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Neomaterialismo & Antropológicas

Neomaterialism & Anthropo-logics

Resumo

O texto se propõe como debate acadêmico, sobre artigo recém-publicado por autor relevante da área da Comunicação. Dois componentes imbricados são percebidos no artigo debatido: um, propositivo, que é academicamente valorizado; e um de combate, onde aparecem contradições com o primeiro componente. A expressão antropocentrismo é debatida no uso feito para caracterizar pesquisas não alinhadas à proposta heurística que o autor oferece. A desqualificação de oponentes assim construídos não presta serviço à própria heurística – que, em si, oferece boa contribuição para a área. Finalmente, com base no conceito de affordances e na percepção da diversidade de objetos e pesquisas na área da Comunicação, propomos um acolhimento da heurística na forma de teoria intermediária.

Palavras-chave
Neomaterialismo; Antropocentrismo; Affordances ; Comunicação social

Abstract

This article is proposed as an academic debate, about a recently published article by a relevant author in the field of Communication. Two nested components are observed in the discussed article: one, propositional, which is academically valued; and a combat one, where contradictions with the first component show up. The expression anthropocentrism is debated as used to characterize researches nonaligned with the heuristic proposal offered by the author. The disqualification of opponents so constructed does not favor the heuristic itself – which, however, offers a good contribution to the area. Finally, based on the concept of affordances and on the perception of diversity of objects and research in Communication, we propose the reception of the heuristic as a middle range theory.

Keywords
Neomaterialism; Anthropocentrism; Affordances; Social Communication

Esclarecimentos preliminares

  1. Valorizo o debate acadêmico como um dos processos centrais para o desenvolvimento da pesquisa. É no debate que as ideias e as teorias melhor testam e fazem desenvolver suas conjecturas e propostas. É nessa visada que faço circular o presente texto, que debate proposições do artigo Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital, de autoria de André Lemos (2020)LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
    https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
    ;

  2. Tenho forte admiração pelo Prof. André Lemos. Já participamos de debates ao vivo no GT de Epistemologia da Compós, na UFBA e na Unisinos. Em acordo ou desacordo, são sempre relevantes para minha reflexão;

  3. Um terceiro ponto, necessário, é informar aos leitores que este texto foi inicialmente elaborado na forma de um parecer para efeito de publicação do artigo referido na revista Galáxia. Naturalmente, à época, ignorava quem fosse o autor. O parecer, reconhecendo a contribuição propositiva, foi inteiramente favorável à publicação. Evidentemente: diferenças de ideias não justificam solicitação de reformulações. Uma vez publicado o artigo, entretanto, entramos no espaço público do debate.

Introdução

O dicionário Houaiss caracteriza assim antropocentrismo:

forma de pensamento comum a certos sistemas filosóficos e crenças religiosas que atribui ao ser humano uma posição de centralidade em relação a todo o universo, seja como um eixo ou núcleo em torno do qual estão situadas espacialmente todas as coisas (cosmologia aristotélica e cristã medieval), seja como uma finalidade última, um télos que atrai para si todo o movimento da realidade (teleologia hegeliana).

O título de nosso texto evita a expressão, pelo que ela expressa em sua especificidade conceitual, preferindo a formulação adotada para abranger todo o conjunto de visadas (em disciplinas diversas) que, de diferentes modos, observam ações e processos da espécie humana.

A pesquisa em comunicação tem se desenvolvido com uma diversidade satisfatória de ângulos de abordagem, como demonstram as linhas de pesquisa dos programas de pós-graduação da área e os enfoques dos GTs da Compós.

Considerando os estudos da Comunicação como uma disciplina em processo de construção, valorizo essa diversidade – que permite esquadrinhar tentativamente condensações de ocorrência do fenômeno, atendendo à necessidade de inquirir a multiplicidade de características comunicacionais conforme seus contextos de exercício social e a grande variedade de questões e urgências que se apresentam.

Tenho, ao mesmo tempo, lastimado uma dispersão que tende a acompanhar aquela diversidade, e que só pode ser enfrentada pelo debate e pela reflexão produtiva entre as perspectivas desenvolvidas nas diferentes áreas de interesse do âmbito abrangente de nossos estudos.

É nesse contexto reflexivo que quero analisar, debater e fazer inferências sobre artigo do Prof. André Lemos, recém-publicado na revista Galáxia. Tenho uma apreciação positiva por vários aspectos do artigo. Este apresenta uma temática relevante, trata de questões de muita pertinência para a área de conhecimento, defende uma heurística para a pesquisa que promete ser, com suas proposições metodológicas, efetivamente produtiva para o conhecimento. Com tais aspectos, oferece as bases do que consideraremos adiante como uma válida teoria intermediária.

Percebo no artigo, entretanto, dois componentes argumentativos de natureza diversa – que aparecem entremeados no andamento textual. O argumento ora se concentra em seu eixo propositivo, ora se mostra como tática de persuasão. O primeiro componente é rigoroso, o segundo destoa. Embora imbricados, são distinguíveis em uma leitura atenta.

Os dois componentes imbricados

O primeiro é a defesa de uma perspectiva válida para a pesquisa e para reflexões sobre determinados processos comunicacionais – mormente, mas não exclusivamente, quando se trata de tecnologias de mediação e de midiatização. As propostas e os argumentos são interessantes, e vários deles são encontráveis em ação no campo da comunicação, em uma diversidade de perspectivas de investigação e em pesquisas singulares – embora não sejam necessariamente acolhidos em conjunto fechado com a ênfase neomaterialista. Sintonias parciais permitem ângulos de articulação e debate, com possibilidade produtiva entre a proposta do artigo comentado e outras visadas, favorecendo aperfeiçoamentos nas diferentes heurísticas.

Esse primeiro componente mostra um artigo propositivo e interessante, independente de nos alinharmos com a visada – pois apresenta proposta academicamente bem elaborada e certamente com espaços de aplicabilidade para descobertas. Estimula maior atenção aos processos materiais que se tornam agentes em questões sociais, podendo direcionar acontecimentos. Nesse aspecto do artigo, aparecem expressamente perspectivas articuladoras entre o humano e o material – sem desqualificar o primeiro tipo de elemento, nem aos pesquisadores que lhe dão alguma atenção.

O segundo componente, em atitude de combate, sugere, por contraste a uma perspectiva acusada de antropocentrismo, que apenas a visão radical que reúne todos os critérios defendidos pode gerar conhecimentos válidos. Tais proposições se caracterizam por recusar, sem argumentos suficientemente fundamentados, qualquer pesquisa que não dê prevalência especial aos elementos materiais. Essa prevalência não é argumentada, mas construída no texto pela desqualificação de qualquer pesquisa que não o faça – classificando em viés discriminatório quatro âmbitos em que recaem as pesquisas não alinhadas com o perfil proposto.

Esse segundo componente polariza, como se pretendesse impor sua validade com base na desqualificação apriorística de quaisquer outras perspectivas, exercida sob medida para caracterizar adversários a abater.

Como o artigo mostra o primeiro componente

O componente constitutivo da proposição teórica (e que caracteriza uma heurística para o trabalho de pesquisa) defende uma atenção especial para a agência dos objetos, em articulação com a agência dos humanos.

Valorizam-se os processos materiais e os fluxos de agências em experiências nas quais as questões sociais são sempre resultado de coletivos humanos e não humanos

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 56).

O texto propõe quatro perspectivas centrais para as teorias neomaterialistas:

materialismo, pragmatismo, não antropocentrismo e associativismo. Por materialismo entende-se que todo fenômeno se desenvolve em redes, produzindo efeitos ou afetações materiais. A visão não-essencialista/pragmática sustenta que o objeto (humanos e não humanos) é o que ele faz e não pode ser definido por substância, ou categorias a priori. A posição não antropocêntrica defende que a agência está distribuída na rede/agenciamento e que o controle e a fonte da ação não são privilégios do ator humano. Tudo se dá em uma associação localizada ou conectada localmente. A abordagem associativa/local afirma que tudo se dá em uma rede plana, sendo que as análises das controvérsias não devem partir de explicações ad hoc

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 56).

Entendemos, aí, que a posição não antropocêntrica se caracterizaria por evitar uma exclusividade das relações intersubjetivas, articuladas que são com processos materiais de diversas ordens. Nessa citação e em outras proposições do primeiro componente, a expressão “não antropocentrismo” não parece excluir o elemento humano, mas apenas o sistema de pensamento definido por Houaiss, que referimos na abertura da Introdução.

Além de tais características, o artigo propõe uma abordagem metodológica caracterizadora da proposição:

uma metodologia que vise tratar o objeto pelo pressuposto neomaterialista deve buscar reconhecer, em uma determinada controvérsia, o fluxo das mediações radicais (ou seja, a agência de humanos e não humanos sem centralidade a priori) produzindo resultados localizados e provisórios

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 61 – grifamos)

Apresenta ainda os passos principais da abordagem:

1. identificação do modo, da preposição, da controvérsia; 2. identificar todos os atores envolvidos e como eles se expressam (interfaces, documentos, patentes, formas de ação etc.); 3. mapear as formas de mediação ou transdução, entendendo que ações, sentidos e forças são produzidos; 4. reagregar o problema criando mais um elemento que possa ser instituído na construção da verdade

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 61).

Os fundamentos e sua aproximação metodológica são desenvolvidos em detalhe no artigo – mas tais citações são suficientes para uma percepção básica da proposta. Esse primeiro componente oferece uma heurística a serviço de pesquisas sobre temas e questões para os quais a proposta seja eficiente. Para confirmar essa eficiência – e definir seu âmbito de validade –, pesquisas devem ser feitas e verificados seus resultados, como o próprio artigo de Lemos expressa. Tenho a convicção de que a heurística é produtiva em relação a uma boa variedade de objetos, e que, além disso, compondo-se com outras perspectivas, pode participar da observação de questões mais complexamente problemáticas para o conhecimento comunicacional.

O que o texto faz no segundo componente

Entremeadas à parte propositiva, outras reflexões vão elaborando o segundo componente, a que referimos como de combate, com afirmações desqualificadoras de quem pense de modo diferente. Embora imbricado no primeiro, faz ações bem diferentes – às vezes mesmo em contradição com afirmações da parte mais propriamente acadêmica.

A agência do artigo, nessa parte, resulta em construir, sob o rótulo geral de antropocentrismo, um conjunto vago de pesquisas – que parece comportar generalizadamente tudo o que não seja a abordagem definida na proposta.

Enquanto no primeiro componente são feitas proposições articuladoras entre as agências humanas e não humanas para gerar compreensão e conhecimento, sem ênfase a priori para o elemento humano, nesta parte há uma clara ênfase nos elementos materiais.

A perspectiva neomaterialista aplicada aos estudos da comunicação digital vai se perguntar como algoritmos, interfaces, dispositivos, leis, regulações, patentes, redes de comunicação, espaços de uso etc. constroem determinado fenômeno

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 58 – grifamos).

Observamos que produtos humanos são reificados, como se já não tivessem a ver com as ações humanas que os produziram nem com ajustes em seu uso. Se atendermos a parte propositiva do artigo comentado, estaremos de acordo com Lemos: tais objetos, marcados por suas lógicas próprias, não são meros intermediários de agências humanas: uma vez constituídos, agem diretamente (inclusive sem se ajustar às diferentes circunstâncias no momento de seu uso). Mas se os considerarmos exclusivamente nessa característica pronta, perdemos a percepção das dinâmicas continuadas pelas quais uma agência combinada de humanos e não humanos constantemente os reelabora. Perdemos o ângulo histórico das coisas (que, em grande parte, não se modificam por si mesmas).

Nesse caso, o fenômeno referido na citação resulta como se constituído apenas de aspectos já coisificados – talvez com exceção das redes de comunicação e espaços de uso. Mas mesmo aí, aparentemente, são as redes que agem, os usos apenas obedeceriam a tais agências. As ocorrências tornam-se então epifenômeno das forças materiais. Os eventuais participantes humanos parecem ser (pelo menos simbolicamente) esvaziados de agência.

Esse silenciamento do subjetivo (e dos pesquisadores que refletem sobre esse ângulo) é reforçado mais claramente em outros pontos. Por exemplo: “Quem posta quando postamos no Facebook? Pensar, nesse caso, em uma agência humana independente e soberana é investir em erro grosseiro” (Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 58).

O texto parece considerar, nesse ponto, que observar aspectos humanos subjetivos é idêntico a acreditar em “uma agência humana independente e soberana” (grifamos). Mas quem aceitaria tal equalização? André Lemos não desconhece que a crença em uma subjetividade independente e soberana já não se encontra com frequência na praça. Desde Freud, pelo menos, sabemos que o eu se manifesta no espaço de traumas de infância, do ambiente cultural, e ainda no encontro diversificado com os outros. Somos movidos por todas as forças e tensões – neurológicas, psicológicas, econômicas e históricas; por desejos e intenções (inclusive segundas); pelas circunstâncias imediatas; pelo estado civilizacional de nosso entorno – mais uma lista infindável de processos (inclusive os de agência material, é claro) –, o que obviamente impede que nossa subjetividade seja independente e soberana. Isso implica fragilidade, dispersão e imprevisibilidade – mas não significa inexistência de agência subjetiva.

A própria percepção de fragilidade torna relevante buscar conhecimentos sobre seus processos. Se a caixa preta da subjetividade se mostra assim inacessível em modo direto, maiores motivos temos para estudá-la. Acompanhando a lógica propositiva de Lemos, podemos apreendê-la a partir do que ela faz. E se não considerarmos isso como agência humana, e não a levarmos seriamente em conta, daríamos uma preferência apriorística à caixa preta material. Por que uma das duas caixas pretas teria prioridade sobre a outra? Se é que realmente podemos simplificar o mundo em duas caixas pretas.

Mais uma proposição redutora da agência humana aparece em outro trecho, quando o artigo cobra um posicionamento

menos preocupado em generalizações culturais ou sociais. Uma abordagem neomaterialista permite escapar à dicotomia estabelecida pela comunicação social em direção a uma comunicação associal, reconhecendo a particularidade da mediação radical

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 59 – grifos no original).

Se o trecho anteriormente citado já tinha retirado de cena o aspecto subjetivo, a agência humana é desfalcada, aqui, de seu aspecto social ou cultural, tornado fortemente desimportante em uma nova dicotomia: a valoração de uma comunicação associal contra a chamada social.

Citamos, do primeiro componente referido, uma pertinente proposta de articulação entre agências humanas e não humanas “sem centralidade a priori ” (Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 61). Nos movimentos do segundo componente, outros trechos dão clara prevalência ao elemento material, ao tempo em que insiste na redução da relevância humana. Por exemplo:

posturas antropocêntricas, contextuais ou focadas em infraestruturas, por um lado, ou micro interações (entre humanos), por outro, não ajudam a entender as principais controvérsias em emergentes como os novos objetos infocomunicacionais. Deve-se descrever e analisar a rede formada na controvérsia para identificar as formas de agenciamento dos elementos em jogo, destacando suas características materiais, não essencialistas, locais

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 58 - grifamos).

Assim, à diferença do ângulo mais acadêmico do artigo, a ênfase em sustentar a proposta pela desqualificação de qualquer oponente (ênfase desnecessária, no que se refere a fazer uma defesa científica da proposta) leva a uma contradição. Enquanto o primeiro componente defendia (com muita pertinência, aliás) recusar um a priori essencialista, vemos na citação acima um apriorismo, referente à predominância necessária, na pesquisa, a ser dada ao elemento material. É contraditório recusar uma aproximação afirmando-a como apriorística; e substituí-la por outro apriorismo.

Não vemos por que seria aceitável destacar de antemão características materiais em qualquer circunstância; ou pretender que a simples inclusão na observação (conforme sua efetiva presença empírica no objeto de pesquisa) de aspectos intersubjetivos implicaria uma visão essencialista e antropocêntrica. Essa afirmação peremptória de ênfase em um aspecto (o material) e de desqualificação prévia de outro aspecto (o humano) conota uma preferência não sustentada no texto, mas apenas brandida no combate.

Talvez seja possível demonstrar empiricamente que certo número de pesquisas e pesquisadores da área incorre em um subjetivismo apriorístico ou em visão essencialista baseada em pretendidas verdades universais. Mas não é isso que o texto faz; e sim considerar que todas as pesquisas e posições não alinhadas com o neomaterialismo seriam assim classificadas.

Esse conjunto de afirmações leva, então, a que o artigo comentado categorize na dimensão única antropocentrismo todas as pesquisas não aderentes à proposta neomaterialista. O artigo cuida para que não haja dúvidas na construção do oponente, por contraste ao qual a proposta se ergue – de tal modo que qualquer argumento em contrário fica previamente descartado, com base no rótulo de antropocêntrico, dispensando-se de enfrentar reflexivamente o argumento.

Uma parte importante do componente de combate mostra a generalização categorial do adversário afirmado. Depois de criticar a característica de antropocentrismo, apresenta os tipos-ideais que a caracterizam. A pesquisa deve ser

não antropocêntrica – análises devem ser feitas levando em conta múltiplos agentes, sob pena de purificar as relações e empobrecer as descrições dos fenômenos e a identificação dos fluxos de ação. Humanos nem sempre têm a primazia da ação. Busca-se aqui ir além de perspectivas culturalistas, contextuais, hermenêuticas.

Sobre esse último princípio, identifiquei quatro tipos-ideais que aparecem em geral nas pesquisas / textos / palestras sobre comunicação ou mídia digital de viés antropocêntrico (Maia, Object Washing, Panopticum e Ouroboros)

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 60).

Os quatro tipos são em seguida explanados. Novamente, o padrão abrangente da categorização a torna vaga e generalizante. Reflito sobre a lógica dessa generalização expressando minha reação pessoal. Não me vejo, a rigor, como classificado em nenhum dos quatro “tipos ideais” (até porque são claramente desqualificadores). Mas, ao mesmo tempo, percebo com igual clareza que o artigo (já que não me alinho estritamente com a proposta) me enquadraria em uma (ou mais) das categorias, por não excluir o elemento humano (e até lhe dar alguma atenção). Logo, devo ser antropocêntrico – o que seria uma inclusão forçada na definição de Houaiss de qualquer gesto de observação do humano. Notando-se que a parte propositiva do artigo não exerce essa redução.

No modo polarizador, todas as posições, preferências, tipos de objeto, questões de investigação, são reduzidas, por definição, a uma dimensão única.

Antropocentrismo e polarização

Não conhecemos motivações do autor para o processo evidenciado – isso faz parte da caixa preta da elaboração de artigos. Mas o que podemos apreender, observando o texto, é aquilo que a agência autoria de artigo (evidentemente humana) faz. Em sua exigência de fazer prevalecer os aspectos materiais, desqualificando adversários por uma caracterização de antropocentrismo, o texto constrói uma estrutura de polarização, como tática básica de defesa da proposta.

O problema de tal tipo de estrutura é que o polo oposto assim constituído é estimulado a ripostar com igual energia em sentido contrário, aparentemente confirmando a estrutura. Qualquer esforço argumentativo voltado para desmontá-la, em busca de terrenos mais produtivos e menos áridos para uma boa agonística (como a que estamos tentando aqui), dificilmente funciona. Ao não se enquadrar inteiramente na proposta, o argumento é reinterpretado como uma confirmação da dimensão única em que o polo oposto foi confinado: qualquer desacordo levaria a categorizar o oponente como antropocentrista.

Isso faz com que a desmontagem da estrutura polarizadora seja algo muito difícil e delicado, restringindo possibilidades interacionais. A tentativa é esvaziada pela suposta explicação de que decorre de um antropocentrismo explícito ou subentendido – fechando o círculo.

Os tipos ideais são colocados basicamente nesse ângulo de construção do adversário a abater, reduzindo à dimensão única do antropocentrismo toda pesquisa que não se alinha estritamente com a proposta, independente da diversidade de posições e das composições empírico-reflexivas que adote. Isso dispensa o artigo comentado de elaborar argumentos rigorosos, de refletir sobre a extraordinária diversidade da área e sobre como a proposta defendida se encaixaria e se relacionaria em um ambiente de conhecimento mais complexo.

Mesmo sem aceitar a totalidade da abrangência que o artigo parece exigir, dou uma boa acolhida à heurística sugerida, para determinados objetos de pesquisa. Tenho valorizado alguns dos aspectos defendidos, como o empirismo, uma atitude pragmaticista e uma resistência a visões essencialistas, como exponho em artigo anterior (Braga, 2018aBRAGA, J. L. O conhecimento comunicacional - entre a essência e o episódio. In: Vera Veiga França; Paula Simões (Org.) O modelo praxiológico e os desafios da pesquisa em Comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2018a, p. 119-137.). Paralelamente, tenho perspectivas diversificadas. A construção do campo de conhecimento em comunicação, que estamos todos na área elaborando, exige que propostas, heurísticas e teorias (que não tenham a pretensão de serem totais, essencialistas ou expressão de uma verdade universal) entrem em agonística argumentada, com escuta mútua e desacordo ponderado – buscando defender suas próprias perspectivas diferenciadas com base em reflexões rigorosas e verificações empíricas sólidas, mais que em desqualificar e calar oponentes.

Uma perspectiva de epistemologia evolucionária (Piaget, Popper, entre outros) mostra que é do debate (exigente, fortemente argumentado, mas claro e buscando efetivo conhecimento e não simplesmente ganhar a briga) que se podem esperar avanços necessários.

No início deste texto valorizei a busca dos espaços de sintonia parcial para ampliar a possibilidade produtiva do debate – é nesse nível que uma polarização pode ser superada. Não se trata de buscar consenso, mas sim de apreender as especificidades e as diferenças e torná-las produtivas. Embora exercendo o debate, procuro também explicitar e valorizar o argumento propositivo do artigo analisado – reconhecendo, nessa parte, sua contribuição para os espaços de conhecimento a que efetivamente se aplique (voltaremos a essa questão do alcance).

Quando o artigo adota como argumento para sustentar sua posição a desqualificação de oponentes construídos em dimensão única, acaba atraindo a atenção do leitor mais para esse lance de combate do que para os aspectos interessantes e contributivos de sua proposta. Não me parece ser um bom serviço para a própria proposta, pois a deixa em segundo plano, tornando difícil sua boa compreensão. Se o artigo não tem a pretensão de oferecer uma teoria geral e excludente para a área, qual o sentido de desqualificar quem faz diferente?

Teoria geral ou teoria intermediária?1 1 A importância de teorias intermediárias (ou “de médio alcance”) para o avanço do conhecimento científico foi proposta pelo sociólogo americano Robert Merton, em 1949.

Outra questão se põe, portanto: sobre a pretensão de abrangência e totalidade que atravessa os argumentos do segundo componente. A desqualificação de perspectivas não alinhadas com a proposta sugere que esta se encaminha como uma teoria geral da comunicação (se não da própria sociedade, como um todo). Ora, o campo da comunicação tem se caracterizado nos últimos trinta anos por uma grande diversidade de questões, perspectivas e interfaces. Não por acaso, Bernard Miège assinalou, em uma conferência na ECA/USP, que desde os anos 90 já não aparecem propostas que tenham a pretensão de se colocar como teorias gerais da comunicação.

Uma perspectiva que defendo, hoje, é que a área tem desenvolvido e desenvolverá em continuidade teorias intermediárias – voltadas, com ênfase empírica, para determinados conjuntos de questões da realidade e de problemas de pesquisa, o que permitirá aprofundamentos e geração de rigor científico (Braga, 2020______. Teorias Intermediárias: estratégia analítica para o conhecimento comunicacional. 2020 (inédito).). Tais elaborações poderão, na continuidade das pesquisas, compor lentamente perspectivas mais abrangentes, pela articulação e pelas tensões produtivas entre elas.

A desqualificação de outras perspectivas, apenas porque diversas, implica a pretensão de se colocar como a mais recente teoria geral da comunicação, recusadora da possibilidade epistemológica de produção de conhecimento em outras vertentes.

Tal pretensão deixaria de lado toda uma variedade de questões, de urgências sociais, de ângulos de conhecimento, de perspectivas teórico-metodológicas que não são nem serão resolvidas por uma pretendida abrangência universal.

Em posição contrária a qualquer proposição essencialista abrangente, percebemos a existência, na área da Comunicação, de uma diversidade legítima de questões, voltadas para:

  • perspectivas muito variadas do fenômeno comunicacional, em sua complexidade;

  • diferentes tipos de questões de horizonte e problemas de investigação;

  • situações empíricas e casos sociais que variam em elementos componentes, no peso diferencial destes elementos, nos tipos de ações envolvidas;

  • ângulos de interface com múltiplas questões sociais, culturais, políticas, jurídicas, educacionais e humanas em geral – com as quais as teorias comunicacionais podem interagir e gerar tensionamentos produtivos;

  • interesses dos pesquisadores, que buscam descobertas e conhecimentos diversificados.

Para cada âmbito dessa diversidade, algumas heurísticas serão produtivas, outras não. O que dará confirmação da validade, do interesse e do perfil de abrangência de uma abordagem (metodologias, objetivos, estratégias de interpretação, heurísticas diferenciadas) serão os resultados consequentes a toda uma série de pesquisas segundo suas perspectivas.

Não descartamos, evidentemente, em todos os ângulos e questões dessa diversidade, a presença contemporânea de um fator tecnológico impositivo, com suas características e agenciamentos complexos e variados. As affordances das tecnologias da interação são de grande interesse – e viabilizam o que podemos fazer e fazemos com estas. Mas é preciso reconhecer, ao mesmo tempo, a diversidade das urgências, as necessidades estratégicas e a constante experimentação humana. A própria ideia de affordances (Gibson, 1977GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In Robert Shaw, John Bransford (Ed.) Perceiving, Acting and Knowing – Toward an Ecological Psychology. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 1977, p. 67-82.) exprime esse jogo entre as forças materiais (da natureza ou criadas pelo homem), que apresentam suas próprias lógicas, e a ação de seus usuários2 2 Gibson (1977, p. 68) propõe que “affordances do meio ambiente são o que este oferece aos animais, o que este provê ou fornece, para o bem e para o mal”. Observa, também, que o homem modifica seu meio ambiente “para mudar o que este lhe oferece” (GIBSON, 1977, p. 70 – as traduções são nossas). . Os seres humanos não podem, é claro, fazer qualquer coisa com aquelas forças e lógicas impressas na matéria; mas também não são estritamente determinados por estas. O autor observa que uma faca “possibilita [affords] cortar se manipulada de uma maneira, mas possibilita [affords] se cortar, se manipulada de outra maneira” (Gibson, 1977GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In Robert Shaw, John Bransford (Ed.) Perceiving, Acting and Knowing – Toward an Ecological Psychology. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 1977, p. 67-82., p. 77). Poderíamos ainda complementar: cortar na cozinha ou cortar em uma briga. Com maioria de razão, essa variação ocorre quando se trata das complexas tecnologias contemporâneas, agenciadas no contexto de uma diversidade de objetivos, políticas e contextos culturais.

As affordances se compõem em um desenho de ofertas e não-ofertas (restrições). Gibson (1977, p. 76)GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In Robert Shaw, John Bransford (Ed.) Perceiving, Acting and Knowing – Toward an Ecological Psychology. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 1977, p. 67-82. observa também affordances positivas e negativas. A estrutura biológica na base do processo comunicacional da espécie humana age também por affordances: oferece a competência inferencial e uma inegável capacidade inventiva da espécie. Não oferece (ou restringe) um sistema instintual estruturado para articulação sistemática de nossas diferenças individuais (inversamente ao que ocorre com as demais espécies de animais sociais). Nesse quadro de affordances biológicas, a espécie humana tem que reinventar constantemente seus modos de interação por experimentação comunicacional (ver Braga, 2015______. O grau zero da comunicação. Revista e-Compós, Compós: Brasília, v. 18, p. 1-17, 2015.) – pois estes não são determinados nem pela biologia nem pelo ambiente natural.

A diversidade da experimentação humana, por mais limitada e tentativa que seja, reorganiza aquelas forças conforme seus próprios problemas e circunstâncias. Em minha referência ao dispositivo foucaultiano (Braga, 2018b______. Interagindo com Foucault - os arranjos disposicionais e a Comunicação. Questões Transversais - Revista de Epistemologias de Comunicação, Unisinos: São Leopoldo, v. 6, n. 12, p. 81-91, 2018b.), percebo dispositivos interacionais articulados tentativamente, elaborando lógicas mais ou menos estáveis, que passam a funcionar como regra do jogo. As regras do jogo não determinam o resultado deste, apenas delimitam os modos de buscar resultados.

Os dispositivos, compostos de elementos heterogêneos [materiais, discursivos, documentais, de projeto e planejamento, entre muitos outros, como propõe Michel Foucault, (1994, p. 299)FOUCAULT, M. [1977]. Le jeu de Michel Foucault. Entrevista dada à revista Ornicar. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, Tome III. Paris: Gallimard, 1994, p. 298-329.], passam, em seu âmbito histórico, a organizar as interações sociais.

As lógicas do dispositivo não são resultantes de um projeto pré-definido, e sim desenvolvidas experimental e canhestramente pela participação dos elementos materiais, mas também por agências humanas. Isso implica que nenhum tipo de elemento terá prioridade necessária e genérica sobre outros tipos de elementos. A cada momento histórico, a cada dispositivo, são as circunstâncias, as tentativas e o jogo em curso que dão mais peso a este ou àquele elemento. Com a multiplicidade de variáveis, há um jogo reiterado de incidências e de variáveis de confusão (o conceito é matemático e estatístico) que interferem nas relações de causalidade, e impedem uma definição categórica sobre que aspectos podem ser considerados causa de que outros aspectos.

A argumentação desenvolvida no segundo componente do artigo de Lemos parece recusar a diversidade social da experimentação e a diversidade na pesquisa da área – como se um caminho da verdad e devesse ser previamente definido, arguindo a não validade de qualquer outra abordagem.

Entretanto, a proposta do artigo em sua parte principal pode se defender muito bem como uma teoria intermediária, de abrangência setorial – com alcance e perfil a serem definidos pela própria pesquisa empírica desenvolvida segundo sua visada heurística e de acordo com sua fundamentação e enfoque.

Nessa perspectiva, de modo válido e interessante, ao final do artigo de Lemos são indicados alguns trabalhos em desenvolvimento, na linha defendida pela proposta, e pelos quais a metodologia está sendo testada:

Estudos sobre como o Instagram afeta e é afetado por práticas profissionais; como o processo fotográfico das selfies está imbricado em práticas materiais específicas; sobre as fake news e a materialidade das plataformas de disseminação; o entendimento sobre a privacidade em meio à PDPA, tendo como discussão os processos materiais de sua constituição; o uso de apropriações materiais e algorítmicas para uso da IoT ; as questões de gênero em aplicativos de transporte; a materialidade dos dispositivos vestíveis na configuração de um “smart body ”; a discussão material sobre Data Comics, questionando seu status e utilizações etc.

(Lemos, 2020LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631. Acesso em: mar. 2020.
https://revistas.pucsp.br/galaxia/articl...
, p. 63).

Nesses ângulos, e em perspectivas correlatas, percebo a importância de sua contribuição para a área, valorizando o artigo pela heurística específica proposta.

Conclusão

Um ponto central no debate da diversidade é a busca de percepção do alcance efetivo das questões e das heurísticas acionadas. O fenômeno da comunicação é complexo demais para que se possa organizar seu conhecimento com base em uma única linha de abordagem, à exclusão de quaisquer outras. Mais que isso, ainda, uma questão epistemológica central para o momento histórico da área é a de perceber e organizar o alcance e o perfil de abrangência de cada perspectiva setorial (que é o que permitirá reduzir sua dispersão).

Assim, tentativas de pretender um alcance sem limites, uma abrangência total, pela negação a priori de outras perspectivas, servem muito pouco ao desenvolvimento de qualquer proposta, pois excluem de antemão a agonística. Superando a simples queda de braço, os debates podem ajudar a perceber os efetivos âmbitos de produtividade heurística das abordagens propostas.

Assumindo teorias intermediárias diversas como base principal para o desenvolvimento do conhecimento comunicacional (é esta posição que nos faz valorizar o artigo comentado), é preciso tratar da abrangência e do âmbito de validade de diferentes teorias, que não se sobrepõem nem se excluem por suas diferenças – já que apreendem aspectos variados da realidade empírica e de questões teóricas, e podem gerar embates produtivos, voltados para a relevância dos aspectos estudados e para a definição precisa de seus respectivos espaços de validade.

A ponderação a ser atribuída à agência dos objetos e à agência dos humanos pode variar conforme os observáveis, as questões e os objetivos de pesquisa e de descoberta. É preciso levar em conta as múltiplas questões que os pesquisadores podem legitimamente enfocar – ora relacionadas à incidência de tecnologias e outros aspectos materiais; ora buscando rastrear motivações humanas, incidências interacionais, tomadas de decisão e dispositivos (no sentido foucaultiano) em construção, ou de que se pretende perceber a história.

A lista de trabalhos em desenvolvimento citada no final de nosso item anterior exemplifica bem questões que podem compor a gama de abrangência e o leque de validade da heurística proposta por André Lemos, uma vez relacionado ao tipo de questões que legitimamente interessam aos pesquisadores desta linha. Certamente outros tópicos poderão ser utilmente incluídos – e que serão percebidos por pesquisas dos interessados. Ao mesmo tempo, não se pode excluir a possibilidade produtiva de outras heurísticas e outras hipóteses sobre os mesmos e outros objetos de inquirição, assim como não faria sentido desqualificar a proposta do artigo que comentamos. Os debates subsequentes é que mostrarão a possibilidade de composições e de naturais prevalências setoriais entre as abordagens.

  • 1
    A importância de teorias intermediárias (ou “de médio alcance”) para o avanço do conhecimento científico foi proposta pelo sociólogo americano Robert Merton, em 1949MERTON, R. K. [1949]. Social Theory and Social Structure. New York: The Free Press, 1968..
  • 2
    Gibson (1977, p. 68)GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In Robert Shaw, John Bransford (Ed.) Perceiving, Acting and Knowing – Toward an Ecological Psychology. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 1977, p. 67-82. propõe que “affordances do meio ambiente são o que este oferece aos animais, o que este provê ou fornece, para o bem e para o mal”. Observa, também, que o homem modifica seu meio ambiente “para mudar o que este lhe oferece” (GIBSON, 1977GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In Robert Shaw, John Bransford (Ed.) Perceiving, Acting and Knowing – Toward an Ecological Psychology. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 1977, p. 67-82., p. 70 – as traduções são nossas).

Referências

  • BRAGA, J. L. O conhecimento comunicacional - entre a essência e o episódio. In: Vera Veiga França; Paula Simões (Org.) O modelo praxiológico e os desafios da pesquisa em Comunicação Porto Alegre: Sulina, 2018a, p. 119-137.
  • ______. Interagindo com Foucault - os arranjos disposicionais e a Comunicação. Questões Transversais - Revista de Epistemologias de Comunicação, Unisinos: São Leopoldo, v. 6, n. 12, p. 81-91, 2018b.
  • ______. O grau zero da comunicação. Revista e-Compós, Compós: Brasília, v. 18, p. 1-17, 2015.
  • ______. Teorias Intermediárias: estratégia analítica para o conhecimento comunicacional. 2020 (inédito).
  • FOUCAULT, M. [1977]. Le jeu de Michel Foucault. Entrevista dada à revista Ornicar. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, Tome III. Paris: Gallimard, 1994, p. 298-329.
  • GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In Robert Shaw, John Bransford (Ed.) Perceiving, Acting and Knowing – Toward an Ecological Psychology. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 1977, p. 67-82.
  • LEMOS, A. Epistemologia da Comunicação, Neomaterialismo e Cultura Digital. Revista Galáxia, PUC: São Paulo, n. 43, p. 54-66, jan-abr, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631 Acesso em: mar. 2020.
    » https://revistas.pucsp.br/galaxia/article/view/43970/31631
  • MERTON, R. K. [1949]. Social Theory and Social Structure New York: The Free Press, 1968.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2020
  • Aceito
    30 Jun 2020
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