(Des)construir o arquivo”, publicado no mesmo volume no Brasil, ressalta: “Toda vez que um criador ou usuário ou arquivista interage com um documento, intervindo, interrogando e interpretando, esse documento é construído de maneira ativa. Cada ativação deixa marcas no documento ou em seu contexto, as quais constituem os atributos da significação ilimitada dos arquivos” (2018: 197). .

Na contramão da cientificidade com a qual se recobria o trabalho com fontes documentais no passado, vale recordar a lição benjaminiana, nos fragmentos Sobre o conceito da história: “O passado só se deixa capturar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento de sua conhecibilidade” ( Benjamin, 2012BENJAMIN, W. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.: 243). Eis, portanto, a condição ambígua das práticas de arquivamento. Por mais que a rotina do titular influencie a disposição dos documentos que virão a despertar o interesse de especialistas e curiosos, a sua relação com o arquivo só pode ser acessada a posteriori como rastro de um corpo e de uma intencionalidade ausentes. Ao migrarem para o espaço das instituições na condição de uma falta originária, incitam uma cadeia infinita de significantes 5 5 Cf. nota anterior: “significação ilimitada dos arquivos” ( Katelaar, 2018: 197). que buscam cobrir de sentidos a “presença ausente” do escritor no seu arquivo literário. Talvez, em função desse lugar valioso da posteridade, a arqueologia e a psicanálise figurem no imaginário dos pesquisadores e especialistas de acervos e fontes documentais na contemporaneidade. “Soterrar”, “recalcar”, “escavar”, “conjecturar”, “desencobrir”, “desrecalcar” são verbos do jargão desses saberes disciplinares, que se interessaram tanto pelo que os indivíduos e as sociedades deixam de vestígios à posteridade quanto pelas operações de reelaboração das pegadas que deixamos no tapete do tempo 6 6 Jeanne Marie Gagnebin credita essa força do rastro nas reflexões sobre a memória na tradição ocidental, porque “a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente” ( Gagnebin, 2009: 44). .

O desenvolvimento de um paradigma indiciário nas ciências humanas entrava em concorrência com o paradigma positivista que se impunha no final do século XIX. Na leitura de Carlo Ginzburg, o interesse de um Giovanni Morelli pelos signos pictóricos, de um Freud pelos sintomas ou, ficcionalmente, de um Sherlock Holmes pelos indícios investigativos reconecta a humanidade à sua aptidão arcaica, milenar de seguir e interpretar pistas: “Por milênios, o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, plumas emaranhadas, odores estagnados” ( Ginzburg, 1989GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.: 151). Trabalhando com materiais menos insólitos, mas potencialmente renovadores das práticas interpretativas, o desenvolvimento da crítica biográfica nas universidades brasileiras, a partir dos anos 1990, ampliou o campo de visão acerca das relações metafóricas entre obra e vida, atualizando a reflexividade praticada pelo biografismo literário no século XIX, segundo a qual a vida explicaria a obra e a obra estaria assentada na vida, conforme Eneida Souza sugere: “A crítica biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional quanto a documental do autor — correspondência, depoimentos, ensaios, crítica — desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o feixe de relações culturais” ( Souza, 2002SOUZA, E. M. de. Notas sobre a crítica biográfica. In: SOUZA, E. M. de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.: 111).

No século XX, as correntes mais imanentistas da teoria literária, a exemplo do formalismo, do new criticism e do estruturalismo, priorizavam os aspectos intrínsecos de seu objeto de estudo, como a especulação sobre a natureza e a função da literatura, a modelização dos gêneros literários e a análise dos aspectos composicionais dos textos. Para exemplificá-lo, no afamado compêndio de René Wellek e Austin Warren, são alocadas entre as demandas extrínsecas do estudo da literatura: literatura e biografia, literatura e psicologia, literatura e sociedade, literatura e ideias, literatura e outras artes ( Warren; Wellek, 1971WELLEK, R.; WARREN, A. Teoria da literatura. 2. ed. Lisboa: Europa-América, 1971.). Inserida no contexto revisionista pelo qual passou a área de letras, com a consolidação da literatura comparada e dos estudos culturais, a crítica biográfica provocou fissuras nessa arquitetura metodológica de análise para evidenciar a “relação oblíqua entre arte e vida” ( Souza, 2011SOUZA, E. M. de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.: 19) ou, como demonstram os estudos mencionados anteriormente, a relação oblíqua entre vida e arquivo, na condição de rastros jamais totalizadores da atividade intelectual de um sujeito. Segundo Jacques Derrida, o rastro

é algo que parte de uma origem mas que logo se separa da origem e resta como rastro na medida em que se separou do rastreamento, da origem rastreadora. É aí que há rastro e que há começo de arquivos. Nem todo rastro é um arquivo, mas não há arquivo sem rastro. Portanto, o rastro, isso sempre parte de mim e se separa

( Derrida, 2012DERRIDA, J. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.: 121).

Por mais rigorosos que sejamos no trabalho com acervos literários, seria difícil pressupor, ao tornarmos as práticas de arquivamento em tópico de estudo, a possibilidade de recompor, passo a passo, os movimentos da gênese do arquivo, similarmente ao que algumas correntes da crítica genética no século XX tentaram fazer com a gênese das obras literárias. Ainda segundo Derrida, “o rastro não é um objeto, porque justamente ele diz algo da ausência da pessoa que passou por ali antes e não está mais” ( Derrida, 2012DERRIDA, J. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.: 123). Em função disso, o acontecimento do arquivo, ou seja, a cena originária da sua produção, pode ser acessado(a) a posteriori por meio da materialidade do arranjo documental ou por intermédio dos discursos produzidos pelos escritores sobre as suas práticas de arquivamento, de forma direta ou indireta, em seus textos poéticos, ficcionais, correspondências, depoimentos, anotações, palestras etc.

Admitindo-se o paradigma indiciário do trabalho com as práticas de arquivamento, há uma espécie de sobrevivência da figura autoral no arquivo literário, aparecendo de maneira espectral na disposição dos seus documentos e nos discursos que produzem acerca desse tema. Quando passam para o espaço institucional, nem sempre é apaziguada a relação entre o estado dos documentos e a metodologia do trabalho arquivístico. Por isso, retomando a imagem da efêmera luminescência dos vagalumes, proposta por Georges Didi-Huberman (2011DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.), em contraste com as intensas luzes dos refletores do poder, convém pensar a sobrevivência de práticas, muitas vezes intuitivas, que os escritores adotam para organizar e falar dos seus acervos perante a natureza do trabalho arquivístico nas instituições, em que outras decisões e critérios técnicos entram em cena para a organização e preservação desses materiais. Essa imagem da sobrevivência do escritor realoca a questão dos manuscritos autorais em outros termos, nem o “fetichismo da mão do autor” ( Chartier, 2014CHARTIER, R. A mão do autor. In: CHARTIER, R. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Editora Unesp, 2014.: 139), fruto daquele culto ao homem de letras surgido no século XVIII, após a Revolução Francesa, nem o “mito da objetividade e da imparcialidade” ( Bellotto, 2014BELLOTTO, H. L. Arquivo: Estudos e reflexões. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.: 110) com o qual se revestiu a “mão invisível” do trabalho arquivístico.

Os diversos rastros de um escritor na constituição do seu acervo ressaltam a natureza indicial dessas estratégias, acessadas na condição de rastros de uma ausência, traços de uma ação já passada — a escolha por um tipo de classificador, uma descrição autografada sobre o conteúdo de uma pasta, a adesivagem e etiquetagem de caixas, um comentário autoral em um documento arquivado. Como diz Giorgio Agamben, a “presença estranha e incongruente” de um autor na sua escritura, quando deslocado da sua autoridade dos sentidos do texto, também pode ser vista na relação de um escritor com o seu arquivo:

Se chamarmos de gesto o que continua inexpressão em cada ato de expressão, poderíamos afirmar então que, exatamente como o infame, o autor está presente no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central

( Agamben, 2007AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.: 59).

O sentido de fugacidade sugerido pelo gesto é dado pelas diversas marcas, impressões e rastros que o sujeito produz em suas ações submetidas à imponderável passagem do tempo. Por isso, compreender as práticas de arquivamento de um escritor como gestos arquivísticos e autobiográficos é pensar a conjunção entre fazer o arquivo e falar sobre o arquivo. Essa convergência entre o mise en archive 7 7 Cf. Anheim, 2004: 178; Heymann, 2012: 37. e o mise en scène torna-se ainda mais evidente quando analisamos a figura de escritores que se implicaram na organização dos seus arquivos pessoais e produziram reflexões acerca desses processos na cena discursiva de depoimentos, ensaios, falas públicas, prefácios de livros ou textos literários. A produção do arquivo torna-se uma das instâncias de produção e legitimação da figura autoral, cujas materialidades dos documentos estampam a diversidade de traços, rastros e inscrições de uma trajetória.

Na próxima seção, gostaria de ilustrar essas questões com a análise do texto autógrafo O arquivista, de Ildásio Tavares, produzido por ocasião da transferência de parte do seu acervo para a Universidade Federal da Bahia, na década de 1980, e o depoimento de Judith Grossmann ao projeto Com a palavra, o escritor, organizado na década de 1990 pela Fundação Casa de Jorge Amado. Tanto Ildásio Tavares quanto Judith Grossmann se inserem no perfil de “escritor múltiplo” ( Hoisel, 2019HOISEL, E. Teoria, crítica e criação literária: o escritor e seus múltiplos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.) surgido na segunda metade do século XX. Esse perfil de autor, que conjuga a produção literária com a atividade docente em instituições de ensino superior e a atuação intelectual na cena pública, foi ampliado no cenário brasileiro com a migração da crítica literária dos suplementos culturais para as universidades, nos anos 1960 ( Süssekind, 2003SÜSSEKIND, F. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, F. Papéis colados. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. p. 15-36.), e com a consolidação dos programas de pós-graduação em letras. Ambos, além de uma diversificada produção literária e teórico-crítica, foram professores da Universidade Federal da Bahia — Tavares, de literatura portuguesa e literaturas africanas de língua portuguesa, Grossmann, de teoria da literatura, criação literária e literatura dramática.

O ESCRITOR COMO ARQUIVISTA DE SI

As formas de organização de um arquivo pessoal são indicativas, para Artières, da “intenção autobiográfica” do sujeito que deseja montar uma imagem de si por meio da disposição que confere aos seus documentos. Não é em vão que o historiador considera a autobiografia como a “prática mais acabada desse arquivamento”, pois falar de si equivaleria a arquivar-se, havendo, portanto, uma contiguidade entre a produção discursiva da subjetividade e a organização da materialidade documental que testemunha a existência. Dito de outro modo, à pergunta: “quem sou eu?” corresponderia uma outra: “o que me comprova?”, pois “arquivar a própria vida é querer testemunhar.” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 28).

Todavia, a psicanálise que paira no imaginário do trabalho arquivístico é a mesma que nos sinaliza, com Jacques Lacan, que o sujeito está situado “desde antes de sua determinação social, em uma linha de ficção” ( Lacan, 1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.: 98). Isso não quer dizer que o sujeito organize a sua imagem aleatória e compulsivamente, o que seria igualar ficção a mentira ou falta de verdade, antes, trata-se de considerar as forças de seleção e recalque que põem a subjetividade na ordem da construção, ou seja, no resultado de um mosaico heterogêneo de imagens, narrativas, repertórios e experiências ou, como declara Artières: “fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 11). Essas estratégias de narração e arquivamento colocam em evidência a “ilusão biográfica” (Bourdieu, 2011: 74) e “autobiográfica” ( Miranda, 2009MIRANDA, W. M. Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2009.: 26) quando se trabalha com as histórias de vida, pois os discursos em primeira pessoa projetam um pacto de referencialidade das informações que tendem a ser consideradas pelos discursos críticos a “narrativa coerente de uma sequência significativa e coordenada de eventos” (Bourdieu, 2011: 76).

O depoimento O arquivista, de Ildásio Tavares, e a participação de Judith Grossmann no projeto Com a palavra, o escritor evidenciam que essas questões, diferentemente do que se pode pensar à primeira vista, não ficam circunspectas à vertigem referencial das listas e dos inventários, mas acabam por tensionar as fronteiras entre a referencialidade e a ficcionalidade, constituindo-se em textos no limiar entre a autobiografia, a ficção, o ensaio e o inventário arquivístico. Durante a organização do arquivo de Ildásio Tavares pelos pesquisadores integrantes do projeto Acervo de Escritores Baianos, foi localizado um documento manuscrito, da década de 1980, intitulado O arquivista ( Figura 1), no qual Tavares avalia a sua trajetória como escritor, refletindo sobre o seu processo de criação, na ocasião da transferência de uma parte do seu acervo para a UFBA 8 8 O documento autógrafo nos foi informado pela arquivista Mabel Meira Mota. .

Esse texto, ao mesmo tempo autobiográfico, literário e arquivístico, endossa o que dizia Almuth Grésillon: “Sem dúvida os escritores, quando falam de sua própria atividade, são eles os primeiros geneticistas” ( Grésillon, 2002GRÉSILLON, A. Devagar: obras. In: ZULAR, R. (org.). Criação em processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002.: 153). A consciência crítica dos poetas da modernidade quanto à natureza da criação literária, a exemplo de um Baudelaire, um T. S. Eliot, um Ezra Pound, um Maiakóvski, um André Gide ou de um Mário de Andrade, agigantou os temas da escritura e do projeto de livro na literatura dos séculos XX até os nossos dias, demonstrando um forte pendor metalinguístico das obras poéticas e ficcionais, como declarava o crítico Louis Hay: “Nunca os escritores falaram de escritura como no século que se findou” ( Hay, 2007HAY, L. A literatura dos escritores: questões de crítica genética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.: 259).

É interessante observar que Ildásio Tavares monta uma imagem de si como o seu primeiro e exemplar organizador: “Sempre fui um sistemático arquivista, tentando congelar o passado, num processo sentimental, amoroso. Guardei tudo — ‘souvenirs’, cartas, bilhetes, programas de peças e de xous, provas escolares, recibos, contas, fotografias.” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 1). Essa atividade de colecionismo, que tenta se erguer contra a passagem do tempo, compartilha com a atividade literária um traço da criação lírica, que é a “consagração do instante” ( Paz, 1982PAZ, O. O arco e a lira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.: 225). Para Octavio Paz, o poema faz uma espécie de cesura na experiência de vida para capturar, na mensagem poética, uma fração do real: “o tempo cronológico — a palavra comum, a circunstância social ou individual — sofre uma transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de ser sucessão, instante que vem depois e antes de outros idênticos e se converte em começo de outra coisa” ( Paz, 1982PAZ, O. O arco e a lira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.: 227). O poeta que assume o seu ofício com o verso estende a sua força lírica para a organização do seu acervo; então, essa “outra coisa” que surge da consagração lírica do tempo é o poema e é o arquivo. Essa imagem do “sistemático arquivista de si” projeta a figura espectral que sussurra em meio ao acervo, como rastro da intervenção autoral na produção e disposição dos documentos.

Para refletir acerca do seu processo de criação e as suas práticas de arquivamento, Ildásio Tavares mobiliza referências literárias e culturais do seu repertório, produzindo um texto de fronteiras porosas entre a autobiografia, a autoficção, o ensaio e o inventário arquivístico. O gosto por “mergulhar proustianamente no passado” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 1) evoca o argumento do romancista francês Marcel Proust sobre a natureza sensorial da memória, a qual, por estar encarnada em objetos e miudezas do cotidiano, pode ser deflagrada nas situações mais fortuitas. O embrião dessa ideia, depois retomada no primeiro volume da Recherche, está nos ensaios de Contre Saint-Beuve 9 9 Segundo Pierre Clarac, editor francês de Proust, “o grande romance saiu do ensaio crítico e que o ensaio crítico não teve senão que se desenvolver para se tornar um grande romance” ( Proust, 1988: 33). , em que o ficcionista contestava o método do prestigiado crítico de privilegiar as informações contextuais e paratextuais em detrimento da leitura literária:

Na verdade, como ocorre com as almas dos mortos em certas lendas populares, cada hora de nossa vida, tão logo suceda a morte, encarna-se e oculta-se em algum objeto material. E aí permanece cativa, a menos que não encontremos o objeto. Através dele, nós a invocamos, e ela se liberta. O objeto onde ela se oculta — ou a sensação, visto que todo objeto em relação a nos é sensação — pode muito bem jamais ser reencontrado. E é por isso que existem horas de nossa vida que jamais ressuscitaremos

( Proust, 1988PROUST, M. Contre Sainte-Beuve: notas sobre crítica e literatura. São Paulo: Iluminuras, 1988.: 39).

O escritor consciente da sua pulsão colecionista passa a dispor de um conjunto de objetos, documentos, itens e miudezas várias em que se encarnam as cinzas das horas vividas, nelas ficando um pouco do que se foi, diferente do que se é e do que será no futuro. Ildásio Tavares também menciona o poeta moderno Mallarmé, conhecido pelo rigor da composição, para falar de uma criança que aos 12 anos já tinha todas as suas rotas traçadas na literatura.

O escritor de meia-idade olha para a criança que foi com ajuda dos seus papéis, sabendo que,bem ao estilo machadiano,“o menino é o pai do homem” ( Machado de Assis, 2016MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.: 42). Se a imagem poética não se realizava com a palavra adequada nos escritos juvenis, diz Tavares, guardava-os para uma retomada futura: “Desde que me concebi escritor, com 12 anos, apelei sempre para o magistério da gaveta. Se a ideia não se cumpria mallarmaicamente em palavras, eu engavetava a tentativa, esperando, um dia, ter condições de realizá-la literariamente.” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 1). Como dispositivo exterior da memória, o arquivo permite ao sujeito se distanciar do conteúdo arquivado, abrindo espaço para a vivência de novas experiências e a idealização de novas obras que, ao serem confrontadas a posteriori, com o material arquivado, assinala os avanços e os ganhos da maturidade: “Guardo para me conhecer melhor, retroativamente. Mais ainda, para me superar; para crescer; para aprender comigo mesmo; mirando-me na gaveta, espelho imóvel, para corrigi-la com a imagem presente; ou arquetípica (se possível)” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 2).

Figura 1
Manuscrito do Arquivo Ildásio Tavares, Espaço Lugares de Memória, Biblioteca Universitária Reitor Macedo Costa, Salvador (BA).

Essa correlação entre o móvel que serve de arquivo e o estágio do espelho na formação do escritor também está no ensaio de Philippe Artières, quando o historiador analisa: “Arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência.” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 11). Para Ildásio Tavares, retomar subsequentemente os manuscritos anteriores constitui um exercício de aprendizagem sobre a criação literária, ou seja, uma oportunidade de observar as modulações do seu estilo ao longo desta “sísifica e ingente labuta com as palavras” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 2). Vale informar que esse foi um desafio para os membros do projeto Acervo de Escritores Baianos, durante a realização do inventário e da classificação tipológica dos documentos, quando foi constatada a existência de diferentes testemunhos manuscritos e datiloscritos de alguns poemas e a republicação em antologias, jornais e revistas.

Ao mesmo tempo, em função dessas movimentações de reescritura anterior e posteriormente à publicação dos seus livros, o Arquivo Ildásio Tavares, localizado na Biblioteca Universitária da Universidade Federal da Bahia, abre muitas possibilidades de investigação para os pesquisadores interessados tanto nas particularidades do processo de criação, do lado da crítica genética, quanto na circulação, difusão e transmissão dos textos e suas variantes, do lado da crítica textual (filologia). Na distância temporal que nos separa dos anos 1980, Tavares considerava o surgimento da crítica genética nas universidades brasileiras uma “grata surpresa”: “O surgimento da crítica genética foi-me uma grata surpresa, porque eu a fazia comigo mesmo; com a minha gaveta; ‘avant la lettre’” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 2). Foi nessa década que surgiram os primeiros programas de pós-graduação em linhas de pesquisa especializadas no estudo dos processos de criação, sobretudo, literária, embora já pudessem ser observadas, desde a década de 1970, iniciativas importantes no Brasil para preservação dos fundos documentais, por exemplo, a criação do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (AMLB) e o Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas.

No Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, existia, na década de 1980, o Acervo de Manuscritos Baianos, coordenado pela professora Elizabeth Hazin, cujo acervo foi integrado à Biblioteca Universitária Reitor Macedo Costa, no Campus de Ondina. Em certo momento do texto, Ildásio Tavares trata dos objetivos da doação do seu acervo à universidade para tornar público o laboratório do escritor, passando a limpo a sua vida com um breve inventário das obras desengavetadas que migravam da residência do escritor para o espaço institucional:

Doei meus originais ao Acervo de Manuscritos baianos justamente para socializar esta minha tortura individual pela palavra, pela expressão exata do sentir/pensar, percurso exaustivamente árduo (e humilde) de 43 anos, 5 livros de poemas, 2 romances e um livro de ensaios editados, três peças e uma ópera (libreto) encenadas e 26 títulos na gaveta, além de mais de 40 músicas gravadas. Espero que esta dedicação, este empenho, este esforço, este carinho apaixonado no trato com o texto sirva de (vire) alguma coisa aos que estudam a literatura, e, até, aos que a fazem

( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 2).

Nessa espécie de profissão de fé, em que se apresentam os valores e princípios do seu ofício de escritor, há um subtexto implícito à caracterização da escrita literária como um trabalho árduo de amor e humildade com as palavras:

Acima de uma exibição às claras de um processo íntimo, a doação visa a mostrar um ato de amor, de trabalho, de humildade, e como é pedregoso, árduo, íngreme, o labirinto da poesia, e que a gratificação maior não é publicar, ser reconhecido, ostentar o lance de poeta como [?] da vaidade

( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 3).

Ressoa nas palavras do poeta baiano o imaginário bíblico sobre o enobrecimento da alma por meio da humildade: “O orgulho do homem o humilha; mas o de espírito humilde obtém a honra” ( Bíblia Sagrada, 2011BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulinas, 2011.: 751) 10 10 Também pode ser encontrada nesta variação: “O orgulhoso acaba sendo humilhado, mas quem é humilde será respeitado” ( Bíblia Sagrada, 2011: 751). . O trabalho exaustivo, incansável e humilde da criação literária, segundo o vocabulário mobilizado por Tavares, é recompensado pelo “[…] achado da palavra exata, do verso preciso, da construção enxuta e forte da ficção, a expressão adequada da emoção, do pensamento é que é” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 3). Finaliza o seu discurso declarando que a maior honraria de um escritor “não é publicar, ser reconhecido, ostentar o lance de poeta como [?] da vaidade” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 3) ou até mesmo ser arquivado, poderíamos acrescentar.

Para o autor, “a grande gratificação do escritor, o texto, nada mais que o texto, sua verdade luminosa é que constitui o verdadeiro galardão do poeta”. Na ausência de mais informações sobre as circunstâncias da apresentação desse texto, nos resta imaginar a cena pública de leitura desse depoimento, senão no púlpito de uma das várias igrejas barrocas da capital baiana ou em uma reunião dos Obás de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá, talvez em uma sala da Congregação do Instituto de Letras da UFBA, rodeado pelos seus pares.

No corpus do Acervo de Escritores Baianos, outro documento que evidencia essa convergência entre o mise en scène do escritor na cena pública e o mise en archive da produção documental é o registro da participação de Judith Grossmann no ciclo de conferências Com a palavra, o escritor. Realizado pela Fundação Casa de Jorge Amado em 1995, tinha o objetivo de reunir autores atuantes no estado para tratarem das suas obras, as suas concepções de literatura e o seu processo de criação. O registro sonoro da fala da escritora foi gentilmente cedido ao projeto pela poeta Myriam Fraga ( in memoriam), então diretora da instituição, e consta uma versão demonstrativa em vídeo no canal do YouTube da instituição 11 11 Cf. https://www.youtube.com/watch?v=rWM4puZmDog&t=6s . Enquanto o documento O arquivista, de Ildásio Tavares, é constituído por três folhas manuscritas, a conferência de Judith Grossmann tem 2 horas e 10 minutos de duração. A autora faz uma espécie de balanço da sua trajetória literária, desde a juventude até os mais recentes projetos naquela época, comentando as particularidades de cada obra publicada, a graduação em letras anglo-germânicas na Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)), o começo da carreira no suplemento dominical do Jornal do Brasil, a pós-graduação na Universidade de Chicago e a atividade docente na UFBA.

Passando a vida a limpo — metáfora privilegiada para a escrita e o arquivamento —, Judith Grossmann comenta cada uma das suas obras, apontando onde o público poderia encontrar o seu acervo tanto no AMLB, no Rio de Janeiro, quanto na Biblioteca Universitária Reitor Macedo Costa, da UFBA, em Salvador, no estilo “ follow the clues” (siga as pistas): “todo o material mencionado aqui está acessível no AMLB, na Rua São Clemente, no Rio de Janeiro, outro sítio arqueológico” ( Grossmann, 2017GROSSMANN, J. Com a palavra, o escritor. In: HERRERA, A.; HOISEL, E.; TELLES, L. (org.). Rotas, trânsitos, migrações: ensaios de literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017.) 12 12 Para as citações, usaremos a transcrição do documento sonoro de 1995 publicada em Herrera, Hoisel e Telles (2017). . Valeria a pena comparar nos textos de Ildásio e Judith a construção de uma mitologia em torno da infância, quando começava a figurar a criança vocacionada para a literatura:

Agora voltando para Campos, aos 3 anos de idade — não se trata de contar a minha história, mas de falar sobre este esponsal, sobre núpcias. Eu e a Literatura. […] Eu já havia resolvido a minha vida, e até hoje obedeço às ordens da infanta Judith. O que ela determinou, isto é também uma verdade até às vezes dolorosa, porque o que aquela criança assumiu, isso me espanta. Realmente. Então com 3 anos idade eu já sabia que queria descobrir o mundo dos livros. Fiquei verdadeiramente fascinada. Não queria mais nada na vida. Isto se chama vocação

( Grossmann, 2017GROSSMANN, J. Com a palavra, o escritor. In: HERRERA, A.; HOISEL, E.; TELLES, L. (org.). Rotas, trânsitos, migrações: ensaios de literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017.: 354).

Se, desde 1966, quando começou a ensinar na UFBA, a escritora já era uma notável arquivista do setor de teoria da literatura, depois da sua aposentadoria, em 1990, ela levou adiante o que pode ser considerada a sua automusealização, transferindo para as duas instituições uma vasta quantidade de manuscritos literários, correspondências, publicações na imprensa e de terceiros em relação à sua obra, além da sua biblioteca pessoal. Numericamente, a maior parte do seu acervo encontra-se no AMLB (Rio de Janeiro). Enredando a ficção e a memória, a autora considera essa “pressa visceral, estrutural” ( Grossmann, 2017GROSSMANN, J. Com a palavra, o escritor. In: HERRERA, A.; HOISEL, E.; TELLES, L. (org.). Rotas, trânsitos, migrações: ensaios de literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017.: 356) de se arquivar e falar sobre os seus acervos proveniente “de uma menina que aos 3 anos já achava que podia ser o último dia” (idem). Somadas aos temas do juízo final e da proximidade dos últimos dias que integram o imaginário judaico e cristão, a autora traz ao depoimento duas outras cenas da memória que são perlaboradas ao fazer e falar sobre o arquivo. Primeiro, um dos irmãos, com manias de rasgar livros, ter rasgado a sua página preferida e — curiosamente — irrecuperável do Dicionário Lello e da coleção enciclopédica Tesouro da Juventude. A outra cena, da adolescência, é o livro Escuro Azul, primeiro livro de poemas escrito por Judith, porém rasgado, diante do peso que aquele material lhe impunha:

No entanto, eu não rasgo mais nada. Foi a única coisa que eu rasguei. O resto eu preservo. E tanto me afligiu isso que eu resolvi me libertar. […] E eu com aquele livro na mão não sabia o que fazer, fiquei muito aflita, aquilo me pesava: quer saber de uma coisa, vou rasgar. Aí rasguei e me senti tão livre. Era um pássaro, achava que ia cantar e começar outro livro. Mas esse livro é muito importante. E pronto, minha tarefa daí por diante seria reescrever este livro ( Grossmann, 2017GROSSMANN, J. Com a palavra, o escritor. In: HERRERA, A.; HOISEL, E.; TELLES, L. (org.). Rotas, trânsitos, migrações: ensaios de literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017.: 360).

Tanto Ildásio quanto Judith fazem da escrita e do arquivamento atividades relacionadas. Enquanto o “magistério da gaveta” ( Tavares, [198-]TAVARES, I. O arquivista. Salvador: Acervo Ildásio Tavares, [198-].: 1) seria a etapa de amadurecimento dos projetos de obras literárias, o impulso de registrar as materialidades do processo criativo também pode tentar refazer as páginas perdidas nos rompantes e acasos da história documental.

A metáfora do sítio arqueológico é mobilizada para falar dos lugares geográficos e afetivos da memória. A sua “mania de Arqueologia” é bem próxima do que Jacques Derrida (2001DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.) considera a pulsão e potência arquiviolítica da memória ou o que crítico Hal Foster (2004FOSTER, H. An Archival Impulse. October, New York, v. 110, p. 3-22, 2004) denomina o impulso arquivístico da arte contemporânea, em que o retorno às fontes documentais traz à cena o arquivo, não apenas como ruína ou escombros do passado, mas como acionador da imaginação artística e literária nas últimas décadas: “Eu tenho essa mania de Arqueologia. Eu construo o sítio (eu faço tudo!) e depois eu escavo. Eu tenho que viver isso com o meu corpo. Não adianta ele reclamar, eu digo, ele aguenta, você aguenta, você tem que aguentar” ( Grossmann, 2017GROSSMANN, J. Com a palavra, o escritor. In: HERRERA, A.; HOISEL, E.; TELLES, L. (org.). Rotas, trânsitos, migrações: ensaios de literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017.: 356). Esse rol de questões teóricas sobre o arquivo é ficcionalizado em obras literárias da autora, por exemplo, Nascida no Brasil Romance, Meu Amigo Marcel Proust Romance, Fausto Mefisto Romance e Todos os Filhos da Ditadura Romance.

Nos discursos de Tavares e Grossmann, o arquivamento do eu resiste à passagem do tempo e, com ela, à imponderável força do esquecimento, pois, apesar da feição de humildade que Ildásio Tavares enfatizava com frequência, sabe-se que a institucionalização de um acervo é uma instância de legitimação da figura autoral no campo literário. Segundo Artières, o sentenciado que deseja dar a sua versão da história arquiva a própria vida para “desafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens assim como o trabalho do tempo” ( Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 31). Nesse sentido, a transferência de arquivos de escritores para as instituições não seria mais do que uma tentativa de se erguer contra a sentença de esquecimento à qual estamos todos fadados, mais cedo ou mais tarde? Ao tratar do seu projeto de obra Clarior Romance, a autora assinala, ainda que sem demora, uma significativa questão teórica sobre os dispositivos da memória:

Então o Clarior é um dilúvio de luz, ele tem uma epígrafe, “Mais Luz!”. Ele é o bem amado da espécie. Evidente que eu aproveitei da minha experiência pessoal e até mesmo do que isso tem de inquietante, certo? É aquela coisa do Pequeno Príncipe, aquilo é lindo, aquilo é fundamental. Eu tenho esse livro, está lá no Museu, porque o Museu já é uma extensão do meu corpo

( Grossmann, 2017GROSSMANN, J. Com a palavra, o escritor. In: HERRERA, A.; HOISEL, E.; TELLES, L. (org.). Rotas, trânsitos, migrações: ensaios de literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017.: 372).

O acervo literário como extensão do corpo faz sobreviver a imagem espectral da autora, entre as pastas e caixas que constituem o fundo documental. Volto, mais uma vez, a Derrida (2001DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.: 22), para quem a exterioridade do arquivo, como dispositivo técnico da memória, é o que permite a sua memorização, repetição e reimpressão. Não é em vão que sobre esse tipo de vida a mais que o arquivamento oferece, Judith Grossmann também mencionou, na sua conferência, uma conhecida personalidade histórica ligada ao imaginário da sobrevivência no século XX, a Princesa Anastásia Romanov, filha do Czar Nicolau II. Várias narrativas dão conta da possível fuga de Anastásia ao fuzilamento da família real russa, por ocasião da Revolução Soviética. Segundo a autora, dizia-se, durante a infância, que ela seria a Princesa Anastásia e, por efeito, Judith faz da sobrevivência em seus arquivos literários — na infinidade de traços, pistas e vestígios deixados nas cidades onde viveu — uma dramatização das narrativas em torno da sobrevivência de Anastásia, interpretando as suas próprias práticas de arquivamento com ajuda dessa referência histórica:

E no ano que vem, já é um plano russo, soviético, União Soviética. Anastásia, executada aos 17 anos, nascida em 1901, executada em 1918. Anastásia. Inventei uma história a partir daquilo que eles disseram, que eu era Anastásia, que eu havia deixado meu nome escrito numa vidraça com o diamante do meu anel. Anastásia. Ah! Isso para uma menina, realmente… Nem a Daniela Mercury conseguiria cantar… (risos). É demais. Quem sabe a Maria Callas? E assim, no ano que vem, pretendo publicar nesta ordem, que ninguém me negue isso, porque passaria de sonegadora à negada, Crimes do Cotidiano Romance e Clarior Romance, e pretendo escrever O Quarteto, para contar a verdadeira história do grande romancista, da grande romancista, a minha história e a história do filósofo. A verdadeira história. Por enquanto, aquela história é outra história. E como era tempo de Páscoa, lembrem-se que Anastásia significa ressurreição, tiveram mais uma vez a ressurreição. Anastásia!

( Grossmann, 2017GROSSMANN, J. Com a palavra, o escritor. In: HERRERA, A.; HOISEL, E.; TELLES, L. (org.). Rotas, trânsitos, migrações: ensaios de literatura e cultura. Salvador: Edufba, 2017.: 382).

Enquanto Ildásio Tavares manteve a media res no final do seu texto, fazendo uma peroração à humildade, Judith Grossmann concluiu a sua fala no projeto Com a palavra, o escritor em tom grandiloquente, abordando essa mitologia familiar, seguida de efusivos aplausos e o estouro de uma garrafa de champagne, como se pode ouvir no final da gravação. A existência desse documento sonoro nos permite observar os aspectos da mise en scène da escritora em sua fala pública para uma plateia de estudantes, professores e intelectuais em Salvador. Décadas depois, ainda se deixa flagrar tal qual o risco de um anel de diamante sobre a vidraça. Há algo muito parecido com a noção de exigência da qual fala Giorgio Agamben, no ensaio “O dia do juízo”, a respeito de uma pessoa que se deixa fotografar: “Mesmo que a pessoa fotografada fosse hoje completamente esquecida, mesmo que seu nome fosse apagado para sempre da memória dos homens, mesmo assim, apesar disso — ou melhor, precisamente por isso — aquela pessoa, aquele rosto exigem o seu nome, exigem que não sejam esquecidos” ( Agamben, 2007AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.: 29). O arquivo literário, tornado a fotografia documental do escritor, faz essa exigência para o futuro por meio de uma grafia, de uma voz ou de algum outro rastro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em uma publicação de 2013, Philippe Artières lançava outras questões, ainda na perspectiva foucaultiana, quanto à relação entre as práticas de arquivamento e a estética da existência. Partindo de cenas históricas e ficcionais de arquivamento, o historiador analisa as possíveis semelhanças entre o ato de arquivar e o ato artístico, tangenciando uma conhecida querela entre a “organicidade” e a “intencionalidade” na formação dos arquivos e coleções. Poderia o arquivo ser pensado como uma obra de arte? E, considerada a vida uma obra de arte individual, seria o arquivo a materialidade dessa trajetória? Embora não caiba neste texto adentrar tais perguntas, os tópicos pelos quais avança Artières colocam em tensão alguns pressupostos do pensamento ocidental nos últimos dois séculos sobre a divisão entre arte e ciência, sujeito e objeto, subjetividade e objetividade, intencionalidade e funcionalidade, poeticidade e referencialidade.

Priorizamos aqui estabelecer diálogos entre o ensaio anterior de Artières (1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.) e algumas questões teórico-críticas que foram desenvolvidas dos anos 1990 para cá, tentando partir de duas hipóteses. A princípio, as práticas de arquivamento — objeto de estudo privilegiado nas publicações do historiador em língua portuguesa — tornam-se conhecidas a posteriori, na condição de rastros do titular do arquivo pessoal, somados às intervenções de diversos agentes envolvidos na migração dos acervos do espaço privado para o espaço público. Trocam-se pastas carcomidas, retiram-se grampos enferrujados, restauram-se documentos rasgados, acrescentam-se fichas catalográficas, acondicionam-se em novos suportes os documentos com o objetivo de conservar a sua integridade física, conforme os princípios e as metodologias do trabalho arquivístico.

A grafia ou a voz dos escritores, ao serem inscritas na materialidade de documentos manuscritos ou sonoros, tornam-se rastros da figuração espectral das suas práticas de arquivamento. Essa espectralidade não deixa de evidenciar que o trabalho em arquivos precisa lidar com a inconclusão e as lacunas dos dispositivos de memória, pois, embora arquivar a própria vida seja “querer testemunhar”, segundo Artières (1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.: 28), os rituais cotidianos que dão origem aos acervos sobrevivem na materialidade dos fundos documentais só podem ser interpretados de forma indicial.

Dando ênfase aos acervos da literatura, partimos da segunda hipótese de que esses rastros dos escritores na montagem dos seus arquivos tornam-se acessíveis por intermédio da ordem em que se encontram os fundos, no espaço público ou privado, ou a partir dos discursos produzidos pelos titulares e arcontes sobre a história documental. O que dizem os escritores acerca das suas formas de organização produz narrativas impuras, evocando a expressão da professora Eneida Maria de Souza (2021SOUZA, E. M. de. Narrativas impuras. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2021.), que tensionam as fronteiras entre a referencialidade da informação documental e a ficcionalidade do relato em primeira pessoa, em textos que hibridizam a forma autoficção, o ensaio e o inventário arquivístico.

Sem dúvidas, a divulgação do ensaio de Philippe Artières no Brasil e as demais pesquisas feitas no mesmo sentido trouxeram à tona as narrativas que rondam os arquivos pessoais, nossos lugares de memória e de imaginação onde estão guardadas as coisas usadas.

REFERÊNCIAS

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  • WELLEK, R.; WARREN, A. Teoria da literatura. 2. ed. Lisboa: Europa-América, 1971.

NOTAS

  • 1
    Embora o tema seja trabalhado em mais uma obra de Michel Foucault, podemos citar a compilação do curso no Collège de France, entre 1981-1982. Cf. FOUCAULT, M.FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. A hermenêutica do sujeito, 2006.
  • 2
    Projeto de pesquisa desenvolvido de 2017 a 2022 com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenado por Evelina Hoisel.
  • 3
    Cf. O capítulo de Borges; Souza (2012BORGES, R.; SOUZA, A. S. de. Filologia e edição de texto. In: BORGES, R.; SOUZA, A. S. de S.; MATOS, E. S. D. de; ALMEIDA, I. S. Edição de texto e crítica filológica. Salvador: Quarteto, 2012.: 16) apresenta as principais correntes da tradição filológica no Ocidente, destacando tanto na filologia clássica quanto na filologia moderna, que “o princípio da correção ( diorthosis) para o resgate da origem e da verdade dos textos corrompidos, ainda que por métodos e teorias diferentes, seja uma constante na tradição filológica ocidental, isto é, embora por caminhos diferentes, a práxis filológica no Ocidente quase sempre decorre de uma busca do sentido inaugural, no qual estaria a verdade incorruptível”.
  • 4
    Brien Brothman, no ensaio “Orders of Value: Probing the Theoretical Terms of Archival Practice” (1991BROTHMAN, B. Ordens de valor: questionando os termos teóricos da prática arquivística. In: HEYMANN, L.; NEDEL, L. (org.). Pensar os arquivos: uma antologia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2018.), levanta problematizações sobre o conceito de “ordem original”, distinguindo-a da “ordem arquivística: “Tal organização implica uma ‘ordem’ física e intelectual original que na verdade jamais existiu” (2018: 100). Eric Katelaar, em “(Des)construir o arquivo”, publicado no mesmo volume no Brasil, ressalta: “Toda vez que um criador ou usuário ou arquivista interage com um documento, intervindo, interrogando e interpretando, esse documento é construído de maneira ativa. Cada ativação deixa marcas no documento ou em seu contexto, as quais constituem os atributos da significação ilimitada dos arquivos” (2018: 197).
  • 5
    Cf. nota anterior: “significação ilimitada dos arquivos” ( Katelaar, 2018KATELAAR, E. (Des)construir o arquivo. In: HEYMANN, L.; NEDEL, L. (org.). Pensar os arquivos: uma antologia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2018.: 197).
  • 6
    Jeanne Marie Gagnebin credita essa força do rastro nas reflexões sobre a memória na tradição ocidental, porque “a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente” ( Gagnebin, 2009GAGNEBIN, J. M. Lembrar escrever esquecer. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.: 44).
  • 7
    Cf. Anheim, 2004ANHEIM, É. Singulières Archives: Le Statut des archives dans l’épistémologie historique une discussion de La Mémoire, l’histoire, l’oubli de Paul Ricoeur. Revue de Synthèse, Paris, v. 125, p. 153-182, 2004.: 178; Heymann, 2012HEYMANN, L. Q. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.: 37.
  • 8
    O documento autógrafo nos foi informado pela arquivista Mabel Meira Mota.
  • 9
    Segundo Pierre Clarac, editor francês de Proust, “o grande romance saiu do ensaio crítico e que o ensaio crítico não teve senão que se desenvolver para se tornar um grande romance” ( Proust, 1988PROUST, M. Contre Sainte-Beuve: notas sobre crítica e literatura. São Paulo: Iluminuras, 1988.: 33).
  • 10
    Também pode ser encontrada nesta variação: “O orgulhoso acaba sendo humilhado, mas quem é humilde será respeitado” ( Bíblia Sagrada, 2011BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulinas, 2011.: 751).
  • 11
  • 12
    Para as citações, usaremos a transcrição do documento sonoro de 1995 publicada em Herrera, Hoisel e Telles (2017).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2023
  • Aceito
    06 Mar 2023
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