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Raça, racismo e direitos humanos

ESPAÇO ABERTO

Raça, racismo e direitos humanos

Francisco M. Salzano

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

Discussões sobre o conceito de raça, inicialmente proposto para aplicação na espécie humana por George Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), continuam sem sinal de arrefecimento. Recordo-me muito bem do drama que foi a redação final do documento de quatro páginas adotado oficialmente pela Unesco sobre os aspectos biológicos da raça, e aprovado em 18 de agosto de 1964. Eu fazia parte de um grupo selecionado de 22 especialistas de todos os continentes, reunidos em Moscou para a tarefa. E asseguro que alcançar a unanimidade requerida não foi fácil, mesmo depois de sete dias e meio de exaustivas discussões formais e informais (Biological , 1965).

O problema todo é que há um conceito biológico e um conceito social de raça. Não adoto a posição de Pena e Bortolini (2004) de "que raças humanas simplesmente não existem", e a divergência de opinião relaciona-se à própria definição de raça em si. O conceito deriva diretamente daquele de subespécie, que classicamente requer apenas que o agregado de populações locais habite um território específico e difira taxonomicamente de outras populações da espécie. O grau dessa diferença só poderia ser determinado através de taxonomistas experientes com a espécie em questão e afins (Mayr, 1963).

Voltando ao caso humano, vou me permitir o relato de mais uma experiência pessoal. No curso de trabalho de campo realizado em 1969 entre os Mekranoti, um subgrupo kayapó, encontramos um homem branco (ruivo!) que havia sido capturado na infância pelos índios e adotara de maneira total o modo de vida da tribo, inclusive casando com uma índia, da qual tinha três filhos. Obviamente a caracterização genética do mesmo era importante para a avaliação de toda a população e o seu sangue foi coletado, como o de toda a sua família e colegas. Alíquotas dos mesmos foram enviadas para estudo parcial nos EUA, e uma semana depois chegava-nos uma carta incisiva de lá: "O que é isto, vocês misturaram sangue de algum branco na amostra enviada?" Isto é, a quilômetros de distância, sem ser vista, a referida pessoa foi caracterizada como euroderivada (Salzano et al., 1972).

Na verdade, com o desenvolvimento da genômica, ficou fácil (desde que se teste o número apropriado de marcadores genéticos) estabelecer conexões mesmo remotas com ancestrais dos diferentes continentes (ver, por exemplo, Bamshad et al., 2004). E essa possibilidade já proporciona boa fonte de renda para empresas internacionais que se propõem a fornecer a ancestralidade remota de qualquer pessoa obcecada pela sua genealogia (Shriver; Kittles, 2004). Devido a histórias evolucionárias distintas a própria estrutura genética dos grupos continentais é diferente; assim, há muito mais recombinação genética nos cromossomos de africanos do que nos de europeus ou asiáticos (Gabriel et al., 2002).

Porém, o ponto todo discutido no excelente e bem documentado artigo de Maio e Santos não é esse. Trata-se da validade do estabelecimento de cotas raciais e como implementá-las no âmbito, nesse caso específico, de uma universidade. Foi só recentemente que os vários documentos sobre direitos humanos estenderam o conceito de direito individual ao direito de grupos, o que cria uma série de problemas, especialmente no que se refere a quem tem direitos legítimos de representar a estes últimos (revisão em Salzano; Hurtado, 2004). O sistema de cotas é claramente inconstitucional, pois a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 5º, afirma que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", e no seu parágrafo XLII estabelece que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei". E o que está ocorrendo, justamente, é um racismo às avessas, inclusive com a instituição (vergonhosa) do apartheid: há vestibular para brancos e vestibular para negros e índios separados, incomunicáveis.

O problema da implementação da política de cotas, em um país etnicamente tão diverso como o nosso, está perfeitamente caracterizado no artigo de Maio e Santos. Que nível de ancestralidade africana, européia ou ameríndia deve ser considerado como "significante"? Pena e Bortolini (2004) assinalaram que 86% da população brasileira possui mais de 10% de ancestralidade africana; portanto, potencialmente, essa fração poderia solicitar o benefício das cotas; mas eu sou mais radical. Como está amplamente demonstrado (para horror dos racistas!) que a África foi o berço de toda a humanidade, é óbvio que todos os brasileiros têm potencialmente direito ao benefício.

A questão da "dívida histórica" para com os afro-descendentes e ameríndios não convence, e é postulada pelos mesmos grupos que preconizam o calote com relação à dívida financeira externa do país com o Primeiro Mundo. Por que eu, meus filhos ou netos irão pagar por um comportamento que não é deles, característico de épocas em que este era considerado válido? É bom não esquecer que o tráfico de escravos era desenvolvido com a intermediação direta dos próprios africanos, que tinham o monopólio do apresamento das vítimas em toda a África.

Eu concluiria declarando o seguinte: o direito à igualdade de oportunidades, assegurado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, deve ser estritamente respeitado. A desigualdade biológica não tem nada a ver com o princípio ético de que a posição de qualquer pessoa em uma determinada sociedade deva ser um reflexo acurado de sua capacidade individual.

Referências

BAMSHAD, M. et al. Deconstructing the relationship between genetics and race. Nature Reviews Genetics, v. 5, n. 8, p. 598-609, 2004.

BIOLOGICAL aspects of race. International Social Science Journal, v. 17, n. 1, p. 71-161, 1965.

GABRIEL, S. B. et al. The structure of haplotype blocks in the human genome. Science, v. 296, n. 5576, p. 2225-2229, 2002.

MAYR, E. Animal species and evolution. Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, 1963.

PENA, S. D. J.; BORTOLINI, M. C. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 31-50, 2004.

SALZANO, F. M.; HURTADO, A. M. Lost paradises and the ethics of research and publication. New York: Oxford University Press, 2004.

SALZANO, F. M. et al. Blood groups and H-Leª salivary secretion of Brazilian Cayapo Indians. American Journal of Physical Anthropology, v. 36, p. 417-425, 1972.

SHRIVER, M. D.; KITTLES, R. A. Genetic ancestry and the search for personalized genetic histories. Nature Reviews Genetics, v. 5, n. 8, p. 611-618, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Ago 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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