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Les guerres de la Vierge, une antropologie des apparitions

RESENHAS

Lílian Sales* * Doutoranda em Antropologia Social.

Universidade de São Paulo – Brasil

Claverie, Elisabeth. Les guerres de la Vierge, une antropologie des apparitions. Paris: Gallimard, 2003. 452 p.

O livro de Elisabeth Claverie é dedicado à compreensão das aparições de Nossa Senhora na vila de Medjugorje, na antiga Iugoslávia, que tiveram início no ano de 1981 e se estendem até os dias de hoje. Nessa localidade, segundo os devotos, a Virgem se manifesta para seis videntes todos os dias por volta das seis horas da tarde. Durante todo esse tempo a vila teve inúmeras transformações, passando de uma minúscula e pobre comunidade rural a um dos maiores santuários marianos da atualidade, repleto de hotéis, restaurantes e lojas. E, no meio de todas estas transformações, uma guerra. Todo esse processo é observado pela autora a partir de um extenso trabalho de campo realizado entre os anos de 1987 e 2001, embora com um grande intervalo no período da guerra da Croácia, na década de 1990.

Sua obra está dividida em três partes, sendo que a questão que as une, segundo a própria autora, é a compreensão de como a afirmação realizada por uma das videntes na montanha de Medjugorje no dia da primeira aparição – Olhe! A Virgem – é capaz de causar toda essa mobilização e de tornar a localidade um santuário mariano internacionalmente conhecido. Dessa maneira Claverie busca compreender essa mobilização que foi e ainda é, segundo ela, o produto de dois movimentos conjugados responsáveis pelo sucesso do evento, sendo cada um deles analisado em uma das partes de seu livro.

O primeiro deles é descrito na primeira parte: as peregrinações internacionais destinadas à Medjugorje, vindas do mundo todo e compostas por pessoas que não conhecem nada sobre a Iugoslávia ou sobre a Herzegovina. Assim, a autora participa de várias peregrinações ao santuário, sendo que o livro inicia-se a partir da descrição de seqüências de episódios envolvendo os participantes de uma peregrinação que parte da França para Medjugorje. Nessa parte do livro são analisadas nove seqüências, sendo que a primeira delas é a descrição do primeiro encontro entre os peregrinos, no aeroporto de Paris. Dessa maneira, não se trata de um grupo de pessoas que se conhecia anteriormente, os devotos não possuem um perfil em comum, sendo que alguns deles não são sequer católicos.

Essa mobilização internacional e desterritorializada é parte importante do processo de compreensão das aparições de Medjugorje. Segundo ela, esses devotos não são politicamente organizados, sendo arregimentados a partir de um trabalho de divulgação que tem origem localmente. Associações locais se dedicam a divulgação militante das aparições, produzindo panfletos, CDs e DVDs com interpretações e descrições das mensagens e dos "prodígios" ocorridos em Medjugorje, ao que se conjuga um trabalho de lobbying internacional, desenvolvido principalmente por facções conservadoras dos Estados Unidos e pelo movimento Renovação Carismática.

Entretanto, esses peregrinos desconhecidos, durante a peregrinação, se estruturam como um pequeno grupo, com alianças e afinidades que vão sendo estabelecidas. A princípio há apenas alguns elementos em comum entre eles, como algum vocabulário sobre as manifestações, que possibilita a compreensão da expressão "ELA" – referindo-se à Virgem –, utilizado desde a primeira seqüência no aeroporto e compreendido por todos os presentes, mesmo vindos de diferentes localidades e possuindo experiências religiosas diferentes.

Sob esse aspecto, a autora destaca a importância dos mediadores – pessoas que estabelecem uma ligação entre os peregrinos e a aparição – que vão introduzindo os peregrinos no universo da aparição, como, por exemplo, a guia que os acompanha do aeroporto até a vila – que tem sua autoridade baseada em ter "conhecimento" da aparição, por já ter realizado a peregrinação – os padres franciscanos e os videntes – que abençoam e realizam orações junto aos peregrinos. São esses mediadores e os dispositivos utilizados por eles que possibilitam a vivência de experiências de estados e situações que propiciam o êxito da peregrinação na percepção dos devotos. Segundo a autora, a expressão "ganhar ou perder a peregrinação" é muito comum entre os peregrinos, fazendo referência às experiências vividas, ao sucesso ou não dos dispositivos acionados durante a peregrinação, como as bênçãos realizadas pelos padres e pelos videntes ou como as missas rezadas em croata. Dessa maneira, a com preensão da peregrinação e dos dispositivos mobilizados durante ela é fundamental para a compreensão do sucesso das aparições de Medjugorje.

Por outro lado, na segunda parte do livro a autora demonstra como as aparições constituem-se também em um "lugar" para os habitantes da região. Assim, ela muda o ponto de observação, buscando compreender o sentido das aparições para os locais, os caminhos traçados localmente para a legitimação da aparição. Dedica-se, então, à análise "daquela aparição específica, para aquelas crianças daquela pequena vila".

Nesse contexto, segundo a autora, as disputas em torno da autenticidade do evento estiveram presentes desde o seu primeiro momento, elas foram sistematicamente questionadas, primeiro pelos pais e amigos/parentes dos videntes, em seguida pelos franciscanos e sacerdotes e enfim pelos representantes políticos do país. Começa demonstrando como a frase proferida por uma das videntes possui sentido entre os habitantes da localidade, cujo imaginário é povoado por fantasmas e criaturas capazes de estabelecer uma ponte entre a dimensão humana e a dimensão sobrenatural – tanto que nos dias seguintes à primeira manifestação um grupo de pessoas da localidade sugere que os videntes joguem sal sobre a figura que lhes aparece para saber se é a Virgem ou um fantasma ou mesmo o demônio, ou seja, a existência de um ser sobrenatural não é questionada, mas sim a natureza dele.

No caso dos franciscanos a situação é semelhante, pois na gramática dos padres as aparições da Virgem para os humanos são possíveis, isso já aconteceu em outras localidades e outras épocas. Assim, um dos padres se põe a questionar diariamente os videntes, em busca de semelhanças com as aparições conhecidas e aceitas. Ele sabe que as aparições de Nossa Senhora para os humanos são possíveis, mas precisa saber se isso está ocorrendo ali em sua paróquia. Inicia-se, então, um trabalho de "modelagem" da Virgem de Medjugorje, de forma a torná-la mais aceitável por meio da sua aproximação com as manifestações conhecidas. Um exemplo disso refere-se à transmissão de mensagens. A princípio, segundo os videntes, Nossa Senhora não tinha nada a dizer, ela apenas lhes aparecia e lhes olhava com muito carinho, sendo após muita insistência de um dos frades, que manda os videntes perguntarem por que "Ela" está ali, que as mensagens começam a ser transmitidas, com padrões semelhantes aos de outras manifestações marianas.

Nessa parte do livro a autora também analisa um campo de disputas mais amplo, que envolve as disputas políticas e a guerra da Bósnia. Ocorre uma apropriação política da aparição, que a associa a um dos lados da guerra, aos croatas. Medjugorge está situada numa região cuja maioria da população é croata e que reivindicava, durante a guerra, o seu pertencimento à Croácia, o que não aconteceu – pertence à Bósnia, país de minoria croata. A autora demonstra como a aparição de Medjugorje acaba associada às causas croatas. Para os croatas ela é uma Virgem que aparece para a nação croata, ela pertence a "eles". Para o partido oposicionista a percepção é semelhante, um exemplo disso está em um dos jornais do partido em que Nossa Senhora é retratada com um fuzil, ou seja, representando um complô nacionalista dos croatas.

Assim, a construção da Virgem de Medjugorje também se faz localmente, a partir de elementos da gramática de todos os atores envolvidos, mas também ganhando sentidos no processo de legitimação da aparição. Nesse sentido, uma questão que percorre o livro são as imagens de Maria que têm centralidade na aparição de Medjugorje, entre as quais são destacadas a mãe de misericórdia – doce, gentil e sofredora – e a Mulher do Apocalipse, a Maria soldado e sua simbologia escatológica.

Dessa maneira, a terceira parte do livro completa sua idéia sobre "gramática", pois nela a autora faz uma incursão aos primeiros séculos do cristianismo, recuperando debates que construíram a figura de Maria como "Mãe de Deus", mas também como a "Senhora do Apocalipse", com papel central na salvação dos homens. Utiliza-se, para isso, dos Evangelhos e de textos dos polemistas dos cinco primeiros séculos do cristianismo. Nessa parte, fica claro que Medjugorje pode ser vista como um caso de aparição entre outros, sendo interessante perceber a existência do que a autora chama de "gramática das aparições", ou seja, um conjunto de temas que está presente no universo do cristianismo desde seus primórdios, e que estão presentes no repertório utilizado pelos peregrinos, pelos habitantes locais e pelos sacerdotes. Exemplo disso é a escatologia referente às aparições, que reitera a associação Nossa Senhora e a Mulher do Apocalipse, ligada ao final dos tempos e à salvação dos homens – é ela que esmaga a serpente, associada ao inimigo, seja ele qual for.

Assim, as três partes do livro são complementares e fundamentais para a compreensão de como a Virgem de Medjugorge é construída, a partir de sua associação às disputas entre vários jogos de enunciação – locais, internacionais e de longa duração – e situações concretas. Em meio a essa complexidade Nossa Senhora ganha suas características, tornando-se um sujeito, e seu santuário um dos mais visitados da atualidade entre os católicos.

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    Doutoranda em Antropologia Social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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