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De (re)conto e (des)encanto: uma leitura de Fita verde no cabelo

(Re)count and (dis)enchant: reading of Fita verde no cabelo

Resumo

Fita verde no cabelo: nova velha história, conto de Guimarães Rosa, apresenta uma leitura de Chapeuzinho Vermelho. Como indica o subtítulo - nova velha história -, a narrativa rosiana ressignifica as versões tradicionais de Chapeuzinho, projetando a história em meio à perplexidade do mundo contemporâneo, desconstruindo certezas, deslocando fantasias. A partir de reflexões sobre a tradição oral, narrativa e memória, negação da experiência no mundo contemporâneo, pretendemos mostrar como o conto de Guimarães Rosa problematiza a trajetória da protagonista, Fita-Verde, num desdobrar-se em simbiose com a fala-fato de um narrador que trama o destino desta lendária menina, agora em situação dramática, evocando gestos e arquétipos que lhe escapam nos desvãos de uma consciência desencantada. A velha fantasia do tempo das fadas, requisitada pelo seu ser de linguagem e seu universo ontologicamente situado no próprio enredo do conto, sofre os refluxos de um tempo de crises, em que o confronto com a solidão é uma face da morte.

Palavras-chave:
Guimarães Rosa; conto tradicional; intertextualidade

Abstract

Fita verde no cabelo: nova velha história (Green ribbon in her hair: new old story), tale of Guimarães Rosa, presents a reading of Chapeuzinho Vermelho (Little Red Riding Hood). As the sub-title indicates - new old story - Rosa’s narrative reframes traditional versions of Little Red Riding Hood, projecting the story amid the bewilderment of the modern world, deconstructing certainties, shifting fantasies. Based on reflection about oral tradition, narrative and memory, denial of the contemporary world experience, we aim to show how the tale of Guimarães questions the protagonist’s trajectory, Green-Ribbon, unfolds in a symbiosis with speechfact of a narrator plotting the destiny of this legendary girl, now in a dramatic situation, evoking gestures and archetypes that escape through the spaces of her disenchanted consciousness. The old time fairy fantasy, required by her language being and her universe ontologically situated on the very plot of the tale, about the reflux of a time of crisis, in which confrontation with loneliness is a face of death.

Key words:
Guimarães Rosa; traditional tale; intertextuality

Era uma vez...

Narrativa de pequena dimensão (pouco mais de uma página), Fita verde no cabelo: nova velha história (Rosa, 1992ROSA, João Guimarães (1992). Fita Verde no Cabelo: nova velha história. Ilust. Roger Mello. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.)1 1 Texto originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 8 de fevereiro de 1964, e foi depois republicado na obra póstuma Ave, Palavra. Usou-se aqui a versão ilustrada da editora Nova Fronteira, quando o conto se apresenta para um público infantil. surpreende por sua intensidade lírica e, ao mesmo tempo, dramática. Não raro, o desavisado leitor, embalado pela música singela do título ou pelas referências ao mundo encantado do conto de fadas, vê seu horizonte de expectativas desfolharse paulatinamente, até chegar à perplexidade final, em que o esperado encantamento cede a uma violenta situação de abandono - que se inscreve na compreensão do (des)enredo, o(s) qual(is), paradoxalmente, parece(m) instalar-se além do próprio sentido. Mais uma vez, a estória de Guimarães Rosa extrapola a medida - da língua, da tradição, da vida.

Esta leitura, se não dispensa o exercício analítico e o esforço crítico, também não deixa de ser uma homenagem, uma reverência. Traremos à cena deste re-conto de Chapeuzinho Vermelho aspectos relevantes da obra de Guimarães Rosa, sobretudo os contos, em especial, Primeiras estórias. Discutiremos, ainda, aspectos intertextuais e interdiscursivos ligados ao universo dos contos de fadas, ontem e hoje: do Chapeuzinho Vermelho, cuja trajetória se perde e se expande na tradição popular, ao Chapeuzinho Amarelo, que se reinscreve na engenhosidade textual de Chico Buarque de Holanda.

Leitores habituais de Rosa não raro deparam com formas variáveis da paradigmática expressão - “Era uma vez” - que abre o universo das estórias tradicionais, com seus ingredientes fantásticos ou mágicos, com seus encantos e ensinamentos. Também aqui, Rosa subverte padrões linguísticos e mentais, abrindo a linguagem e a nossa percepção a planos inusitados da condição humana (entre fato e linguagem). Cria-se um inesperado cruzamento de forças formais e expressivas, uma transversalidade de sentidos que contracenam em espaço-tempo diferenciados - da arte e da vida. Assim, a abertura das estórias de Rosa costuma projetar situações especiais, inusitadas, incomuns (poderíamos dizer: como tudo mais nas suas obras). Mas vejamos alguns exemplos de abertura de espaços narrativos rosianos.

Abrindo as Primeiras estórias, e o conto “As margens da alegria”, um narrador convicto nos dá o exato lugar do que se apresenta: “Esta é a estória.” (Rosa, 1992ROSA, João Guimarães (1992). Fita Verde no Cabelo: nova velha história. Ilust. Roger Mello. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 3) - expressão que ganha a clave do encantamento na frase que se enuncia ao final do conto: “Era, outra vez em quando, a Alegria” (id., p. 7). A interjeição que adverte sobre o inesperado, na abertura de “Pirlimpsiquice” - “Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh.” (id., p. 39) -, traduz-se plenamente na frase inicial de “Luas-de-mel”: “No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade” (id., p. 106). “Outra era a vez” (id., p. 168), anuncia o narrador de “Os cimos”, a dizer que também o mundo do “era uma vez” tem seus avessos, seus tempos e espaços diferenciados. Nonadas e travessias no mundo misturado do grande sertão.

No antológico ensaio “Céu, inferno”, Alfredo Bosi (1988BOSI, Alfredo (1988). “Céu, inferno”. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideologia. São Paulo: Ática., p. 10-32) faz uma reflexão sobre as condições socioeconômicas da vida sertaneja e sistematiza duas dimensões paradigmáticas da cultura popular em tais condições, a “prudencial” e a “providencial”, e a maneira como estas se apresentam na literatura brasileira, sobretudo nas obras de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. No espaço comum do universo da pobreza, diz Bosi, Graciliano assume uma perspectiva de distanciamento crítico na construção de seus personagens, enquanto Guimarães Rosa traz para “o centro vivo” de seus textos a perspectiva da empatia. Enquanto Graciliano, distanciando-se, opera a matéria sertaneja através da “mediação ideológica do determinismo”, Rosa aproxima-se “do seu mundo mineiro” através da “mediação da religiosidade popular”(id., p. 22). Para melhor caracterizar as duas perspectivas, Bosi observa que “distinguem-se, nos ditos sapienciais do povo, pelo menos duas vertentes: a prudencial e a providencial” (id., p. 23). A vertente prudencial, diz ele, “está firmemente ancorada nos limites do cotidiano e é, de longe, a mais cautelosa. (...) Ajuda-te, que Deus te ajudará”. Já “a vertente providencial cobre exatamente a outra metade da vida (...): aquele reino de incertos sucessos que desde tempos imemoriais se confia aos desígnios da divindade. (...) Mais vale que Deus ajuda do que quem cedo madruga” (id., p. 24). No raciocínio de Bosi, a epifania é parte estruturante do universo de Guimarães Rosa, autor que torna “mais aguda a inteligência e mais vivo o desejo” popular de promover uma reversão em seus destinos. “Nas histórias de Rosa os viventes sonham, e o narrador segue-os de perto e de dentro, confiante de que um dia desejo e ventura poderão dar-se as mãos, pois afinal Deus tarda, mas não falha” (id., p. 25).

Nessa sua linha de raciocínio sobre a escrita de Guimarães Rosa, Bosi privilegia a combinação das precárias condições de subsistência do sertanejo com a propensão a um imaginário compensatório, sob a mediação da religiosidade popular em sua vertente providencial. Tal perspectiva aproxima-se do que Ítalo Calvino (1990CALVINO, Ítalo (1990). “Leveza”. In: Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso, São Paulo: Companhia das Letras., p. 15-42) constata como uma “constante antropológica”, ou seja, um “nexo entre a levitação [ou a busca da leveza] desejada e a privação sofrida” (id., p. 40). Em termos ficcionais, tanto na vertente popular como na erudita, trata-se da “literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver” (id., 39). Com Calvino, em seu ensaio sobre a “Leveza”, podemos complementar a concepção de Bosi ao realçar a dimensão propriamente literária de Guimarães Rosa no trato do humano a partir do universo popular, ou seja, as dimensões da forma, dos gêneros e da linguagem.

Calvino constata que a leveza está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório. Ele destaca na obra do poeta florentino Guido Cavalcanti (1259 1300) três acepções distintas dessa dimensão literária:

  1. um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita consistência.

  2. a narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração.

  3. Uma imagem figurativa da leveza que assuma um valor emblemático. (id., p. 28-30)

O uso da palavra, para Calvino, implica a “perseguição incessante das coisas, adequação à sua infinita variedade” (id., p. 39). No campo da literatura, esse uso apresenta a confrontação de duas vocações opostas através dos séculos: a da leveza e a do peso da linguagem. A primeira tenderia a desprender-se das coisas, flutuando sem peso sobre elas; e a segunda buscaria dar à linguagem a “espessura, a concreção das coisas, dos corpos, das sensações”(id., p. 27).

Para concluir este olhar sobre as contribuições de Calvino à nossa leitura de Fita verde no cabelo: nova velha estória, destacamos a sua concepção de que “muito dificilmente um romancista poderá representar sua ideia da leveza ilustrando-a com exemplos tirados da vida contemporânea, sem condená-la a ser o objeto inalcançável de uma busca sem fim”, a exemplo do que fizera Milan Kundera em A insustentável leveza do ser (id., p. 19).

Considerando as premissas teóricas e as análises de fatos culturais e literários, apresentadas por Bosi e Calvino, como podemos situar Fita verde no cabelo quanto a sua inserção no vasto universo popular dos contos de fadas, sem perder de vista a singularidades do próprio texto, bem como suas relações com o contexto da proposta literária de Guimarães Rosa? Em outros termos, poderíamos perguntar, retoricamente: até que ponto a vertente providencial, explorada por Bosi, e a dimensão da leveza, defendida por Calvino, podem abrir canais de leitura desta enigmática estória de Rosa?

Segundo Bruno Bettelheim (1980BETTELHEIM, Bruno (1980). A psicanálise dos contos de fadas. 6. ed. Trad. Aline Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 204), “quando Perrault publicou sua coleção de contos de fadas em 1697, Chapeuzinho Vermelho já era uma história antiga, com elementos que remontavam a tempos atrás”. Na compilação de Perrault (1989, p. 51-5), a primeira versão escrita de que se tem notícia, Chapeuzinho Vermelho e a sua Avó são irremediavelmente devoradas pelo lobo. Contudo, este final, ao mesmo tempo em que apresenta cenas de canibalismo, sobretudo no caso da Avó, é tido pela crítica como a culminância do simbolismo de uma estória de sedução, em que Chapeuzinho, convidada pelo lobo a se deitar com ele, resolve por conta própria despir-se, talvez para facilitar a sanha canibal de tão impressionante Vovó - braços grandes, pernas grandes, orelhas grandes, olhos...

Em 1812, os Irmãos Grimm publicam a versão que cairia no gosto popular nos séculos XIX e XX, tornando-se, talvez, o reconto mais difundido de Chapeuzinho Vermelho. Os autores introduziram um final feliz, com a intervenção da figura providencial do caçador, que abre a barriga do lobo e resgata a menina e a avó. Curioso observar que, nessa versão dos Irmãos Grimm, quem mata o lobo é a própria Chapeuzinho, costurando pedras dentro da barriga do animal.

O historiador cultural norte-americano Robert Darton (1986, p. 21-139) vê nas estórias de Chapeuzinho Vermelho, para além das dimensões psicanalistas, elementos da sociedade rural francesa dos séculos XVII e XVIII. Darton se reporta a uma das 35 versões, de várias épocas diferentes, compiladas pelos folcloristas franceses Paul Delarue e Marie-Louise Tenèze, no livro Le conte populaire français. Na versão destacada, o enredo assume um aspecto mais brutal do que as de Perrault e dos Irmãos Grimm, pois além de matar a vovó, o lobo tira o seu sangue e serve para Chapeuzinho, antes de obrigá-la a despir-se, a jogar a roupa no fogo, a deitar com ele e de devorá-la.

No Brasil, Camara Cascudo compila uma versão que ouvira de um narrador do estado do Espírito Santo. Além de detalhes circunstanciais diferentes das versões citadas acima, a versão compilada por Camara Cascudo (1986CASCUDO, Luis da Câmara (1986). “O Chapelinho Vermelho”. In: Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp., p. 110-13) se parece com a dos Irmãos Grimm, com a particularidade de que quem mata o lobo é um caçador, salvando a avó e menina.

Outro dado que merece destaque: das versões consultadas, esta é a única que nomeia a protagonista, Laura. E, em lugar do chapeuzinho vermelho, a menina usa um chapelinho, ou seja, uma sombrinha de cor vermelha. Considerando-se o sol e o calor dos países tropicais, a sombrinha estaria bem mais contextualizada.

Destacamos ainda, das versões brasileiras, a recriação de Chico Buarque (1997BUARQUE, Chico (1997). Chapeuzinho Amarelo. Ilust. Ziraldo, Rio de Janeiro: José Olympio.)2 2 Nesta passagem, Ziraldo, cujas belas ilustrações mereceriam leitura específica, projeta a figura do LOBO na sombra da própria Chapeuzinho Amarelo. , Chapeuzinho Amarelo. Nesta, a cor amarela simboliza o medo que dominava a menina Chapeuzinho - “a Chapeuzinho tinha cada vez mais medo do medo do medo do medo de um dia encontrar um LOBO. Um LOBO que não existia”. No jogo poético de Chico Buarque, em que módulos expressivos vão-se reposicionando e formando novos sentidos, o LOBO tem suas prerrogativas simbólicas desconstruídas, através de um processo de repetição e de deslocamento fonográfico das sílabas - LO e BO, até o momento que, por imposição de Chapeuzinho Amarelo, há um deslocamento semântico, em que o LO-BO vira BO-LO. Chico, com seu virtuosismo poético e sua profissão de fé na palavra engajada, faz da linguagem um instrumento tanto de revelação, de epifanias líricas, como de desmonte/denúncia de estruturas ou padrões que aprisionam e rebaixam o homem. Neste sentido, Chapeuzinho Amarelo alinha-se ao conjunto da sua obra poético-musical, em cujos planos formais da canção (texto e melodia) sobressaem o despertar da consciência crítica e o enlevo da percepção lírica.

Transformado o LOBO em BOLO3 3 Através do reposicionamento das sílabas, subvertem-se os sentidos semântico e simbólico, e o LOBO vira BOLO. , como num jogo de armar signos e situações, Chapeuzinho então aprende a se libertar de seus medos: “Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira. E transforma em companheiro cada medo que ela tinha: o raio virou orriá, barata é tabará, a bruxa virou xabru e o diabo é bodiá”(Buarque, 1997BUARQUE, Chico (1997). Chapeuzinho Amarelo. Ilust. Ziraldo, Rio de Janeiro: José Olympio.). Na estória tradicional de Chapeuzinho Vermelho, sobressai uma advertência às meninas, de que não devem confiar em estranhos, cujo perigo se encarna simbolicamente na figura do lobo, o qual, ainda numa perspectiva psicológica, ocupa o ima-ginário paradoxal acionado pelo despertar da sensualidade e do desejo feminino. No limite, parece dizer o conto, a precaução ou a morte. Vimos que na versão contemporânea e politicamente correta de Chico Buarque, a frágil garotinha acaba por superar-se e vencer os fantasmas que rondam seu imaginário. A chave do “era uma vez” passa, agora, dos desígnios do contexto com seus ensinamentos da tradição, de um tempo passado e exemplar, ao domínio da personagem, em sua centralidade marcada na própria chave estruturante do gênero, que se abre para a personagem: “Era a Chapeuzinho Amarelo”.

No texto poético de Guimarães Rosa, temos, também, uma pretensa Chapeuzinho Vermelho - isto porque, a exemplo da Chapeuzinho Amarelo, que se estabelece mais como modalização e diferenciação da personagem tradicional, Fita-Verde constitui-se como projeção imaginária da protagonista dessa longínqua estória.

A expressão-senha das estórias tradicionais, nesse conto de Rosa, só aparece, transmudada, no quarto parágrafo: “Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez.” A expressão “tudo era uma vez”, contudo, não remonta a um tempo mítico que se perde na memória popular e que traz a experiência coletiva fixada em símbolos e exemplos. Antes, a expressão retrata a condição da personagem imersa na sua busca pessoal, para quem, a partir daquele momento em que se afasta daquela localidade convencional, monótona e previsível, “tudo” passa à regência da sua fantasia. Entre uma aldeia e outra (que era “quase igualzinha” à primeira), a menina busca reinventar-se no mundo encantado de Chapeuzinho Vermelho, reencenando seus ritos e fantasias: “Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.” (id., grifo nosso).

O conto se inicia apresentando-nos não o lugar mágico, paradigmático, do era uma vez, mas sim, um espaço-tempo indeterminado, completamente desprovido de vitalidade - para o bem ou para o mal. Lugar neutro, vazio, desreferencializado: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam”. Lugar de “todos com juízo, suficientemente”, exceto “ela a linda”(id., ibid.).

Nesse conto, a velhice não traz experiência, pois velhos e velhas apenas “velhavam”. Conforme observa Walter Benjamim (1987, p. 114) ,“as ações da experiência estão em baixa” no mundo moderno, sobretudo após a experiência traumática da primeira guerra mundial. Embora em contexto diverso do apontado pelo filósofo alemão, nesta nova velha estória de Rosa a experiência também tem baixa cotação, sobretudo a que seria transmitida pelos contos de fadas, que se mostram fora de lugar, ou como um lugar vazio: “Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo.” (grifo nosso). Resta a Fita-Verde anunciar para si (pois lobo não há) o próprio percurso: “Então, ela, mesma, era quem se dizia: - Vou à avó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou”. E na busca de uma possível e, quiçá, redentora fantasia, ela segue pelo avesso das coisas, num mundo que, mesmo no reino da imaginação, traz o sinal de menos: “A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são” (Rosa, 1992).

Ao escolher o caminho “louco e longo”, e não o “encurtoso”, FitaVerde quer a leveza do mundo - “Saiu, atrás de suas asas ligeiras...”. No comum das coisas, no estrito limite natural de cada coisa, ela introduz a graça, o encantamento: “Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeizinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente por elas passa. Vinha sobejadamente” (id., ibid., grifo nosso). À medida que a narrativa avança, fica cada vez mais evidente uma falta radical, uma disseminada marca de ausência, um sinal negativo, mesmo quando Fita-Verde encena-se no reino do faz-deconta, durante a caminhada e na casa da avó. Ali, triste por ter perdido a inventada fita verde no cabelo atada, as indagações de Fita-Verde à avó recebem como resposta a negativa em relação aos gestos que as aproximariam: os braços magros é porque ela não poderia nunca mais abraçar a neta; os lábios arroxeados é porque não mais poderia beijá-la; e os olhos fundos é porque já não conseguia mais ver a neta.

Ainda assim, e um tanto paradoxalmente, podemos notar também nesse conto de Rosa a presença das três acepções distintas que a leveza literária pode assumir, conforme elencadas por Calvino: tecido verbal quase imponderável; a narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis; imagem figurativa da leveza com valor emblemático. Mas a leveza, que se materializa como tavessia poética, no plano formal, e que se projeta como busca pessoal, no plano do enredo, por fim, cederá ao peso e ao negrume do mundo.

Com a morte da avó, uma solidão aterradora toma conta de Fita-Verde, quebrando o encanto do seu mundo imaginário: “Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez” (id., ibid.). Seu desolamento é tamanho que a faz lançar um apelo patético4 4 Tomamos a palavra no seu sentido etimológico: que comove a alma, despertando um sen- timento de piedade ou tristeza. , aparentemente à avó: “Gritou: - ‘Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!...’” (id., ibid.)

Esse apelo, na verdade, extrapola qualquer referência pontual do texto, ressoando, como um apelo de sentido para a vida, e para a estória, ou para a sua própria história. Nesse momento, a sombra da tragédia desce sobre a personagem, uma sombra espessa que, durante toda a narrativa, rondava a nossa heroína, ela, a linda. Não há aventura, providência ou mesmo ensinamento ao final da estória. Resta a Fita-Verde, e aos estarrecidos leitores, um “frio, triste e tão repentino corpo”. E mais não há.

Walter Benjamim observa que “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores”. Esses narradores de que trata o filósofo estão ligados às fontes populares e tradicionais, e podem ser classificados em dois grupos: “Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e o outro pelo marinheiro comerciante” (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter (1987). “Experiência e pobreza” e “O Narrador: considerações acerca da obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e políticas: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3. ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense., p. 198-9). Ambos se alimentam da experiência, sejam as adquiridas em terras distantes, sejam as consolidadas nas tradições do lugar de origem. Tomando tais parâmetros para pensarmos Fita verde no cabelo, veremos que tanto o narrador quanto a protagonista da estória acabam por anular o valor da experiência, seja a da tradição local (a monótona aldeia e uma imaginação impotente ou à deriva), seja a experiência que vem de fora (centrada na perspectiva ilustrada e metacrítica do narrador do conto). Dessa forma, Fita verde no cabelo reflete, ainda, o peso do mundo contemporâneo que, nas palavras de Ítalo Calvino, não propiciaria exemplos que ilustrem a ideia de leveza.

Por fim, podemos dizer que Fita verde no cabelo apresenta muitos elementos caros à ficção rosiana, como a presença central da criança, a quebra da lógica racional, o tema da travessia ligada a uma busca pessoal, a emergência do lúdico e do pensamento mágico; tudo isso sob a força potencializadora de uma linguagem ao mesmo tempo densa e intuitiva, lógica e poética. Contudo, embora explicitamente ligado ao universo do conto de fadas, Fita verde no cabelo acaba por negar a dimensão providencial de que fala Alfredo Bosi, a intervenção das forças poéticas e/ou mágicas malogra, diferentemente do que acontece em contos como “A menina de lá”, “Sorôco, sua mãe, sua filha”, “Pirlimpsiquice” e “O recado do morro”, entre outros. Por outro lado, Fita verde no cabelo tem um impacto simbólico e um tamanho grau de estranhamento que nos faz aproximá-lo da radicalidade expressiva de “A terceira margem do rio”. Nesses dois contos, temos um problema radical, mas que não se explicita; e somos levados a uma situação de impasse cuja extensão ou solução está fora de alcance, fora do texto, mas dentro da vida.

Em Chapeuzinho Amarelo, Chico Buarque propõe e dispõe o salto poético do enredo e a consequente transcendência espiritual da personagem, através do investimento nas forças criativa e performática da linguagem. Por sua vez, em Fita verde no cabelo, Guimarães Rosa recria o conto de fada Chapeuzinho Vermelho pelo avesso, num processo progressivo de esvaziamento do valor da experiência, do poder da imaginação e das referências simbólicas. O mundo parece apagar-se ante a perplexidade de Fita-Verde e do leitor, lançados que são no “oco” do mundo, sem mesmo a remissão dos loucos ou dos visionários.

Fita verde no cabelo é um conto de dor e espanto incomensuráveis. E é bastante reveladora a cara de perplexidade de toda criança ou adolescente que o ouve.

Referências bibliográficas

  • BENJAMIN, Walter (1987). “Experiência e pobreza” e “O Narrador: considerações acerca da obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e políticas: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3. ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.
  • BETTELHEIM, Bruno (1980). A psicanálise dos contos de fadas. 6. ed. Trad. Aline Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • BOSI, Alfredo (1988). “Céu, inferno”. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideologia. São Paulo: Ática.
  • BUARQUE, Chico (1997). Chapeuzinho Amarelo. Ilust. Ziraldo, Rio de Janeiro: José Olympio.
  • CALVINO, Ítalo (1990). “Leveza”. In: Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso, São Paulo: Companhia das Letras.
  • CASCUDO, Luis da Câmara (1986). “O Chapelinho Vermelho”. In: Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp.
  • DARNTON, Robert (1986). “Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso”. In: O grande massacre dos gatos - e outros episódios da História Cultural Francesa. 2. ed. Trad. Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal.
  • GRIMM, Jacob e Wilhelm (1989). “Chapeuzinho Vermelho”. In: Os contos de Grimm. 2. ed. Ilust. Janusz Grabianshi. Trad. Tatiana Belinky. São Paulo: Edições Paulinas.
  • ROSA, João Guimarães (1992). Fita Verde no Cabelo: nova velha história. Ilust. Roger Mello. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • 1
    Texto originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 8 de fevereiro de 1964, e foi depois republicado na obra póstuma Ave, Palavra. Usou-se aqui a versão ilustrada da editora Nova Fronteira, quando o conto se apresenta para um público infantil.
  • 2
    Nesta passagem, Ziraldo, cujas belas ilustrações mereceriam leitura específica, projeta a figura do LOBO na sombra da própria Chapeuzinho Amarelo.
  • 3
    Através do reposicionamento das sílabas, subvertem-se os sentidos semântico e simbólico, e o LOBO vira BOLO.
  • 4
    Tomamos a palavra no seu sentido etimológico: que comove a alma, despertando um sen- timento de piedade ou tristeza.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010

Histórico

  • Recebido
    Fev 2010
  • Aceito
    Jun 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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