Resumo
Este artigo relata passagens do nosso encontro com duas mulheres negras: Dona Luiza e Fafá. A primeira, uma senhora moradora de favela, matriarca, mãe de um homem condenado por estupro, avó da criança que teria sido estuprada. A segunda, uma jovem de 24 anos, mãe de um menino de três, atriz de filmes de fetiches extremos. Partindo da ideia de que as vidas negras permanecem na oscilação entre a sujeição e a fuga, nos interessa descrever como essa oscilação acontece no plano do ordinário e interpretar a sua relação com evocações da escravidão que se realizam em fragmentos ou se materializam em situações de “faz de conta”. A fuga, mais do que resistência, denota formas ambivalentes de estar no mundo, movimentos imprevisíveis para quem se esforça para tocar a vida. Discutimos imagens e situações que têm a capacidade tanto de restaurar a sujeição quanto de conjurá-la.
Palavras-chave:
escravidão; sujeição; fuga; vidas negras
Abstract
This article reports passages from our encounter with two black women: Dona Luiza and Fafá. The first, a favela resident, matriarch, mother of a man convicted of rape, grandmother of the child who would have been raped. The second, a 24-year-old girl, mother of three years old boy, actress in extreme fetish films. Departing from the idea that black lives remain in the oscillation between subjection and fugitivity, we are interested in describing how this oscillation happens at the level of the ordinary and interpreting its relationship with evocations of slavery that take place in fragments or materialize in “make believe”. The fugitivity, more than resistance, denotes ambivalent ways of being in the world, unpredictable movements for those who strive to keep life going. We discuss images and situations that can both restore subjection and conjure it.
Keywords:
slavery; subjection; fugitivity; black lives
No recente filme Two distant strangers, de Travon Free, traduzido ao português como Dois estranhos, Carter James, um rapaz negro, cartunista, acorda com uma menina com a qual teve seu primeiro encontro. Na volta para casa, Carter é abordado por um policial que em uma agressão descontrolada o asfixia até a morte. Nesse preciso momento, Carter acorda do que acreditou ser apenas um pesadelo, mas dia após dia vive a mesma experiência com o policial, que dia após dia o assassina. Carter procura uma e outra forma de fugir de sua morte, sabendo claramente que continuará a enfrentar a sina fatal do racismo antinegro que o ameaça na figura desse homem branco agente do Estado. Ele sabe que continuará perdendo, mas promete insistir em sua fuga.
Entregando a violência em um loop inexaurível, o filme nos captura em angústia e consternação. E desse modo intenso insiste em anunciar que as vidas negras são sempre oscilantes entre a sujeição e a fuga. É sobre essa oscilação que este artigo deseja falar.
Essa dualidade tem sido enormemente analisada em estudos antropológicos, sociológicos e históricos nacionais e internacionais. Nos black studies nos Estados Unidos, por exemplo, tem se configurado uma pauta de análise fundamental. O açoitamento da tia Hester, relatada por Frederick Douglass logo no começo de seu livro biográfico é um testemunho ocular de um escravizado sobre o castigo de outra escravizada que traz a memória, em primeira pessoa, da injúria e da violação que corpos negros sofriam no cativeiro. Essa cena de sujeição anuncia a “centralidade da violência na produção do escravo e a identifica como um ato generativo original equivalente à declaração ‘eu nasci’” (Hartman, 1997HARTMAN, S. V. Scenes of subjection: terror, slavery, and self-making nineteenth century America. New York: Oxford University Press, 1997., p. 3, tradução nossa).
À cena da tia Hester somam-se outras cenas de sujeição eternizadas em textos literários clássicos como A cabana do Pai Tomás, que junto a passagens históricas de extremo horror no regime escravocrata e no período pós-abolição - Ku Klux Klan, linchamentos, lei Jim Crow - sustentam as bases de um pensamento sociopolítico e acadêmico que pensa a sujeição e a figura do escravo como a ontologia da pretitude num mundo antinegro (Wilderson III, 2017WILDERSON III, F. B. Afropessimism: an introduction. Minneapolis: Racked & Dispatched, 2017.).
Para a corrente de pensamento que se autodenomina de afropessimismo, a violência que os negros vivem não apenas é gratuita e reiterada, como responde a uma ritualística lúbrica de restauração psíquica dos humanos, de “renovação de sua coerência” (Wilderson III, 2010WILDERSON III, F. B. Red, white & black: cinema and the structure of U.S. antagonisms. Durham: Duke University Press, 2010., p. 11). Para eles, o escravo, isto é, o desonrado, o submetido a morte social (Patterson, 1982PATTERSON, O. Slavery and social death. Cambridge: Harvard University Press, 1982.), mais do que sujeito é a carne da qual a antinegritude tudo extrai, é o nada.
Diversos cientistas sociais, que não se filiam ao afropessimismo, têm analisado a violência contra os negros como experiência constituinte dessas vidas. Muito inspirados no Discurso do colonialismo de Aimé Césaire, mas sobretudo nos desdobramentos que Frantz Fanon exprimiu da questão colonial em Condenados da Terra, a sujeição - ora rebaixamento, inferiorização, aniquilação, racismo, desigualdade, exclusão - assumiu grande centralidade no debate acadêmico e político.
No panorama intelectual brasileiro da última década têm sido fundamentais noções como necropolítica, de Achille Mbembe (2018a)MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018a.; racismo estrutural, cujos significados Silvio Almeida (2019)ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019. condensou em seu livro; e genocídio, muito especialmente em pesquisas sobre as experiências de invasão policial e extermínio nos territórios de favelas e periferias nas grandes cidades do país.
Prévio ao impacto dessas categorias, temos uma longa produção sociológica brasileira historicamente dedicada à análise da situação social de sujeição das populações negras (Fernandes, 1978FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978. v. 1.; Guerreiro Ramos, 1948GUERREIRO RAMOS, A. Contactos raciais no Brasil. Quilombo, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, 9 dez. 1948.; Moura, 1988MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.; Nascimento, A., 1978NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.). O regime escravocrata e o período pós-abolição têm sido permanentemente revisitados pela historiografia nacional em análises sobre as condições de submissão, desarraigo e adoecimento dos corpos negros (Chalhoub, 2017CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.). Vale a pena destacar que é justamente através da análise da escravidão como instituição primária de sujeição e aniquilação que diversos historiadores têm encontrado um ponto fulcral para falar sobre a fuga, ou resistência, como é mais comumente chamada. Isso porque é lá, na escravidão, naquele espaço de morte e desolação, que os escravizados idearam diversos modos de sobrevivência, e a partir de onde planejavam sua liberdade.1 1 Ver, por exemplo, Reis e Gomes (1996); Lara (2007); Slenes (2011); Domingues (2008).
Outros autores têm outorgado preeminência ao lugar da ancestralidade na reconfiguração de vidas pretas. Em seu recente livro intitulado Cativeiro, o antropólogo Osmundo Pinho (2021)PINHO, O. Cativeiro: antinegritude e ancestralidade. Salvador: Segundo Selo, 2021. insiste em evidenciar os modos como a ancestralidade se torna a categoria central da imaginação política brasileira, se opondo à morte social, vital no pensamento estadunidense da antinegritude. Pinho (2021PINHO, O. Cativeiro: antinegritude e ancestralidade. Salvador: Segundo Selo, 2021., p. 41) lembra o chamado que Beatriz Nascimento fez no documentário Ori, de 1989: “Quando eu cheguei na universidade, uma coisa que me chocava era o eterno estudo sobre o escravo, como se nós só tivéssemos existido dentro da nação como mão de obra escrava, como mão de obra para a fazenda e para a mineração.”
O quilombo que a autora recria é um símbolo de resistência identitária, étnica e política e um lugar de refúgio existencial (Nascimento, B., 1985NASCIMENTO, B. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora: revista do mundo negro, Rio de Janeiro, n. 6-7, p. 41-49, 1985.). Para diversos coletivos negros brasileiros contemporâneos a expressão aquilombar-se, remetendo às ideias de Beatriz e de quilombismo de Abdias do Nascimento, pode ser traduzida como a entrada no território da fuga. Expressões religiosas, musicais, danças, poesia, a vida em terreiros ou em coletivos negros dos mais diversos reiteram África como um território de vida e ancestralidade a partir do qual pensam o presente e imaginam o futuro para as vidas negras. Essas gramáticas de sobrevivência encontram eco em experiências históricas que têm insistido em mecanismos de fuga via o reconhecimento da ancestralidade: movimentos pan-africanistas e da Negritude, para mencionar os mais relevantes, que não raro vão ao encontro de outros modelos de fuga que têm lugar nos feminismos negros, mulheristas, coletivos de jovens negros, etc.
Se falamos de oscilação entre sujeição e fuga é por reconhecermos que a fuga nunca é uma ação que conhece o fim, assim como a sujeição nunca é um dispositivo que não encontra resistência. Isso porque o peso da racialização volta de um ou outro modo para sujeitos que estão em fuga: aqueles que cultuam os orixás e encontram na ancestralidade a fuga (ou retorno) espiritual enfrentam o recrudescimento do ódio conservador, racista e reacionário que atinge os seus terreiros e busca destruí-los; coletivos de jovens das populações urbanas massacradas encontram no slam e na música mecanismos de refazimento de subjetividades, sem esquecer que o fuzil pode encontrá-los… Os exemplos são inúmeros. E nós queremos trazer mais dois.
Nosso interesse, ou pergunta, é por essa oscilação em um plano do ordinário em que a escravidão é evocada através de subterfúgios. Como uma pessoa negra consegue vincular sua situação de precariedade com os navios negreiros sem, simultaneamente, fazer dessa associação algo mais que fragmentos relativamente dispersos? Como lermos a escravidão de uma pessoa negra em uma representação teatralizada que, não sendo real, pretende transmitir realismo? Que tipo de evocações são essas?
Este artigo relata passagens do nosso encontro com Dona Luiza e com Fafá, duas mulheres negras que conhecemos em nossos trabalhos de campo. A primeira, uma senhora, chefe de família; moradora de favela; mãe de gêmeas, de um pastor, de uma filha religiosa e de um homem condenado por estupro; avó da criança que teria sido estuprada e cuidadora de um neto com deficiência intelectual e outra parente com deficiência visual, com os quais dividia a moradia. A segunda, uma jovem de 24 anos; mãe de um menino de três; “batalhadora”, como chama a si mesma; atriz de filmes de fetiches extremos. É através de suas experiências que queremos falar sobre a escravidão, ou melhor, sobre os modos como em suas vidas ecos de sujeição existem como evocações que tal qual uma presença fantasmagórica esticam seus efeitos ao presente sem necessariamente atingir a materialidade da linguagem; ou então, quando a escravidão se materializa como um “faz de conta” que justamente porque não é exprimido como real permite enunciar mecanismos de fuga.
Nosso objetivo é discutir imagens e situações que têm a capacidade de restaurar a sujeição, sem, contudo, obliterar os esforços que os sujeitos fazem para conjurá-la.2 2 Por questões de estilo narrativo, ao longo do texto utilizaremos a primeira pessoa do singular nas passagens que remetem mais diretamente à etnografia que apenas um de nós, autores deste artigo, realizou. As análises levantadas em cada história, de Fafá e Dona Luiza, foram, porém, resultado de um trabalho coletivo, de conversas e análises que compartilhamos nos últimos anos. Já na introdução e conclusão, optamos por utilizar a primeira pessoa do plural. Vale sinalizar também que Fafá e Dona Luiza são pseudônimos.
Fátima e o trabalho da humilhação
Fátima, chamada por todos de Fafá, é uma garota que trabalha como escrava para uma produtora de filmes de humilhação da indústria do fetiche no Brasil. O ano é 2011, e eu, María Elvira, finalmente conseguia acompanhar o trabalho de uma empresa da qual muito tinha escutado falar nos mundos da pornografia, mas da qual jamais pude antes me aproximar. Fafá chamou minha atenção desde o primeiro instante, sem dúvidas porque era a única moça preta do coletivo naquela noite. Mas, na verdade, eu já a conhecia. Tinha visto suas fotografias e trechos de suas cenas no site da produtora. Inclusive, eu tinha em meu caderno anotada a legenda de um filme que ela protagonizou:
Caroline se diverte de uma forma cruel. Ela pisa brutalmente, dá saltos intensos e aperta o corpo frágil de Fátima. O sofrimento é intenso, o vídeo é rico em detalhes de dominância e Caroline minuto a minuto é mais cruel e a vida de Fátima é mais difícil e dolorosa.
Embaixo da legenda, meu caderno registrava “violent trampling in thorax”, “foot torture” e “foot humiliation”,3 3 Oferecendo uma tradução: “batidas violentas no tórax”; “tortura com o pé” ou “pé torturador”; e “humilhação com o pé” ou “pé humilhador”. tags às quais essa cena era associada. Nessa noite também conheci Caroline, que se preparava para contracenar junto de uma garota de aspecto muito jovem e corpo miúdo, que seria “sua escrava”. Quando vi Fafá pela primeira vez, eu tinha chegado poucos minutos antes ao sítio onde as filmagens ocorriam, e ela recém finalizava a gravação de uma cena. Estava descabelada, com o rosto cheio de suor, as roupas fora de lugar e acariciava seu peito e abdome, como naquele gesto que fazemos quando tentamos aliviar uma dor. Um rapaz jovem e de pele um pouco menos escura que Fafá passou-lhe uma toalha e perguntou: “Foi foda, né?” Ao que ela respondeu: “O quê?” Soube depois que esse rapaz namorava a irmã de Fafá e que esta tinha o apresentado a esse mundo, no qual se iniciou fazendo de escravo, mas logo “acendendo” a assistente de operador de câmera, já que a equipe raramente fazia uso de homens nas cenas.
Fafá era reconhecida na empresa como uma escrava que “aguenta muito”, e esse aguentar é um atributo cobiçado em um trabalho que consiste em receber agressões contra o corpo em boas doses de tempo, com alguns intervalos de descanso. Humilhar nesse universo é um ato/emoção realizado através de práticas que causam dor, medo e nojo. Dor, por meio de ações como bater, sufocar, engasgar, chutar, espancar. Nojo, por meio do uso de excrementos corporais. E medo, por meio da imprevisibilidade dos devires das cenas. Dependendo da intensidade, as práticas ganham os apelativos excessive, extreme ou dangerous.
Ser escravo no mundo do fetiche remete à posição daquele que é submisso ou subjugado em arranjos entre dominador e dominado. Essa relação é fundamental na prática sexual conhecida como BDSM e na indústria de filmes que o envolve, amplamente identificada como kink, e no segmento da humilhação abre lugar a práticas que são divulgadas como punishment, sex slave, rape, taboo (quando contempla representações de incesto) ou bestial porn (quando se trata de humilhação com animais). Há diferenças fundamentais entre os fetiches de submissão e de humilhação, e embora práticas com os pés, para dar um exemplo, façam parte de ambas, no primeiro o pé é mais associado à podolatria e aos prazeres ao redor dessa parte do corpo, enquanto na humilhação é sempre associado a pisotear, esmagar e ocasionar dor. A diferença, de forma bem grosseira, se cria nas intenções e nas intensidades, no prazer do escravo e em sua total ausência.
Construir a humilhação implica enunciar eficazmente diferenças e desigualdades. O principal enunciado é o desequilíbrio de forças, especialmente a física. Enquanto as dominadoras são geralmente mulheres altas, de corpos musculosos e imponentes, as escravas são mulheres miúdas, magras, com aparência adolescente, roupas simples ou pobres e muitas vezes, embora não sempre, negras. Por meio de diferenças tão tangíveis, esses filmes buscam denotar que não há espaços para uma negociação de papéis e de poder, impedindo que nessas duplas haja uma possibilidade imagética de reviravolta, isto é, que a escrava possa vir a inverter a situação exercendo algum tipo de mando sobre a dominadora. São filmes que misturam e articulam marcadores de diferença social, colocando em cena convenções eróticas em que os tensores libidinais (Perlongher, 1987PERLONGHER, N. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987.) operam na organização do desejo de quem assiste. Entre esses marcadores-chave de diferença na humilhação, classe e raça desempenham um papel fundamental, daí que seja tão frequente, por exemplo, a temática da relação entre patroa e empregada doméstica. Quando esse é o enredo, é comum que a dominação da mulher forte sobre a escrava tenha como argumento que ela é sua empregadora e que, por tal, tem o direito de humilhá-la. Grande parte das vezes a humilhação acompanha a intenção de punir a empregada pelo fato de ter errado algum serviço doméstico encomendado pela patroa. No processo de filmagem, os diretores inventam o enredo na hora puxando ideias de um repertório circunscrito a imaginários sociais sobre domesticidade e, seja com fins punitivos ou não, na humilhação não poucas vezes transparece a finalidade de educar o escravo. Existe um intuito instrutivo por trás do exercício extremo do poder nesses fetiches, sendo indicado que o castigo se faz porque o escravo precisa, porque merece, ou simplesmente porque se possui o domínio e esse é um corpo no qual é possível bater.
Se o marcador da raça, como já disse, não é obrigatório nesses fetiches, ele permanece como uma tensão e um repertório ao qual não poucas vezes se faz alusão. Parte de meu trabalho de campo se deu acompanhando os fóruns de discussão dos consumidores nos próprios sites que divulgam esses conteúdos, nos quais observei pedidos e sugestões para que as escravas fossem pretas, ou elogios para Fafá por ser uma ótima escrava. Também escutei um produtor me dizer que Sarinha, uma garota loira que trabalhou como escrava em cerca de 15 cenas, não tinha sido bem recebida por clientes que manifestaram incômodo em observar uma mulher de sua cor e aparência apanhando de modo cruel.
Essas manifestações podem ser lidas na chave da relação entre fetichismo, domesticidade e poder, ou entre fetichismo, relações coloniais e poder, e servem para corroborar que nos jogos de fetiche a raça desempenha um papel formador (Gregori, 2016GREGORI, M. F. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.; McClintock, 2010McCLINTOCK, A. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.). Digo isso reconhecendo o quanto a pornografia e o fetiche nacional e internacional incluem corpos negros fazendo alusão a disposições históricas que existem como permanências no imaginário social. No mercado são comuns as cenas de fetiche em que são exibidas mulheres negras, altas e corpulentas dominando mulheres loiras, magras e de baixa estatura. No segmento conhecido como inter-racial são frequentes os homens negros com atributos físicos que denotam rudeza e barbárie sexual em gang bangs com uma ou poucas mulheres brancas, ou então negras e mulatas em situações de demonstração de extrema lascívia. Essas disposições são perpetuadas no mercado de filmes hétero, gay e travesti. Neste último, são recorrentes as cenas em que travestis negras exercem domínio sexual sobre homens e mulheres brancos. Essas disposições parecem mostrar que os lugares ocupados pelos negros nesse universo de representações são ou aquele que fala sobre superioridade no plano sexual (crucial no pornô) ou aquele da inferioridade e domesticidade (presente no fetiche). Ambas as associações fazem referência direta às relações coloniais históricas de poder. Situações de “inversão” de domínio se realizam na evocação de uma possível “vingança racial”, imaginário que também alude às ansiedades históricas escravagistas e pós-abolição.
Fafá é uma boa escrava porque aguenta muito. Essa frase, que em jogos de fetiche pode significar que o sujeito tem treino para as práticas de punição, ficou ressoando na minha mente de um modo muito particular: Que significados assume o “fazer de escravo” quando o sujeito escravo é negro, evocando ser empregada doméstica e recebendo agressões sobre seu corpo? Que significados cobra o “fazer de escrava” quando se é uma mulher negra, num país com um passado escravagista em que o trabalho doméstico é uma das mais persistentes formas de subalternização existentes? No limite, o que estou tentando afirmar é que se há uma relação entre emprego doméstico e humilhação é pela existência de um imaginário social que o interpreta como uma continuação da servidão do período escravocrata. O que significaria dizer que a teatralização do serviço doméstico “faz sentido” no fetiche de humilhação porque para além desse universo mercadológico ele já é entendido como um local de humilhação.4 4 A esse respeito, ver Souza (2016).
Na noite em que conheci Fafá, algumas horas depois desse primeiro momento de encontro e após um tempo de descanso, ela se preparou para uma nova cena. Dessa vez contracenando com Bárbara, uma “real” dominadora como os produtores a chamam, por ser “grande, bruta e cruel”. A cena: um trample and jump,5 5 Pisar/pisotear e saltar. prática em que a dominadora pisa no rosto, seios, abdome e rosto da escrava que jaz deitada no chão e, ainda, pula sobre seu corpo. A cena, como quase todas, durou 30 minutos. Ao finalizar, Fafá enxugou suas lágrimas e foi se deitar, tinha terminado seu expediente. Na noite seguinte, haveria mais.
Eu tenho argumentado que na produção da humilhação há instantes em que se passa do consentimento ao abuso, e a esse momento chamei de fissura. A fissura seria a evidência de que a prática ultrapassou a expectativa da dor, se tornando uma fenda em que o ato (ou a representação do ato) se torna violência, embora logo a fissura se refaça por meio da sociabilidade que envolve a dinâmica de grupo e de trabalho que nesse universo, também, para algumas pessoas, envolve confiança e amizade.
Durante o trabalho de campo, sempre me impressionava acompanhar momentos em que para mim se extrapolavam os limites do consentimento ou em que os limites do consentimento das escravas eram tão extremamente esticados. Mesmo sabendo que às dominadoras são oferecidas algumas técnicas para não “detonar” as escravas, e que durante o tempo que ali estive nunca ninguém foi seriamente machucado, também me parecia que havia muito de improviso nos atos e que na busca do realismo, fundamental na humilhação, se testavam os limites uma e outra vez. Dediquei um artigo para a análise dessas práticas (Díaz-Benítez, 2015DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 65-90, 2015.) e nele mencionava que o “choro real em tempo real”, quando acontecia, era amplamente capitalizado porque para essa indústria os instantes de fissura possuíam valor simbólico e comercial.6 6 Nesse artigo (Díaz-Benítez, 2015), eu expliquei que no fetiche de humilhação é de enorme importância o realismo das cenas, como resultado de uma espécie de pacto criado entre produtores e espectadores. Indaguei os modos em que tal obrigação para a humilhação ser real nos levava a questionar o que é entendido como real nesse pacto, e até onde? Trata-se de um acordo no qual, por momentos, não é mais a representação do ato, mas o ato mesmo que se procura para ser consumido? Utilizando a ideia de Richard Schechner (2000) sobre o marco teatral, a partir da qual o autor pondera que aquilo que acontece no jogo da encenação leva a uma “segunda realidade”, ou a uma “realidade de modo diferente”, eu inferi que a humilhação, por insistir no cotidiano, mas no marco da teatralidade, não invocava a realidade, mas uma hiper-realidade. A pergunta que fica é: o que é o racismo nesse entrelugar entre performance, realismo e hiper-realismo? O racismo seria um dispositivo que borra a fronteira entre o real e a representação?
Nesses casos, eu me aproximava das escravas tentando saber se em algo podia lhes oferecer assistência. Foi nessa tentativa de aproximação que, alguns dias depois, logo após uma cena, Fafá me disse que não era para eu me preocupar, pois os socos que recebia no fetiche não eram nada se comparados com os que recebia em sua casa. Aos poucos, foi narrando que costumava apanhar muito em sua casa e durante toda sua vida, pois ambos, pai e mãe, eram viciados em crack. Comentando seu passado de dificuldades diversas derivadas de sua condição social, e seu trabalho na humilhação como meio de angariar ganhos econômicos mais ou menos estáveis que a manteriam longe da possibilidade de cair nas ruas (e provavelmente seguir o destino de seus pais), Fafá emitia sorrisos e expressões de tranquilidade por meio dos quais afastava, ao menos nessas circunstâncias de interação, demonstrações de sofrimento que para mim seriam decorrentes de sua história.
O rapaz que a acompanhava, seu cunhado, confirmou a narrativa e chegou a expressar o quanto ele a achava corajosa e com um enorme espírito de superação, porque o que ela vivia no mundo lá fora era “pauleira”. Quanto mais conhecia sua história de vida, mais eu pensava que para Fafá trabalhar num universo em que devia receber espancamentos poderia ser, por um lado, um modo de perpetuação de sua realidade, por outro, um modo de ressignificá-la. Passei a me perguntar se a “descida ao cotidiano” (Das, 2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007.) do espancamento atuaria na construção de sua subjetividade, de modo a se tornar um repertório que seu corpo conhecia e ao qual poderia voltar deslocando sentidos.
Diante de meus olhos havia algo muito violento nessa história e eu só conseguia enxergar o quanto Fafá circulava entre uma e outra cena de sujeição. Se, para mim, a humilhação extrema de uma pessoa negra fazendo de escrava já emaranhava minha possibilidade de enxergar os limites entre vida real e representação, sua experiência complicava tudo ainda mais. O que eu percebia era que se Fafá sabia apanhar, e muito aguentava, era porque havia levado a vida que levam muitas pessoas negras. Havia ali um repertório de repetições que não poucas vezes chamo de racismo.
Mas a verdade é que, com o tempo, a experiência de Fafá foi me mostrando a sua complexidade. Por um lado, ela parecia evidenciar que as práticas de humilhação, mesmo quando sentidas de modo extremo na carne e chamadas de dor, não necessariamente eram pensadas como violentas. O que quer dizer que nem sempre atos que representam ou evocam violência são vivenciados como violência pelos sujeitos que os vivem. Contudo, não experienciar atos de espancamento como violência não garante que o ato não seja experimentado como fissura em situações em que a dor toca limites. Fafá parecia ter ampliado, ao longo de sua vida, o seu umbral de dor e capacidade de suportar, o que a faz estar mais bem treinada para o papel da escravidão, por mais cruel que essa explicação possa ser.
Por outro lado, sua experiência estaria informando também sobre a extensão da temporalidade da fissura. Na formulação inicial que fiz sobre essa categoria, eu insisti que a fissura é produto de um instante em que limites se borram, emaranhando consentimento e abuso. O que desejo agora ponderar é que a repetição de atos abusivos, quando presentes no cotidiano, tem o potencial de normalização e desse modo de esticar e tornar a fissura temporalmente menos precisa. Sendo assim, acredito que para Fafá seria uma fissura anterior àquela vivida nas filmagens a que abriria o espaço para se ter certo tipo de agência repetindo e recaindo em mais fissuras. Ou que significa dizer que seria a evocação de sua biografia o que a deixaria penetrar em novas possíveis fissuras em um território em que pesa o “fazer de conta”. O quanto a raça estaria atravessando ou informando sobre universos fissurados? Para Fafá, trabalhar recebendo espancamentos tornou-se um mecanismo de conseguir ganhos a partir de uma prática de sujeição que já integrava sua rotina, e ela enxergava sua escolha como uma forma de agência, como uma fuga da condição pauperizada que seus pais atingiram por pobreza e consumo de crack. Se uma pergunta possível de me fazer aqui, evocando o trabalho de Anne McClintock (2010)McCLINTOCK, A. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 2010., é que tipo de atuação é possível para os sujeitos em situações de desigualdade social extrema, meu incômodo consistia em perceber o quanto a agência que lhe permitia obter algumas vantagens decorria de uma situação desigual e potencialmente arriscada que deixava marcas em seu corpo e provavelmente em sua psique.
A experiência de Fafá me instigou também a pensar sobre os modos como os sujeitos narram situações de sujeição. Ela colocava as justificativas para trabalhar na escravidão nas mazelas de sua biografia, e, desse modo, alocava a si mesma na posição do sujeito valente. Essa fabulação de si não é uma forma de fuga que lhe permita sair de relações de espancamento, mas permite dar inteligibilidade a suas práticas e construir a si como uma “guerreira”. Se a responsabilidade por trabalhar como pessoa humilhada é de sua história e de sua condição social, então não haveria “nada de errado” com ela, pois seu trabalho com a dor permitiria modos de procura por alternativas possíveis. Ela sabe que no mundo do fetiche sua cor negra e sua aparência de pessoa pobre são capitalizadas e quem está do lado de fora bem pode enxergar isso como uma espécie de aceitação de um fracasso, ou como uma forma perversa de aceitação de hierarquias de raça, classe e gênero. Mas para ela, dentro de seu repertório, tudo isso era de diversos modos positivado mediante a valorização de sua capacidade de suportar e fazer desse suportar um caminho para fugir de um destino pior como mulher negra. Fafá me ensinou a olhar para ela e para suas cenas de sujeição de um modo em que fosse possível extrair daí algo mais do que apenas sujeição.
Agora, uma pergunta que sobra a respeito dessas imagens, para além da história pessoal de Fafá, tem a ver com o apelo que elas possuem entre seus seguidores. Acredito ser possível pensar que a linguagem da violência que se expressa nesse fetiche que acompanhei captura um certo discurso canônico sobre a escravidão. Digo isso pensando em tecnologias descritivas da escravidão que exacerbam a violência, e que, tendo a capacidade de serem perturbadoras, simultaneamente reiteram um gozo. Vem a minha mente a lembrança do livro de John Gabriel Stedman Narrative of a five years expedition against the revolted Negroes of Surinam, publicado originalmente em Londres em 1796, com gravuras de William Blake, considerado um dos mais influentes textos humanitários do final do século XVIII e começo do XIX, por seu esforço em denunciar as torturas que viviam os escravizados naquele território. As descrições e imagens sobre torturas e mutilações do abuso escravista que funcionaram como dispositivo de repulsa levantaram simultaneamente outra dimensão: a atração erótica, especialmente numa audiência masculina (Klarer, 2005KLARER, M. Humanitarian pornography: John Gabriel Stedman’s “Narrative of a Five Years Expedition against the Revolted Negroes of Surinam” (1796). New Literary History, [s. l.], v. 36, n. 4, p. 559-587, 2005.). Uma das imagens mais emblemáticas, a de uma mulher negra nua pendurada numa árvore e lacerada por chicotes, ajuda-nos a perceber como o poder do terror das ilustrações de Blake, junto das descrições de Stedman, adicionavam um componente sexual.
O primeiro objeto que atraiu a minha compaixão… foi uma bela Samboe de cerca de 18 anos, amarrada com ambos os braços a uma árvore, tão nua como ela veio ao mundo, e lacerada numa condição tão chocante pelos chicotes… que ela foi, do pescoço aos tornozelos, literalmente tingida de sangue. Foi depois de receber 200 chicotadas que a percebi com a cabeça pendurada para baixo, um espetáculo muito miserável. (Stedman, 1992STEDMAN, J. G. Narrative of a five years expedition against the revolted Negroes of Surinam. Edited by Richard Price and Sally Price. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992., p. 145, tradução minha).
Há uma dimensão de espetacularidade nessas descrições que tem a possibilidade de tornar esses corpos ambiguamente codificados. Por um lado, a repulsa pelo castigo e a tortura corporal, por outro, um modo velado de colocar a audiência no local da ação, enxergando que esse corpo mutilado é simultaneamente um corpo negro, jovem e belo.
Não posso me alongar em comparações entre imagens e narrativas da escravidão e imagens e representações de fetiche de humilhação de mulheres negras em enredos e práticas que evocam a escravidão. Apenas desejo utilizar esse gancho para ponderar o quanto as narrativas que combinam desigualdade racial e social possuem algo de profundamente pegajoso na forma como fantasias sexuais/sociais têm sido construídas e persistem. O universo da humilhação nos diz a respeito de uma dimensão em que a fantasia sexual passa a ser incorporada e os modos como essas representações respondem e atualizam repertórios construídos a partir de arquivos de colonialidade.
É da antropóloga cubana Juana María Rodríguez (2014)RODRÍGUEZ, J. M. Sexual future, queer gestures and other latina longings. New York: New York University Press, 2014. que derivo a ideia de que há uma dimensão de stickness tanto nessas representações racializadas como em outras mais corriqueiras (tipo telenovelas latino-americanas) em que gestos de latinidade e racialidade permanecem, se reproduzem e nos compelem porque estamos sendo pegos por isso. A racialização, em casos de erotismo ou não, possui uma dimensão de stickness, sendo algo que insiste em persistir e em se colar a nós. E o faz porque somos feitos e reiterados por ideias de submissão/dominação, em que são criadas aproximações erotizadas em que traços, gestos ou reminiscências raciais/coloniais nos formam como sujeitos sociais e sexuais.
Há erotização da escravidão (em seu duplo significado de escravidão sexual e escravidão racial) e da domesticidade nos filmes que acompanhei. São imagens reais ou são representações de fantasias? Eu me arriscaria a dizer que há ali um emaranhado de sentidos. Se há racismo naqueles que se deleitam com Fafá e com outras meninas negras apanhando, seu racismo confunde os limites entre realidade e fantasia. Se não for, de todo modo esses filmes parecem evidenciar o quanto o prazer pela hierarquia existe como uma ressonância da carne.
Além e através da destruição
“É aquilo que a gente já sabe, né?” A última vez que Dona Luiza disse essa frase para mim, Everton, foi no dia 1º de maio de 2021. Ela se referia a receios quanto à pandemia, ao mundo, à possibilidade de mudança. As coisas estavam piores, aqui e em tudo quanto é canto. “Tudo, tudo, tudo neste mundo tá muito esquisito, mas vamos ter fé em Deus e esperar que as coisas melhorem.” Ao desânimo, nítido no ritmo e tom de voz, Dona Luiza tentava sobrepor o seu otimismo costumeiro. Na mensagem que ela me deixou nesse dia, a tragédia era explicada com referências ao dinheiro como medida de todas as coisas, símbolo e matéria do que chamou de “egoísmo generalizado”. “Isso não vai acabar, não”: por um lado, a pandemia que me impedia de aceitar os convites de minha amiga para os eventos de sua família e fazia com que ela se cansasse de mim, ainda que dissesse que entendia e legitimava as minhas justificativas de ausência sempre fundadas na própria pandemia; por outro lado, o modo de produção capitalista que regularmente aparecia nas nossas conversas como sendo dinheiro e moralidade associada a atos e sentimentos negativos, tais como egoísmo, soberba e desprezo. Capitalismo e pandemia evocavam a Deus, a fé como capacidade de seguir nadando quando se tem tanto a certeza de que se está afundando quanto a esperança de uma margem que ainda não se vê. Nesta parte do artigo, baseada em minha tese (Rangel, 2020RANGEL, E. Depois do estupro: homens condenados e seus tecidos relacionais. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.), espero dar concretude ao otimismo de Dona Luiza, à sua fé em permanecer nadando depois de o seu filho ter sido condenado pelo estupro de sua neta; da sua filha mais velha, na infância, ter sido sequestrada; das dificuldades financeiras e outros fatores que fizeram com que uma de suas filhas gêmeas terminasse sendo criada pela madrinha; do neto ter ido viver com a mãe, que por anos não o procurou e que suscitava mágoas; da luta por creches nas favelas onde morou quando os seus filhos eram crianças; dos esforços para manter de pé a casa de um cômodo - “meu barraco”, em tom de vergonha e carinho - onde viveu durante anos com três pessoas: o filho, o neto e uma parente com deficiência visual. Não sei quando a frase “aquilo que a gente já sabe” foi endereçada a mim pela primeira vez. No dia que lembro, Dona Luiza falava sobre a prisão do seu filho Marquinhos enquanto caminhávamos pelo centro do Rio de Janeiro, depois de uma reunião de um coletivo negro em que ouvimos sobre os nossos cabelos afro e sorrimos ao ver uma adolescente, também negra, ir através das palavras até a África para nela encontrar a sua/nossa beleza e estima. Justamente porque é com sorrisos como esse que Dona Luiza suporta e atravessa cenas de sujeição, espero conseguir explicitá-los textualmente, não como atos heroicos, e sim como gestos ambivalentes que duram pouco, mas se repetem. Dona Luiza sempre acreditou que não precisava me explicar que a prisão do seu filho tinha sido decretada antes que algum juiz chegasse a proferir uma sentença condenatória. “Você sabe como os pretos e os pobres são tratados nesta cidade”, ouvi. Ao mesmo tempo, percebi a impaciência em repetir a história - o esquema histórico-racial, para lembrar Fanon (2008)FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.. Enquanto a minha amiga bufava, sorria ironicamente e dizia que não adiantava que desmentisse em juízo a mãe de sua neta, responsável pela denúncia de estupro, eu lembrava do vídeo dessa audiência. Nele, Dona Luiza parecia acuada, rebaixada pela hierarquia judiciária, a ponto de aquele procedimento burocrático rotineiro poder ter sido vivido por ela como humilhação racial. Sentimento que, quando não é verbalizado, termina comunicado pelo corpo encolhido e cabisbaixo dos pretos pobres submetidos à seletividade penal sobre a qual a minha interlocutora falava da sua maneira. O racismo estatal e a humilhação racial marcavam o “início” da peregrinação burocrática (Freire, 2015FREIRE, L. A máquina da cidadania: uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.) de uma mãe em nome de seu filho e contra sua a nora, o que consequentemente produzia impactos negativos no interior de uma família que, para ser otimista, tinha que enfrentar o estupro de uma criança e tudo o que o circundava.
A narrativa de Dona Luiza sobre o seu filho, Marquinhos, é politicamente controversa porque cruza o racismo estatal à desqualificação da acusação de estupro promovida pela mãe de sua neta, Jurema. Adjetivos como falsa, cobra, mentirosa, perigosa, interesseira, etc. substancializavam o mal em Jurema e, ao assim fazerem, davam concretude a repertórios normativos de gênero. Marquinhos, ao contrário de sua ex-mulher, seria bobo - incapaz de entender que, diante de um juiz, falar sobre selinhos dados em sua filha seria o mesmo que se incriminar. Ele seria bobo também porque permaneceu casado com alguém de quem a sua família desconfiava e que, numa briga, teria dito: “Eu vou fazer com você uma coisa que nenhum homem supera.” É possível seguir enumerando os motivos que faziam com que Dona Luiza enxergasse inocência em seu filho, mas acredito que basta dizer que essa inocência derivava de uma imagem idealizada de Marquinhos que permitia que o insuportável fosse vivido em um ritmo viável no cotidiano. À imagem do filho como estuprador era contraposta a imagem dele como bobo, como se olhar para o filho no presente implicasse lidar com temporalidades distintas: um passado infantil associado à inocência, à ingenuidade, à tolice; e o outro associado à Jurema, ao casamento, à condenação. Positivo, negativo. Longínquo, recente. Temporalidades sobrepostas no presente e duramente valoradas e separadas pelos que queriam bem a Marquinhos. O que estou dizendo é que fazer algo por Marquinhos é para essa família o mesmo que trabalhar com o tempo (Vianna, 2015VIANNA, A. Tempos, dores e corpos: considerações sobre uma “espera” entre os jovens de violência policial no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, P. et al. (org.). Dispositivos urbanos e traços dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. p. 405-418.), não somente representá-lo e valorá-lo, mas também tentar fazer com que o passado longínquo se sobrepusesse ao recente. Neste ponto, volto mais uma vez à frase “aquilo que a gente já sabe” e, agora, começo pelos navios negreiros sobre os quais Dona Luiza me contava, vez ou outra.
Dona Luiza, o que esses navios têm a ver com a história de Marquinhos? - perguntei a ela enquanto almoçávamos em Madureira em comemoração ao seu aniversário. “Nada”, ela respondeu antes de escandalizar a assimetria que marcava os nossos encontros. “São coisas que a gente sabe. Você sabe melhor do que eu.” Esta última frase, que costuma me envergonhar, provocava em Dona Luiza um sorriso largo, como se estivesse feliz por me colocar em posição de fala: agora, então, quem diz o que tem a ver com a história de Marquinhos é você. Pode parecer pouco, mas se trata de felicidade imersa em assimetrias, uma forma propriamente desigual de estar junto. Nesse contexto, o que não entendia era a forma como Dona Luiza falava sobre as coisas: começava pelo seu filho, passava pelo dinheiro e terminava nos navios negreiros. A narrativa não era costurada via causalidade, mas através de fragmentos narrativos que se esbarravam sem revelarem um nexo preciso. Dona Luiza fazia com que as mazelas que vivenciou tocassem naquelas que percebia no mundo atual e na história deste mundo, mas não estava interessada em costurá-las umas às outras pacientemente, menos ainda em destrinchar desgraças. A pandemia não estava no nosso horizonte quando o almoço em questão aconteceu, mas o dinheiro e os navios já estavam lá. O dinheiro, como dito, era uma presença constante que sinalizava afetos negativos, como a ausência de empatia; já os navios negreiros, menos usuais, compareciam como modo de falar sobre um passado colonial cuja presença podia ser sentida. Falava-se sobre os navios sempre na forma de um fragmento: vestígio disperso de uma história coletiva dos negros que se conhecia, mas que, quando enunciada no presente durante uma conversa sobre Marquinhos, por exemplo, não permita a costura imediata entre a escravidão e o atual. Entre essas histórias, a da coletividade negra e a do corpo de uma mulher negra, estava o “nada”.
Importa destacar que não é oportuno considerar a ausência de costura linear entre temporalidades como uma falta, espécie de acusação voltada ao sujeito que ainda não aprendeu sobre o seu/nosso passado. Ao contrário, pois Dona Luiza frequentava espaços onde o fardo da escravidão era enunciado e diretamente vinculado a experiências pessoais e coletivas atuais, como no caso da reunião em que estivemos juntos e ouvimos sobre o valor dos nossos cabelos crespos, o genocídio da população negra e a escravidão. Talvez, em situações em que não estive presente, ela mobilizasse o tipo de construção político-analítica de causalidade temporal que faz da sujeição uma repetição. A pergunta que fica é: se esse tipo de construção faz parte da vida dela, o que o nada evoca? Trata-se, começo a pensar, de uma maneira de experienciar o tempo como destruição, mais precisamente de um modo de sentir e perceber a destruição da história dos negros. Os navios que afundavam ao serem enunciados por Dona Luiza pareciam ser para ela um modo de tornar sua a história que conhecia da coletividade negra, um processo cuja força implicava o próprio desmantelamento do tempo: longínquo, recente, colonial. Nesse sentido, Dona Luiza narrava uma história dos negros que “só pode ser feita em fragmentos, convocados para relatar uma experiência em si mesma fragmentada, a de um povo pontilhado, lutando para se definir não como um compósito absurdo, mas como uma comunidade cujas manchas de sangue são visíveis” (Mbembe, 2018bMBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018b., p. 59-60). O nada era o que circundava os fragmentos narrativos em que Dona Luiza habitava, deixando explícitos os buracos que marcavam a história da presença dela neste mundo enquanto matriarca de uma família negra específica. Como se ela estivesse dizendo que representar, sentir e trabalhar com o tempo em um Rio de Janeiro racista era o mesmo que lidar com desfigurações da figura do negro - do filho, sobretudo. E, mais do que isso, o nada pode ser uma forma de voltar para si a destruição que caracteriza o esquema histórico-racial, ou melhor, pode ser uma “modalidade patogênica de memória” sobre a colônia, um modo de viver o peso de uma história coletiva que foi escrita repetidas vezes a partir da dor, uma forma violenta de introjeção dessa escrita. Mas, então, como ir além do nada descrito como resultado da violência que fundou subjetividades negras e persistiu marcando-as, alocando-as em fragmentos? Como não repetir a cena de sujeição enquanto algo que passa de mãe para filho? Como olhar para Dona Luiza de outra maneira?
O olhar é tema frequente, seja na literatura feminista, seja na literatura sobre raça e racismo. Uma das conclusões relevantes de serem destacadas aqui diz sobre a posicionalidade do sujeito, mais detidamente sobre enxergar a partir de um corpo situado em um tempo e local específico, isto é, a partir de um corpo que para ver mobiliza tecnologias de visualização cuja genealogia pode ser traçada. Quando Haraway (2009)HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 2009. fala em saberes localizados, ela está não somente contrapondo-se à pretensa neutralidade do olhar científico (masculino, leia-se) que vem de lugar nenhum (truque de Deus), como também insistindo que todo exercício de explicitação de posicionalidade é um ato de responsabilidade: sabe-se quem olha, em que circunstância olha e com quais intenções fala sobre o que viu. Nesse sentido, as tecnologias de visualização levantam um problema de ordem epistemológica e política, como sugeriu Hill Collins (2012)HILL COLLINS, P. Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro. In: JABARDO, M. (ed.). Feminismos negros: una antología. Madrid: Traficante de Sueños, 2012. p. 99-134. sobre o pensamento feminista negro. Destaco esta autora porque ela faz da posicionalidade, de sua experiência como feminista negra e socióloga, um exercício no sentido de ofertar à prática científica direções imprevistas e capazes de agregar, seja transformando as perguntas de pesquisa, seja promovendo coalizões entre corpos e coletividades suscetíveis a opressões que aprendemos, ainda recentemente, a descrever de modo interseccional e assim nomear. Ao cruzar posicionalidade e opressão, Hill Collins não fecha o olhar feminista negro no registro da dor, entre outras razões, porque quer fazer desse olhar um ato de transformação das formas de conhecer disponíveis. O que muda se olharmos para Dona Luiza pensando tanto na transformação de nosso instrumental para enxergá-la quanto na necessidade de ouvir de outro modo o que ela diz?
Recorro a Fanon (2008)FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. mais uma vez porque é possível escutar os ecos da obra dele na literatura que busca conjurar a sujeição sem fazer da linguagem contemporânea da agência/resistência um projeto de transformação que sobrevaloriza as ações que o analista enxerga como estruturalmente significativas. Volto a ele também com a esperança de traçar um caminho etnográfico que não sufoque Dona Luiza, nem vanglorie os seus sorrisos de forma etérea. “Olhe, um preto!” Esse é um tipo de frase que carrega para Fanon o poder de redução do negro a uma mirada branca. Trata-se de uma frase que quer tornar o outro nada além dela mesma. Uma interpelação, um racismo que constitui a figura do negro e, por conseguinte, a do branco. Essa frase nomeia o outro para hierarquizá-lo e, no limite, retirá-lo de cena. O olhar sendo então gesto que permanece coisificando o negro, cuja humanidade é constantemente negociada e negada. O preto e o nada, desse ângulo, são os dois lados de um mesmo corpo, bem como a cena do reconhecimento negado corresponde à cena do açoite. Já a descolonização radical, para o autor, estaria vinculada a um exercício de afirmação de si, cuja força se assemelha à de uma recusa a tornar-se, uma vez mais, o negro do olhar branco. Estou falando sobre uma luta arrebatadora e incessante, e sobre a qual muito se discute - em especial, no que diz respeito ao lugar da violência na transformação dos esquemas histórico-racial e epidérmico-racial.
São os gestos de Dona Luiza que afirmam formas de recusa. A primeira e mais explícita reside na impaciência em narrar de novo e de novo a sujeição. Ela a toma como já conhecida na esperança de passar o quanto antes ao próximo assunto. Não como se negasse a destruição, afinal ela mesma falava sobre o habitar em fragmentos, e sim expressando irritação em permanecer destrinchando mazelas. A segunda forma de recusa está ligada à palavra “nada”, pois ela denota ausência de causalidade temporal e incompletude. Em outras palavras, quando os navios negreiros emergiam para logo afundarem, negavam nesse movimento, nessa brevidade, a possibilidade de totalização. Relatavam a impossibilidade da história como completude. O mundo de Dona Luiza é fragmento e, por sê-lo assim, está cercado pelo nada como espaço de destruição e vazio. O vazio que eu escutava na fala dela não era simplesmente um eco da sujeição porque acompanhava tanto a irritação em narrar de novo a própria sujeição quanto os sorrisos que Dona Luiza dava ao passar para o próximo assunto. Se ela pudesse, se o mundo como fragmento deixasse, de fato pularia o passado colonial e o passado recente, marcado pela memória da prisão do filho. Multiplicaria com ainda mais força a memória desse homem como bobo. O ponto é que, por mais que tente, Dona Luiza não pode fazer isso, não pode dizer que o que diz é tudo o que existe. Há sempre o risco de a narrativa sobre si, sua família e o mundo ser contradita. O trabalho com o tempo é político, pois tem a ver com uma afirmação de si que implica que olhemos para o nada para encontrar ali uma história de destruição incompleta, seja porque passível de ser questionada e atualizada por atores com intenções variadas, seja porque a própria destruição pode não alcançar a amplitude do nada. Demorei muito para, além de enxergar fragmentos como eivados de violência, vê-los como oportunidades, espaços cercados de vazios para onde sorrisos podem ser duramente dirigidos. Acredito que foi a irritação de Dona Luiza em repetir histórias que me convidou a enxergar o nada e a ela dessa maneira.
O que estou propondo então é uma conversão da zona do não ser (preto/nada) em uma zona do ser (maternidade/irritação/sorrisos)? Formular dessa maneira é simplificar a qualidade ambivalente do processo de formação de sujeitos raciais que estão neste mundo, ainda que vivam e morram inúmeras vezes e de múltiplas formas como se nunca tivessem chegado a estar aqui. Quando o mundo habitável se torna fragmento, a vida que se leva está repleta de ambivalência, ou melhor, a ambivalência é qualidade mesma dessa vida. E não há totalidade que possa ser recomposta, não há história que possa ser narrada através da costura vigorosa entre a dor de uma família e a de uma coletividade. O “nada” no discurso de Dona Luiza é importante por isso: fala do que cerca um fragmento, precisamente uma história das populações negras cujo link com o atual é pressentido, mas não se firma. E é essa frouxidão, esses pequenos vazios, que a gente precisa enxergar de outro modo, se quisermos ir além das narrativas que encarceram corpos negros em dores. O sofrimento coletivo é aquilo a que Dona Luiza se refere quando usa a expressão “coisas que a gente sabe”, ou seja, essa expressão não remete a algo que deixou de ser enunciado, a uma ordem do não dito. Pelo contrário, tudo está dito, tão dito que minha interlocutora se evadia de repetir, fazendo notar na expressão facial, no corpo e no tom de voz o seu cansaço e irritação. O que Dona Luiza colocava no lugar dessa história repetida? Sorrisos, esgotamento, humores, “nada!”. Eu suspeito que o nada como pequenos vazios nos ajuda a pensar sobre o que costumamos chamar de história no sentido mais abrangente do termo, mas não posso ir além neste momento. Limito-me a sinalizar que, quando Dona Luiza se furtava a contar a história que sugeria que eu contasse - “você sabe melhor que eu” -, o que ela fazia era posicionar a sua vida no interior de um fragmento, recusando a simples repetição do esquema histórico-racial. Devo enfatizar que me refiro a uma recusa parcial, pois esse esquema histórico não pode ser integralmente negado e não há fala que possa bani-lo em um só ato. Habitar em fragmentos é viver na fronteira entre a zona do ser e do não ser, é existir reconhecendo o excesso de sentido do sofrimento negro e, em contrapartida, apontando na direção daquilo que ainda não se sabe sobre essas populações, do “nada” como pequenos vazios oportunos, quiçá do “nada” como necessidade de fabulação (Hartman, 2021HARTMAN, S. V. Venus em dois atos. In: BARZAGHI, C.; PATERNIANI, S.; ARIAS, A. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo: n-1 edições, 2021. p. 105-129.). Está em jogo a possibilidade de os pequenos vazios, distantes de qualquer romantismo, serem rotas de fuga, seja para Dona Luiza, seja para a forma como aprendemos vê-la.
Morte e vida, prazer e dor e otimismo e derrota se fundem de maneiras inusitadas e, no caso de Dona Luiza, de tal forma que é possível lembrar do que Lauren Berlant (2010)BERLANT, L. Cruel optimism. In: SEIGWORTH, G. J.; GREGG, M. The affect theory reader. Durham: Duke University Press, 2010. p. 93-117. chamou de otimismo cruel - com a esperança de assim encontrar alguma pista de compreensão da positividade materna ao cogitar a vitória da narrativa de injustiça sobre a falsa acusação de estupro, mesmo quando se sabe que a vitória como tal não é possível em uma cidade racista e economicamente desigual. Quando Dona Luiza fala sobre racismo, seletividade penal, desigualdade, navios negreiros, inocência e tolice, ela está iludindo a si mesma em relação a seu filho? Ilusão não seria uma palavra que reveste o antropólogo de autoridade e limita os processos de vinculação entre mães e filhos a sentidos excessivamente restritivos e negativos? O otimismo cruel parece uma expressão mais acurada porque faz referência a uma tentativa de explicação dos apegos que habilitam os sujeitos ao mesmo tempo que os deterioram. Ou seja, permite compreender como se constrói o senso de perseverança, sem deixar de lado os aspectos incoerentes do apego a objetos de desejo. Por que desejamos voltar a uma cena de contato com um objeto de desejo mesmo quando esse contato não é exatamente gratificante? Por que Dona Luiza insistia em narrar um passado longínquo e infantil, embora se sentisse frequentemente irritada com o comportamento atual de seu filho? Refiro-me aos momentos em que ela me disse que Marquinhos era mulherengo como o pai dele e que enxergou em ambos a mesma malícia de ordem afetivo-sexual; aos episódios em que tentou vigiar de perto a aproximação de seu filho a pretendentes, como no dia em que tentou interromper, junto com uma de suas filhas, as trocas de olhares e bilhetes entre Marquinhos e uma conhecida; ao esforço para diferenciar no âmbito cotidiano machismo de estupro; ao conflito entre a atualização do repertório de gênero que fazia da mãe de sua neta uma cobra e as cenas em que Marquinhos não comparecia como um bobo. Uma infinidade de momentos resumidos na frase dirigida a mim: “Você sabe como ele é, né?”
O sentido dessa frase pode ser esticado, pois aparecia também nos momentos em que a tolice do filho se tornava difícil de suportar e Dona Luiza dava de ombros e bufava, logo após vê-lo não entender procedimentos administrativos que, mesmo quando eu os explicava diretamente a ele, sabia que teria que contar também para a sua mãe. Bufar, respirar, tornar a olhar para o filho, defendê-lo, acusá-lo, narrar o que já se sabe… O senso de perseverança não é uma irracionalidade do comportamento, pois a proximidade ao objeto de desejo significa proximidade ao conjunto de coisas que o objeto promete: um filho inocente, uma maternidade segura do seu valor moral, rotas de fuga e encontro com o racismo estatal e a humilhação racial, etc. A rendição à volta a uma dada cena de contato, passível de ser erguida tanto por idealizações do passado quanto por idealizações do futuro, revela o próprio otimismo que embala desde a base a relação assumida com filhos. Diz Berlant (2010BERLANT, L. Cruel optimism. In: SEIGWORTH, G. J.; GREGG, M. The affect theory reader. Durham: Duke University Press, 2010. p. 93-117., p. 94, tradução minha), o “otimismo cruel nomeia uma relação de apego a condições de possibilidade danificadas cuja realização é descoberta como impossível, pura fantasia, ou muito possível e tóxica”. A crueldade do otimismo está, por exemplo, no empenho dolorido de Dona Luiza para não perder os seus objetos de desejo, especialmente a idealização de um passado infantil. Ela voltava à cena de contato com esse passado, bem como com os navios negreiros, como se assim pudesse suportar o medo de perder a imagem do filho amado, de perder o olhar benevolente em relação a ele. A referência ao termo “fantasia” demarca aqui a projeção de qualidades em uma pessoa, a inocência dos tolos, sem lastro imediato com o atual. Marquinhos não era somente bobo e os navios que nada tinham a ver com a sua história à distância abriam brechas para sorrisos. A dureza da história dessa família está, a meu ver, no modo como reúne racismo e amor maternal. O otimismo cruel, porque derivado de condições precárias de existência, descreve uma busca pela sedimentação de uma boa vida numa paisagem subjetiva, sendo o bom aquilo que a vida oferece como o possível de assim ser imaginado. O sujeito dessa fantasia é uma pessoa desgastada e, não obstante, engajada em fazer repercutir as promessas acopladas ao objeto de desejo. Berlant sugere ainda que nos casos mais extremados dessa forma de crueldade pode-se preferir enlouquecer a perder a fantasia que faculta o trabalho de viver uma vida difícil. Para a autora, a atração magnética causada pelo otimismo cruel pode até mesmo suprimir os riscos do apego.
Acredito que permaneci tempo o bastante próximo de Dona Luiza para perceber que a sua irritação pode ser entendida como um custo, uma sobra ou um efeito da centralidade da vivência do otimismo cruel. Longe de ser algo sobre o qual a minha interlocutora discorria, esse era um estado de humor passageiro e repetitivo, que se apresentava com alguma frequência em referência a Marquinhos, à ex-mulher dele, ao racismo, à aproximação da figura do ex-marido ao filho, etc. A causa desse afeto era múltipla, mas algumas recorrências se apresentavam. Dito de outro modo, a irritação de Dona Luiza tinha muitos porquês, mas quase todos os que pude reconhecer tinham alguma ligação inexata com o otimismo cruel: como se cada mergulho dela no passado compartilhado com Marquinhos, assim como no passado colonial, provocasse na superfície do corpo a irritação. Tudo que era feito em nome de um filho fazia emergir o que Ngai (2005)NGAI, S. Ugly feelings. Cambridge: Harvard University Press, 2005. chamaria de “sentimento feio” ou de afeto negativo de baixa intensidade. Embora seja importante para a autora demarcar que a irritação é mais um humor do que uma emoção, já que os objetos dos humores seriam mais difusos que o das emoções, interesso-me por outro argumento: as emoções, pensemos por exemplo na raiva, estariam mais próximas da ação do que os humores. A irritação, desse ângulo, estaria voltada principalmente ao estado de inação, não que esteja associada à completa paralisia. Ngai chega a essas conclusões analisando um romance, Quicksand, publicado em 1928 nos Estados Unidos, cuja protagonista é uma mulher negra de classe média que se irrita com o cheiro de comida estragada, chegando a se exaltar, a manifestar raiva, mas não necessariamente expressa na mesma intensidade incômodo com episódios de racismo. Trata-se de um romance centrado na discussão sobre a vivência de Helga Crane entre pessoas brancas, que parece interessar a Ngai na medida em que constrói a personagem principal a partir de um sentido de pertencimento racial movediço e questionável. Ngai argumenta que a irritação - de Helga - não carrega a virtuosidade atribuída à raiva na luta por justiça social, pois era um humor brando. A autora não questiona a aposta política e existencial de Lorde (2007)LORDE, A. Sister outsider. Berkeley: Crossing Press, 2007. na raiva como resposta ao racismo, e sim a possibilidade de a raiva ser defendida como a única resposta apropriada. O seu objetivo é questionar se a avaliação das respostas ao racismo em termos de virtuosidade e adequação não seria um ato violento. A preocupação com a proporcionalidade e a adequação das respostas afetivas incorreria no risco de colocar a irritação, porque julgada fraca, e a raiva, quando julgada excessiva, no banco dos réus, e não os racistas.
Tudo isso para dizer somente que Dona Luiza, protagonista empenhada do otimismo cruel, fazia o que podia: se, por um lado, ensinava aos seus filhos e a mim a nos lermos racialmente, por outro lado, sentava-se para esperar passar a irritação provocada por Marquinhos, pela condenação dele, pelos navios que afundavam ao serem mencionados, pela filha que insistia em se tornar policial. Se Helga Crane tem em comum com Dona Luiza o fato de manifestar um humor - apenas para seguirmos usando as palavras de Ngai - de baixa intensidade como resposta ao racismo, ainda que não somente a ele, vale pensar sobre a especificidade do contexto em que minha interlocutora forjava essa resposta afetiva. Ainda me pergunto se a irritação não tinha a ver com o envelhecimento materno, mais especificamente com o esgotamento provocado pelo protagonismo na reiteração do otimismo cruel por anos e anos. Ao mesmo tempo que via Dona Luiza em posição ativa, exercendo forte controle no que se referia à reprodução da narrativa de injustiça no seio da sua família, via que a irritação dela nascia junto ao seu cansaço, emergia nos momentos em que as coisas pareciam tão difíceis de serem conquistadas que o melhor a se fazer era exclamar qualquer xingamento, dar de ombros e esperar passar a irritação, sentando-se e assim recompondo alguma força para tornar a fazer aquilo que era julgado essencial, mas seguia exigindo esforços e, por isso mesmo, exaurindo. A irritação parece ter a ver com o envelhecimento materno na medida em que diz sobre um cansaço em repetir as mesmas lições sobre a vida, em passar pelas mesmas situações com as mesmas pessoas e, sobretudo, em falhar em fazer os outros verem o que se considera que deve ser enxergado, seja esse outro um juiz, o próprio filho ou o antropólogo. Desse ângulo, existe até mesmo alguma nobreza em irritar-se e, no dia seguinte, levantar-se para fazer e sentir as mesmas coisas de ontem.
Considerações finais
Iniciamos este artigo falando sobre sujeição não apenas porque consideramos que sujeitos são habilitados por relações de subordinação através da quais se tornam aptos a agir de uma dada maneira - ideia de Foucault (1982)FOUCAULT, M. The subject and power. Critical Inquiry, Chicago, v. 8, n. 4, p. 777-795, 1982. conhecida como paradoxo da sujeição -, mas também porque tínhamos o interesse em discutir com um pouco mais de nuance os sentidos atribuídos a esse agir para sujeitos racializados: trata-se de fuga, resistência, resiliência, prática, ato ético, etc.? Cada uma dessas palavras tem uma história nas ciências sociais e recontá-las, em linhas de conclusão, é uma tarefa impossível. Aos nossos objetivos, basta explicitar o enquadramento analítico com o qual trabalhamos e o porquê de termos optado pela palavra “fuga”. A princípio, nossa tarefa foi a de não simplificar a sujeição tratando os atos de nossas interlocutoras ora como evidentes subversões das normas, ora como meras repetições, e sim como atos que a todo instante estão imersos em processos sociais que por combinarem sujeição e agência precisam ser descritos em sua complexidade. Assim, para tornar inteligível a experiência de uma mulher que representa a figura da escrava em filmes de humilhação e faz dessa representação uma forma de se manter de pé em termos econômicos, buscamos olhar com atenção para as tensões entre o real e o fantasmático. Os socos que Fafá levava em cena redundaram por vezes em fissuras - momentos em que a teatralização dos atos foi tão real que se tornou impossível que fossem apenas teatro -, que não se esgotaram com a recuperação do corpo negro derrubado para provocar prazer, mas se estenderam no tempo e no espaço, muito para além da erotização da cena do açoite. Pensem em Fafá indo para casa com dinheiro no bolso e a sensação de ser o corpo bom de apanhar. A fissura inicialmente pensada por Díaz-Benítez (2015)DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 65-90, 2015. como momento em que se passa do consentimento ao abuso se tornou aqui um modo de captar o peso que a evocação da escravidão projetava sobre os ombros de Fafá e, ao mesmo tempo, um modo de falar sobre a forma como ela mesma tentava se evadir dessa evocação pensando a si como tornada forte pelos socos que a vida lhe havia dado antes de chegar em um set de filmagem.
A fissura tem a ver com rotas de fuga na medida em que ambas implicam imprevisibilidade, remetem a momentos em que alguma coisa está acontecendo, mas ainda não se sabe exatamente o que e nem a direção para onde isso que acontece levará. A fissura abre o espaço que faculta que Fafá, mesmo experimentando na carne uma maneira de ser escrava, se evada do repertório da escravidão evocado no contexto do fetiche de humilhação e aposte em outra forma de afirmar a si, por mais transitória que possa vir a ser a percepção de que se é uma heroína, alguém que aguenta na esperança de vencer. Já no caso de Dona Luiza a fuga está vinculada à deslocalização do sujeito em relação ao esquema histórico-racial, a um movimento que a todo instante coloca em tensão, de um lado, o preto como o nada e, de outro lado, o nada como sendo incompletude, pequenos vazios que furam ou podem furar a história conhecida da coletividade negra. A fuga, nesse sentido, não é um abandono do mundo destruído, e sim uma forma de habitar fragmentos, fazendo do nada uma possibilidade de sorriso e, por que não, de outra história. Nos dois casos, não há nenhuma certeza em torno do porvir, apenas movimentos que nos parecem passíveis de serem qualificados como ambivalentes e, concomitantemente, ainda desconhecidos. Se não há uma delimitação prévia do que fazer, apenas coisas que vão sendo feitas enquanto nossas interlocutoras se sentem irritadas, se esforçam para não serem nocauteadas, ganham dinheiro e sorriem, a própria fuga de condições de existência precárias é uma promessa com a qual se estabelece uma relação pegajosa. Nesse ponto, vale lembrar de Juana Maria Rodríguez (2014)RODRÍGUEZ, J. M. Sexual future, queer gestures and other latina longings. New York: New York University Press, 2014. e Mary Douglas (2012)DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2012.; quando refletindo sobre o pegajoso, chegam, por vias diferentes, à conclusão de que se trata de algo a que nos vinculamos em um misto de ojeriza e prazer. Assim são as evocações à escravidão, quando remetem à submissão e erotismo, e assim são as promessas de futuro, quando o sentimento de otimismo se torna cruel. A qualidade pegajosa da fuga, do desejo de fuga, cria rotas imprevisíveis para as pessoas que se engajam em tocar a vida da maneira como é possível. A fugitividade não é intrinsecamente uma reparação dos sujeitos racializados que foram quebrados, traumatizados ou amputados. É movimento, deslocalização, fantasia, algo que está acontecendo na vida de Dona Luiza e de Fafá como um percurso não premeditado e inseguro.
Desse ângulo, a palavra “resistência” soa demasiadamente vinculada à sujeição, aprisionada num tipo de relação com a norma que fixa o sujeito que resiste em um estado de oposição e obscurece a oscilação entre dor e prazer que fundamenta a própria possibilidade de constituição de algo como um sujeito. É através dessa oscilação que estamos qualificando isso que estamos chamando de fuga, na esteira de Harney e Moten (2013)HARNEY, S.; MOTEN, F. The undercommons: fugitive planning and black study. New York: Minor Compositions, 2013. e com ligeira liberdade de uso. É porque os autores pensam a fuga como um movimento aposicional que a linguagem da resistência pode se tornar a da localização, do enraizamento, incorrendo ao risco de se tornar também uma ancoragem limitante das fantasias em torno do que existe e do que pode vir a ser. Harney e Moten falam sobre o estudo do movimento enquanto algo que permite a preparação, isto é, a multiplicação de fantasias sobre o que pode ser ou já está sendo, mas ainda não assumiu a forma de um outro mundo. Suas formulações remetem, em última análise, à destruição do ponto de vista segundo o qual o mundo tal como conhecemos faz sentido, daí também a aposta política e existencial no movimento fugitivo como algo capaz de desorientar os pontos de vista estabelecidos. Fantasiar enquanto se anda com os pés neste mundo, se seguirmos as pistas de Dona Luiza, tem a ver com voltar ao passado - aos fragmentos que tornam o passado conhecido e habitável (navios negreiros, filho bobo, pretos, pobres, etc.) - para articular no âmbito do cotidiano a vida possível de ser levada com um filho negro condenado por estupro. Quando falamos em fuga para descrever o caso dessa senhora, pensamos que os esforços dela para habitar um mundo tornado fragmento implicam movimentos que se dão no plano da fantasia. Se estamos falando da fuga como oscilações que permitem retornar ao já conhecido e conhecê-lo de outro modo, então aceitar o convide de Dona Luiza para seguir com ela rotas que não se limitam a tudo que irrita sugere que devemos continuar prestando atenção na relação entre fantasia e cotidiano, com esperança de assim ouvir e escrever de outro modo sobre evocações à escravidão.
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1
Ver, por exemplo, Reis e Gomes (1996)REIS, J. J.; GOMES, F. dos S. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.; Lara (2007)LARA, S. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.; Slenes (2011)SLENES, R. W. Na senzala, uma flor - esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2. ed. corrigida. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.; Domingues (2008)DOMINGUES, P. A nova abolição. São Paulo: Selo Negro, 2008..
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2
Por questões de estilo narrativo, ao longo do texto utilizaremos a primeira pessoa do singular nas passagens que remetem mais diretamente à etnografia que apenas um de nós, autores deste artigo, realizou. As análises levantadas em cada história, de Fafá e Dona Luiza, foram, porém, resultado de um trabalho coletivo, de conversas e análises que compartilhamos nos últimos anos. Já na introdução e conclusão, optamos por utilizar a primeira pessoa do plural. Vale sinalizar também que Fafá e Dona Luiza são pseudônimos.
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3
Oferecendo uma tradução: “batidas violentas no tórax”; “tortura com o pé” ou “pé torturador”; e “humilhação com o pé” ou “pé humilhador”.
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4
A esse respeito, ver Souza (2016)SOUZA, F. F. Reflexões sobre as relações entre a história do serviço doméstico e os estudos de pós-emancipação no Brasil. História, Histórias: revista do Programa de Pós-Graduação em História da UnB, Brasília, v. 4, n. 8, p. 131-154, 2016..
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5
Pisar/pisotear e saltar.
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6
Nesse artigo (Díaz-Benítez, 2015DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 65-90, 2015.), eu expliquei que no fetiche de humilhação é de enorme importância o realismo das cenas, como resultado de uma espécie de pacto criado entre produtores e espectadores. Indaguei os modos em que tal obrigação para a humilhação ser real nos levava a questionar o que é entendido como real nesse pacto, e até onde? Trata-se de um acordo no qual, por momentos, não é mais a representação do ato, mas o ato mesmo que se procura para ser consumido? Utilizando a ideia de Richard Schechner (2000)SCHECHNER, R. Performance: teorías y prácticas interculturales. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2000. sobre o marco teatral, a partir da qual o autor pondera que aquilo que acontece no jogo da encenação leva a uma “segunda realidade”, ou a uma “realidade de modo diferente”, eu inferi que a humilhação, por insistir no cotidiano, mas no marco da teatralidade, não invocava a realidade, mas uma hiper-realidade. A pergunta que fica é: o que é o racismo nesse entrelugar entre performance, realismo e hiper-realismo? O racismo seria um dispositivo que borra a fronteira entre o real e a representação?
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jun 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
-
Recebido
31 Maio 2021 -
Aceito
14 Fev 2022