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Redimensionando: uma forma de “leitura crítica” aplicada à Historik de Jörn

Resizing: a form of “critical reading” applied to Jörn Rüsen’s Historik

Resumo

O objetivo deste artigo é redimensionar a Historik de Jörn Rüsen, a partir do acréscimo de uma dimensão meta-epistêmica às demais dimensões que estruturam o projeto deste historiador alemão. Essa proposta é apresentada como exercício de um sentido próprio de “leitura crítica”, construído em diálogo com teorias sobre a condição de subalternidade dos(as) intelectuais do sul global e, sobretudo, com as estratégias que oferecem para enfrentá-la. O fio condutor de tais reflexões são: a) as ideias de corpo, e incorporação como metáforas da alimentação e da antropofagia para pensar a incorporação de ideias, conceitos e teorias, mas também a rejeição delas como um ato de bulimia ideológica; b) a ideia de leitura crítica como dinâmica de influxo/refluxo de ideias que, como resultado final, são tanto reconhecidas quanto redimensionadas. Esse redimensionamento, em conclusão, é apresentado como proposta de acréscimo de uma dimensão meta-epistêmica como instância que antecede as dimensões da pragmática, da científica, da tópica e da didática.

Palavras-chave:
Meta-episteme; Teoria da História; Dependência acadêmica

Abstract

The aim of this article is to resize Jörn Rüsen’s Historik, starting from the addition of a meta-epistemic dimension to the other dimensions that structure the project of this German historian. This proposal is presented as an exercise of a proper sense of “critical reading”, built in a dialog with theories about the condition of subalternity of intellectuals from the global south and, above all, with the strategies that they offer to face it. The main thread of such reflections are: a) the ideas of body, and incorporation as metaphors of feeding and anthropophagy to think about the incorporation of ideas, concepts and theories, but also the rejection of them as an act of ideological bulimia; b) the idea of critical reading as a dynamic of influx/reflux of ideas that, as a final result, are both recognized and resized. This resizing, in conclusion, is presented as a proposal to add a meta-epistemic dimension as an instance that precedes the pragmatic, scientific, topical and didactic dimensions.

Keywords:
Meta-episteme; Theory of History; Academic Dependence

Uma coisa é dizer que o sujeito deve ser capaz de se apropriar das normas; outra é dizer que deve haver normas para preparar um lugar para o sujeito dentro do campo ontológico. Judith Butler

Introdução

Os diagnósticos do imperialismo intelectual (ALATAS, H. 2000HUSSEIN ALATAS, S. Intellectual imperialism: definition, traits, and problems. Asian Journal of Social Science, 2000, v. 28, n. 1, p. 23-45. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24492998 Acesso em 01 de junho de 2023.
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), do metrocentrismo (CONNELL, 2012CONNELL, R. A iminente revolução na teoria social. Revista brasileira de ciências sociais, 2012, n. 27, p. 09-20.), da dependência acadêmica (ALATAS, F. 2006FARID ALATAS, S. Alternative discourses in Asian social science: Responses to Eurocentrism. Sage, Thousand Oaks, 2006.; 2014FARID ALATAS, S. La dependencia académica: el desafio intelectual. In: SABEA, H.; BEIGEL, F. Dependencia académica y profesionalización en el Sur: perspectivas desde la periferia. Mendoza: Editora de la Universidad Nacional de Cuyo, 2014.), da extroversão (HOUTONDJI, 2008HOUNTONDJI, P. J. Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra: G. C., 2013, 542p.) ou da colonialidade do saber (CASTRO-GOMEZ, 2007CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007.) assinalam a condição de subalternidade dos(as) intelectuais e das Universidades ocidentalizadas, ao menos nos campos da filosofia e das ciências humanas e sociais. Embora tenham sido elaborados em lugares e contextos históricos diversos, permitem descrever diferentes aspectos da realidade das Universidades periféricas, estejam elas na Malásia ou em Singapura, na Austrália ou no Benin, no Brasil ou em qualquer outro país da América Latina.

Tais perspectivas podem nos soar injustas, especialmente pelo fato de que a historiografia brasileira reúne uma imensa pluralidade de abordagens e dialoga com paradigmas, teorias e práticas metodológicas igualmente plurais. Além disso, apesar das assimetrias geopolíticas entre Norte e Sul global na produção e no consumo de teorias (CONNELL, 2012CONNELL, R. A iminente revolução na teoria social. Revista brasileira de ciências sociais, 2012, n. 27, p. 09-20.; PEREIRA, 2018PEREIRA, A.C. B. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na Teoria da História. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88-114, abr/jun. 2018. Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180310242018088 Acesso em 01 de junho de 2023.
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), a relação com elas envolve sempre a recepção, realidade alheia a qualquer passividade.

Ainda assim, penso que tais diagnósticos dizem algo sobre como pensamos e construímos conhecimento, especialmente no campo da teoria da História, no Brasil. E é daqui que pretendo partir, considerando não apenas o problema da dependência, mas sobretudo diferentes propostas para superá-lo. Nesse percurso, me guiarei pela seguinte pergunta: como pensar, interrogar e redimensionar a influência que os referenciais teóricos hegemônicos exercem na formação de algumas linhas mestras do nosso próprio pensamento, em um contexto de dependência acadêmica?

Ao me referir aos “referenciais teóricos hegemônicos”, estou me fiando em um certo consenso entre os(as) historiadores(as) de que determinadas matrizes teóricas, especialmente a francesa e a alemã, mas também a história social britânica e a micro-história italiana, exercem uma expressiva influência sobre a historiografia brasileira. O reconhecimento tácito de que tais matrizes teóricas dão forma à prática historiadora no Brasil nos permite concluir com segurança que as diretrizes epistemológicas que instruem nossa prática de pesquisa em História são, predominantemente, de matriz europeia.

Inúmeros conceitos que norteiam nossa compreensão e interpretação dos fenômenos históricos têm origem nessa matriz. E, embora essa herança não seja necessariamente um problema, não é negligenciável o fato de que ela opera como uma matriz de inteligibilidade que se projeta para fora de seus espaços de origem e se consolida globalmente como a epistemologia da História.

Objeto de análise de intelectuais de diferentes continentes, esse fenômeno levou à elaboração de um amplo repertório de estratégias para enfrentar o problema. Um dos objetivos deste artigo é apresentar uma síntese de algumas das principais estratégias elaboradas por autores(as) como Syed Hussein AlatasHUSSEIN ALATAS, S. The Captive Mind and Creative Development. In: MUKHERJI, Partha Nath; SENGUPTA, C. (ed.). Indigeneity and universality in social science: a South Asian response. Sage, New Delhi/Thousand Oaks/ London, 2004, 405p., Syed Farid AlatasFARID ALATAS, S. An introduction to the idea of alternative discourses. Asian Journal of Social Science, 2000, v. 28, n. 1, p. 1-12. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24492996 Acesso em 01 de junho de 2023.
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, Raewyn Connell, Paulin Hountoundji e Walter Mignolo para, inspirada por eles(as) e a eles(as) me somando, apresentar uma proposta complementar.

A minha proposta consiste em exercitar o redimensionamento da influência que tais referenciais exercem sobre nossas formas de pensar e de prefigurar a prática historiadora. Para ilustrar esse exercício mobilizo a obra de Jörn Rüsen, dada a forte presença de suas ideias na formação de uma geração de historiadores(as) no Brasil das últimas duas décadas.1 1 Sobre isso ver: Santos (2020) e Freitas (2022). Como resultado dessas reflexões, apresento sobre a Historik de Rüsen uma leitura crítica que consiste, de um lado, em redimensionar o influxo das ideias desse autor sobre as minhas próprias ideias e, de outro, no acréscimo de uma dimensão meta-epistêmica à estrutura matricial do projeto rüseniano para uma teoria da História como ciência.

Aprendendo a desaprender: um repertório de estratégias

Em um artigo publicado na Asian Journal of Social Science (2000), Syed Hussein Alatas apresentou o conceito de imperialismo intelectual2 2 Syed Hussein Alatas descreve o imperialismo intelectual como uma dentre outras dimensões do fenômeno do imperialismo, caracterizado como de amplo alcance e com uma estrutura de cluster. Essa estrutura contribui, segundo Alatas para que os traços do imperialismo sejam sempre os mesmos, quer se trate de sua dimensão histórica, política, social, econômica ou intelectual. Dentre eles merecem destaque a exploração, a tutela, a conformidade e o papel secundário exercido pelos sujeitos dominados, no interior do sistema imperial. O imperialismo intelectual, portanto, é definido como um efeito direto do imperialismo em sentido amplo, com o qual compartilha os mesmos traços. e a desconcertante ideia de “mente cativa” (captive mind). A mente cativa é resultado da formação acadêmica orientada, estritamente, pelo pensamento ocidental, levando a formas de pensar pouco criativas, imitativas e dependentes de “modismos teóricos” e conceituais. Os principais efeitos da mente cativa são a alienação dos principais problemas da sociedade em que atua e da própria busca intelectual, uma vez que o cativeiro mental sequer é percebido (ALATAS, H. 2000HUSSEIN ALATAS, S. Intellectual imperialism: definition, traits, and problems. Asian Journal of Social Science, 2000, v. 28, n. 1, p. 23-45. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24492998 Acesso em 01 de junho de 2023.
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).

A resposta de Hussein Alatas ao problema do imperialismo intelectual e da mente cativa enfatiza o papel do indivíduo e, poderíamos dizer, é uma resposta de caráter voluntarista a um problema estrutural. Para exemplificar, o autor sugere ser possível superar o imperialismo intelectual investindo na emancipação do pensamento e na criatividade teórica. O voluntarismo da proposta de Hussein Alatas também se faz notar na ênfase dada ao tema do rompimento com a imitação, recorrendo vez ou outra a exemplos cuidadosos que envolvem colegas de profissão.

Romper com as práticas imitativas envolve algumas estratégias que são apresentadas de forma bastante didática, quase como um manual de boas maneiras. É fundamental, por exemplo, desenvolver leituras críticas dos referenciais estrangeiros, deixar de nos avaliarmos em termos alheios, assim como é preciso cultivar um certo senso de individualidade e independência, abandonando o comportamento imitativo que, dentre outros impulsos, busca agradar e até mesmo impressionar nossos referenciais teóricos estrangeiros em nossas pesquisas.

Sensivelmente diferente, no entanto, é a teoria da dependência acadêmica, desenvolvida por Syed Farid Alatas. A principal diferença está no reconhecimento de que, na maioria das vezes, estamos diante de formas de dependência que não podem ser superadas por iniciativas individuais ou por mera força de vontade.

Embora tenha dado continuidade ao trabalho iniciado pelo seu pai, Hussein Alatas, inserindo a teoria da dependência acadêmica no contexto do imperialismo intelectual, Farid Alatas complexifica o entendimento das relações de dependência, bem como as instâncias e os diferentes modos como ela se concretiza. Dessa forma, também as propostas de enfrentamento são mais densas, se comparadas às de Hussein Alatas, pois, para cada dimensão de dependência há uma correspondente forma de enfrentamento. Para a dependência das ideias, por exemplo, o combate ao eurocentrismo nos currículos; para a dependência de reconhecimento, o fortalecimento de redes de intelectuais que elaborem e promovam, em movimento, discursos alternativos nas ciências sociais.

Os discursos alternativos, nesse caso, significam “um giro nas filosofias, nas epistemologias, nas histórias e nas artes, diferente dos giros da tradição ocidental” (ALATAS, F. 2006FARID ALATAS, S. Alternative discourses in Asian social science: Responses to Eurocentrism. Sage, Thousand Oaks, 2006.). Esse giro, às vezes identificado como indigenização (indigenization), implica um retorno a modos de conhecimento não ocidentais como fontes potenciais de teorias e de conceitos nas ciências sociais (ALATAS, F. 2006FARID ALATAS, S. Alternative discourses in Asian social science: Responses to Eurocentrism. Sage, Thousand Oaks, 2006.).3 3 O termo “indigenous sociology” ganhou visibilidade e reconhecimento por intermédio de um artigo do sociólogo nigeriano Akinsola Akiwowo, publicado em 1986 na revista International Sociology, com o título “Contributions to the Sociology of Knowledge from African Oral Poetry”. Sobre isso ver: Connell, 2020. Esse giro segue em duas direções diferentes, do interior para o exterior e do exterior para o interior. No primeiro caso, a referência é aos processos nos quais os principais conceitos, métodos e teorias indígenas são elaborados, codificados e sistematizados para, em seguida, serem aplicados. O segundo movimento corresponde a uma forma de indigenização do intelectual estrangeiro, na medida em que supõe que os referenciais importados sejam modificados e traduzidos no próprio processo de assimilação teórica e cultural.

O sentido atribuído a “indígena”, neste caso, como também no discurso de outros(as) intelectuais dos continentes asiático e africano como Veneeta Sinha e Paulin Hountondji, se aproxima de local ou nativo, por oposição a alienígena/estrangeiro. É um sentido, portanto, diferente da acepção difundida em regiões como a América Latina, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália ou a Nova Zelândia. Nessas regiões a categoria indígena engloba um conjunto diverso de nações - comumente reconhecidas como povos originários - que, independentemente do contingente populacional, constituem uma minoria étnica em relação à sociedade nacional. Essa diferença de acepções é notória quando Farid Alatas (2014FARID ALATAS, S. La dependencia académica: el desafio intelectual. In: SABEA, H.; BEIGEL, F. Dependencia académica y profesionalización en el Sur: perspectivas desde la periferia. Mendoza: Editora de la Universidad Nacional de Cuyo, 2014.) cita como exemplo de discurso alternativo e, portanto, indígena, o pensamento de Gilberto Freyre, o que também indica um certo desconhecimento do debate acadêmico tanto nas Ciências Sociais, quanto na História, no cenário brasileiro.

Quanto a Paulin Hountondji, os problemas agrupados pelo conceito de extroversão se aproximam dos que são descritos por Hussein Alatas, Farid Alatas, Raweyn Connell e por intelectuais decoloniais. Contudo, quando partimos da realidade brasileira, o alcance desse conceito tem lá seus limites. E eles dizem respeito, sobretudo, ao significado de produção endógena/indígena do conhecimento como estratégia de autonomia intelectual.

A produção de conhecimento extrovertido é uma tendência a reproduzir agendas de pesquisa que são de interesse estritamente ocidental, voltadas para um público ocidental. Também nesse caso os(as) intelectuais africanos(as) são descritos como acadêmicos que desenvolvem um debate vertical com os intelectuais ocidentais. Por outro lado, a extroversão também descreve a tendência em publicar artigos científicos de intelectuais africanos em periódicos estrangeiros.

A estratégia de investir numa produção científica endógena significaria reorientar as pesquisas para dentro do continente africano, em vez de se destinar às necessidades dos intelectuais ocidentais e de buscar responder às perguntas que são elaboradas por intelectuais estrangeiros. Observem que o que é apresentado por Hountondji como solução tende a ser interpretado no Brasil como um problema.

Por aqui, um dos desafios que enfrentamos é o de superar a endogenia, é a internacionalização que está em pauta e que é debatido nas Universidades e agências de fomento brasileiras, bem como pelas revistas científicas que almejam integrar os parâmetros internacionais de ranqueamento. Nesse caso, me parece preocupante que o debate sobre internacionalização que temos desenvolvido não reflita sobre o problema da dependência acadêmica. Afinal, o que é encarado como o “desafio da internacionalização” pode tender ao aprofundamento das relações de dependência.

Não é menos verdade que a internacionalização possa ser trabalhada como estratégia de fortalecimento sul-sul, ou de parcerias estratégicas com o norte global, em benefício de agendas de pesquisa favoráveis à autonomia intelectual e teórica de pesquisadores(as) do sul (CONNELL, 2017CONNELL, R. Usando a teoria do Sul: descolonizando o pensamento social na teoria, na pesquisa e na prática. Revista Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, 2017, v. 1, n .1, p. 87-109. Disponível em: https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/view/783/652 Acesso em 01 de junho de 2023.
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). Ou ainda, é possível se inspirar na proposta de Akinsola Akiwowo de internacionalizar através da bidirecionalidade, investindo no caminho inverso ao tradicional movimento de importação de ideias.

Voltando a Paulin Hountondji e ao tema do investimento na produção científica endógena, é na tradição intelectual alemã que o autor busca inspiração. O caso alemão é inspirador, para Hountondji, por ser “um modelo que fala a sua própria língua” e que “dirige-se prioritariamente a um público que fala alemão e processa-se, antes de mais, segundo um debate interno dentro da Alemanha e dos países de língua alemã” (HOUNTONDJI, 2008HOUNTONDJI, P. J. Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra: G. C., 2013, 542p., p. 127). Mais uma vez, há um descompasso imenso em relação à realidade brasileira, desafiada sempre a superar as fronteiras linguísticas e geopolíticas do próprio idioma.

Sobre a abordagem de Raewyn Connell, destacaria primeiro um breve, porém poderoso, comentário sobre a dependência da intelectualidade latino-americana em relação à Europa. Segundo ela, “o vínculo é tanto conceitual quanto emocional” (CONNELL, 2020CONNELL, R. Southern theory: the global dynamics of knowledge in social science. Routledge, 2020., p. 140). Esse vínculo emocional parece sugerir que, por aqui, a mente cativa ganha uma característica extra, de natureza afetiva. O que significa que, entre nós, o tema da dependência acadêmica será sempre um tema sensível! Também pode sugerir uma outra fonte de explicação para a despersonalização, característica da mente cativa, ao menos se nos arriscarmos a identificar sua origem nos afetos que sustentam o pavor do aniquilamento. Por fim, essa motivação afetiva também oferece elementos suplementares para compreender a prática da imitação e da obediência epistêmica.

Para superar o metrocentrismo, Connell sugere aprender com as experiências das regiões marcadas pela ferida colonial, já que todas elas precisam lidar com suas heranças, com as formas multifacetadas de dependência em relação aos antigos impérios coloniais, hoje centros produtores e exportadores de teorias consumidas em todo o globo. Para Connell, o que justifica a defesa de uma “teoria do sul” é a contestação da lógica de transferência de conhecimento do norte em direção ao sul e das bases epistêmicas e institucionais que sustentam e perpetuam as divisões norte/sul (CONNELL, 2017CONNELL, R. Usando a teoria do Sul: descolonizando o pensamento social na teoria, na pesquisa e na prática. Revista Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, 2017, v. 1, n .1, p. 87-109. Disponível em: https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/view/783/652 Acesso em 01 de junho de 2023.
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).

Para isso, afirma, é preciso modificar as formas do trabalho intelectual, desenvolvendo conexões sul-sul, aproximando conhecimentos indígenas (no duplo sentido de indígena) e instituições científicas do sul - como o Conselho Latino-Americano da Pesquisa em Ciências Sociais (CLACSO) e o Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África (CODESRIA). Connell menciona exemplos concretos de apoio organizado, tais como movimentos transnacionais feministas e ambientais que têm produzido redes e fóruns de discussão e ação conectados com o Fórum Social Mundial ou fóruns das Nações Unidas. Há, ainda, a opção de parcerias estratégicas com as Universidades do norte global, legitimadas pelo reconhecimento de que a concentração de recursos para o financiamento de pesquisa naquela região também é fruto do colonialismo. Por fim, Connell defende a reforma curricular também nas universidades do Norte e não apenas nas universidades periféricas (CONNELL, 2012CONNELL, R. A iminente revolução na teoria social. Revista brasileira de ciências sociais, 2012, n. 27, p. 09-20.).

Exemplo de parceria estratégica entre norte e sul global, nos moldes da proposta de Connell, é o da coleção El desprendimiento, dirigida por Walter Mignolo e publicada pela editora argentina Ediciones del signo, em parceria com o Center for Global Studies and the Humanities da Duke University, também dirigido por Mignolo. A coleção existe há cerca de quinze anos e publicou mais de vinte títulos e dezenas de autores(as).

De Walter Mignolo, destaco o conceito de “desobediência epistêmica”, vinculado à tese de que a decolonialidade não é uma missão, mas sim uma opção. A opção descolonial envolve duas ideias centrais. A primeira delas diferencia “identidade na política” de “política de identidade”. A identidade na política, afirma Mignolo, rompe com a lógica de negação do agenciamento político dos sujeitos historicamente marcados como inferiores pela classificação colonial (marcadores de gênero, raça e sexualidade, fundamentalmente).

A segunda ideia é a de que, uma vez consideradas inferiores, essas pessoas, que formam a maioria da população global, tiveram também negado o seu agenciamento epistêmico. Nesse sentido, optar pela identidade na política, em vez de uma política de identidade, significa romper com a política do reconhecimento alimentada pelo projeto multicultural que mantém a diferença, na melhor das hipóteses, no lugar do que deve ser tolerado e incluído por aqueles que estão em condições privilegiadas para tolerá-la.

Mas, além disso, a identidade na política também permite revelar a branquitude, o androcentrismo e o heterossexismo dissimulados nos discursos da neutralidade, da objetividade e da universalidade na política em geral, e na política do conhecimento em particular. É nesse sentido que Mignolo define a “opção descolonial” como epistêmica, já que ela supõe tanto o desmascaramento da razão solipsista quanto o exercício de aprender a desaprender, pois, afinal, “nossos cérebros foram programados pela razão imperial/colonial” que nega o agenciamento político e epistêmico dos sujeitos que assim foram programados (MIGNOLO, 2008MIGNOLO, W. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, Niterói, 2008, v. 34, n. 1, p. 287-324. Disponível em: http://professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/desobediencia_epistemica_mignolo.pdf Acesso em 01 de junho de 2023.
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). Nesse sentido, uma vez que se opta pela decolonialidade, a desobediência epistêmica não é opcional, pois a opção descolonial se dá como desobediência epistêmica.

A essa altura penso ser possível extrair, desse conjunto de estratégias, alguns elementos que orientam a minha própria proposta de enfrentamento do problema. Para isso retomo a pergunta apresentada na introdução: como pensar, interrogar e redimensionar a influência que os referenciais teóricos hegemônicos exercem na formação de algumas linhas mestras do nosso próprio pensamento, em um contexto de dependência acadêmica? Com essa pergunta sinalizo para algumas questões que não me parecem integralmente contempladas pelo repertório de estratégias mencionado anteriormente.

Pessoalmente, apesar da riqueza das propostas, continuo sem respostas para uma série de perguntas que elas suscitam. Dentre elas: o que é e como mensurar o que Hussein Alatas denomina como “autonomia intelectual” e “criatividade teórica”?; o que significa desenvolver uma “leitura crítica” de referenciais teóricos estrangeiros e/ou indigenizá-los, no duplo sentido em que a categoria “indígena” é empregada?; o que, precisamente, significa “imitar”, ou o que define a fronteira entre “imitação” e “influência”? Por fim, como mantermo-nos afastados(as) da tentação prescritiva, moralista e fiscalista que todos esses debates podem sugerir, especialmente na era da comunicação ubíqua, da desidratação de conceitos e de debates nas mídias sociais e da “cultura do cancelamento” (ALMDEIDA, 2022ALMEIDA, Silvio. “A cultura do “cancelamento” é a antipolítica por excelência”. Disponível em: https://disparada.com.br/cancelamento-antipolitica . Acesso em: 26 junho de 2022 às 12h21.
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)?

Sem ter respostas para todas essas perguntas, o melhor que tenho a oferecer é o compartilhamento de alguns caminhos reflexivos que cada uma delas me levou a formular. Apresento, no que se segue, o resultado dessas reflexões como um modo próprio de encarar o desafio da dependência acadêmica, em diálogo com as respostas oferecidas pelos(as) autores(as) aqui discutidos(as), mas também com as perguntas que tais abordagens me provocam. E, nesse sentido, me afasto de qualquer postura prescritiva, por entender que uma perspectiva posicional crítica (ALCOOF, 2005ALCOFF, L. Visible Identities: Race, Gender, and the Self. New York: Oxford University, 2005.), assim como a obediência epistêmica, não deveriam jamais ser exigidas.

Incorporação e bulimia ideológica: redimensionando a influência de autores e teorias hegemônicas

Minhas reflexões partem, de um lado, da leitura que a filósofa Valeria Campos Salvaterra (2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
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) desenvolveu sobre o seminário inédito de Jacques Derrida, Manger l’autre: Politiques de l’amitié (1990DERRIDA, J.Manger l’autre: politiques de l’amitié. Seminario inédito archivado en la Derrida Collection /Critical Theory Collection/ Special Collections and Archives/ UCI Library, California, USA. Box 10, files 8 - 15, 1989 - 1990. ) E, de outro, de um breve diálogo com o tema da inconstância da alma selvagem e sua relação com a bulimia ideológica, desenvolvido pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Como resultado, espero poder dispor de um significado para leitura crítica.

Quando me refiro a referenciais teóricos que formam as linhas mestras do nosso pensamento e o desafio de redimensionar essa influência, penso em princípios gerais que não podem ser inteiramente abandonados, ou dos quais não pretendemos nos afastar completamente. Afinal, deve também existir um limite para o exercício de aprender a desaprender, já que todo processo de aprendizagem gera memória e esta não pode ser simplesmente suplantada.

Nesse sentido, aprender a desaprender tem menos relação com o abandono ou negação de influências intelectuais hegemônicas do que com a iniciativa de pensar os mundos para além dos limites predefinidos pelos referenciais que nos formaram. Não é um ato de fundamentalismo epistêmico, mas sim o seu contrário, isto é, uma atitude de abertura à diversidade de referências e à pluralidade epistêmica. E é pensando nisso que proponho como chave interpretativa as ideias de corpo e de incorporação como metáforas da alimentação e da antropofagia para pensar a incorporação (SALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
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) de ideias, conceitos e teorias, mas também a rejeição delas como um ato de bulimia ideológica (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002, 549p.).

A leitura de Salvaterra sobre a filosofia de Jacques Derrida é dedicada à análise de um tema que ela considera transversal às obras do filósofo francês, que é a associação entre a metáfora da alimentação e a natureza do discurso filosófico em si mesmo. Para Salvaterra essa associação está relacionada à concepção de discurso filosófico como desdobramento de um movimento de metaforização que constrói a si mesmo por intermédio de um gesto de assimilação de normatividades discursivas.

Embora se trate de um tema transversal, segundo Valeria Salvaterra é, especialmente, em Manger l’autre e Rhétoriques du cannibalisme que Derrida correlaciona a retórica do discurso filosófico à metáfora ou tropo do “comer”, para nomear os processos de compreensão e idealização. Mas o mais importante é que Derrida argumenta que essa função trópica da alimentação descreve a lógica do discurso filosófico em si mesma, ou seja, é ela a metáfora, por excelência, do movimento de metaforização (SALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
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).

Desse modo, o discurso filosófico será sempre desviado (trópico) porque ele obedece a uma lógica de importação, introjeção e incorporação de outros discursos, por assimilação. É nesse sentido que os gestos de assimilação e de hierarquização tão característicos ao pensamento filosófico “são nomeados ‘propriamente’ mediante o tropo do comer”, pois é esse o tropo que melhor simboliza o problema da diferença entre sentido próprio/literal e figurado/metafórico (SALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. 354). Essa compatibilidade entre o tropo do comer e a estrutura do discurso filosófico aparece na passagem a seguir:

a alimentação como figura do discurso, diz Derrida, é um lugar privilegiado para constatar a irredutível presença deste problema, na medida em que as formulações que dela se utilizam em filosofia sempre remetem, em última instância, a perguntas como estas: o que quer dizer comer com os olhos?; o que quer dizer ter o outro no estômago?; o que quer dizer devorar um livro?; o que quer dizer digerir ou não digerir aquilo que não é um alimento em sentido literal?; por que falar em gosto, desgosto ou em vomitar quando se fala de coisas como uma obra de arte, por exemplo, que não se dá à faculdade gustativa, mas sim à visão ou ao ouvido? (SALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. 354).

Esse argumento é radicalizado em outra passagem de Derrida recordada por Valeria Salvaterra, na qual o filósofo afirma que o caráter retórico de todo discurso, além do filosófico, seria mais do que “a condição de possibilidade da metaforização da filosofia pela alimentação”. Esse “mais do que” significa, neste caso, que a essência da retórica poderia ser descrita pela metáfora da alimentação e, sobretudo, pelo tropo do “comer”, capaz de nomear tudo o que entra pela boca:

a própria retórica, como seu nome indica, é antes de tudo uma arte de falar (euro, rhéma, etc.), oração do outro ou para o outro, alegoria, portanto, consumidora da alteridade. Antes de ser uma das possíveis figuras da retórica, a alegoria talvez seja a própria retórica. Seria, portanto, possível acreditar que o fim na alegoria que traz o outro à boca e que coloca o outro na boca, é a boca (DERRIDA, 1989 apudSALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. 355),

A metáfora da alimentação seria não apenas apropriada, mas mais do que isso, seria a única capaz de descrever o movimento de oralização do outro através da linguagem, ou seja, do outro que é “levado à boca para poder ser dito pela boca”, no sentido de ter condições de ser consumido em suas ideias. E se a metáfora da alimentação é capaz de descrever com tamanha propriedade a lógica do discurso, o mesmo vale para a dinâmica do pensamento (SALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
).

Esse é, segundo Salvaterra, o tema central do seminário de 1989-1990, Manger l’autre e que também está presente na entrevista com Derrida publicada com o título de Il faut bien manger ou le calcul du sujet (1992DERRIDA, J. Il faut bien manger ou le calcul du sujet. In: DERRIDA, Jacques. Points de suspension: entretiens. Editions Galilée, Paris, 1992. ). O tropo do “comer” - um “comer” metonímico - caracteriza a operação subjetiva de apreensão do outro pelo pensamento “mediante a experiência, simbólica ou real, do comer - falar - interiorizar” (SALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. 357). Essa interiorização do outro é, ao mesmo tempo, um fenômeno de auto-afecção que participa da constituição de si, pela assimilação da alteridade. Em outros termos, comer ou devorar o outro em suas ideias é um ato que leva à transformação de si mesmo e do próprio pensamento.

É por isso que o significado de compreender está, no seminário Manger l’autre, intimamente relacionado à tese da auto-afecção como movimento de incorporação, de apreensão apropriadora da alteridade. Essa associação aparece de forma inequívoca em mais uma citação de Derrida selecionada por Salvaterra, como pode ser lida a seguir:

Apropriar-se, assimilar, enunciar trazendo à boca ou oralizando a coisa, é algo que nunca está longe de comer, e o outro assim entendido dificilmente se dissocia dessa instância oral, dessa boca que compreende os lábios, um paladar, os dentes, uma língua, uma glote, desta boca que não é uma [...] desta boca supostamente uma e que entende, toma ou guarda em si, ou rejeita, que expulsa cuspindo quem come, bebe, tem fome ou sede, fala, às vezes para pedir comida ou para comer, beber, engolir, fumar, morder, mastigar, chupar, beijar, cuspir o outro ou [algo] do outro” (DERRIDA, 1990 apudSALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. 359).

As aproximações entre a oralização da palavra falada, o paladar e o ato de deglutir não são nem ocasionais, nem acidentais, são na verdade “o resultado da metaforização estrutural do discurso sobre o pensamento e a linguagem” (SALVATERRA, 2020SALVATERRA, V.C. Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre de Jacques Derrida (1989-1990). Trans/Form/Ação, Marilia, 2020, v. 43, p. 343-368. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/7474 . Acesso em 01 de junho de 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. 360). Como se trata de uma estrutura sacrificial dos discursos, de uma matança não criminal com ingestão, incorporação e introjeção do cadáver a definir a lógica do discurso enquanto tal, comer o outro e ser comido por ele não é opcional, como tampouco são opcionais os desdobramentos de comer com o outro, quer no sentido de tê-lo como acompanhante ou como acompanhamento. É por isso que Derrida conclui que o que é preciso é comer bem (DERRIDA, 1992DERRIDA, J. Il faut bien manger ou le calcul du sujet. In: DERRIDA, Jacques. Points de suspension: entretiens. Editions Galilée, Paris, 1992. ).

Considerando, no entanto, que as assimetrias entre norte e sul global na produção e consumo de teorias nos privam da possibilidade de escolher não comer/consumir esses referenciais teóricos - não pela relação com a alteridade e com a lógica própria ao discurso, mas pela de dependência acadêmica - como comê-los bem? Em outras palavras, como lidar com a obrigatoriedade do comer, mas uma obrigatoriedade ao estilo “goela abaixo”, isto é, a obrigação de comer um conjunto predefinido de ingredientes e de pratos, mesmo que eles não nos pareçam apetitosos? Ou, ainda que nos despertem o apetite, nos levem ao enfastio e ao empanturramento, dada a insistência e repetição do menu?

E, na direção oposta, como superarmos a condição de estarmos sempre em posição de comê-los, incorporá-los, consumi-los, sem a prerrogativa da troca, do intercâmbio, isto é, sem sermos também comida para os que comemos? Se pudermos responder a essas perguntas, talvez extraiamos dela uma definição para leitura crítica, criatividade teórica, autonomia intelectual e, quiçá, indigenização como bidirecionalidade.

É nesse ponto que recorro ao célebre texto de Eduardo Viveiros de Castro, O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002, 549p.), para pensar os significados de inconstância e bulimia ideológica como categorias cúmplices de um tipo ou forma de pensamento crítico e desobediente, mas também aberto à diversidade de alteridades. Uma forma de pensamento que teria como sua maior aliada a total indiferença ao dogma e, por extensão, à ortodoxia.

O tema da inconstância da alma selvagem foi trabalhado por Viveiros de Castro a partir das narrativas do Padre Antônio Vieira. Essas narrativas compartilham uma imensa angústia que os missionários da Companhia de Jesus enfrentavam no trabalho da doutrinação dos gentios do Brasil na fé católica. O texto de Viveiros de Castro inicia com um subtópico cujo título me parece uma referência provocativa ao clássico de Lucien Febvre (2009), O problema da incredulidade no século XVI.

Ao que parece, a provocação está no embaralhamento das estruturas de pensamento dos gentios do Velho e do Novo Mundo naquele século. Lá, no velho continente, diz-nos Febvre, ao contrário do que afirmavam algumas leituras embriagadas de anacronismo - esse “pecado entre todos imperdoável” - imperava a credulidade (FEBRVE, 2009FEBRVE, L. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. Companhia das Letras, São Paulo, 2009., p. 33). Cá, no Novo Mundo, informa-nos Viveiros de Castro a partir de Vieira, reinava a descrença.

O tema da descrença entre os gentios do Brasil, “tópico venerável da literatura jesuítica sobre os índios”, foi sistematizado por Viveiros de Castro na seguinte passagem:

o tema remonta ao início das atividades da Companhia no Brasil, em 1549, e pode ser resumido em uma frase: o gentio do país era exasperadoramente difícil de converter. Não que fosse feito de matéria refratária e intratável; ao contrário, ávido de novas formas, mostrava-se entretanto incapaz de se deixar impressionar indelevelmente por elas. Gente receptiva a qualquer figura mas impossível de configurar, os índios eram - para usarmos um símile menos europeu que a estátua de murta - como a mata que os agasalhava, sempre pronta a se refechar sobre os espaços precariamente conquistados pela cultura. Eram como sua terra, enganosamente fértil, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada brotava que não fosse sufocado incontinênti pelas ervas daninhas (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002, 549p., p. 184-185).

Uma “constante da equação selvagem”, a inconstância da alma nos informa sobre duas posturas ou comportamentos em relação à alteridade que seguem em direções aparentemente contrárias, mas que na realidade são absolutamente compatíveis. Essa avidez por novas formas e ideias, tantas vezes interpretada como vício, superficialidade dos sentimentos ou deficiência da vontade, fala de uma peculiar forma de abertura, de receptividade à alteridade, de voracidade em assimilar o exterior e de incorporar o outro. Mas, sem se deixarem “impressionar indelevelmente” pelo outro, seu mundo e suas ideias, a contrapartida da abertura é a rejeição dos resíduos, o “vómito dos antigos costumes” (ANCHIETA, 1555 apudVIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002, 549p., p. 190), a bulimia ideológica.

E se, assumindo o “exagero heurístico” de Viveiros de Castro (2006VIVEIROS DE CASTRO, E. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. In: RICARDO, F. P. (ed.). Povos Indígenas no Brasil, 2001-2005. ISA, São Paulo, 2006. ), segundo o qual no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é, pensássemos aquele vínculo afetivo mencionado por Connell, como uma espécie de resíduo duplamente desviado de nossa própria inconstância? O primeiro desvio seria o da abertura à alteridade, em geral, em direção à receptividade e afeição por uma alteridade, em particular. Nesse caso, para o nosso infortúnio, teríamos retido e restringido uma parte do comportamento herdado dos gentios do Brasil descritos por Antônio Vieira como aqueles que “recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir […]” (VIEIRA, 1657 apudVIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002, 549p., p. 184).

O segundo desvio seria o da abertura em direção ao fechamento nessa mesmidade, sendo por ela englobada, uma vez abandonada a contrapartida da abertura que é a rejeição e o vômito dos restos. Duplo desvio, imitação, despersonalização. Nessa chave de leitura, estaríamos todos(as) empanzinados(as) e indigestos(as) em nossa afeição exclusivista pela mesmíssima alteridade. A ponto de vomitar.

Uma forma possível de tratar da nossa indigestão seria a recuperação de uma certa habilidade recalcitrante - uma forma ancestral de aprender a desaprender? -, não apenas como desobediência, mas sobretudo como bulimia ideológica. Comer outros, comer na companhia de outros e comer outros como acompanhamento, mas outros outros, não os mesmos outros de sempre! Esse efeito terapêutico tende a extrapolar a mera recuperação da sensação de bem-estar, nos levando a reaprender a incorporação de uma multiplicidade de outros, porém cientes de que a absorção totalizante da alteridade é impraticável, já que sempre deixa resíduos e que insistir em suportá-los pode nos fazer morrer pela boca.

No extremo oposto da indigestão e do empanzinamento, outro problema de ingerir sempre os mesmos ingredientes, as mesmas receitas e os mesmos condimentos é que corremos o risco de, assim, sofrermos de inapetência. De todo modo, pecamos pela desmesura. E talvez um caminho para evitar ambos os extremos seja, por um lado, o de equilibrarmo-nos numa dinâmica de influxo/refluxo de ideias e, por outro, de arriscarmo-nos a decodificá-las para recodificá-las e, uma vez transformadas, oferecê-las à degustação.

Redimensionando a Historik de Jörn Rüsen: por uma dimensão meta-epistêmica para a teoria da História

Sem poder garantir que nossas ideias, já redimensionadas, serão degustadas por aqueles que devoramos, em uma relação assimétrica, ainda assim o esforço parece justificável. Em parte, porque o movimento de influxo/refluxo de ideias, que é tanto desobediência epistêmica quanto pensamento recalcitrante, tende a nos afastar de toda ortodoxia e clausura mental. Mas além disso, se levarmos em conta a máxima “somos o que comemos”, de todo modo nos beneficiamos de tais experimentações gastronômicas, já que elas promovem o alargamento de nossa percepção, pela sofisticação do paladar, e o aumento da disposição e da vivacidade, pela diversificação de nutrientes.

É com esse propósito que convido o(a) leitor(a) a experimentar, comigo, o pensamento de Jörn Rüsen como acompanhamento das reflexões desenvolvidas nos tópicos anteriores. Se a mistura de ingredientes e condimentos soar inusitada, que o(a) leitor(a) se mantenha aberto(a) à experimentação e à flexibilização de seus próprios impulsos etnocêntricos!

Todo(a) leitor(a) familiarizado(a) com a obra de Rüsen se lembrará do caráter multidimensional tão peculiar à sua análise. Essa multidimensionalidade dialoga com a tradição de sistematização do conhecimento histórico associada a Johann Gustav Droysen, a partir da qual Rüsen organiza as quatro dimensões constitutivas da ciência da história: a) a Pragmática; b) a Científica - que condensa as subdimensões da metódica e da sistemática; c) a Tópica; d) e a Didática.

Essas quatro dimensões estão interligadas e se movimentam sempre a partir de uma delas - a pragmática - e em direção a ela ou de volta para ela. Isso porque, para Rüsen, é na pragmática que identificamos o enraizamento do conhecimento histórico científico e das operações da consciência histórica (RÜSEN, 2001RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história, os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.). A pragmática, portanto, é o lugar onde devemos buscar os fundamentos antropologicamente universais presentes em todo pensamento histórico, dentre eles o científico. É também do universo da pragmática que se extraem os princípios norteadores do projeto rüseniano de comunicação intercultural e de uma didática da história em chave humanista.

Mas assim como a multidimensionalidade da Historik de Rüsen remonta à tradição historicista, também a pragmática dialoga diretamente com a tradição ou Filosofia das Luzes. Nesse sentido, uma dupla influência é particularmente notória nos trabalhos deste historiador e teórico da história: os pensamentos de Droysen e de Kant. Ao mobilizar o trabalho de Rüsen reconheço, por um lado, a centralidade deste autor na construção da minha própria concepção de teoria da História (influxo). Mas, por outro, reitero a necessidade de superar certos problemas que decorrem da escolha de “seguir Kant”4 4 “Seguindo Kant” é o título de um importante artigo de Jörn Rüsen, no qual o autor busca atualizar as proposições kantianas apresentadas no célebre texto sobre a ideia de História universal de um ponto de vista cosmopolita (RÜSEN, 2014). e que, no meu entendimento, desafiam frontalmente o projeto rüseniano para uma teoria da História como ciência (refluxo).

A influência do pensamento kantiano na definição de pragmática é ora mais, ora menos explícita na argumentação de Rüsen, mas de todo modo é transversal à sua obra. Uma boa forma de identificar o peso dessa influência é nos textos dedicados aos temas da comunicação intercultural e do Novo Humanismo, pois neles Rüsen desenvolve mais detalhadamente as bases universalistas de sua teoria. Mas não sem, antes, compartilhar com os(as) leitores(as) o que considera ser uma “justificativa plausível” para tal empreendimento teórico.

Essa justificativa é elaborada como resposta às críticas à cultura ocidental e suas interpretações universalizantes. Tais críticas, segundo ele, são tanto internas quanto externas ao Ocidente, mas em ambos os casos a resposta do autor é uma espécie de investida iconoclasta a imagens deformadas do “pós-modernismo” e do “pós-colonialismo”.5 5 Algumas passagens reproduzem bem esse argumento, como se pode notar a seguir, em uma referência direta às perspectivas pós-coloniais: “Uma análise mais aproximada das críticas antiocidentais mostra que ela é guiada por um etnocentrismo negativo” (RÜSEN, 2015, p. 47). “Esse tipo de rejeição da tradição ocidental da história universal representa simplesmente uma repetição agudizada do etnocentrismo ocidental com sinais invertidos” (RÜSEN, 2014, p. 21). Com base no argumento de que as críticas “pós-coloniais” são etnocêntricas, porém, com o sinal invertido, Rüsen conclui que a única forma possível de superar quaisquer impulsos etnocêntricos é reafirmando um éthos coletivo de base kantiana.

Esse retrato desfigurado em nada se aproxima da complexidade das discussões e da sofisticação conceitual associadas a inúmeros grupos de intelectuais de diversas partes do mundo que, há pelo menos setenta anos, têm refletido criticamente sobre os efeitos históricos do colonialismo enquanto experiência amparada e justificada por modelos ocidentais de interpretação universalista.

Essa caricatura criada por Rüsen descortina uma intenção estética que vislumbra a manutenção de um regime de verdade há tempos problematizado, refletido e analisado por intelectuais reconhecidos(as) e respeitados(as) pelo trabalho que desenvolvem, conforme os mesmos critérios objetivos e intersubjetivos de controle científico veementemente defendidos por Rüsen. Essa caricatura também revela uma estratégia retórica de deslegitimação que, por meio de afirmações generalistas sustentadas no privilégio epistêmico do qual desfruta, intenta desautorizar um conjunto tão amplo quanto heterogêneo de escolas, paradigmas, grupos, laboratórios e institutos de pesquisa.6 6 Sobre as categorias de intenção estética e estratégia retórica ver a análise de Jörn Rüsen sobre a formatação historiográfica apresentada em “História Viva: teoria da história III: formas e função do conhecimento histórico” (RÜSEN, 2010).

O regime de verdade que Rüsen reforça, ao atualizá-lo, está presente em todo o repertório conceitual de sua Historik, como se pode notar, por exemplo, na relação de contiguidade entre os conceitos de tradição, cultura histórica e pragmática. Partindo do entendimento de que a tradição é “o tempo da natureza transcendido em tempo humano” (RÜSEN, 2001RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história, os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., p. 77) o autor estabelece o que podemos entender como o átomo da cultura.7 7 Aqui é possível perceber a semelhança com outras formas de interpretação da cultura como superação do estado de pura natureza, como é o caso do clássico texto de Claude Lévi-Strauss, Natureza e Cultura. O argumento de Lévi-Strauss é o de que a Natureza impõe a necessidade de aliança como meio de reprodução da espécie humana e, consequentemente, como meio de manutenção do grupo enquanto tal. Porém, a imposição da Natureza não determina as regras que organizarão as formas de aliança. Disso, Lévi-Strauss conclui que a Interdição do incesto é não apenas o marco de transição do estado de natureza à cultura, ele é a própria cultura, na medida em que constitui a unidade ou estrutura organizacional mínima compartilhada por todas as culturas humanas (LÉVI-STRAUSS, 2009). É nessa condição de átomo da cultura que o conceito de tradição participa da formulação e fundamentação do projeto teórico de Rüsen como um todo. Curiosamente, portanto, a tradição é uma forma de protonarrativa ou matéria primordial não apenas para a “narrativa histórica” enquanto fenômeno humano, mas especialmente para a arquitetura da matriz teórica de Jörn Rüsen, pois ela é o pressuposto filosófico de onde se extrai uma ideia de “condição humana” ou de “natureza cultural do ser humano” (RÜSEN, 2015RÜSEN, J. Teoria da História: uma teoria da História como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015., p. 58).

Sobre o lugar da tradição na arquitetura teórica de Rüsen, argumento que: a) seguindo Kant, Rüsen atualiza o raciocínio tautológico que estabelece a ideia de “condição humana” como um dado e, portanto, como pressuposto filosófico que, simultaneamente, sustenta e é sustentado pela ideia de tradição como átomo da cultura; b) o resultado da atualização da tradição filosófica kantiana é o processo de anaforização de sua própria tradição como a tradição enquanto fenômeno humano universal que inaugura ou põe em movimento a história. E esse processo de anaforização é estendido aos conceitos de cultura histórica e pragmática em função da contiguidade que caracteriza a relação entre eles.

A tautologia no pensamento de Rüsen pode ser explicada da seguinte forma: a necessidade de transcendência do tempo natural é o que determina a “condição humana” de sempre ir além do que se é a cada momento; mas, ao mesmo tempo, essa necessidade é dada - como superavit intencional - na tradição que, por sua vez, assinala o ponto de partida do estado de humanidade no próprio movimento de transcendência temporal. Esse ponto de partida é, ainda, caracterizado pela condição de insciência em relação à diferença entre passado, presente e futuro, dada a unidade originária (de sentido) entre essas três dimensões temporais, na tradição.

Esse estado de insciência, no entanto, se desenvolve e se complexifica no movimento da cultura histórica que, como afirma Rüsen, sintetiza todas as práticas culturais de orientação histórica e todas as formas de construção histórica de sentido construídas pela consciência histórica humana (Rüsen, 2015RÜSEN, J. Teoria da História: uma teoria da História como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015.).8 8 Esse processo de evolução de um estado de insciência para um estado de consciência confere à teoria da história de Rüsen também um caráter teleológico, além de tautológico. Sobre a teleologia no pensamento de Jörn Rüsen, ver Pereira (2019b; 2022). Mas, como é preciso buscar os fundamentos da consciência histórica nas formas genéricas e elementares de interpretação humana do tempo, isto é, na transcendência do tempo natural como tempo humano, recuamos uma vez mais ao mesmo ponto de partida que é o pressuposto filosófico da tradição como átomo da cultura e princípio instituidor do movimento da história.

Finalmente, quando Rüsen afirma que “o tema da ‘cultura histórica’ remete a teoria da história ao ponto de partida de suas reflexões” que corresponde “à origem do pensamento histórico na vida humana prática” (RÜSEN, 2015RÜSEN, J. Teoria da História: uma teoria da História como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015., p. 217), ele circunscreve a pragmática como a dimensão da teoria da história na qual e a partir da qual se podem observar tanto a dinâmica de construção histórica de sentido quanto a inserção do conhecimento histórico científico nessa mesma dinâmica. Tradição, cultura histórica e pragmática são, em resumo, expressões de um mesmo raciocínio tautológico que é projetado como constante antropológica, valendo-se do artifício da “obviação”, que é a raiz do processo de invenção da cultura (WAGNER, 2017WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Ubu Editora, 2017.).

Dessa constatação podemos extrair pelo menos duas consequências, sendo uma de caráter teórico e outra de ordem ética. No primeiro caso, a consequência teórica do raciocínio tautológico de Jörn Rüsen é um processo de abstração que, ao recorrer à anaforização de sua própria tradição como constante antropológica, resulta no mascaramento da particularidade epistêmica de onde partiu. A segunda consequência diz respeito à intenção estética de Rüsen que vislumbra a perpetuação do regime de verdade que é instituído nesse processo de anaforização da tradição e, ao mesmo tempo, à sua estratégia retórica de deslegitimação das perspectivas e desautorização das autorias críticas a esse mesmo regime de verdade.

Essa forma violenta e nada dialógica de afirmação de poder discursivo ilustra bem a análise que Judith Butler desenvolve, a partir de Adorno, sobre o tema da violência ética. O ponto de partida de Butler são as situações nas quais as normas morais de comportamento deixam de ser autoevidentes e indiscutíveis, despertando problemas morais e potenciais respostas violentas. Segundo a leitura que Butler faz de Adorno, sempre que o éthos coletivo deixa de ser compartilhado ele só pode impor sua pretensão de universalidade por meios violentos, ou melhor, ele “instrumentaliza a violência para manter sua aparência de coletividade” (BUTLER, 2015BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 15).

Em diálogo com Butler, é preciso notar que as teorias, conceitos e modelos explicativos associados aos estudos decoloniais, às perspectivas pós-coloniais, aos estudos subalternos e às chamadas teorias do sul são tendências ou paradigmas já suficientemente consolidadas no cenário acadêmico global. De modo que tratá-los na generalidade e, sobretudo, sob o argumento do “etnocentrismo com o sinal trocado”, ou a afirmação de que representariam uma “cruzada fundamentalista contra a cultura ocidental”9 9 A expressão “cruzada fundamentalista contra a cultura ocidental” foi utilizada por Jörn Rüsen em resposta ao questionamento de uma espectadora, na conferência de abertura do I Simpósio Internacional de Didática da História, intitulada “O futuro da Didática da História” (RÜSEN, 2022) revela a recusa em aceitar a crise desse éthos coletivo que por muito tempo reinou absoluto no debate acadêmico e na prática científica de modo geral.

Ao que parece, ou Rüsen se recusa a comer bem as opções de um amplo e diversificado cardápio de referenciais teóricos contra-coloniais, ou, reproduzido um gesto etnocêntrico paradigmático, torce o nariz para eles, antes mesmo de experimentá-los. Em ambos os casos, Rüsen rejeita a possibilidade de auto-afecção pela incorporação da alteridade, ao menos nas situações em que essa alteridade reage recalcitrante à mesmidade universalizante.

É nesse ponto de refluxo das ideias de Rüsen que apresento a proposta de redimensionar sua Historik com o acréscimo de uma dimensão meta-epistêmica. E para isso, parto de uma breve observação a respeito da ideia de choque de civilizações (Clash of Civilizations), a partir da qual Rüsen (2014) justifica a cultura do reconhecimento.

Em primeiro lugar, ao afirmar que “somente essa ‘cultura do reconhecimento’ pode evitar um ameaçador ‘Clash of Civilization” Rüsen estabelece uma falsa horizontalidade entre Ocidente e Não Ocidente, assim como a ideia de “etnocentrismo com sinal invertido” (RÜSEN, 2014RÜSEN, J. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 21). E essa falsa horizontalidade dissimula (mal) a intenção de atualizar a centralidade da tradição ocidental como árbitro dos conflitos internacionais e globais. Essa falsa horizontalidade se expressa, ainda, no imperativo (bastante categórico) da cultura do reconhecimento mútuo das diferenças como única opção, uma vez que os agenciamentos político e epistêmico das alteridades coloniais não são, como observou Mignolo (2008MIGNOLO, W. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, Niterói, 2008, v. 34, n. 1, p. 287-324. Disponível em: http://professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/desobediencia_epistemica_mignolo.pdf Acesso em 01 de junho de 2023.
http://professor.ufop.br/sites/default/f...
), reconhecidos.

Essa contradição no centro da cultura do reconhecimento é consequência ou efeito do caráter ontoformativo do discurso e da prática coloniais, especialmente em relação ao processo de racialização das alteridades não ocidentais (CONNELL, 2012CONNELL, R. A iminente revolução na teoria social. Revista brasileira de ciências sociais, 2012, n. 27, p. 09-20.). Esse poder ontoformativo, nessa perspectiva, é o que preenche de realidade concreta e de efeitos vivíveis a ficção da raça, convertida em diferença colonial. A classificação racial, nesse sentido, é o processo histórico e colonial de formação de um campo ontológico para as alteridades não ocidentais, no interior da matriz de inteligibilidade ocidental. E esses lugares ontológicos são formados como prefiguração depreciativa e desumanizadora, como diferença irredutível.10 10 Sobre o caráter ontoformativo do discurso e das práticas coloniais, vale lembrar o espaço reservado por Antonello Gerbi ao pensamento de Kant em sua obra monumental sobre as polêmicas envolvendo o Novo Mundo. Depois de mencionar uma mudança na perspectiva de Kant sobre os americanos, Gerbi afirma que “[…] em 1775 Kant pinta um retrato dos americanos muito diferente. Afloram nele as ideias de decadência, imperfeição e frieza teorizadas e expostas sete anos antes por De Paw. Os americanos seriam uma sub-raça ainda não bem formada a partir do tronco dos hunos ou calmucos: ‘uma raça humana ainda não totalmente formada (ou semidegenerada)’ […] Ainda nas anotações para suas aulas de Menschenkunde, oder philosophische Anthropologie […] Kant descreve os lerdos americanos de maneira absolutamente depawniana: ‘O povo americano não absorve qualquer cultura. Ele não possui uma mola propulsora, pois faltam-lhe afeto e paixão […] não se preocupam com coisa alguma e são preguiçosos’. O conceito não se modifica no ensaio de 1788 […] no qual sentencia que a raça americana, em virtude do clima, [seria]‘demasiado fraca para o trabalho pesado, indiferente demais para o esforço cultural, incapaz de assimilar qualquer cultura, muito inferior ao próprio negro’ (GERBI, 1996, p. 250-251). Por tudo isso, a racialização como ontoformação é a própria invenção da centralidade e superioridade do Ocidente, ou, recorrendo à análise de Sueli Carneiro, é a criação do Não-Ser como fundamento do Ser (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, A. S. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. (Tese de Doutorado), São Paulo, Feusp, 2005 , 340p.).

Essa diferença não se corrige, como pretende Rüsen, com o princípio do reconhecimento mútuo das diferenças, baseado na lógica da razão inclusiva. E isso porque, à revelia da bem intencionada iniciativa de estender a condição de humanidade às alteridades não-ocidentais, a distinção entre tipos humanos ocidental e não ocidental opera em uma dimensão pré-ontológica da tradição, o que exige uma forma igualmente pré-ontológica de crítica.

Mas a definição de tradição como fonte originária de sentido histórico e, consequentemente, como instituidora e estabilizadora de identidades, também reforça a importância da crítica pré-ontológica da tradição por outro motivo. Ela se relaciona ao fato de que para determinados sujeitos a tradição não é um sustentáculo identitário a priori, mas ao contrário, é uma fonte estrutural de crise de orientação. Nesses casos a crise é estrutural e não contingencial porque o lugar ontológico forjado para tais identidades, na tradição, é o lugar da recusa, da negação e da abjeção.

Soma-se a isso o fato de que esse lugar de negação, na tradição, é permanentemente lembrado/atualizado pela linguagem que subalterniza e pela interpelação que insulta.11 11 Novamente, me refiro aqui à análise de Butler sobre a produção social do sujeito por meios linguísticos, especialmente em relação aos casos nos quais a linguagem que cria o lugar ontológico para esse sujeito é uma linguagem que subalterniza e degrada. Isso exige, de um lado, uma forma peculiar de investimento psíquico na construção de si e, de outro, implica em uma forma específica de sofrimento psíquico que gera não uma “angústia existencial”, mas sim uma “exaustão existencial” como efeito rebote da atividade cotidiana de dobrar-se contra si mesmo, de modo a transformar os termos sociais e o lugar ontológico de negação e abjeção nos quais foram forjados (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. ).12 12 O conceito de melancolia de gênero (BUTLER, 2017) é um bom exemplo para se pensar e problematizar a obviedade da tradição. O processo de obviação, nesse caso, reflete a pressuposição da heterossexualidade como dado da experiência humana, de modo que o desejo homossexual é negado na origem e como origem da cultura. Mais precisamente, como afirma Butler, “quando a proibição da homossexualidade permeia uma cultura” o resultado é “uma cultura da melancolia de gênero em que a masculinidade e a feminilidade, dentro da matriz heterossexual, são fortalecidas pelos repúdios que elas performam” (BUTLER, 2017, p. 148-149).

Em todos esses cenários, somente uma crítica pré-ontológica da tradição é capaz de revelar o que o raciocínio tautológico de Jörn Rüsen mascara. É em função dessa forma de crítica e em resposta aos seus desdobramentos que proponho acrescentar à matriz teórica de Jörn Rüsen uma dimensão meta-epistêmica. Essa quinta dimensão se localiza antes da dimensão pragmática e simboliza a abertura da teoria da História para uma multiplicidade de epistemai responsáveis por projetar um cenário igualmente diverso de dimensões pragmáticas e, a partir delas, de científicas, de tópicas e didáticas.

Me parece imprescindível, no entanto, explicitar o que entendo por episteme. E o meu primeiro passo segue em uma direção que se afasta do emprego corrente de episteme como sinônimo de conhecimento ou conhecimento científico. Nesse caso, me aproximo da perspectiva de John Greco (2014GRECO, J. Episteme: Knowledge and Understanding. In: TIMPE, K.; BOYD, C. Virtues and Their Vices. Oxford/UK: Oxford University Press, 2014. p. 285-301.), para quem esse conceito está mais próximo de entendimento do que de conhecimento/ conhecimento científico. Retomando as quatro causas aristotélicas (eficiente, material, formal, final), Greco argumenta que há um processo de empobrecimento do significado de tais causas como fonte de explicação na tradução de episteme como conhecimento ou conhecimento científico das causas. Para esse autor, as quatro causas aristotélicas devem ser entendidas como tipos de relações de dependência articuladas pelos sujeitos da episteme, ou seja, tais relações não são nem necessárias, nem legaliformes. Entendimento é o resultado da articulação dessas relações, pelo sujeito.

Em outras palavras, entender significa identificar padrões ou relações de dependência entre fenômenos não como dados, mas como percebidos diferentemente pelos sujeitos que os articulam no esforço de explicar “como” e “por que” as coisas “se encaixam” de uma determinada forma, e não de outra. Em acréscimo à análise de John Greco, eu diria que como objeto do entendimento, o “mundo da vida” só pode ser entendido através da organização de uma complexa e vasta rede de relações de dependência. E, como veículo do entendimento, o corpo é um lócus epistêmico no interior de uma matriz de inteligibilidade que, como vimos, distingue pré-ontologicamente e em uma estrutura hierárquica tipos humanos ou formas do Ser sujeito.

A confluência entre objeto e veículo da episteme, entendida como ferramenta analítica, permite que visualizemos as situações nas quais a comunicação falha. Me refiro a contextos nos quais experimentamos um “limite cognitivo”, ora da alteridade com a qual nos relacionamos, ora o que nos é próprio. Se entendermos por cognição um conjunto de processos psicológicos e de fenômenos do pensamento responsável por organizar as informações que provêm dos sentidos (corporais) e que se convertem em processos de aprendizado e de entendimento, o limite cognitivo seria o resultado da ausência de conhecimentos relevantes e pontuais, experimentados de modo específico e condicionado pelo lócus epistêmico.

O “limite cognitivo”, entendido nos termos descritos acima, é relacional e constante em todo contexto dialógico. Essa condição institui o desafio não apenas de uma comunicação intercultural, mas antes, de uma comunicação entre epistemai, uma comunicação interepistêmica. Conforme esse princípio, uma meta-episteme deve possibilitar a apreensão de múltiplas formas de entendimento, ao abarcar diferentes veículos ou lócus epistêmicos. O resultado esperado dessa abertura à multiplicidade epistêmica é o alargando do alcance da teoria da História, como formalizado a seguir, na Figura 1:

Figura 1 -
Dimensões da teoria da História

Por fim, resta perguntar como essa dimensão meta-epistêmica afeta as demais. Em primeiro lugar, ela multiplica o universo da pragmática, pois se estabelece como dimensão anterior a ela, assinalando uma multiplicidade de formas de experimentar e entender o que Rüsen denomina “vida prática” e “práxis social”. Em seguida, a dimensão meta-epistêmica afeta diretamente a científica, na medida em que a diversidade de epistemai assinala que “não existe uma racionalidade que seja forma exemplar da própria razão” (BUTLER, 2015BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 152). Isso significa que o diálogo interepistêmico reconhece a coexistência não apenas de diferentes regimes de verdade, mas antes, de múltiplos regimes de racionalidade.

A meta-episteme também afeta, por extensão, a tópica, pois a diversidade de epistemai, que se desdobra em uma variedade de regimes de racionalidade leva à multiplicidade de formas de organização, apresentação e comunicação das estruturas de entendimento. Finalmente, a dimensão meta-epistêmica deve afetar diretamente a didática da história, pois, ao refletir sobre a função prática do conhecimento histórico, não poderia desconsiderar as múltiplas formas de entendimento da vida prática nos processos de aprendizado e de formação histórica. Em resumo, como dimensão que prefigura a pragmática, a meta-epistême dinamiza e complexifica a teoria da História com seu efeito cascata.

Considerações finais

Indagando como redimensionar a influência que os referenciais teóricos hegemônicos exercem na formação do nosso próprio pensamento, em um contexto de dependência acadêmica, me arrisquei a elaborar um sentido próprio para leitura crítica. Para isso investi no diálogo com autores(as) que diagnosticaram o problema da subalternização da intelectualidade do sul global e, ao mesmo tempo, têm elaborado estratégias para enfrentá-la.

Passando pela análise de Valeria Salvaterra sobre o pensamento de Derrida e a correlação entre alimentação e discurso/pensamento, mas também pela análise de Viveiros de Castro sobre a bulimia ideológica como indiferença ao dogma, cheguei à elaboração de minha própria concepção de leitura crítica. Caracterizada pelo princípio do influxo/refluxo de ideias ela investe, de um lado, no afastamento de quaisquer posturas prescritivas e fiscalistas, ao mesmo tempo em que se distancia da obediência epistêmica e da aceitação de pressupostos filosóficos como uma questão de fé.

Como exercício de leitura crítica enquanto influxo/refluxo de ideias, submeti à apreciação do(a) leitor(a) uma proposta de redimensionamento da Historik de Jörn Rüsen. Nesse exercício reconheço, por um lado, a influência do pensamento deste autor na formação do meu próprio pensamento a respeito do significado de uma teoria da História como ciência. E, por outro, identifico alguns limites e problemas que integram sua teoria e que considero inegociáveis, ao ponto de concebê-los como rejeitos teóricos não recicláveis.

O resultado de todo esse exercício é uma dentre outras iniciativas de enfrentamento do desafio de nossa dependência acadêmica. É também uma proposta em meio a várias possibilidades que reflitam sobre quaisquer posturas ou escolhas epistêmicas marcadas pela ortodoxia ou pelo fundamentalismo. Afinal, sem poder prescindir da liberdade imaginativa, criativa e experiencial, todo esforço de teorização se tornará mais vasto quanto maior for sua abertura à diversidade epistêmica e à variedade de pragmáticas.

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  • WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
  • 1
    Sobre isso ver: Santos (2020SANTOS, S. R. dos. A inserção dos trabalhos de Jörn Rüsen no Brasil e a interpretação da teoria da didática da história nas pesquisas brasileiras (2010-2017). 2020. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020. ) e Freitas (2022FREITAS, I. “A recepção da teoria da história de Jörn Rüsen em periódicos brasileiros especializados. In: OLIVEIRA, M. M. D. de; SANTIAGO JÚNIOR, F.C. F.; LIMA, C. R. C. (org.). Jörn Rüsen: teoria, historiografia, didática. 1ed. Ananindeua: Cabana, 2022. p. 137-166.).
  • 2
    Syed Hussein Alatas descreve o imperialismo intelectual como uma dentre outras dimensões do fenômeno do imperialismo, caracterizado como de amplo alcance e com uma estrutura de cluster. Essa estrutura contribui, segundo Alatas para que os traços do imperialismo sejam sempre os mesmos, quer se trate de sua dimensão histórica, política, social, econômica ou intelectual. Dentre eles merecem destaque a exploração, a tutela, a conformidade e o papel secundário exercido pelos sujeitos dominados, no interior do sistema imperial. O imperialismo intelectual, portanto, é definido como um efeito direto do imperialismo em sentido amplo, com o qual compartilha os mesmos traços.
  • 3
    O termo “indigenous sociology” ganhou visibilidade e reconhecimento por intermédio de um artigo do sociólogo nigeriano Akinsola AkiwowoAKIWOWO, A. Indigenous sociologies: extending the scope of the argument. International Sociology, 1999, v. 14, n. 2, p. 115-138. SAGE (London, Thousand Oaks, CA and New Delhi). Disponível em Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0268580999014002001 . Acesso em 26 de junho de 2022 às 16h34.
    https://journals.sagepub.com/doi/10.1177...
    , publicado em 1986 na revista International Sociology, com o título “Contributions to the Sociology of Knowledge from African Oral Poetry”. Sobre isso ver: Connell, 2020CONNELL, R. Southern theory: the global dynamics of knowledge in social science. Routledge, 2020..
  • 4
    “Seguindo Kant” é o título de um importante artigo de Jörn Rüsen, no qual o autor busca atualizar as proposições kantianas apresentadas no célebre texto sobre a ideia de História universal de um ponto de vista cosmopolita (RÜSEN, 2014RÜSEN, J. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.).
  • 5
    Algumas passagens reproduzem bem esse argumento, como se pode notar a seguir, em uma referência direta às perspectivas pós-coloniais: “Uma análise mais aproximada das críticas antiocidentais mostra que ela é guiada por um etnocentrismo negativo” (RÜSEN, 2015RÜSEN, J. Teoria da História: uma teoria da História como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015., p. 47). “Esse tipo de rejeição da tradição ocidental da história universal representa simplesmente uma repetição agudizada do etnocentrismo ocidental com sinais invertidos” (RÜSEN, 2014RÜSEN, J. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 21). Com base no argumento de que as críticas “pós-coloniais” são etnocêntricas, porém, com o sinal invertido, Rüsen conclui que a única forma possível de superar quaisquer impulsos etnocêntricos é reafirmando um éthos coletivo de base kantiana.
  • 6
    Sobre as categorias de intenção estética e estratégia retórica ver a análise de Jörn Rüsen sobre a formatação historiográfica apresentada em “História Viva: teoria da história III: formas e função do conhecimento histórico” (RÜSEN, 2010RÜSEN, J. História viva: teoria da história III, formas e função do conhecimento histórico. Brasília: UnB, 2010.).
  • 7
    Aqui é possível perceber a semelhança com outras formas de interpretação da cultura como superação do estado de pura natureza, como é o caso do clássico texto de Claude Lévi-Strauss, Natureza e Cultura. O argumento de Lévi-Strauss é o de que a Natureza impõe a necessidade de aliança como meio de reprodução da espécie humana e, consequentemente, como meio de manutenção do grupo enquanto tal. Porém, a imposição da Natureza não determina as regras que organizarão as formas de aliança. Disso, Lévi-Strauss conclui que a Interdição do incesto é não apenas o marco de transição do estado de natureza à cultura, ele é a própria cultura, na medida em que constitui a unidade ou estrutura organizacional mínima compartilhada por todas as culturas humanas (LÉVI-STRAUSS, 2009LÉVI-STRAUSS, C. Natureza e Cultura. In: LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes, 2009, 540p. ).
  • 8
    Esse processo de evolução de um estado de insciência para um estado de consciência confere à teoria da história de Rüsen também um caráter teleológico, além de tautológico. Sobre a teleologia no pensamento de Jörn Rüsen, ver Pereira (2019PEREIRA, A. C. B. Sobre o lugar epistêmico na teoria da História. In: Esteban Vedia; Mercedes Melo .. (org.). Politicas del tiempo y politicas de la historia. 1ed. Neuquén: EDUCO - Editorial Universitaria del Comahue, 2019a. v. 1. p. 205-210.bPEREIRA, A. C. B. Na Transversal do Tempo: natureza e cultura à prova da História. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2019b.; 2022PEREIRA, A. C. B. O “formalismo teleológico” em Jörn Rüsen: perspectivas sobre a interculturalidade. In: OLIVEIRA, M. M. D. de; SANTIAGO JÚNIOR, F. das C. F.; LIMMA, C. R. C. (org.). Jörn Rüsen: teoria, historiografia, didática. 1ed. Ananindeua: Cabana, 2022, p. 184-208.).
  • 9
    A expressão “cruzada fundamentalista contra a cultura ocidental” foi utilizada por Jörn Rüsen em resposta ao questionamento de uma espectadora, na conferência de abertura do I Simpósio Internacional de Didática da História, intitulada “O futuro da Didática da História” (RÜSEN, 2022RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen - O Futuro da Didática da História - PPGH-UFG-PPGH História-UFPE-IRPR. PPGH-UFG, YouTube, 19 de setembro de 2022, 1:35:46. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XEUbWzc4xiA
    https://www.youtube.com/watch?v=XEUbWzc4...
    )
  • 10
    Sobre o caráter ontoformativo do discurso e das práticas coloniais, vale lembrar o espaço reservado por Antonello Gerbi ao pensamento de Kant em sua obra monumental sobre as polêmicas envolvendo o Novo Mundo. Depois de mencionar uma mudança na perspectiva de Kant sobre os americanos, Gerbi afirma que “[…] em 1775 Kant pinta um retrato dos americanos muito diferente. Afloram nele as ideias de decadência, imperfeição e frieza teorizadas e expostas sete anos antes por De Paw. Os americanos seriam uma sub-raça ainda não bem formada a partir do tronco dos hunos ou calmucos: ‘uma raça humana ainda não totalmente formada (ou semidegenerada)’ […] Ainda nas anotações para suas aulas de Menschenkunde, oder philosophische Anthropologie […] Kant descreve os lerdos americanos de maneira absolutamente depawniana: ‘O povo americano não absorve qualquer cultura. Ele não possui uma mola propulsora, pois faltam-lhe afeto e paixão […] não se preocupam com coisa alguma e são preguiçosos’. O conceito não se modifica no ensaio de 1788 […] no qual sentencia que a raça americana, em virtude do clima, [seria]‘demasiado fraca para o trabalho pesado, indiferente demais para o esforço cultural, incapaz de assimilar qualquer cultura, muito inferior ao próprio negro’ (GERBI, 1996GERBI, A. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 250-251).
  • 11
    Novamente, me refiro aqui à análise de Butler sobre a produção social do sujeito por meios linguísticos, especialmente em relação aos casos nos quais a linguagem que cria o lugar ontológico para esse sujeito é uma linguagem que subalterniza e degrada.
  • 12
    O conceito de melancolia de gênero (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. ) é um bom exemplo para se pensar e problematizar a obviedade da tradição. O processo de obviação, nesse caso, reflete a pressuposição da heterossexualidade como dado da experiência humana, de modo que o desejo homossexual é negado na origem e como origem da cultura. Mais precisamente, como afirma Butler, “quando a proibição da homossexualidade permeia uma cultura” o resultado é “uma cultura da melancolia de gênero em que a masculinidade e a feminilidade, dentro da matriz heterossexual, são fortalecidas pelos repúdios que elas performam” (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. , p. 148-149).
  • Financiamento

    Não se aplica.
  • Agradecimentos

    Agradeço a Dielson Santos da Costa pela interlocução.
  • Aprovação no comitê de ética

    Não se aplica.
  • Modalidade de avaliação

    Duplo-cega por pares.
  • Preprint

    O artigo não é um preprint.
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Flávia Varella - Editora-chefe
Fabio Duarte Joly - Editor executivo

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Revisado
    12 Set 2022
  • Aceito
    10 Nov 2022
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