Acessibilidade / Reportar erro

Devir-terra na literatura de ficção visionária de Jota Mombaça1 1 Este texto é um desdobramento da dissertação “Fabulação na arte contemporânea brasileira: cartografia de artistas visuais”, feita por Wes Viana e orientada por Ana Maria Pereira Lima no Mestrado Interdisciplinar em História e Letras (MIHL), da Universidade Estadual do Ceará (UECE). A dissertação foi defendida em 28 de abril de 2023.

Becoming-ground in Jota Mombaça’s visionary fiction literature

Devenir-tierra en la literatura de ficción visionaria de Jota Mombaça

Resumo

Partimos do território contestado da literatura brasileira contemporânea (Dalcastagnè, 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais. Iberic@l, Paris, n. 2, p. 13-18. Disponível em: https://iberical.sorbonne-universite.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf. Acesso em: 2 nov. 2021.
https://iberical.sorbonne-universite.fr/...
), caracterizado por um apagamento histórico de mulheres escritoras, principalmente mulheres negras, para abordar um agravante nessas discussões: a invisibilidade de escritoras trans, travestis e não binárias na contemporaneidade da literatura brasileira. Diante desse problema, o nosso objetivo é cartografar o devir-terra na literatura de ficção visionária de Jota Mombaça (2021)MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó.. E, para isso, dividimos este artigo em três momentos. No primeiro, apresentamos o conceito “ficção visionária”, da escritora Walidah Imarisha (2016)IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
. No segundo, apresentamos o conceito “mundo ordenado”, da escritora Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo.. E no terceiro momento, analisamos o movimento de transição à terra, da escritora Jota Mombaça, a partir de dois capítulos do livro Não vão nos matar agora (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó.). Essa análise está entrelaçada com o conceito de “devir”, no texto “A literatura e a vida” (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34.). Baseada nessas discussões, a nossa hipótese é que a literatura de ficção visionária de Jota Mombaça anuncia às minorias que virão uma revolução molecular, com vista à descolonização do mundo colonial, capitalista e neoliberal; o fim do mundo como conhecemos.

Palavras-chave:
ficção visionária; literatura brasileira; minoria; devir

Abstract

We start from the contested territory of contemporary Brazilian literature (Dalcastagnè, 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais. Iberic@l, Paris, n. 2, p. 13-18. Disponível em: https://iberical.sorbonne-universite.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf. Acesso em: 2 nov. 2021.
https://iberical.sorbonne-universite.fr/...
), characterized by a historical erasure of women writers, mainly black women, to address an aggravating factor in these discussions: the invisibility of trans, travestis and non-binary writers in contemporary Brazilian literature. Faced with this problem, our objective is to map the becoming-earth in the visionary fiction literature of Jota Mombaça (2021)MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó.. And, to this end, we have divided this article into three moments. In the first, we present the concept “visionary fiction”, by writer Walidah Imarisha (2016)IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
. In the second, we present the concept “ordered world”, by writer Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo.. And in the third moment, we analyze the movement of transition to the ground, by the writer Jota Mombaça, based on two chapters of the book They won’t kill us now (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó.). This analysis is intertwined with the concept of “becoming”, in the text Literature and Life (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34.). Based on these discussions, our hypothesis is that Jota Mombaça’s visionary fiction literature announces to minorities that a molecular revolution will come, with a view to the decolonization of the colonial, capitalist and neoliberal world, the end of the world as we know it.

Keywords:
visionary fiction; Brazilian literature; minority; becoming

Resumen

Partimos del territorio disputado de la literatura brasileña contemporánea (Dalcastagnè, 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais. Iberic@l, Paris, n. 2, p. 13-18. Disponível em: https://iberical.sorbonne-universite.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf. Acesso em: 2 nov. 2021.
https://iberical.sorbonne-universite.fr/...
), caracterizado por un borrado histórico de escritoras, principalmente negras, para abordar un factor agravante de estas discusiones: la invisibilidad de las escritoras trans, travestis y no binarias en la literatura brasileña contemporánea. Frente a esta problemática, nuestro objetivo es mapear el devenir-tierra en la literatura de ficción visionaria de Jota Mombaça (2021)MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó.. Y, para ello, hemos dividido este artículo en tres momentos. En el primero, presentamos el concepto “ficción visionaria”, de la escritora Walidah Imarisha (2016)IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
. En el segundo, presentamos el concepto “mundo ordenado”, de la escritora Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo.. Y en el tercer momento, analizamos el movimiento de transición a la tierra, de la escritora Jota Mombaça, a partir de dos capítulos del libro Ahora no nos matarán (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó.). Este análisis se entrelaza con el concepto de “devenir”, en el texto Literatura y vida (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34.). A partir de estas discusiones, nuestra hipótesis es que la literatura de ficción visionaria de Jota Mombaça anuncia a las minorías que llegará una revolución molecular, con miras a la descolonización del mundo colonial, capitalista y neoliberal, el fin del mundo tal como lo conocemos.

Palabras clave:
ficción visionaria; literatura brasileña; minoría; devenir

INTRODUÇÃO

Jota Mombaça é uma bicha não binária1 1 Não binariedade é um espectro de gênero afirmado por pessoas que não se identificam com as divisões opostas e complementares (dicotômicas) que estruturam o gênero e a sexualidade numa dada sociedade. Enquanto o pensamento binário reconhece apenas dois gêneros (homem ou mulher), duas qualidades (macho ou fêmea) e duas sexualidades (heterossexual ou homossexual), a não binariedade desvia dessas categorias hegemônicas, a partir de identidades trans (agênero, intergênero, bigênero, gênero fluído etc.) e de sexualidades dissidentes (assexual, demissexual, androssexual, ginessexual etc.). Não existe uma forma ou estética não binária, os modos de expressão e os pronomes variam de pessoa para pessoa. , escritora e artista nordestina, cuja linguagem discute a crítica anticolonial e a desobediência de gênero. Ela faz parte de uma geração de artistas que debatem colonialismo, racismo e processos de descolonização, a partir de articulações entre gênero, raça e classe. Sua produção literária envolve, entre outras rotas, a literatura de ficção visionária, uma prática interdisciplinar que invoca a germinação de novos mundos nas interseções entre literatura, performance e artes visuais. Seu trabalho artístico ensaia o fim do mundo como o conhecemos e já esteve em diversas exposições coletivas nacionais e internacionais2 2 Algumas delas: 22ª Bienal de Sydney: Nirin (2020), na Austrália; Mais, Mais, Mais (2020), em Tank Shanghai, na China; 46º Salão de Artistas da Colômbia (2019); À Nordeste, no Sesc 24 de Maio, no Brasil (2019); 10ª Bienal de Berlim: não precisamos de outro herói (2018), na Alemanha; entre outras. . Além da ficção visionária, a produção de Jota Mombaça transita entre justiça anticolonial, interseccionalidade política, redistribuição da violência, entre outros temas sociais e acadêmicos.

De sua produção, interessa-nos investigar a literatura de ficção visionária, a partir do livro Não vão nos matar agora (2021), publicado pela editora Cobogó. Nele, “a autora busca repensar o mundo como o conhecemos, propondo alternativas e transformações rumo ao novo. Trata-se, pois, de afirmar a resistência dos corpos vigiados por sistemas de controle” (orelha do livro). A obra reúne textos já publicados e outros textos inéditos ao longo da trajetória da escritora, e nós nos propomos a analisar os capítulos “-9 O nascimento de Urana” e “-5 Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas”. Nessa análise, contrapomos a produção artístico-literária de Jota Mombaça ao problema macropolítico da violência contra as vidas trans, dissidente sexual e preta no Brasil, que atinge diferentes territórios, entre eles o da literatura.

A literatura brasileira contemporânea como um campo de disputa é um problema histórico já diagnosticado por Regina Dalcastagnè (2012)DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais. Iberic@l, Paris, n. 2, p. 13-18. Disponível em: https://iberical.sorbonne-universite.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf. Acesso em: 2 nov. 2021.
https://iberical.sorbonne-universite.fr/...
. Fruto de um regime racista, patriarcal e escravocrata, esse problema pode ser visualizado na recorrente aptidão de o Brasil escamotear vozes de mulheres pretas. No século 19, quando a branquitude burguesa inventa um projeto romântico de nação brasileira, esse regime silencia nomes como o de Maria Firmino dos Reis, a primeira romancista brasileira, pioneira da crítica antiescravista. Já no século 20, quando a imprensa hegemônica inventa um “universo feminino”, a ideologia racista e consumista da burguesia ascendente da época propaga temas sobre casa, moda e beleza, enquanto ignora uma realidade de fome e miséria denunciada por Carolina Maria de Jesus. Esse regime dominante também se atualiza no século 21, por exemplo, quando em 2018 a Academia Brasileira de Letras dispensa o nome da escritora Conceição Evaristo (Azevedo, 2021AZEVEDO, Celina Dias (2021). Duas mulheres velhas e a Academia Brasileira de Letras! Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/duas-mulheres-velhas-e-a-academia-brasileira-de-letras. Acesso em: 20 set. 2023.
https://www.geledes.org.br/duas-mulheres...
) para homenagear um cineasta branco, ou quando em 2008 a escritora Ruth Guimarães (Oliveira, 2022OLIVEIRA, Ítalo (2022). Djamila Ribeiro é a 1ª negra na Academia Paulista de Letras. Notícia Preta. Disponível em: https://noticiapreta.com.br/djamila-ribeiro-e-a-1a-negra-na-academia-paulista-de-letras. Acesso em: 20 set. 2023.
https://noticiapreta.com.br/djamila-ribe...
) é a primeira mulher negra a assumir uma cadeira na Academia Paulista de Letras, desde sua fundação em 1909.

É difícil pensar a literatura brasileira contemporânea sem movimentar um conjunto de problemas, que podem parecer apaziguados, mas que se revelam em toda a sua extensão cada vez que algo sai de seu lugar. Isso porque todo espaço é um espaço em disputa, seja ele inscrito no mapa social, ou constituído numa narrativa. [...] Só para citar alguns números, em todos os principais prêmios literários brasileiros (Portugal Telecom, Jabuti, Machado de Assis, São Paulo de Literatura, Passo Fundo Zaffari & Bourbon), entre os anos de 2006 e 2011, foram premiados 29 autores homens e apenas uma mulher (na categoria estreante, do Prêmio São Paulo de Literatura). Outra pesquisa, mais extensa, coordenada por mim na Universidade de Brasília, mostra que de todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras, em um período de 15 anos (de 1990 a 2004), 120 em 165 autores eram homens, ou seja, 72,7%. Mais gritante ainda é a homogeneidade racial: 93,9% dos autores são brancos. Mais de 60% deles vivem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Quase todos estão em profissões que abarcam espaços já privilegiados de produção de discurso: os meios jornalístico e acadêmico (Dalcastagnè, 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais. Iberic@l, Paris, n. 2, p. 13-18. Disponível em: https://iberical.sorbonne-universite.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf. Acesso em: 2 nov. 2021.
https://iberical.sorbonne-universite.fr/...
, p. 13-14).

É porque reconhecemos a crescente conquista histórica de mulheres negras nos espaços da branquitude cisgênera, patriarcal e capitalista que lançamos um olhar crítico aos estudos de literatura brasileira contemporânea: o problema do apagamento histórico de escritoras negras agrava-se quando nos referimos a produções literárias de escritoras trans, travestis e não binárias. Nesse sentido, Amara Moira (in Geremias, 2021GEREMIAS, Priscilla (2021). Amara Moira fala da literatura trans como ferramenta de combate à transfobia. Marie Claire, Porto Alegre. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Cultura/noticia/2021/01/amara-moira-fala-da-literatura-trans-como-ferramenta-de-combate-transobia.html. Acesso em: 3 abr. 2022.
https://revistamarieclaire.globo.com/Cul...
) adverte que a maior parte das obras artísticas produzidas por pessoas trans é publicada por editoras e gravadoras independentes, em tiragens de pouco alcance, e por isso não traz grandes transformações ao mercado livresco nem à sociedade em geral. Mas a falta de visibilidade para identidades que historicamente são marginalizadas é somente a ponta do problema. Diferentes camadas desse agravante direcionam as discussões para o problema macropolítico de o Brasil liderar, pelo 14º ano consecutivo, a lista de países que mais assassinam e violentam travestis e transexuais brasileiras, principalmente negras e pobres (Benevides, 2023BENEVIDES, Bruna G. (2023). Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília: Distrito Drag; Antra. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf. Acesso em: 12 set. 2023.
https://antrabrasil.files.wordpress.com/...
). Como hackear esse tempo?

Para ensaiar uma resposta a esse problema, dividimos este artigo em três momentos. No primeiro, apresentamos o conceito “ficção visionária”, da escritora Walidah Imarisha (2016)IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
. No segundo, apresentamos o conceito “mundo ordenado”, da escritora Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo.. Citando as escritoras e a crítica especializada (Costa e Greiner, 2020COSTA, Pablo Assumpção Barros; GREINER, Christine (2020). Dobrar a morte, despossuir a violência: corpo, performance, necropolítica. Conceição/Conception, Campinas, v. 9, p. 1-19. https://doi.org/10.20396/conce.v9i00.8661341
https://doi.org/10.20396/conce.v9i00.866...
), propomos o diálogo entre Imarisha e Ferreira da Silva como um exercício de imaginação radical do mundo em que vivemos. Dessa maneira, desmontando os pilares ontoepistemológicos do mundo ordenado, acreditamos que a literatura de ficção visionária incorra num ato de transformação social, com a função de afirmar a vida de corpos dissidentes nos estudos da literatura brasileira contemporânea. Nesse sentido, a literatura de ficção visionária toma como critério a vida em sua multiplicidade e diferença, para fabular novas atmosferas possíveis a corpos trans, travestis e não bináries.

No terceiro momento, analisamos o movimento de devir-terra na literatura de Jota Mombaça, com uma leitura e análise comparada entre dois capítulos do livro Não vão nos matar agora (2021), os textos “-9 O nascimento de Urana” e “-5 Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas”. Essa análise está entrelaçada com a filosofia política de Gilles Deleuze, no conceito de devir, discutido no capítulo “A literatura e a vida”, do livro Crítica e clínica (1997). Dessa maneira, apresentando o devir-terra como uma revolução molecular que desordena os modos normativos de existência, acreditamos que a literatura de ficção visionária de Jota Mombaça anuncia às minorias que virão a descolonização do mundo ordenado da modernidade, o fim do mundo como conhecemos.

FICÇÃO VISIONÁRIA EM WALIDAH IMARISHA

Outros mundos não apenas são possíveis, mas estão vindo – e já podemos ouvi-los respirar.

(Walidah Imarisha, 2016IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
)

O conceito “ficção visionária” vem da escritora Walidah Imarisha3 3 Walidah Imarisha é uma mulher negra, escritora, educadora, artista e estudiosa de ficção científica, coeditora, com adrienne maree brown, da antologia Octavia’s brood: science fiction stories from social justice movements (2015). Atualmente, Imarisha é professora assistente no Departamento de Estudos Negros e Diretora do Centro de Estudos Negros da Portland State University, nos EUA. e refere-se a gêneros especulativos que desviam dos modos de existência hegemônicos em ficção científica. “Sabemos que não lutamos contra um sistema de opressão unidirecional — nós estamos lutando contra um sistema branco supremacista hétero-patriarcal e capitalista (bell hooks está certa) — então nossa resposta deve ser abrangente e englobante de tudo” (Imarisha, 2016IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
, p. 6). Enquanto a ficção científica costuma replicar os horizontes da imaginação do colonizador, perpetuando as políticas de desigualdade atuais em realidades distópicas, a ficção visionária rompe com essa ideologia dominante e apropria-se da ficção científica para fabular novas atmosferas possíveis, a partir dos usos políticos que as minorias4 4 Para Gilles Deleuze (2010), minoria é um estado de potência e subalternização. No caso do Brasil, a nossa herança histórica e cultural atualmente subalterniza as seguintes interseções minoritárias: LGBTQIAPN+, mulheres, negros, indígenas, crianças, pessoas com deficiência, pessoas gordas etc. fazem numa língua maior5 5 Na filosofia política de Gilles Deleuze (2010), línguas maiores referem-se a línguas veiculares, isto é, línguas administrativas de práticas econômicas, estatais ou globais. No caso do Brasil, cujo projeto de colonização dizimou diversas línguas originárias para a construção de uma identidade nacional, a língua portuguesa é uma língua maior. .

A “ficção visionária” foca naquelas pessoas que têm sido marginalizadas pela sociedade em geral, especialmente as que vivem identidades e eixos de opressão interseccionais. Esse enquadramento fundamentalmente feminista é talvez melhor exemplificado na obra de [Octavia] Butler. A maioria de suas protagonistas são mulheres ou pessoas trans racializadas e, quando essas personagens deslocam-se para o centro da sociedade, vemos a emergência de comunidades visionárias (Imarisha, 2016IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
, p. 6).

No texto “Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça” (2016), Imarisha defende que, para construir novos mundos, é importante imaginá-los coletivamente. Por isso, diante do mundo atual, cuja realidade dominante vislumbra o futuro pelo viés da justiça criminal, o conceito de justiça invocado por Imarisha investiga experimentações sobre justiça social e prisões, para fabular novas formas de existir no futuro. Trata-se de uma crítica abolicionista prisional, imaginando o fim das prisões. Como lembra Imarisha, fabular um mundo sem prisões, livre da violência policial, um mundo onde todas as pessoas tenham comida, roupas, moradia, acesso à cultura, condições dignas de vida é um sonho coletivo. Nesse sentido, a justiça visionária de Imarisha apropria-se da ficção científica para ensaiar a criação de outros dispositivos de justiça.

Apesar de nossa habilidade para analisar e criticar, a esquerda se enraizou naquilo que é. Nós frequentemente esquecemos de vislumbrar aquilo que pode vir a ser. Esquecemos de escavar o passado em busca de soluções que nos mostrem como podemos existir de outras formas no futuro. Por isso acredito que nossos movimentos por justiça precisam desesperadamente da ficção científica (Imarisha, 2016IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
, p. 3).

A ficção visionária não se limita à produção de imagens mentais, ela é uma ação coletiva comprometida com a criação de novas realidades. Para Imarisha, não se trata de abolir qualquer tipo de reparação histórica, social e afetiva, mas de pensar fora da chave da violência punitiva das prisões. As prisões são dispositivos punitivos intimamente relacionados com a ideia de futuro, pois privam determinados sujeitos do direito à liberdade na intenção de transformá-los em corpos dóceis. Além da violência punitiva desses dispositivos, também o policiamento excessivo e as abordagens mais agressivas e invasivas da polícia em comunidades negras fortalecem um sistema de vigilância fora das prisões. Dessa maneira, mesmo fora dos dispositivos punitivos, as populações negras ainda enfrentam um sistema de vigilância e controle. Exercitar o rompimento com essa discriminação racial sistemática para criar novas atmosferas possíveis a corpos racializados não brancos é o que confere à ficção visionária um ato de fabulação.

A ficção visionária oferece aos movimentos por justiça social um processo por meio do qual explorar a criação de novos mundos (embora não seja em si uma solução — e é aí que entra o trabalho prolongado de organização comunitária). Eu propus o termo “ficção visionária” (visionary fiction) para abranger os modos de criação entre gêneros literários fantásticos que nos ajudam a elaborar esses novos mundos. Esse termo nos lembra de sermos completamente irrealistas em nossas organizações, porque é somente por meio da imaginação acerca do assim chamado impossível que podemos começar a concretamente construí-lo. Quando liberamos nossas imaginações, questionamos tudo. Reconhecemos que nada disto é fixo, que é tudo poeira estelar, e que nós temos a força para moldá-lo do modo que o fizermos (Imarisha, 2016IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
, p. 4).

Embora caminhe em direção a novos tempos, a imaginação radical de Imarisha não cria realidades completamente justas, pois não se trata de uma utopia. Enquanto fabulação em ato, o futuro abolicionista defendido por Imarisha desafia as estruturas e normas existentes no atual sistema de justiça criminal. Isso não significa abrir as portas das prisões e banalizar a criminalidade, mas reimaginar como a sociedade lida com o crime, a punição e a justiça. Além disso, diferentemente do sistema de justiça criminal, que combate causas imediatas, a ficção visionária aborda criticamente causas subjacentes ao problema da criminalidade: o racismo sistemático contra populações negras, a pobreza, a desigualdade social, a falta de acesso à educação, a serviços de saúde mental etc. Referindo-se ao Afrofuturismo, Imarisha lança uma escrita crítica ao tempo presente, entoando a importância política do sonho coletivo para a criação de futuros visionários.

Sabemos que estamos vivendo uma ficção científica. Somos o sonho das gentes Pretas escravizadas, a quem foi dito que seria “irrealista” imaginar um dia em que elas não seriam chamadas propriedade. Essas pessoas Pretas recusaram a confinar seus sonhos ao realismo, e em vez disso elas nos sonharam. Assim elas curvaram a realidade, reformularam o mundo, para criar-nos (Imarisha, 2016IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
, p. 8).

A ficção visionária cria mundos que não existem atualmente, mas que podem vir a existir. E quando mencionamos a existência de um sistema branco supremacista, referimo-nos não apenas ao território da literatura brasileira contemporânea, mas ao horizonte micropolítico e ideológico da cisgeneridade branca, que domina o debate cultural e intelectual em diversos territórios de conhecimento além da literatura. Porque essa realidade dominante adoece a vida, criando hierarquias de gênero, raça e sexualidade, questionamos: como a ficção visionária se contrapõe a esse cistema6 6 A palavra “cistema” é utilizada em diversas comunidades transfeministas e de ativismo trans em geral. A reescrita da palavra dicionarizada “sistema” evidencia a relação coextensiva entre o sistema dominante que vivemos e o fundamentalismo cisgênero. Em outras palavras, o uso da palavra “cistema” evoca uma crítica à cissupremacia que estrutura e controla as concepções de gênero em diferentes países, entre eles o Brasil, com base em concepções binárias e dicotômicas: homem x mulher / macho x fêmea etc. branco e seu problema de violência contra as vidas trans, dissidente sexual e preta no Brasil? Nesse sentido, acreditamos que o diálogo entre Walidah Imarisha (2016)IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
e Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo. ofereça pistas para desmontar a atual hegemonia do sujeito colonial-moderno.

MUNDO ORDENADO E MUNDO IMPLICADO EM DENISE FERREIRA DA SILVA

E se, em vez de salvar o mundo, pudéssemos enfim dedicar-nos a acabar com isto?

(Denise Ferreira da Silva, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo.)

Os conceitos “mundo ordenado” e “mundo implicado” compõem o vocabulário do livro A dívida impagável (2019), da escritora Denise Ferreira da Silva7 7 Denise Ferreira da Silva é uma mulher negra, artista, filósofa, professora titular do Instituto de Justiça Social da Universidade de British Columbia (Vancouver, Canadá) e professora adjunta da Escola de Arte, Arquitetura e Desenho da Universidade Monash (Melbourne, Austrália). . Para ela, essa dívida é uma obrigação moral e material que não deve ser cumprida, apenas a destruição do mundo poderia redimi-la, por isso a poética negra feminista de Ferreira da Silva é um projeto ético-político que tem como meta o fim do mundo como o conhecemos. Diante da im/possibilidade de uma justiça que compense os efeitos da colonialidade e da racialidade, sua intervenção política tem como alvo a matriz cis-heteropatriarcal capitalista que sustenta o sujeito colonial-moderno. É nesse espaço de disputa, analisando de que maneira a colonialidade e a racialidade se relacionam com a arquitetura política liberal, que Ferreira da Silva intervém.

A poética negra feminista vislumbra a im/possibilidade da justiça, a qual, desde a perspectiva do sujeito racial subalterno, requer nada mais nada menos do que o fim do mundo no qual a violência racial faz sentido, isto é, do Mundo Ordenado diante do qual decolonização, ou a restauração do valor total expropriado de terras nativas e corpos escravos, é tão improvável quanto incompreensível (Ferreira da Silva, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo., p. 37).

Separabilidade, determinabilidade e sequencialidade são os três pilares ontoepistemológicos que sustentam o mundo ordenado, moderno e colonial em que vivemos. Para Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo., separabilidade é a ideia de que todo o conhecimento deve ser compreendido pelo estudo das formas e do entendimento racional. O problema é que essa produção de conhecimento da modernidade, que se reivindica universal, tende a naturalizar a ciência como verdade8 8 Em “Sobre Verdade e Mentira no sentido extramoral” (2008), Nietzsche critica a tentativa da ciência moderna de universalizar o conhecimento, considerando isso audacioso e hipócrita. Para o filósofo, o que cientificamente consideramos “verdade” funciona na vida prática como uma “mentira” que, por se mostrar funcional, é momentaneamente aceito. Essa noção de “verdade” sempre perece em algum momento, seja com o surgimento de novas “verdades” ou com o fim da vida humana, após alguns respiros da natureza. . Embora validem a produção conhecimentos em diversas comunidades científicas, a racionalidade costuma ser utilizada para determinar uma natureza supostamente verdadeira das coisas.

Inventando representações universais, indissociavelmente relacionadas a questões de gênero, raça e classe, a ciência moderna consolida a ficção de uma história única, com trajetória linear, um mundo ordenado cronologicamente para hierarquizar gêneros, raças e sexualidades e, assim, criar um sujeito subalterno global. Para Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo., as operações de racialidade num contexto global utilizam o arsenal da racialidade, isto é, a diferença racial e a diferença cultural, para inventar corpos “defeituosos”, em comparação ao padrão normativo branco e eurocêntrico. Esse mundo ordenado é incapaz de sair da chave da violência porque é constituído tão somente a partir dela.

Embora o “princípio de identidade e diferença” predomine na episteme moderna, estruturando o enunciado lógico que se reproduz em nossas categorias; ele é um ponto de partida insuficiente para a questão da negridade, de acordo com Ferreira da Silva. Esta autora argumenta que seria preciso um rompimento radical com as próprias categorias que sustentam a lógica derivada dos efeitos do Espaço (separabilidade) e do Tempo (sequencialidade), interrompendo assim a ordem do pensamento moderno. Em outras palavras, é preciso emancipar a negridade dos modos de conhecer científicos e históricos que a criaram (Costa e Greiner, 2020COSTA, Pablo Assumpção Barros; GREINER, Christine (2020). Dobrar a morte, despossuir a violência: corpo, performance, necropolítica. Conceição/Conception, Campinas, v. 9, p. 1-19. https://doi.org/10.20396/conce.v9i00.8661341
https://doi.org/10.20396/conce.v9i00.866...
, p. 17).

Contrária à invenção ocidental de corpos racialmente e culturalmente defeituosos, Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo. aposta numa poética negra feminista para a destruição desse mundo ordenado e a criação de um mundo implicado. No mundo implicado “tudo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes atuais-virtuais do universo, ou seja, como Corpus Infinitum” (Ferreira da Silva, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo., p. 46). Corpus infinitum é uma imagem que propõe uma visão alternativa da subjetividade humana, entendendo que as identidades atribuídas aos corpos não devem ser entendidas como substâncias fixas, elas estão em constante processo de transformação. Dessa maneira, inventando corpus infinitum em um mundo implicado, a poética negra feminista de Ferreira da Silva dialoga com os estudos de ficção visionária de Walidah Imarisha.

Inspiradas no pensamento de Ferreira da Silva, desviamos de discursos que justificariam o apagamento histórico e sistemático de escritoras trans, travestis e não binárias nos estudos de literatura brasileira contemporânea, acreditando que isso nos levaria à reconstrução do Mundo Ordenado. Em vez disso, decidimos investigar a poética negra feminista de Ferreira da Silva. Três descritores compõem essa poética, explicados em diálogo com três personagens negras na literatura de ficção visionária de Octavia Butler:

  • transubstancialidade, a partir da personagem Anyanwu, em Semente originária (2021);

  • transversalidade, a partir da personagem Lauren Olamina, em A Parábola do semeador (2018);

  • atravessabilidade, a partir da personagem Dana, em Kindred (2019).

Embora esses descritores sejam indissociáveis, detemo-nos na transubstancialidade para analisar confluências entre as intenções deste trabalho e a literatura de ficção visionária de Jota Mombaça.

A transubstancialidade torna-se uma possibilidade justamente porque o corpo de Anywanu rompe as linhas formais (de separabilidade) inscritas pelas nossas categorias (Corpo, Espécie, Gênero). Além de ultrapassar essas formas, seu corpo torna-se naquilo em que tenha se metamorfoseado ou que tenha curado. Isto somente pode ser imaginado porque em seu corpo (órgãos, células, moléculas, partículas) já existe a possibilidade de que ela poderia ter existido como um golfinho, por exemplo (Ferreira da Silva, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo., p. 117).

A ideia de transubstancialidade rompe com as categorias formais de identidade do mundo ordenado. Historicamente naturalizadas pelo senso comum, categorias de gênero, raça e sexualidade são constructos moldados pelas relações de poder e pelas estruturas sociais. Além disso, são frequentemente utilizadas para oprimir e hierarquizar as pessoas. Para abordar questões contemporâneas referentes a essas categorias é necessário adentrar em debates intersecionais, entendendo que as identidades são múltiplas e se sobrepõem de maneiras diferentes de pessoa para pessoa, criando assim uma experiência única e singular. Por isso, contrária ao sistema de categorias fixas do mundo ordenado, Ferreira da Silva propõe a transubstancialidade como uma ferramenta conceitual para abordar questões de racialidade, poder e subjetividade em contextos mais contemporâneos.

Contudo, embora cada corpo tenha sua experiência singular, as intersecionalidades também se encontram em debates coletivos, por exemplo, quando falamos das violências contra pessoas trans, travestis e não binárias, principalmente negras e pobres no Brasil (Benevides, 2023BENEVIDES, Bruna G. (2023). Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília: Distrito Drag; Antra. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf. Acesso em: 12 set. 2023.
https://antrabrasil.files.wordpress.com/...
). Diante desses processos estruturais de violência, investigar a potência da transubstancialidade na criação de um Mundo Implicado lança um olhar crítico para o futuro da literatura brasileira contemporânea e suas interlocuções. Não se trata de romantizar ou esquecer o passado, afinal o passado marca o presente e orienta o futuro. Em vez disso, trata-se de reconhecer uma multiplicidade de identidades heterogêneas, atravessadas por memórias de outras vidas e de outros tempos. Assim, acreditamos no entrelace da poética negra feminista de Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo. e da ficção visionária de Walidah Imarisha (2016)IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut. Acesso em: 18 ago. 2022.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/wal...
para dobrar o tempo linear da ordem e do progresso, repensando criticamente os modos de existência em que estamos imersos.

DEVIR-TERRA NA FICÇÃO VISIONÁRIA DE JOTA MOMBAÇA

Eu podia sentir a terra vibrar com cada uma de minhas perguntas, como se pensássemos juntas.

(Jota Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó.)

O livro Não vão nos matar agora (2021), de Jota Mombaça, reúne alguns textos inéditos e outros já publicados ao longo da trajetória da escritora. O título invoca o problema da violência histórica direcionada a corpos trans racializados não brancos no Brasil e conjura forças para resistir à tragédia do mundo como o conhecemos. Invocar a resistência diante do fim do mundo não é um afeto de otimismo, pois, para Mombaça, não resta dúvida que as coisas piorarão. Mas também não é um afeto de pessimismo, pois, diferente dos sentidos tradicionais de pessimismo, que nos levaria a uma resignação, Jota Mombaça menciona um “pessimismo vivo”, que reconhece as dificuldades do tempo presente e, por isso, busca maneiras de resistir e criar mudanças em contextos hostis.

Em Não vão nos matar agora (2021), Mombaça argumenta que a violência não é anômala no modo com que atinge a sociedade, a violência ordena as desigualdades como conhecemos. “É tudo parte de um projeto de mundo, de uma política de extermínio e normalização, orientada por princípios de diferenciação racistas, sexistas, classistas, cissupremacistas e heteronormativas, para dizer o mínimo” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 74). Para Jota, esse projeto global visa a definir, entre outros propósitos, em quais corpos a violência pode ser exercida. E, contra essa violência socialmente distribuída, a linguagem literária de Mombaça convida-nos a várias reflexões críticas sobre o tempo presente.

O livro Não vão nos matar agora (2021) aborda a urgência de discutir temas como justiça anticolonial, desobediência de gênero e redistribuição da violência, além de possibilitar estudos sobre a literatura de ficção visionária no Brasil. Desse livro, analisamos os capítulos “-9 O nascimento de Urana” e “-5 Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas”. Ao fazermos uma análise comparada entre os capítulos, o nosso objetivo é cartografar devires não humanos que germinam pela literatura de Jota Mombaça durante sua transição à terra. Desviando das formas binárias de gênero, que aprisionam a vida a uma suposta “humanidade” eurocêntrica, Jota Mombaça transmuta do humano para o não humano.

Em Não vão nos matar agora (2021) vamos ao encontro da terra, fabulando a criação de novos corpos e novos mundos. Desde o sumário, topicalizado em numerais negativos, já adentramos túneis cavados por Mombaça, submergindo aos estratos da terra. E, quando submersas, encontramos não apenas os túneis cavados por ela, mas um rizoma9 9 Na filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, rizoma é uma nova imagem do pensamento, na qual uma heterogeneidade de “cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc.” (Deleuze e Guattari, 2011, p. 22). Para os filósofos, rizomas se contrapõem à hegemonia de fluxos do pensamento arborescente, ou seja, à tradição filosófica que privilegia uma imagem dogmática do pensamento, fazendo uma aliança não hierárquica entre diferentes territórios. Já para a botânica, rizoma é um caule sem direção definida, que cresce abaixo do solo e vai assumindo formas e direções singulares, dessa maneira germinando a vida em sua multiplicidade e diferença. Alguns exemplos de rizoma na Botânica são: grama, bambu, cana de açúcar, bananeira etc. de cotemporalidades em túneis construídos pelas ancestrais. “Os túneis em que agora vivemos foram feitos pelas primeiras de nós que percorreram este território — pessoas escravizadas, fugindo das chibatadas daqueles que pretendiam ser seus senhores” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 94). Como a luz não chega embaixo da terra, o povo que aqui vive aprendeu a conversar pelo tato, pelo cheiro, pelo som da respiração, criando novas maneiras de perceber o mundo.

A vibração da terra me alerta sobre uma patrulha de cães de combate cumprindo seus rituais de caça a poucos quilômetros daqui [...]; por isso decidi cavar. Se eu me escondesse sob a terra, as ondas de terror não fariam mais que atordoar alguns de meus sensores, alentando minha capacidade de reação sem, entretanto, me deixar paralisada. Naquele momento, era a patrulha que me assustava mais, por isso deixei que parte de meus sensores táteis se concentrassem na vibração da terra, enquanto os demais trabalhavam para devolver a capacidade de ação ao meu corpo. Tão logo as mãos e os antebraços se liberaram da paralisia, comecei a cavar; o resto do corpo foi se soltando à medida que eu mergulhava na duna (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 119-120).

Antes de avançarmos nesse movimento de transição à terra, que em Jota Mombaça também é um movimento de fuga dos sistemas de controle e do assassinato político endereçado a corpos trans racializados, queremos apresentar o conceito de devir na filosofia política de Gilles Deleuze. No texto “A literatura e a vida”, do livro Crítica e clínica (1997), Deleuze está interessado em como se estrutura a linguagem de um tipo de literatura atenta às transformações do desejo e à liberação da vida em sua multiplicidade e diferença. Para Deleuze, escrever não é atribuir uma forma ou determinar um sentido a uma matéria vivida, “a literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento” (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34., p. 11). Por isso, acreditando no gesto inacabado da literatura, nos apropriamos da literatura de Jota Mombaça para cartografar zonas de vizinhança com a terra.

Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir-imperceptível. [...] Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com não importa o quê, sob a condição de criar os meios literários para tanto, tal como com o áster, segundo André Dhôtel. Algo passa entre os sexos, entre os gêneros ou entre os reinos (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34., p. 11).

Devir é um conceito complexo que borra dicotomias modernas como gênero, sexualidade e reino, e em diversos momentos assume novos significados na filosofia deleuzeana. De modo algum queremos esgotar esse conceito ou cristalizá-lo numa definição universal, principalmente porque o devir opera por um processo de repetição da diferença, logo não tem identidade fixa, nem essência, está sempre entre. Mas, para avançar na discussão, podemos partir do seguinte: devir não é um estado que se possa reivindicar, nem é um modelo que se possa atingir; devir nada tem a ver com a aquisição de características formais e tampouco com uma imitação do outro. Em vez disso, o devir afirma a multiplicidade de interseções minoritárias, historicamente invisibilizadas pelas estruturas de poder dominantes da maioria10 10 Para Gilles Deleuze (2010), maioria é um estado de poder e dominação. No caso do Brasil, a nossa herança histórica e cultural privilegia/valoriza as seguintes interseções majoritárias: homem, cisgênero, branco, heterossexual, adulto, cristão, urbano, rico, empreendedor, bem-sucedido etc. .

Diferentemente das interseções minoritárias, as interseções majoritárias não têm devir, porque essas categorias são agenciamentos de poder que pertencem a um sistema majoritário, e o devir é sempre minoritário. Mas isso não é um consenso entre pesquisadores. Vez ou outra, há menções sobre um devir-homem dos animais, ou devir-homem das mulheres. Salientamos que “o devir não vai no sentido inverso, e não entramos num devir-Homem, uma vez que o homem se apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda matéria” (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34., p. 11). As tentativas de explicar o devir pela correspondência empobrecem o fenômeno.

Assim como não existe um devir-homem, também não há um devir-branco ou devir-hétero, pois, como lembram Deleuze e Guattari (2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2012). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34. v. 4., p. 18): “uma correspondência de relações não faz um devir”. Dessa maneira, o devir enfatiza a natureza fluida e em constante transformação da realidade, em contraste com as categorias fixas e binárias da modernidade. Podemos encarar o devir como uma fonte infinita de transformação e resistência das minorias, mas nunca da maioria, pois isso iria contra a ênfase deleuzeana na multiplicidade, diferença e rejeição de categorias fixas e essenciais da filosofia moderna. No que compete às questões deste trabalho, podemos dizer que devir é um processo de transmutação da matéria orgânica, um cultivo de relações mais sensíveis entre as vidas humana e não humana.

Minha primeira transição se tornou consciente para mim por volta de 2017. Naquela altura, muitas de nós tínhamos a impressão de que as coisas mudariam para melhor, embora estivéssemos também atentas à persistência dos sistemas de controle e do assassinato político que nos eram endereçados. Era um tempo ambivalente. Ocupávamos espaços contraditórios, numa tensão permanente entre as posições de sujeito e objeto, entre o acesso e a exclusão, entre a afirmação da vida e a imposição da morte. Para muitas de nós, a única forma de nascer nesse tempo era ainda travando um pacto com a morte (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 121).

O devir-terra do povo subterrâneo construiu um labirinto onde nunca amanhece e de onde emerge de tempos em tempos uma luz negra, quase roxa, que ilumina os túneis sem tornar visível, encarnando nos corpos desse povo quando “perdem tudo”. “Perder tudo” é uma expressão para “morrer”. Mas desde a primeira bomba, em 1 de janeiro de 2019, todas elas já estavam mortas; desde o primeiro navio negreiro já estavam. Por isso algumas delas se identificam como zumbis. “Somos zumbis porque, a rigor, não estamos nem vivas nem mortas, mas também porque descendemos do guerreiro Zumbi dos Palmares” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 95). Junto à luz negra que emerge do profundo e emana entre os túneis quando elas “perdem tudo”, há também um avesso do apocalipse que, em Palmares, faz a vida preta fagulhar nos corpos zumbis do subterrâneo. Além disso, para se movimentar pelos túneis, é necessário respirar com prudência, inclusive quando a tragédia paralisar o corpo: voltávamos para a superfície quando, diante de nós, vimos o mundo em ruínas, a devastação do planeta.

Desde a seca dos rios em 2039, era impossível encontrar água potável na superfície da Terra. Com base em um conhecimento Krenak antigo, algumas de nós acreditávamos na hipótese de que eles haviam se escondido sob a superfície da terra; porém, com a intensificação das perfurações em busca de petróleo, minérios e também água, começávamos também a acreditar na extinção iminente dos reservatórios subterrâneos (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 124).

Mesmo nos distanciando desse túnel, continuamos a nos movimentar com cuidado. O som de água corrente vinha bem abaixo de nós, por isso era necessário prudência para atravessar a terra por onde passávamos, sem que ela ruísse sob nossos pés. Não era um movimento fácil. “Era estranho. Aos poucos comecei a perceber água corrente à minha volta. Tive subitamente a impressão de que minha localização era algures no fundo da terra. [...] Se havia água ali, talvez os rios tivessem mesmo se escondido sob a superfície...” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 125). Ainda reverberava em mim o terror da seca dos rios, e eu desejava profundamente que meus sentidos permeados pela terra pusessem hidratar novamente as lágrimas que eu havia perdido.

Seguimos por outros túneis até encontrar uma superfície na qual “toda a costa havia sido [...] contaminada deliberadamente, e tudo estava agora tomado por microplásticos e uma espécie de fungo, cuja função era precisamente a de perpetuar a morte do ecossistema marinho” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 126). Nessa realidade distópica, além da devastação dos mares, clínicas de destransição forçada e patrulhas de controle hormonal fortaleciam a perseguição e o assassinato de pessoas trans. “A perseguição à terra era feita de maneira coextensiva à perseguição aos corpos trans, assim como a luta dos corpos trans, a cada dia, tornava-se também coextensiva à luta da terra” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 127). Enquanto os assassinos clamavam pelas promessas do tempo da ordem e do progresso, para que durasse o reinado do Homem sobre a Terra, atrás de nós, rasgando a determinabilidade daquele mundo, ressoou o grito de Jota Mombaça. “queria poder calar a profecia maldita de joão batista de lacerda!” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 96).

Influenciado por diversas correntes pseudointelectuais, como o darwinismo social e a frenologia, defendidas por eugenistas desde a segunda metade do século 19, o médico João Batista de Lacerda acreditava na miscigenação como um fator positivo para embranquecer gradualmente a população brasileira. No início do século 20, no Congresso Universal das Raças (1911), sua profecia apocalíptica representou uma ferramenta política de preservação do status quo da branquitude cisgênera patriarcal da época, com o objetivo de paulatinamente efetivar um genocídio até 2012, “o ano prometido do apocalipse da vida negra no Brasil” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 98). Embora alguns ventos soprem a superação desse tempo, insistimos que o fim de um mundo mobiliza dos assassinos e de suas patrulhas a criação de novas políticas de poder e dominação.

Porque eles estão vindo é necessário resistência para enfrentar o apocalipse do cistema. Como afirma Mombaça (2021)MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., vivemos num mundo em que os corpos cismasculinos intrinsecamente viris são responsáveis, numa escala micropolítica, pela manutenção do medo nas experiências trans, dissidente sexual e feminina. A esse respeito, Mombaça (2021)MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó. ressalta que redesenhar somente as estruturas macropolíticas não é suficiente para engajar uma mudança social eficiente. Sobre isso, menciona o caso da Lei Maria da Penha, que, mesmo tornada lei em 2006, não conteve o aumento a taxa de crimes contra as mulheres11 11 Diante do aumento de casos de violência doméstica contra mulheres, a prova de Redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em 2015, abordou o tema “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Desse tema, chamamos a atenção para a palavra “persistência”, que evoca a continuidade de uma ação no tempo (a violência contra a mulher) em contraponto às estruturas de poder, no caso, a Lei Maria da Penha. Alguns anos mais tarde, durante a pandemia do coronavírus, a violência doméstica contra mulheres aumentou ainda mais (Brasil, 2020). . Em 2013, sete anos depois da criação da lei, a violência doméstica motivada pela misoginia, transfobia e racismo aumentou 12,5%, porque, segundo Jota, o Estado ofereceu uma resposta transcendental a um problema imanente.

Para Mombaça (2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 69), “apesar de sua dimensão institucional, a violência contra as mulheres, assim como contra corpos desobedientes de gênero e dissidentes sexuais em geral, está enraizada numa política do desejo que opera aquém da lei”. Mombaça argumenta que, diante de situações de violência com motivações sexista e/ou transfóbica-homofóbica-lesbofóbica-etc., as intervenções policiais costumam agir em favor do agressor, porque as ações da polícia são organizadas com base em uma produção desejante de pensamentos, isto é, de uma produção constante de pensamentos e de afetos que os motivam a agir com violência. Com Jota Mombaça, visualizamos a produção e a perpetuação de uma micropolítica dominante enraizada na sociedade, que opera pela gestão e performance da violência cismasculina tanto numa escala macropolítica, pelo pouco compromisso com a aplicação das leis de um Estado, quanto numa escala micropolítica, pela performance de masculinidades tóxicas.

Contra esse regime dominante, Mombaça propõe uma redistribuição da violência. “Redistribuir a violência, nesse contexto, é um gesto de confronto, mas também de autocuidado” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 74). Dessa maneira, a partir de uma prática crítica e clínica, a literatura de ficção visionária de Jota Mombaça exercita uma redistribuição da violência com vista ao exercício de uma descolonização do mundo. Inspirada no projeto fanoniano de desordem e destruição total dos regimes, estruturas e efeitos políticos da colonização, Mombaça sinaliza o ato de nomear a norma como o primeiro passo rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. Ciente que ninguém passa ileso pelo design global de pura violência dos horizontes de pensamentos da modernidade, sua escrita produz afetos de resistência, a partir da percepção das próprias fragilidades e do desenvolvimento de táticas de fuga, para quando a fuga for necessária.

Atordoadas pelo nosso próprio poder, nós também balançamos, estremecidas pelo estremecimento que estávamos gerando no mundo eles, assustadas com a materialidade do nosso poder, com a capacidade de afetar assim, tão diretamente, a estrutura do mundo deles, a saúde do mundo deles, a arquitetura e a gramática do mundo deles. Nós estávamos ali, atadas por uma força que provinha, precisamente, da reunião de nossas fragilidades. Nós estávamos fracas, partidas, e já tínhamos perdido tudo, tantas, tantas vezes... E de alguma forma, desde aquele labirinto de túneis sob a terra, estávamos operando um terremoto contra o mundo deles (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 99).

A redistribuição da violência em Jota Mombaça não cria realidades totalmente justas, pois trata-se de uma barricada. E, nesse sentido, aproxima-se da ficção visionária de Walidah Imarisha. “A redistribuição da violência não é capaz de parar a máquina mortífera que são as polícias, as masculinidades tóxicas e todas as ficções de poder. É apenas uma (das muitas) maneira(s) de lidar com o problema sem neutralizá-lo” (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 83). Jota Mombaça acredita na potência da imaginação preta radical capaz de invocar uma força política de transmutação entre a carne e a terra, para imaginar o mundo outramente. Essa força política afirma a possibilidade de resistir ao apocalipse deste mundo e de atravessar a tempestade em direção a uma nova terra, a novos tempos que virão.

De fato, pareceu de repente que estávamos prestes a partir para sempre o mundo deles. Até que veio uma exaustão e se abateu sobre nós e sobre a própria terra. Nossas mãos se desprenderam e começamos a cair, uma a uma. O labirinto de túneis permaneceu intacto. Por um momento, todas nós nos perguntamos, em silêncio, quanto a onde estávamos. Quão fundo, quão no cerne de tudo tínhamos ido parar? (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 99).

A literatura de Jota Mombaça também se conecta à transubstancialidade de Ferreira da Silva, pois amplia a compreensão da vida, do humano para o não humano. Esse processo de transição levanta uma série de questões importantes sobre identidade, ética e moral, e nos permite considerar a responsabilidade humana numa escala social e, também, ambiental. “A grande sacada da ficção especulativa é a de representar do futuro aquilo que está já em jogo no presente. [...] Afinal, não é difícil olhar para este tempo desde o qual eu escrevo e reconhecer nele os sinais do fim de um mundo (Mombaça, 2021MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 111). Desse modo, a literatura de ficção visionária de Jota Mombaça experimenta uma revolução molecular, subterrânea, que acontece sob os pés brancos daqueles que, pela força de suas armas, se impuseram donos do mundo.

A vida não humana tem sido fonte de discussão na literatura, nas artes e na filosofia, germinando um campo de discussão significativo que amplia a compreensão da diversidade de vida no planeta Terra. Nesse sentido, diante do adoecimento social e ambiental que conhecemos, a literatura de ficção visionária de Jota Mombaça conjura forças para resistir à tragédia do mundo. Dessa vez, enquanto voltávamos para a superfície, a vibração da terra reverberava em nossas moléculas, lembrando que todo fim de mundo acompanha a fabulação de um novo mundo. Não sei quanto tempo se passou desde que submergimos, mas já era possível ver com mais clareza as paredes dos túneis. Ao nosso redor tudo continuava calmo, e nós emergíamos para uma vida infinita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até o final do século 20 no Brasil, pessoas trans, travestis e não bináries não tinham condições de se nomear politicamente, tanto pela ausência de referências quanto pela cristalização de aspectos linguísticos, sociais e culturais da estrutura social. Mas isso foi mudando com o passar das décadas. De 1985 para 2023 houve uma integração de pessoas trans e travestis à macropolítica no Brasil: a instituição do Dia Nacional da Visibilidade Trans, em 2004; o tratamento pelo nome social em órgãos federais, em 2016; o direito à retificação de nome e gênero no registro civil, em 2018; a criminalização da transfobia, em 2019.

Porém, apesar dos direitos conquistados, não houve por parte do Estado e de suas políticas públicas um compromisso sério com demais demandas do movimento trans, especialmente a proteção à vida dessas pessoas. Um sintoma desse descompromisso em 2023 é a permanência e liderança do Brasil, pelo 14º ano consecutivo, na lista de países que mais matam pessoas trans em todo o mundo. Além do problema da baixa expectativa de vida, existe uma incessante disputa política-imagética e narrativa-intelectual sobre a visibilidade trans no Brasil, por exemplo, a invisibilização de pessoas não binárias e a estigmatização de travestis, principalmente pretas e pobres, a situações de crime, violência, prostituição e morte.

Contrária ao mundo como conhecemos, a literatura de ficção visionária de Jota Mombaça se conecta a uma virada epistemológica na literatura brasileira contemporânea e em outras artes. Diante dos regimes de controle da vida e gestão sistemática da violência do neoliberalismo, principalmente contra as vidas trans, dissidente sexual e preta, Mombaça sinaliza como linha de fuga do cistema a escrita de um tipo de literatura que rejeita o “humano” do corpo e fabula novos modos de existência com a vida não humana. Para a autora, a categoria “humano” é hierárquica porque implicitamente sinaliza o tolhimento dos corpos trans, dissidentes sexuais e racializados não brancos, a quem historicamente é negado o direito de existir. Por isso Mombaça ensaia uma transição não apenas de gênero, mas também elemental com a terra.

Acreditamos que a literatura de ficção visionária de Jota Mombaça anuncie às minorias que virão a descolonização do mundo ordenado da modernidade, porque suas personagens abdicam da sua humanidade para entrar em confluência com elementos primordiais da natureza. Nesse sentido, o devir-terra não se refere a “conversar” com a terra, mas a diferentes modos de perceber o mundo, entre eles respirar debaixo da terra, se hidratar pela terra, vibrar com a terra etc. O devir-terra na literatura de ficção visionária de Jota Mombaça decompõe o tolhimento de corpos dissidentes no mundo como conhecemos, para fabular a criação de um novo mundo, uma nova atmosfera possível que reconheça e respeite a multiplicidade de vidas trans, travestis e não bináries nos estudos de literatura brasileira contemporânea.

  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
  • 1
    Não binariedade é um espectro de gênero afirmado por pessoas que não se identificam com as divisões opostas e complementares (dicotômicas) que estruturam o gênero e a sexualidade numa dada sociedade. Enquanto o pensamento binário reconhece apenas dois gêneros (homem ou mulher), duas qualidades (macho ou fêmea) e duas sexualidades (heterossexual ou homossexual), a não binariedade desvia dessas categorias hegemônicas, a partir de identidades trans (agênero, intergênero, bigênero, gênero fluído etc.) e de sexualidades dissidentes (assexual, demissexual, androssexual, ginessexual etc.). Não existe uma forma ou estética não binária, os modos de expressão e os pronomes variam de pessoa para pessoa.
  • 2
    Algumas delas: 22ª Bienal de Sydney: Nirin (2020), na Austrália; Mais, Mais, Mais (2020), em Tank Shanghai, na China; 46º Salão de Artistas da Colômbia (2019); À Nordeste, no Sesc 24 de Maio, no Brasil (2019); 10ª Bienal de Berlim: não precisamos de outro herói (2018), na Alemanha; entre outras.
  • 3
    Walidah Imarisha é uma mulher negra, escritora, educadora, artista e estudiosa de ficção científica, coeditora, com adrienne maree brown, da antologia Octavia’s brood: science fiction stories from social justice movements (2015). Atualmente, Imarisha é professora assistente no Departamento de Estudos Negros e Diretora do Centro de Estudos Negros da Portland State University, nos EUA.
  • 4
    Para Gilles Deleuze (2010)DELEUZE, Gilles (2010). Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Tradução de Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., minoria é um estado de potência e subalternização. No caso do Brasil, a nossa herança histórica e cultural atualmente subalterniza as seguintes interseções minoritárias: LGBTQIAPN+, mulheres, negros, indígenas, crianças, pessoas com deficiência, pessoas gordas etc.
  • 5
    Na filosofia política de Gilles Deleuze (2010)DELEUZE, Gilles (2010). Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Tradução de Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., línguas maiores referem-se a línguas veiculares, isto é, línguas administrativas de práticas econômicas, estatais ou globais. No caso do Brasil, cujo projeto de colonização dizimou diversas línguas originárias para a construção de uma identidade nacional, a língua portuguesa é uma língua maior.
  • 6
    A palavra “cistema” é utilizada em diversas comunidades transfeministas e de ativismo trans em geral. A reescrita da palavra dicionarizada “sistema” evidencia a relação coextensiva entre o sistema dominante que vivemos e o fundamentalismo cisgênero. Em outras palavras, o uso da palavra “cistema” evoca uma crítica à cissupremacia que estrutura e controla as concepções de gênero em diferentes países, entre eles o Brasil, com base em concepções binárias e dicotômicas: homem x mulher / macho x fêmea etc.
  • 7
    Denise Ferreira da Silva é uma mulher negra, artista, filósofa, professora titular do Instituto de Justiça Social da Universidade de British Columbia (Vancouver, Canadá) e professora adjunta da Escola de Arte, Arquitetura e Desenho da Universidade Monash (Melbourne, Austrália).
  • 8
    Em “Sobre Verdade e Mentira no sentido extramoral” (2008), Nietzsche critica a tentativa da ciência moderna de universalizar o conhecimento, considerando isso audacioso e hipócrita. Para o filósofo, o que cientificamente consideramos “verdade” funciona na vida prática como uma “mentira” que, por se mostrar funcional, é momentaneamente aceito. Essa noção de “verdade” sempre perece em algum momento, seja com o surgimento de novas “verdades” ou com o fim da vida humana, após alguns respiros da natureza.
  • 9
    Na filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, rizoma é uma nova imagem do pensamento, na qual uma heterogeneidade de “cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc.” (Deleuze e Guattari, 2011DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2011). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34. v. 1., p. 22). Para os filósofos, rizomas se contrapõem à hegemonia de fluxos do pensamento arborescente, ou seja, à tradição filosófica que privilegia uma imagem dogmática do pensamento, fazendo uma aliança não hierárquica entre diferentes territórios. Já para a botânica, rizoma é um caule sem direção definida, que cresce abaixo do solo e vai assumindo formas e direções singulares, dessa maneira germinando a vida em sua multiplicidade e diferença. Alguns exemplos de rizoma na Botânica são: grama, bambu, cana de açúcar, bananeira etc.
  • 10
    Para Gilles Deleuze (2010)DELEUZE, Gilles (2010). Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Tradução de Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar., maioria é um estado de poder e dominação. No caso do Brasil, a nossa herança histórica e cultural privilegia/valoriza as seguintes interseções majoritárias: homem, cisgênero, branco, heterossexual, adulto, cristão, urbano, rico, empreendedor, bem-sucedido etc.
  • 11
    Diante do aumento de casos de violência doméstica contra mulheres, a prova de Redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em 2015, abordou o tema “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Desse tema, chamamos a atenção para a palavra “persistência”, que evoca a continuidade de uma ação no tempo (a violência contra a mulher) em contraponto às estruturas de poder, no caso, a Lei Maria da Penha. Alguns anos mais tarde, durante a pandemia do coronavírus, a violência doméstica contra mulheres aumentou ainda mais (Brasil, 2020BRASIL (2020). Crescem denúncias de violência doméstica durante pandemia. Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/661087-crescemdenuncias-de-violencia-domestica-durante-pandemia. Acesso em: 3 abr. 2021.
    https://www.camara.leg.br/noticias/66108...
    ).

Referências

  • AZEVEDO, Celina Dias (2021). Duas mulheres velhas e a Academia Brasileira de Letras! Geledés Disponível em: https://www.geledes.org.br/duas-mulheres-velhas-e-a-academia-brasileira-de-letras Acesso em: 20 set. 2023.
    » https://www.geledes.org.br/duas-mulheres-velhas-e-a-academia-brasileira-de-letras
  • BENEVIDES, Bruna G. (2023). Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília: Distrito Drag; Antra. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf Acesso em: 12 set. 2023.
    » https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf
  • BRASIL (2020). Crescem denúncias de violência doméstica durante pandemia. Câmara dos Deputados Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/661087-crescemdenuncias-de-violencia-domestica-durante-pandemia Acesso em: 3 abr. 2021.
    » https://www.camara.leg.br/noticias/661087-crescemdenuncias-de-violencia-domestica-durante-pandemia
  • BUTLER, Octavia Estelle (2018). A parábola do semeador São Paulo: Morro Branco.
  • BUTLER, Octavia Estelle (2019). Kindred: laços de sangue. São Paulo: Morro Branco.
  • BUTLER, Octavia Estelle (2021). Semente originária São Paulo: Morro Branco.
  • COSTA, Pablo Assumpção Barros; GREINER, Christine (2020). Dobrar a morte, despossuir a violência: corpo, performance, necropolítica. Conceição/Conception, Campinas, v. 9, p. 1-19. https://doi.org/10.20396/conce.v9i00.8661341
    » https://doi.org/10.20396/conce.v9i00.8661341
  • DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais. Iberic@l, Paris, n. 2, p. 13-18. Disponível em: https://iberical.sorbonne-universite.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf Acesso em: 2 nov. 2021.
    » https://iberical.sorbonne-universite.fr/wp-content/uploads/2012/03/002-02.pdf
  • DELEUZE, Gilles (1997). Crítica e clínica São Paulo: Editora 34.
  • DELEUZE, Gilles (2010). Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Tradução de Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2011). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34. v. 1.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2012). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34. v. 4.
  • FERREIRA DA SILVA, Denise (2019). A Dívida Impagável São Paulo: Oficina de Imaginação Política; Living Commons; A Casa do Povo.
  • GEREMIAS, Priscilla (2021). Amara Moira fala da literatura trans como ferramenta de combate à transfobia. Marie Claire, Porto Alegre. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Cultura/noticia/2021/01/amara-moira-fala-da-literatura-trans-como-ferramenta-de-combate-transobia.html Acesso em: 3 abr. 2022.
    » https://revistamarieclaire.globo.com/Cultura/noticia/2021/01/amara-moira-fala-da-literatura-trans-como-ferramenta-de-combate-transobia.html
  • IMARISHA, Walidah (2016). Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. In: 32ª Bienal de São Paulo. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut Acesso em: 18 ago. 2022.
    » https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut
  • MOMBAÇA, Jota (2021). Não vão nos matar agora Rio de Janeiro: Cobogó.
  • NIETZSCHE, Friedrich (2008). Sobre Verdade e Mentira no sentido extramoral. In: NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira São Paulo: Hedra. p. 25-50.
  • OLIVEIRA, Ítalo (2022). Djamila Ribeiro é a 1ª negra na Academia Paulista de Letras. Notícia Preta Disponível em: https://noticiapreta.com.br/djamila-ribeiro-e-a-1a-negra-na-academia-paulista-de-letras Acesso em: 20 set. 2023.
    » https://noticiapreta.com.br/djamila-ribeiro-e-a-1a-negra-na-academia-paulista-de-letras

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2022
  • Aceito
    09 Nov 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com