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Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde

LIVROS

VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011.

Cristiane Batista Andrade

Biblioteca Virtual da Educação Profissional em Saúde, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4365, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21040-360. cristianeandrade@fiocruz.br

A finalidade da pesquisa, desenvolvida durante os anos de 2008 a 2010, dividida em quatro capítulos, é a de analisar o trabalho e a qualificação de agentes comunitários de saúde, na perspectiva das relações entre as políticas de educação, saúde e trabalho. Como referenciais teóricos e metodológicos, consideram as mudanças no capitalismo contemporâneo e as políticas de educação e formação profissional no contexto de saúde brasileiro. Nesse sentido, a noção de qualificação, que permeia as produções científicas das autoras, tem em vista a dialética entre o sistema produtivo e as relações de trabalho: a construção social e histórica do processo de qualificação dos agentes comunitários. Para tal, foram realizadas nove entrevistas semiestruturadas com gestores e sujeitos envolvidos com a temática da pesquisa, além de análises de documentos oficiais e legislação, e os relatórios de Conferências do Ministério da Saúde.

O primeiro capítulo, intitulado "A reconfiguração gerencial do Estado brasileiro e os trabalhadores da saúde nos anos 1990", discute as mudanças econômicas e políticas no Brasil na década de 1980, atentando para o contexto do movimento sanitário e a democratização do país. A VII Conferência de Saúde aponta a falta de proximidade do profissional de saúde com a comunidade, sendo que a qualificação técnica não é enfatizada:

no âmbito das políticas de formação profissional em saúde, ainda se mantinha a concepção de que, para as populações mais pobres, bastariam ações de cuidados básicos, prestados por pessoal auxiliar com formação simplificada. (Chinelli, Lacerda, Vieira, 2011, p.38)

Já na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), a formação profissional em saúde passou a ser tratada, também, pelo viés das relações de trabalho e a institucionalização de processos formativos, como a criação dos: Cendrhu, Projeto Larga Escala, Escolas Técnicas do SUS, e os CEFORS. Ambas as conferências suscitaram a inserção dessa temática na Constituição de 1988, em que ratifica a formação de recursos humanos em saúde ao nível de pós-graduação, programas de aperfeiçoamento e incentivo à dedicação exclusiva aos serviços do SUS. Entretanto, a qualidade da formação com embasamentos teóricos e práticos para a complexidade do cuidado em saúde é deixada à deriva.

Ainda de maneira crítica, tecem argumentos sobre os anos de 1990 mudanças advindas com a crise do capital, reorganização do Estado e as políticas neoliberais, influência do Banco Mundial e outras agências de fomento nas políticas educacionais e as suas implicações na área de saúde. Sendo assim, sinalizam as precárias condições de trabalho e de formação dos trabalhadores em saúde no cenário da política de saúde:

privatização de empresas estatais no setor público do país, redução de postos de trabalho, precarização jurídica das relações trabalhistas e intensa terceirização do trabalho e dos serviços. (Chinelli, Lacerda, Vieira, 2011, p.49)

A implementação do SUS serviu para alavancar o mercado de trabalho em saúde, bem como a precarização e a desregulamentação de formas de contratação, suscitadas com as mudanças no mundo do trabalho acumulação flexível. Há de se considerar as influências das políticas educacionais na formação dos trabalhadores em saúde no que dizem respeito à noção de competências: a responsabilidade do trabalhador em saúde em adquirir a sua própria formação no contexto de produtividade. A origem do ACS esteve relacionada ao contexto de saúde, social e econômico do país, como a diminuição da pobreza e a melhoria das condições de vida da população. Eis aqui a centralidade da discussão: a formação e a precarização do trabalho dos ACS. Com relação aos avanços no reconhecimento desses profissionais, mostram a história da profissão: em 1991, a criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde que, três anos mais tarde, integra o Programa Saúde da Família; em 2002, é criada a profissão; e, em 2006, a elaboração do Referencial Curricular para o Curso Técnico de ACS. Entretanto, sinalizam a precarização dos vínculos de trabalho e a formação aligeirada e fragmentada.

O capítulo dois, "O trabalho e a educação na saúde: a questão dos recursos humanos", versa sobre a história da formação e as políticas públicas de saúde, do ponto de vista dos documentos oficiais, bem como os depoimentos dos sujeitos que dela participaram. Sob a influência das discussões da VIII CNS e da Conferência Nacional de Recursos Humanos para a Saúde (CNRHS), ambas ocorridas em 1986, houve, nesse cenário, o fomento da necessidade da formação para a implementação das políticas de saúde, além de reivindicações por melhores condições de trabalho. Para as autoras, os anos de 1980 e 1990 trouxeram pouco avanço na área. Nos anos 2000, na XII CNS, o "Trabalho em Saúde" ganhou destaque como um dos dez eixos temáticos, e, nos documentos:

passam a salientar o entendimento do trabalhador como sujeito e agente transformador de seu ambiente e não apenas um mero recurso humano, realizador de tarefas previamente estabelecidas pela administração local. (Vieira, Chinelli, Lopes, 2011, p.94)

De qualquer modo, a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), nos anos 2000, expressa a centralidade, ao menos em sua proposta, de uma política voltada à educação permanente e à gestão do trabalho em saúde. Há avanços nos documentos oficiais, pois apontam a temática para além da necessidade de se investirem nos recursos humanos na saúde. De acordo com os resultados da pesquisa, percebe-se a tentativa de se romper com a noção de recursos humanos e implementar políticas que visassem o conceito ampliado de trabalho e de gestão. Entretanto chama a atenção para as políticas de educação permanente em saúde e "acaba por enfatizar que a possibilidade de um trabalho autônomo depende, em grande medida, da própria organização dos trabalhadores" (Vieira, Chinelli, Lopes, 2011, p.103). Por outro lado, a criação da SGTES implementou o levantamento: de dados sobre a força de trabalho e das necessidades dos trabalhadores em saúde, políticas de desprecarização do trabalho e viabilização do plano de carreiras, cargos e salários.

O capítulo três, "Os agentes comunitários de saúde e o conceito de comunidade na configuração de sua qualificação", trata da análise da comunidade numa perspectiva crítica das políticas públicas para as camadas populares e suas relações com o trabalho dos ACS:

A participação da comunidade era considerada como uma forma de os setores mais pobres aproveitarem seus próprios recursos para a superação da pobreza. Estimulava-se a participação da comunidade e priorizava-se a atenção básica, considerando-se que mediante ações simples e preventivas haveria uma triagem no atendimento, com consequente redução de custos. (Durão, Morosini, Carvalho, 2011, p.131)

É em 1991 que o ACS é inserido como trabalhador do SUS devido à implementação do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS). Somam-se a isso: a construção da profissão pelo viés da precariedade do vínculo de trabalho, os baixos salários, a qualificação simplificada e a exposição às doenças no ambiente de trabalho. Destacam o papel das pastorais da Igreja Católica na origem da profissão, o vínculo com o Programa Comunidade Solidária e a própria construção do sistema de saúde a partir da Reforma Sanitária.

Ao final desse capítulo, as autoras sintetizam os fazeres dos ACS, a solidariedade desempenhada por eles num contexto de precarização social, expressa pelas contradições e tensões:

Por serem moradores da comunidade e terem uma relação de vizinhança com os usuários do PSF, não conseguem estabelecer um distanciamento em relação aos problemas que os cercam, os quais, ao fim e ao cabo, também os afetam. De mais a mais, são constantemente cobrados pelos usuários para a solução de problemas cuja solução está muitas vezes além da sua possibilidade de atuação. (Durão, Morosini, Carvalho, 2011, p.152)

Eis uma pista para a análise das influências das condições e da organização do trabalho na saúde desses profissionais.

O último capítulo, "A disputa sobre os sentidos do trabalho e da formação dos agentes comunitários de saúde", tem como objetivo discutir o processo de qualificação: qual a centralidade do trabalho em saúde dos ACS? Esta e outras questões vão sendo respondidas nesse capítulo. Nos documentos oficiais, o papel dos ACS:

[...] seria de articulação/tradução/elo entre a comunidade e os serviços de saúde e/ou Estado. O trabalho dos ACS se valorizaria, portanto, em virtude de seu cunho relacional, construído com base em algumas ações técnicas prescritas nos manuais e na legislação pertinente, tendo como pano de fundo o compartilhamento dos códigos culturais locais. (Lopes, Durão, Carvalho, 2011, p.169)

É com a lei no. 11.350 de 2006 que há a regulamentação da profissão voltada às ações preventivas, visitas domiciliares e/ou comunitárias, seguindo as diretrizes do SUS com a supervisão dos gestores em saúde. Do ponto de vista do trabalho prescrito, utilizam instrumentos para levantamento de dados para o diagnóstico demográfico e sociocultural; ações de educação para a saúde; registro e controle de nascimentos, óbitos e doenças; ações que permitam a ligação entre o sistema de saúde e a comunidade, e outras. Portanto o trabalho tem, na sua essência, a sua dimensão relacional, já discutida em capítulos anteriores.

Considera-se que as imbricações sobre a qualificação dos ACS é tecida pelos aspectos da profissionalização, pela formação e pelo reconhecimento social. Se, por um lado, alguns entrevistados acreditam que a inserção na carreira com vínculos efetivos e a formação técnica não sejam necessárias, há quem as defenda, apontando a "possibilidade de melhora na qualidade dos serviços e de construção de uma carreira no SUS" (Lopes, Durão, Carvalho, 2011, p.184).

A garantia da formação possibilita a discussão mais ampliada do trabalho em saúde:

[...] considera-se que a formação técnica, em um sentido mais amplo, permitirá aos agentes não só um questionamento da própria realidade, como também os potencializará para o estabelecimento de uma interação mais crítica com os demais membros da equipe. (Lopes, Durão, Carvalho, 2011, p.192)

Do ponto de vista da identidade profissional, possibilita o reconhecimento social e a busca coletiva de melhores condições de trabalho. As autoras mostram a dicotomia na formação técnica e os saberes construídos no fazer dos ACS, e, por assim dizer, na divisão do trabalho, ou seja, aos ACS caberia o desenvolvimento de atividades referentes ao elo com a comunidade e aos outros profissionais, aquelas relacionadas aos saberes mais especializados. A pesquisa realizada mostrou que há pouca mobilidade social, que os vínculos trabalhistas são precários e que o fato de serem essencialmente empregados pelo Estado leva a crer que não existem outros espaços para exercerem o trabalho.

O mérito deste livro está na organização das análises das autoras. Interessante notar que não há polaridades entre formação, condições de trabalho, políticas públicas e mudanças advindas com o capitalismo nas últimas décadas. Mostram que essas categorias são fundantes para a compreensão histórica e dialética do trabalho dos ACS. Trazê-las ao centro do debate do trabalho em saúde poderá desvelar as contradições dos fazeres dos diversos profissionais da área, sejam de nível Médio ou Superior.

Embora a categoria analítica das relações de gênero e trabalho não seja discutida ao longo do livro, é no último capítulo que as autoras dão pistas para entender que o fato de ser um trabalho majoritariamente exercido por mulheres, a destreza, a minúcia, os "cuidados" desprendidos por essa categoria profissional são valorizados no savoir-faire:

[...] nos discursos que enfatizam o pertencimento dos agentes à comunidade, percebe-se a valorização desses atributos, negando-se a possibilidade de uma formação técnica que implique maior crescimento profissional. (Lopes, Durão, Carvalho, 2011, p.188)

Evidentemente, a categoria analítica das relações de gênero poderá, em futuras indagações, "tirar o véu" do trabalho dos ACS, já que é exercido, na maioria, por mulheres. Se partimos da compreensão de que as relações sociais são sexuadas, a organização e as condições de trabalho são influenciadas por se ser mulher ou homem no mercado. Portanto, as qualificações perpassam pelas práticas sociais vinculadas ao exercício do trabalho.

Referências

CHINELLI, F.; LACERDA, A.; VIEIRA, M. A reconfiguração gerencial do Estado brasileiro e os trabalhadores da saúde nos anos 1990. In: VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p.33-78.

DURÃO, A.V.; MOROSINI, M.V.; CARVALHO, V. Os agentes comunitários de saúde e o conceito de comunidade na configuração de sua qualificação. In: VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p.119-60.

LOPES, M.R.; DURÃO, A.V.; CARVALHO, V. A disputa sobre os sentidos do trabalho e da formação dos agentes comunitários de saúde. In: VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p.161-208.

VIEIRA, M.; CHINELLI, P.; LOPES, M.R. O trabalho e a educação na saúde: a "questão dos recursos humanos". In: VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p.79-118.

Recebido em 25/10/12

Aprovado em 07/05/13

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2013
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