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Espaço de conversa sobre o trabalho e o trabalhar: breve análise de uma prática de psicodinâmica do trabalho em uma instituição de ensino

Talking space about work and working: analysis of a work psychodinamic practice in a education institution

Espacio de charla sobre el trabajo y el trabajar: análisis de una práctica de psicodinámica del trabajo en una institución de enseñanza

Resumo

Este trabalho discute um relato de experiência realizada em uma das unidades de uma instituição da rede federal de educação, no Rio de Janeiro, em que se propôs uma atividade inspirada no espaço de discussão sobre o trabalho, da psicodinâmica do trabalho de Christophe Dejours. A atividade ocorreu durante dois meses (totalizando sete encontros) com nove trabalhadores de vínculos empregatícios, carreiras e profissões diferentes. A proposta teve origem nos atendimentos realizados pela psicologia e pelo serviço social, cujas queixas relacionavam-se a assédio moral. A partir de noções como a de trabalhar, de Dejours, e da inserção da ideologia gerencialista, discutida por Gaulejac, no serviço público brasileiro desde 1995, e levando em conta as mudanças no mundo do trabalho que vêm acontecendo desde a década de 1970, foi proposto um roteiro de atividades que buscou abarcar essas temáticas e suscitar a elaboração coletiva de tais temas. Para análise da atividade, usou-se o método de análise de conteúdo, de Bardin.

Palavras-chave:
psicodinâmica do trabalho; mundo do trabalho; saúde do trabalhador

Abstract

This article aims to discuss an experience narrative that occurred in a unit of a Federal Educational Institute, located at Rio de Janeiro state, in which was proposed an activity based on the Christophe Dejours psychodynamic theory of work. The activity was proposed to nine workers with different careers, employment bonds and professions. Besides, it was accomplished in seven meetings, lasting two months. The idea of this activity was based on the concerns detected, mainly related to moral harassment, during social work and psycological care. The activities were elaborated along with the participants, inspired by Christophe Dejours´s theory of work, Vincent de Gaulejac´s concerns about the insertion of managerialist ideology, mainly on the public services since 1995, and the changes related to work relations since the 1970’s. The data produced on the activities was analised using the content analisys method proposed by Bardin.

Keywords:
psychodinamic theory of work; world work; worker’s health

Resumen

Este trabajo discute el experimento realizado en uma unidad de una institución de enseñanza de la red federal, en Río de Janeiro, en el cual propone una actividad inspirada por el espacio de discusión sobre el trabajo, de la psicodinámica del trabajo de Christophe Dejours. La actividad se produjo durante dos meses (7 reuniones) con 9 trabajadores com diferentes fianzas de empleos, profésiones y carreras. La propuesta se originó en la atención prestada por la psicología y por el trabajo social, cuyas quejas se referían al acoso moral. A partir de nociones como el trabajo, de Dejours, y de la inserción de la ideología gerencial, discutidas por Gaulejac, en el servicio público brasileño desde 1995, y teniendo en cuenta los cambios en el mundo del trabajo desde la década de 1970, se organizó una proposición de actividades que buscaba abarcar estos temas y plantear la elaboración colectiva de las dichas temáticas. Para el examen de la actividad, se utilizó el método de análisis de contenido de Bardin.

Palabras clave:
psicodinámica del trabajo; mundo del trabajo; salud del trabajador

Introdução

A partir de atendimentos das profissionais de psicologia e do serviço social a servidores em uma instituição federal de ensino, servidores cujas queixas relacionavam-se a assédio moral no trabalho, decidiu-se realizar uma atividade inspirada na psicodinâmica do trabalho e na noção de espaço de discussão sobre o trabalho (DEJOURS, 2004DEJOURS, Christophe. Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção [online], v. 14, n. 3, p. 27-34, 2004. https://doi.org/10.1590/S0103-65132004000300004
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, 2007DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. 7. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007.). O grupo foi chamado de “espaço de conversa sobre o trabalho e o trabalhar”, aproveitando a ênfase de Dejours (2004DEJOURS, Christophe. Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção [online], v. 14, n. 3, p. 27-34, 2004. https://doi.org/10.1590/S0103-65132004000300004
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, p. 30) sobre a noção de “trabalhar”, que traz a ideia de “transformar a si mesmo”. O setor de saúde da instituição federal de ensino, onde estão lotados os autores do presente relato, destina-se ao atendimento dos trabalhadores no que se refere a pleitos de saúde do trabalhador e perícias em saúde.

O presente trabalho propõe-se a discutir a experiência realizada à luz dos debates sobre mudanças no mundo do trabalho (ANTUNES, 2005ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005., 2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo , 2018.). Busca-se entrelaçar a análise do espaço de discussão sobre o trabalho com tais contribuições, levando-se em consideração a ideologia gerencialista, a partir das ideias de Gaulejac (2007GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras , 2007.) e Ehrenberg (2010EHRENBERG, Alain. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. São Paulo: Ideias & Letras, 2010.) sobre o tema, com ênfase no contexto brasileiro.

Trabalho e formas híbridas de gestão no serviço público brasileiro

Para a análise da experiência de clínica do trabalho, conforme proposto neste artigo, cabe pontuar inicialmente as escolhas conceituais das quais se parte. Desse modo, o conceito marxiano de trabalho, a noção de ‘classes-que-vivem-do-trabalho’ como algo que abarca servidores públicos, e, por fim, a ideologia gerencial no âmbito das instituições públicas serão temáticas brevemente abordadas, à guisa de introdução.

Assim, Braverman (1987BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro: Editora Ltc, 1987.), a partir da análise dos textos marxianos, assinala que trabalho é a atividade que provoca alteração do estado natural de materiais diversos (como vegetais e minerais) para que estes possam proporcionar maior utilidade aos seres ao redor, sendo comum tanto à espécie humana, quanto às demais. O que caracteriza o trabalho realizado pela espécie humana, face àquele referente às outras, é que a transformação dele resultante seria algo existente anteriormente, como intenção e planejamento, ou seja, antes de o processo de trabalho efetivamente acontecer.

O trabalho, no modo de produção capitalista, é realizado pelas classes trabalhadoras e, para Antunes (2005ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.), as mutações que vêm acontecendo nesse modo de produção e suas incidências na organização do trabalho levam a transformações nessas classes. Para o autor, o servidor público é parte da classe trabalhadora, que hoje compreende não apenas os “trabalhadores ou as trabalhadoras manuais diretos, mas incorpora a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário” (ANTUNES, 2005ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 50). O autor chama as novas classes de trabalhadores de classes-que-vivem-do-trabalho, atingidas pelas mudanças que vêm acontecendo nos mundos do trabalho desde a década de 1970. Entre tais mudanças, nota-se a ascensão de um pensamento guiado pelo gerencialismo.

No que tange às atividades gerenciais, cabe assinalar o que Ehrenberg (2010EHRENBERG, Alain. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. São Paulo: Ideias & Letras, 2010., p. 86) chama de “revolução gerencial” e o que Gaulejac (2007GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras , 2007.) nomeia de ideologia gerencialista ao analisar o gerencialismo como doença da gestão. Ehrenberg (2010EHRENBERG, Alain. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. São Paulo: Ideias & Letras, 2010., p. 86) aponta que a ideia do gerencialismo é tornar os trabalhadores “empreendedores de suas próprias tarefas”. Já Gaulejac (2007GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras , 2007., p. 88) assinala que a “empresa se apresenta como um objeto de investimento comum [...] que cada um é convidado a interiorizar, a assumir em si”, e enumera algumas características da gestão gerencialista, como a predominância dos objetivos de natureza financeira. É a partir desse entendimento que Gaulejac concebe a empresa gerencial como um sistema sociopsíquico de dominação, no qual o desejo por sucesso, desafio e reconhecimento é continuamente exaltado. No que diz respeito à operacionalização do ideário gerencialista no cotidiano de instituições públicas brasileiras, apesar de citarmos autores que analisam o cenário francês, essas ideias teriam sido, segundo Souza (2012SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2012.), importadas com êxito para o país.

Segundo Ribeiro e Mancebo (2013RIBEIRO, Carla Vaz dos Santos; MANCEBO, Deise. O servidor público no mundo do trabalho do século XXI. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 33, n. 1, p. 192-207, 2013. https://doi.org/10.1590/S1414-98932013000100015
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), a ideologia do gerencialismo se inseriu no serviço público brasileiro a partir da década de 1990 no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando se optou por fazer uma reforma à qual se chamou de “nova administração pública”. O argumento era o de que a administração burocrática era rígida, ineficiente e onerosa, ao passo que a administração gerencial oferecia um horizonte de rapidez, eficiência e custos menores. As autoras apontam que o setor público brasileiro apresenta modelos mistos de organização.

Nesse sentido, entre as características do trabalho ligadas a possíveis fontes de sofrimento do servidor público, estão os modos de gestão híbridos com características gerencialistas. Também se pode apontar os modos de vida “24/7”, ou seja, as formas de viver em que pessoas, sendo ou não pertencentes às classes trabalhadoras, devem estar em atividade 24 horas por dia, nos 7 dias da semana, o que as obrigaria a ficar constantemente conectadas. Em síntese, para estar à altura das demandas produtivistas, é preciso encarnar o “trabalhador sem sono”, apontado por Crary (2014CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 13), e ainda cumprir metas inexequíveis, próprias do gerencialismo, que levam à ideia de que é preciso produzir sem parar. Como pontuou Fischer (2020FISCHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.), o sistema de metas, onde quer que seja implementado, acaba por deixar de ser um instrumento para avaliar a performance, tornando-se o fim em si. A concorrência que decorre dessas práticas acaba por reforçar o isolamento dos trabalhadores e o enfraquecimento dos laços sociais.

O trabalhar e a psicodinâmica do trabalho

Além da concepção marxiana de “trabalho”, convém apontar que, para Dejours (2004DEJOURS, Christophe. Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção [online], v. 14, n. 3, p. 27-34, 2004. https://doi.org/10.1590/S0103-65132004000300004
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, p. 30), o “trabalho sempre coloca à prova a subjetividade”. De sua noção de trabalhar, fazem parte duas concepções de trabalho: a que é relacionada à poiesis, em que a ação do indivíduo sobre o mundo visa à sua transformação, e a ligada à de Arbeit, na qual adquire centralidade a dimensão de elaboração, de exigência de trabalho por parte da subjetividade e do psiquismo.

Segundo Mendes (2007MENDES, Ana Magnólia. A pesquisa em psicodinâmica: a clínica do trabalho. In: ______. (Org.). Psicodinâmica do trabalho: teoria, métodos e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p. 65-87.), a psicodinâmica do trabalho, como uma das diversas clínicas do trabalho existentes, tem objetivos que se centram na escuta do sofrimento e em sua elaboração, levando o trabalhador a resgatar sua emancipação como sujeito. A prática que nasce da abordagem dejouriana mostra “a importância do coletivo para tratar as problemáticas do mundo do trabalho” (MENDES, 2007MENDES, Ana Magnólia. A pesquisa em psicodinâmica: a clínica do trabalho. In: ______. (Org.). Psicodinâmica do trabalho: teoria, métodos e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p. 65-87., p. 83). Neste sentido, é possível dizer, com Mendes e Araújo (2012MENDES, Ana Magnólia; ARAÚJO, Luciane Kozicz Reis. Os dispositivos clínicos para escuta qualificada. In: MENDES, Ana Magnólia; ARAÚJO, Luciane Kozicz Reis. Clínica psicodinâmica do trabalho: o sujeito em ação. Curitiba: Juruá, 2012. p. 39-64., p. 42), que o propósito da atividade de espaço de discussão do trabalho seria o de “possibilitar a mobilização subjetiva para a construção de regras coletivas do fazer e do viver juntos, ou seja, a cooperação [...]”, instrumentalizando os trabalhadores a adquirirem protagonismo em seu ambiente de trabalho.

Em nossa proposta de criação de um espaço de discussão sobre o trabalho, buscamos unir trabalhadores independentemente de seu vínculo empregatício, considerando importante a junção de terceirizados com servidores concursados e, entre estes, profissionais de diferentes categorias e formações, isto é, técnicos administrativos em educação (servidores TAE) e docentes.

A atividade, no entanto, teve seu início adiado por causa do falecimento do diretor da unidade, acontecimento sobre o qual se falou em um dos encontros. Devido ao atraso no início da atividade, a proposta de fazer oito encontros reduziu-se a sete, pois havia a proximidade do fim do ano letivo e de atividades escolares que requeriam a presença mais constante dos trabalhadores. Ainda assim, pelo engajamento e pela variedade de trabalhadores reunidos, além de assuntos de grande impacto para sua vida e que puderam ser discutidos no grupo, considerou-se que a atividade teve relevância, reunindo nove trabalhadores, entre os quais dois auxiliares de serviços gerais, um jardineiro, uma professora, o novo diretor da unidade (docente) e quatro servidores TAE, três deles do mesmo setor (pedagoga, psicólogo e assistente administrativo).

Método

Os encontros contaram com três mediadores, sendo os encontros semanais, com duração de duas horas, e atividades que eram negociadas com os presentes. Após cada atividade, os mediadores discutiam entre si suas impressões, ajustando o roteiro inicial conforme necessidades que surgiam ao longo da atividade. Ainda que se trate de um relato de experiência, foi realizada breve categorização a partir da análise de conteúdo (BARDIN, 1979BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Martins Fontes, 1979.) para uma elaboração mais organizada dos temas debatidos. Doravante, será usado o termo “mediadoras/es” e “autoras/autor”, pelo fato de que há uma maioria de mulheres, nesse caso.

Descrição das atividades

As mediadoras/es elaboraram um roteiro que foi sendo modificado de acordo com as circunstâncias locais e os interesses do grupo. No primeiro encontro, fez-se a apresentação dos objetivos, além de um contrato verbal de sigilo. Conversou-se sobre as expectativas dos trabalhadores e sobre a psicodinâmica do trabalho. Foi proposta a dinâmica da apresentação em dupla, em que cada um contaria um pouco de si para o outro e, ao final, cada membro da dupla apresentaria o parceiro ao grupo. O objetivo do encontro era o início da atividade, de modo que fizesse sentido para todos estarem ali.

O segundo encontro teve como tema o trabalho e os sentidos que a palavra adquire para cada um do grupo, de modo que o coletivo pudesse elaborar as acepções que eram debatidas e as experiências compartilhadas. Sugeriu-se que se pudesse dizer o que a palavra trabalho evocava para cada um, e algumas das ideias foram escritas no quadro, sendo o texto de tal quadro reescrito a cada encontro, com acréscimo de novas palavras ou mesmo indagações que surgiam no decorrer dos encontros, como a que um dos trabalhadores trouxe: “A gente ainda acredita na luta coletiva?”.

Uma das acepções trazidas conferia centralidade do trabalho na vida, o que foi acompanhado da verbalização do desejo de que isso fosse diferente. Por outro lado, as ideias de potência e de afeto, ambas atravessando tudo o que se disse sobre trabalhar, também foram elaboradas. Ao final do encontro, pediu-se aos participantes que pensassem em um objeto que remetesse à convivência no trabalho e o levassem para o próximo encontro.

Pensando na temática de que trabalhar é também conviver, os trabalhadores trouxeram seus objetos, como uma vassoura (a trabalhadora pesquisou a história da vassoura, oferecendo uma cópia impressa a cada um de nós) ou um origami, que foi dado de presente por um dos trabalhadores do grupo a outro, o que se configurou como um agradecimento público; ou ainda o veículo colombiano (chiva) que traz uma variedade de objetos, cuja representação do coletivo carregava a ideia de “transbordamento”. Um código de ética profissional e um livro de atas também foram objetos levados e discutidos em sua relação com o convívio no grupo.

Para o quarto encontro, propusemos uma atividade sobre sofrimento no trabalho. A proposta se desdobrou no encontro seguinte, sobre assédio moral. Elencamos uma série de categorias relacionadas a esse tema, escritas em pedaços de papel, como “assédio moral”, “monotonia” e outras, e inicialmente pedimos que, individualmente, hierarquizassem seis delas, da mais grave à menos danosa. Depois, pedimos que, juntos, fizessem uma lista única.

No momento individual da atividade, quatro dos sete trabalhadores presentes elegeram o assédio moral como fator que mais pode adoecer um trabalhador. Para outros dois trabalhadores, o assédio moral ficou em segundo lugar, figurando em posição sem importância apenas em um caso. Nos outros três, a fofoca, o isolamento e a competição foram os fatores mais nocivos. Entre os fatores danosos, nessa primeira parte, havia fofoca, muito trabalho, acidente, egoísmo, metas difíceis, competição, falta de conversa, falta de reconhecimento, projetos que não começam e individualismo.

Na segunda parte, executada coletivamente, não havia uma ordem certa a priori para as categorias oferecidas, e foi curioso observar como algumas tinham pesos diferentes para os trabalhadores. Esse foi o caso da categoria monotonia, que, para alguns, não parecia ser passível de existir em uma rotina de trabalho, uma vez que, em suas realidades laborais, só havia excesso de trabalho. Para outros, porém, a monotonia não apenas existia como trazia muito sofrimento, sendo tão danosa para alguns que foi posicionada ao lado do assédio moral como elemento mais nocivo.

Uma vez que, malgrado tais divergências, houve consenso sobre o assédio moral ser a categoria de maior sofrimento, gerou-se o mote para o próximo encontro, em que levamos adereços e pedimos que bolassem de improviso uma cena de assédio moral. Aguardamos do lado de fora, também bolando a nossa cena, em que representaríamos uma situação na qual a chefe assediava uma funcionária, na frente dos colegas de trabalho e levantando, com isso, o debate da monotonia e dos laços de solidariedade. No caso da monotonia, a forma de assédio moral escolhida para a representação foi a retirada de tarefas da funcionária assediada, deixando-a sem ter o que fazer durante o expediente, num ócio visivelmente penoso. Já no caso dos laços de solidariedade, pretendia-se evidenciar a falta de manifestação dos colegas de trabalho frente à situação de assédio. Essa foi uma atividade com acento lúdico, calcada em noções do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal (1980BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.), em que, após as cenas apresentadas, pedimos que sugerissem desfechos diferentes. Os debates que entremearam ambas as cenas levaram ao compartilhamento de situações vividas por alguns dos trabalhadores sobre a importância da comunicação e o problema da suspeita, este último vivenciado mais amiúde pelos trabalhadores auxiliares de serviços gerais.

O sexto e penúltimo encontro teve uma apresentação expositiva de assédio moral, com espaço para debate. Estávamos quase em dezembro, e o início dos conselhos de classe tornaria a atividade inviável, caso ela enveredasse por esse mês. O encontro seguinte foi, por essa razão, o último, e pedimos para que cada um levasse um objeto ou texto que remetessem ao prazer e aos sentidos do trabalho.

Esse foi o encontro de fechamento, em que fizemos a validação do memorial; e, para nosso espanto, um novo debate surgiu. A unidade vivia uma situação bastante grave de judicialização, que envolvia todos os servidores, adoecendo alguns deles e ocasionando sofrimento em outros. A leitura em voz alta do memorial e algumas situações sublinhadas que evocavam o vivido coletivo deram margem a um debate que não havia surgido antes. A impressão inicial das/os mediadoras/es é a de que foi preciso todo o tempo de encontros para que houvesse confiança dos trabalhadores em falar sobre esse vivido coletivo de forma mais clara. Se houvesse possibilidade de estender um pouco mais o espaço de conversa, acrescentando ao menos dois encontros, as/os mediadoras/es sugeririam ao grupo uma conversa maior sobre a judicialização, que só foi pautada ao final, com seus desdobramentos afetivos, sociais e institucionais. Outra hipótese aventada é a de que a coragem para tocar no assunto só pôde surgir (e ser expressa) num encontro que seria o último, ou seja, que não traria o risco de deixar margem para que o problema, bastante grave (convém reforçar), tivesse de ser abordado novamente nas semanas seguintes, se o espaço de discussão tivesse continuidade.

Reflexões sobre o trabalho e o trabalhar

Algumas questões que geraram debates mais longos foram retomadas por nós, autoras/es, durante a leitura do memorial. Elas diziam respeito às dúvidas sobre assédio moral e aos consensos e dissensos acerca do conceito, e também a noções como a de produtividade, que gerou a chance de um debate maior sobre o excesso de metas a serem batidas, o adoecimento que isso pode vir a gerar e o binômio quantidade de trabalho x qualidade no trabalho. As temáticas referentes à comunicação e à fofoca também ganharam importância, ocasionando exemplos da vida de trabalhadores do grupo. Além disso, a sensação de falta de comunicação foi relacionada à falta de pertencimento institucional. Neste sentido, foi discutida, sob roupagens conceituais variadas, a importância de fortalecer o coletivo e os laços do grupo no trabalho.

Finalmente, um ponto que chamou a atenção de alguns dos trabalhadores, gerando o debate supracitado ao final, foi o que se nomeou como clima de “aparente normalidade” (sic), em que relações deterioradas de trabalho passam, na rotina, como se não estivessem acontecendo. O que fazer diante do aparente clima de normalidade paralelo a alguns processos de grande sofrimento no trabalho? Em que isso influenciaria o quotidiano do coletivo? Como se verá adiante, uma das trabalhadoras falou sobre a sensação de estar “cercada” (no sentido de “acuada”), o que se transformou na ideia de “se cercar”, isto é, se munir de suporte coletivo nas situações difíceis de trabalho. Junto a essas questões, uma última dizia respeito às relações de poder, em que uma pergunta surgiu: é apenas o cargo que confere poder? O debate sobre as relações de poder esteve presente ao longo dos encontros, tendo se acentuado ao final, evidenciando a necessidade de uma caminhada de construção coletiva de confiança e pertencimento ao próprio “espaço de conversa sobre o trabalho e o trabalhar” para que assuntos mais espinhosos viessem à tona.

Categorização

Apesar de nosso objetivo precípuo ter sido o de criar um espaço onde a palavra pudesse circular entre os trabalhadores, fortalecendo os vínculos coletivos, também pudemos, posteriormente, analisar os dados que reunimos. Assim, a partir das anotações das falas e objetos trazidos para as atividades, selecionamos três categorias que apresentaram maior importância: a) sentido do trabalho; b) questões político-institucionais relacionadas ao trabalho; e c) sofrimento no trabalho. A categoria que mais chamou atenção foi a referente às questões político-institucionais relacionadas ao trabalho, o que corrobora nossa impressão acerca da vivência coletiva da maior parte dos trabalhadores do campus, em que um processo de judicialização e um clima de perseguição afetavam a todos.

Alguns exemplos atinentes à primeira categoria se encontram na fala de um dos trabalhadores, que diz que “o trabalho antes era uma realização, hoje é uma utilidade”. Outra fala importante foi a do trabalhador que, na atividade dos objetos relacionados ao conviver no trabalho, levou uma dedeira, para uso de violão, dizendo que ela representava “algo que eu gosto de fazer”, “ser educador”. Um terceiro trabalhador, lotado na biblioteca da unidade, mas tendo uma longa experiência anterior de trabalho em bar, levou dois objetos: o livro e o abridor de garrafas, estabelecendo um “elo” entre cada um desses objetos e desses momentos de sua vida, ligados ao trabalho, dizendo que “um bar faz você ter muita leitura da vida”. Ele aqui se referia a crescimento pessoal a partir do que lhe ofereciam os contextos de trabalho. O jardineiro da instituição, na atividade dos objetos sobre o conviver, levou um instrumento de poda das plantas, explicando que era necessário “podar embaixo para dar força”, e o tema do jardim foi de importância não apenas nesse encontro, uma vez que evocava o antigo diretor da unidade, que havia falecido poucos dias antes do início do espaço de discussão. Ele havia cuidado do jardim e o embelezado, deixando uma espécie de herança a esse trabalhador, que a encarava como uma espécie de missão e de manutenção de uma memória, uma vez que havia tido uma relação mais estreita com o diretor falecido.

Quanto à terceira categoria, sobre o sofrimento no trabalho, um dos trabalhadores diz: “Quero dar minhas aulas e ir pra casa”, em um momento de queixas referentes a estar naquele espaço de trabalho. A trabalhadora que trouxe a chiva (que relacionara ao transbordamento) refere-se ao trabalho como “cárcere privado”, e outra trabalhadora refere-se ao “decréscimo de prazer” em relação ao trabalho, quando compara o momento em que entrou na instituição e o que vinha vivenciando àquela época. Esse “decréscimo de prazer” se vinculava ao difícil processo de judicialização já abordado. Outra fala dessa mesma servidora, que cabe não apenas nesta categoria, como também na segunda, mencionada na seção precedente, refere-se a “se sentir cercada”, o que parece expressar com exatidão o que todos pareciam sentir face ao processo de judicialização que a unidade vinha atravessando há mais de um ano. Os trabalhadores terceirizados não tinham amplo conhecimento do que viviam, nesse âmbito, os concursados, e a atividade proporcionou o compartilhamento da situação.

A segunda categoria, sobre a qual deixamos para comentar ao final por ser a mais extensa, refere-se às situações relacionadas às políticas institucionais características da unidade onde realizamos a atividade, ligadas às políticas institucionais mais amplas, da instituição como um todo. Sobre essa situação, não poderemos nos deter mais longamente, uma vez que se trata de um processo de judicialização ainda em curso que causa grande sofrimento às pessoas envolvidas. Essa situação foi um dos motivos mais relevantes que nos fizeram escolher essa unidade como primeiro local a realizar a atividade, entre as outras unidades da instituição. A trabalhadora que levou a chiva refere-se a “guerras frias no trabalho”, o que se complementa com a “aparente normalidade” a que faz referência outra servidora. Essa última também se refere a um “acirramento das questões políticas”. Outro trabalhador refere-se à instituição assinalando que ela “não pensa como escola”, não havendo discussão sobre educação. Queixa-se também da ausência da licenciatura como exigência em alguns casos de professores. Outra fala refere-se a estarem “na escola dos outros”, onde a sensação de pertencimento ao local de trabalho mostrava-se ausente. Já o trabalhador que se referira à centralidade do trabalho em sua vida diz que “a impressão é que eu tenho que lidar com quatro coordenadores diferentes, quatro escolas diferentes”.

É importante lembrar adicionalmente que a atividade foi realizada no mesmo período de eleições para cargos nos poderes Executivo e Legislativo no Brasil, processo em que a população vivia um momento de grande tensão. Assim, os impactos na educação, advindos da instabilidade política, surgiram como temas frequentes nas falas dos participantes. A reforma do ensino médio, em discussão desde o governo Michel Temer (2016-2018), era uma das circunstâncias que preocupava a todos.

Fortalecimento do coletivo

A rotina institucional, sedimentada, manifesta “como imenso acúmulo de atividade passiva rotineira” (CRARY, 2014CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 125), faz com que a solidão e a impotência individuais sejam vivenciadas como algo inevitável. Pode-se dizer que o objetivo de atividades de clínica do trabalho seria o fortalecimento do grupo, no sentido de que eles pudessem se “acercar” uns dos outros, e não ficarem “cercados”, como surgiu na validação do memorial. Evidentemente, isso não se dá de forma pontual, não sendo apenas um espaço de discussão sobre o trabalho (ou qualquer proposta correlata) suficiente para resolver e definir os processos de fortalecimento de um grupo, mas sim uma das possibilidades práticas de caminhar nesse sentido, quando unida a outras e proporcionando desdobramentos diversos.

Por último, cabe registrar que a unidade em que se deu a atividade é pequena, os trabalhadores se conhecem, mas vivem realidades muito diferentes umas das outras, não apenas pelo vínculo empregatício que têm com a instituição, ou pela carreira no interior da rede federal, mas pelo próprio contexto local, que traz incidências diversas para uns e para outros. O sofrimento daí derivado é diferenciado para trabalhadores concursados e terceirizados (estes últimos sofrem outras problemáticas, relativas à precarização do trabalho e à incerteza quanto a permanecer na instituição). Tendo-se em vista esses aspectos, procurou-se fazer com que a atividade permitisse uma aproximação das realidades vivenciadas por cada um dos grupos de trabalhadores com vínculos e profissões variadas, permitindo um maior conhecimento da dor do outro e de suas formas de enfrentamento.

Conclusões

Neste artigo, buscou-se comentar a prática de um espaço de discussão sobre o trabalho, pautado na abordagem da psicodinâmica do trabalho, em uma instituição federal de educação, na qual foram reunidos nove trabalhadores, ao longo de sete encontros. O intuito da atividade era o de fortalecer os laços de solidariedade e trazer à baila questões sobre o trabalhar, o convívio no trabalho e os sentidos do trabalho, entre outros temas pertinentes à vida laboral, como sofrimento e assédio moral no trabalho, além de vivências pessoais e coletivas. As discussões que surgiram ao longo das atividades, as temáticas que foram objeto de debate, sobretudo ao final, e que dizem respeito à especificidade daquela vivência institucional, permitiram, além da elaboração coletiva e da criação de possibilidades maiores de circulação de palavra, o conhecimento de realidades muito diferentes vividas pelos diversos trabalhadores engajados na tarefa. Ademais, foi também um meio de ampliar a comunicação institucional, através da divulgação do trabalho voltado à saúde do trabalhador, realizado pelas profissionais de psicologia e serviço social no interior da instituição, o que poderia facilitar futuras procuras. Assim, a partir desse primeiro momento, as autoras/autor discutiram a possibilidade de criar um novo espaço de conversa em nova unidade da instituição, tendo sido essa primeira experiência uma espécie de projeto piloto, ideia que foi suspensa, temporariamente, pela pandemia de SARS-CoV 2.

Referências

  • ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.
  • ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo , 2018.
  • BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
  • BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2020
  • Revisado
    28 Nov 2021
  • Revisado
    12 Jul 2022
  • Aceito
    18 Jul 2022
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