Riscos ocupacionais associados à doença renal crônica de origem não tradicional (DRCnt) no Brasil: é hora de nos aprofundarmos em um problema negligenciado

Resumo

Nas últimas décadas, uma epidemia de doença renal crônica (DRC) tem sido associada a fatores ambientais e ocupacionais (estresse térmico decorrente de cargas de trabalho elevadas em altas temperaturas e exposição a produtos químicos, como agrotóxicos e metais), denominada DRC de origem não tradicional (DRCnt). Esta revisão descritiva tem como objetivo apresentar evidências recentes sobre estresse térmico, agrotóxicos e metais como possíveis causas de DRCnt e fornecer uma visão geral das estratégias brasileiras de regulamentação, fiscalização e vigilância sanitária relacionadas. Os trabalhadores brasileiros são comumente expostos a condições extremas de calor e outros fatores de risco de DRCnt, incluindo o aumento da exposição a agrotóxicos e metais. Além disso, há uma falta de regulamentação e fiscalização, políticas públicas e estratégias adequadas para proteger a saúde renal dos trabalhadores em relação aos principais fatores de risco. É provável que a DRCnt seja uma causa significativa de DRC no Brasil, uma vez que a etiologia da doença é desconhecida em muitos pacientes e diversas condições para seu desenvolvimento estão presentes no país. Estudos epidemiológicos devem ser realizados para explorar associações causais e estimar o impacto do calor, dos agrotóxicos e dos metais na DRCnt no Brasil. Além disso, as políticas públicas devem priorizar a redução da exposição dos trabalhadores e a promoção de sua saúde e segurança.

Descritores:
Doenças Renais Crônicas Idiopáticas; DRCnt; DRCd; Riscos Ocupacionais; Resposta ao Choque Térmico; Praguicidas

Abstract

In the past decades, an epidemic of chronic kidney disease (CKD) has been associated with environmental and occupational factors (heat stress from high workloads in hot temperatures and exposure to chemicals, such as pesticides and metals), which has been termed CKD of non-traditional origin (CKDnt). This descriptive review aims to present recent evidence about heat stress, pesticides, and metals as possible causes of CKDnt and provide an overview of the related Brazilian regulation, enforcement, and health surveillance strategies. Brazilian workers are commonly exposed to extreme heat conditions and other CKDnt risk factors, including increasing exposure to pesticides and metals. Furthermore, there is a lack of adequate regulation (and enforcement), public policies, and strategies to protect the kidney health of workers, considering the main risk factors. CKDnt is likely to be a significant cause of CKD in Brazil, since CKD’s etiology is unknown in many patients and several conditions for its development are present in the country. Further epidemiological studies may be conducted to explore causal associations and estimate the impact of heat, pesticides, and metals on CKDnt in Brazil. Moreover, public policies should prioritize reducing workers´ exposure and promoting their health and safety.

Keywords:
Chronic Kidney Diseases of Uncertain Etiology; CKDnt; CKDu; Occupational Risks; Heat-Shock Response; Pesticides

Introdução

A doença renal crônica (DRC) tem uma alta prevalência em todo o mundo, gerando custos elevados para os sistemas de saúde e elevada morbidade e mortalidade para os pacientes, principalmente quando a doença progride para estágios mais avançados. Estima-se que a prevalência mundial de DRC varie entre 8 e 16% na população adulta¹. Nas últimas décadas, fatores ambientais e ocupacionais têm sido associados à DRC, especialmente em pontos críticos de alta incidência de DRC, definidos como países, regiões ou etnias com uma incidência da doença superior à média².

A DRC de origem não tradicional (DRCnt, do inglês CKDnt), também conhecida como DRC de origem desconhecida (DRCu, do inglês CKDu) é um diagnóstico de exclusão para DRC, feito quando um paciente preenche os critérios de DRC do KDIGO (Kidney Disease Improving Global Outcomes) sem evidências de uma causa reconhecida, como diabetes, hipertensão, doença genética ou glomerulonefrite³. É uma desordem principalmente tubulointersticial com perda não proteinúrica da função renal. Os pacientes com DRCnt são mais jovens do que os pacientes com DRC tradicional e geralmente trabalham em ocupações específicas em determinados pontos críticos do mundo, como América Central, Índia e Sri Lanka, onde a doença tem sido responsável por milhares de óbitos⁴,⁵.

Muitas etiologias potenciais de DRCnt foram estudadas e parece que a exposição ao calor, aos metais nefrotóxicos e aos agrotóxicos são responsáveis por uma grande proporção de casos em todo o mundo, especialmente entre trabalhadores⁶. O estresse térmico e a desidratação são atualmente o maior foco de pesquisa na América Latina, enquanto na Ásia a contaminação da água potável tem sido considerada a principal causa de DRCnt⁷. Além disso, estudos epidemiológicos constataram uma maior prevalência de DRCnt entre trabalhadores agrícolas, como os trabalhadores canavieiros na América Central e os produtores de arroz na Ásia⁸,⁹.

No Brasil, é muito provável que a DRCnt seja uma causa relevante de DRC, porque a população em geral, principalmente os trabalhadores, está exposta a condições extremas de calor - que estão aumentando devido às mudanças climáticas -, bem como a agrotóxicos e metais¹⁰–¹³. Além disso, a etiologia da DRC de muitos pacientes é desconhecida, de acordo com pesquisas epidemiológicas em nefrologia. O Censo Brasileiro de Diálise, que reúne informações sobre pacientes em tratamento dialítico de cerca de 30 a 40% dos centros de diálise do país, relatou que, nos últimos cinco anos, a causa primária de DRC foi desconhecida para 10 a 11% dos pacientes¹⁴.

Embora o Brasil não tenha grandes estudos de base populacional, a Pesquisa Nacional de Saúde (2014–2015) encontrou uma prevalência geral de taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) <60 mL/min/1,73 m² de 6,7% (IC95% 6,0 - 7,4) em 7.457 adultos¹⁵. No entanto, a albuminúria não foi incluída nos critérios de classificação de DRC, o que pode ter subestimado a prevalência. Além disso, o estudo ELSA com funcionários do setor público com idade entre 35 e 74 anos encontrou uma prevalência de DRC de cerca de 9%¹⁶.

Ainda, a falta de regulamentação e fiscalização adequadas relacionadas aos fatores de risco de DRCnt, associada à ausência de políticas públicas e estratégias para detectar e tratar a DRC, pode aumentar o risco de os trabalhadores desenvolverem a doença. Nesse contexto, esta revisão descritiva, baseada em uma revisão não sistemática de estudos relevantes, regulamentação brasileira e publicações técnicas, apresenta evidências recentes sobre calor, agrotóxicos e metais como possíveis causas de DRCnt e fornece uma visão geral das estratégias brasileiras de regulamentação, fiscalização e vigilância em saúde relacionadas. Esse conhecimento pode ser útil para aumentar a conscientização sobre esse importante problema de saúde pública, promover políticas públicas e estratégias a fim de eliminar ou reduzir a exposição do trabalhador e fortalecer os serviços de saúde para lidar com a doença.

Fatores de Risco Ocupacional para Drcnt

Três dos principais fatores de risco ocupacional reconhecidos para a DRCnt, a saber, estresse térmico, exposição a agrotóxicos e exposição a metais, são discutidos a seguir, acompanhados de uma visão geral da regulamentação relacionada no Brasil.

Estresse Térmico

O estresse térmico é a soma do calor gerado no corpo (calor metabólico) e do calor do ambiente (calor ambiental) menos o calor perdido do corpo para o ambiente¹⁷. O estresse térmico ocorre quando a evaporação do suor é insuficiente e outras alterações fisiológicas não conseguem evitar o aumento da temperatura corporal central. Essa doença ocupacional relacionada ao calor é frequentemente associada à desidratação e se manifesta em uma variedade de sintomas, afetando a produtividade¹⁷. A exposição ocupacional ao calor afeta trabalhadores externos diretamente expostos ao sol e trabalhadores internos que realizam atividades em ambientes quentes, como perto de caldeiras, fornalhas e fornos¹⁸.

A hipótese do estresse térmico relacionado à função renal baseia-se em evidências de que episódios repetidos de perda de água e solutos devido a temperaturas elevadas, trabalho extenuante, reidratação insuficiente e dissipação prejudicada de calor podem levar a episódios repetidos de lesão renal isquêmica subclínica, que, com o tempo, pode causar danos renais permanentes e DRC¹⁹. Muitos pesquisadores acreditam que isso seja central para a fisiopatologia da DRCnt, que ocorre principalmente em trabalhadores canavieiros da América Central, região em que a doença é chamada de Nefropatia Mesoamericana²⁰. No entanto, a extensão na qual o estresse térmico causa a DRC, seja diretamente ou em combinação com outros fatores ocupacionais, permanece incerta. Fatores biológicos, socioeconômicos e climáticos também podem interagir para aumentar o risco de DRCnt²¹.

Os efeitos do estresse térmico na função renal têm sido pouco estudados no Brasil. Em 2015, um estudo com equeno número de participantes (N = 28) avaliou os efeitos agudos da colheita de cana-de-açúcar queimada na função renal e constatou que a TFGe diminuiu 20% ao final do turno diário de trabalho, e 18,5% dos participantes apresentaram aumento da creatinina sérica consistente com lesão renal aguda²². Em um estudo piloto que incluiu trabalhadores industriais expostos (e não expostos) ao estresse térmico, constatou-se que os trabalhadores expostos apresentaram um declínio maior na TFGe baseada em creatinina durante o turno de trabalho²³. Entretanto, após dois anos de acompanhamento, a função renal estava mantida²⁴.

Embora o efeito do estresse térmico na função renal não tenha sido bem explorado no Brasil, existem chances consideráveis de que ele afete milhões de trabalhadores. A ameaça de exposição ocupacional excessiva ao calor e suas consequências é particularmente elevada em países tropicais de renda baixa a média, onde há muitos trabalhadores do setor informal, que geralmente operam em ambientes quentes e densamente povoados, com altas cargas de trabalho físico e normas de segurança escassas²⁵. O Brasil tem climas tropicais e subtropicais e, portanto, é suscetível a situações atmosféricas favoráveis ao calor extremo. Estima-se que o Brasil enfrentará condições agravadas de estresse térmico até o final deste século, à medida que os efeitos do aquecimento extremo se materializarem²⁶.

Metais

Os metais são elementos químicos com elevado peso atômico e densidade superior a 5 g/cm³ provenientes de diversas fontes, como indústria, mineração e agricultura²⁷. Entre outras consequências para a saúde, a exposição humana a metais por meio de água contaminada, ingestão de alimentos e poluição do ar pode levar a lesões renais²⁸. Diversos estudos sobre DRCnt endêmica têm se concentrado em fatores de risco ocupacionais e ambientais, mas ainda existem algumas lacunas²⁹. Em estudos realizados no Sri Lanka, metais como fluoreto (F⁻), cádmio (Cd), magnésio (Mg⁺), chumbo (Pb), arsênico (As), e cromo (Cr) foram considerados uma etiologia plausível para a DRCnt³⁰. A captação tubular proximal desses metais a partir do fluxo sanguíneo leva à inflamação renal, isquemia e dano tubulointersticial; no entanto, os mecanismos fisiopatológicos da toxicidade são complexos e não são totalmente compreendidos³¹.

O acúmulo gradual de flúor da água potável, especialmente com altos níveis de Mg+ e Cd, tem sido considerado uma causa importante de DRCnt³⁰. Na Tailândia, as mulheres agricultoras de idade mais avançada e que vivem em áreas rurais parecem apresentar maior risco para DRCnt, possivelmente em consequência da exposição a metais como zinco e Cd provenientes de resíduos, águas subterrâneas e contaminação da água de poços por fertilizantes químicos³². Um estudo realizado na Guatemala com trabalhadores canavieiros revelou que esses indivíduos estão expostos a altas concentrações de metais (como alumínio e cálcio), o que deve ser investigado em profundidade como um fator etiológico para DRC nessa população³³.

A medição de metais em amostras de urina e sangue de pacientes e indivíduos expostos aos possíveis fatores de risco pode indicar a etiologia da DRCnt. Um estudo transversal realizado em uma área rural de Bangladesh revelou níveis significativamente mais elevados de Pb, Cd e Cr em amostras de urina de pacientes com DRC. Foram recrutados somente casos confirmados de DRC, que não tinham pressão alta ou diabetes, mas apresentavam níveis anormais de TFGe³⁴. Em Taiwan, observou-se que indivíduos com níveis elevados de Pb no sangue e cobre (Cu) na urina apresentaram proteinúria e TFGe de <60 mL/min/1,73 m², e níveis elevados de níquel (Ni), manganês (Mn) e Cd na urina foram significativamente associados à proteinúria. Além disso, também foi observado um efeito sinérgico do Cd e do Cu urinários na proteinúria³⁵.

O uso de biomarcadores renais não tradicionais pode revelar danos precoces causados por metais, o que merece estudos adicionais. A medição de N-acetil-β-d-glucosaminidase (NAG), proteína de ligação ao retinol e α-1-microglobulina na urina de pessoas que vivem em uma área contaminada por Cd indicou uma possível relação dose-resposta²⁸. Por outro lado, alguns estudos demonstraram que a DRC está associada a níveis mais elevados de chumbo e cádmio no sangue, o que pode requerer esforços adicionais para proteger os pacientes desses riscos potenciais, principalmente entre populações e trabalhadores vulneráveis³⁶,³⁷.

Agrotóxicos

O Brasil é um dos principais exportadores agrícolas do mundo. No entanto, o aumento em sua produção foi impulsionado por um incremento significativo no uso de agrotóxicos, tornando o país um dos maiores consumidores do mundo, responsável por cerca de 20% do mercado global³⁸. Em 2018, foram comercializadas no Brasil aproximadamente 550 mil toneladas de ingredientes ativos de agrotóxicos³⁹, sendo em sua maioria herbicidas (62%), fungicidas (13%) e inseticidas (10%)³⁹. Cerca de 72% são utilizados no setor agrícola para a produção de commodities como soja, cana-de-açúcar e milho, e o restante é empregado em agricultura familiar de médio e pequeno porte³⁸. O setor químico se aproveita da permissão das autoridades brasileiras para vender seus produtos mais perigosos no país, e as aprovações de agrotóxicos aumentaram recentemente (assim como os casos de envenenamento). Cerca de 30% dos agrotóxicos vendidos no Brasil são proibidos na União Europeia devido à sua elevada toxicidade³⁸.

A exposição de curto e longo prazo a inúmeros agrotóxicos comumente usados no Brasil foi associada a efeitos renais em estudos experimentais e epidemiológicos, incluindo glifosato, paraquat, clorpirifós, malathion, atrazina, permetrina, outros OPs e piretróides³⁹,⁴⁰. Os mecanismos de ação da nefrotoxicidade dos agrotóxicos não são totalmente compreendidos, mas estudos experimentais demonstraram como diferentes classes de agrotóxicos podem afetar a função renal. O Roundup, um herbicida à base de glifosato, leva a alterações epigenéticas e fisiopatológicas na função renal⁴¹; a exposição a agrotóxicos piretróides induz estresse oxidativo e danos aos tecidos⁴²; agrotóxicos organofosforados (OP) desencadeiam o estresse oxidativo e reduzem o metabolismo da glutationa⁴³; descobriu-se que o malathion, um inseticida OP, causa distúrbios metabólicos, histopatológicos e moleculares no fígado e nos rins⁴⁴; e a exposição ao clorpirifós rompe as membranas plasmáticas, causando danos aos tecidos e perda da atividade enzimática⁴⁵.

A exposição a agrotóxicos relacionada ao trabalho foi associada à DRC em cenários de alta e baixa renda⁴⁶. Ela pode afetar a função renal em combinação com outros fatores de risco ocupacional, como estresse térmico, desidratação, carga de trabalho intensa e exposição a produtos químicos. Isso é particularmente, mas não exclusivamente, verdadeiro em ambientes agrícolas⁴³,⁴⁷. Nos EUA, aplicadores de agrotóxicos com exposição prolongada a esses produtos, incluindo os herbicidas alaclor, atrazina, metolacloro, paraquat e pendimetalina, e o inseticida permetrina, apresentaram maior risco de doença renal em estágio terminal (DRET). Outros agrotóxicos não herbicidas também foram associados de forma positiva, mas não significativa. Múltiplas consultas médicas devido à exposição a agrotóxicos (razão de risco - HR 2,13; IC 95% 1,17; 3,89) e hospitalização após o uso de agrotóxicos (HR 3,05; IC 95% 1,67; 5,58) também foram significativamente associadas à DRET⁴⁰. Outro estudo realizado nos EUA também observou que a exposição ocupacional a agrotóxicos esteve relacionada ao aumento do risco de DRET (HR 1,78; IC 95% 1,36; 2,34)⁴⁸.

Um estudo com produtores de cana-de-açúcar na Nicarágua encontrou associações significativas entre menor TFGe e histórico de inalação acidental de agrotóxicos (OR 3,31; IC95% 1,32–8,31)⁴⁹. Trabalhadores rurais no México que atuam em plantações convencionais apresentaram níveis mais baixos de TFGe do que os agricultores orgânicos⁵⁰. Além disso, no Panamá, os pacientes com DRCnt de um hospital de referência em nefrologia eram significativamente mais jovens e mais envolvidos em trabalhos agrícolas ou de transporte do que os pacientes com DRC tradicional, e apresentaram mais atrofia renal e hiperuricemia como marcadores clínicos de DRCnt⁵.

Poucos estudos abordaram os efeitos renais da exposição ocupacional a agrotóxicos no Brasil. Um estudo recente mostra que a mortalidade por insuficiência renal aguda (IRA) está aumentando em regiões urbanas e rurais, principalmente entre trabalhadores agrícolas de áreas rurais com maior consumo de agrotóxicos, trabalhadores mais jovens, mulheres e moradores do sul do Brasil⁵¹. Outro estudo com agricultores brasileiros observou a falta de uso de equipamento de proteção individual (EPI) e pouca capacitação ocupacional, e constatou que trabalhadores com mais de 5 anos de exposição a agrotóxicos apresentaram maior risco relativo de alteração da TFG (RR 1,59)⁵².

Os pequenos agricultores brasileiros estão altamente expostos a diversos agrotóxicos, uma vez que os manuseiam e aplicam sem os EPIs completos, realizam trabalho não qualificado nas áreas de cultivo ou próximo a elas, limpam e armazenam equipamentos e produtos químicos, moram perto de áreas de cultivo e usam agrotóxicos em suas casas e jardins. A maioria dos trabalhadores tem baixo nível de escolaridade e renda, e não possui treinamento ocupacional ou suporte técnico, o que compromete sua capacidade de atender aos padrões de saúde e segurança¹²,⁵³,⁵⁴.

Embora haja um conjunto crescente de evidências sobre os efeitos renais da exposição a agrotóxicos, alguns achados ainda são controversos⁴⁶,⁴⁷. Uma revisão recente mostra que seis dos nove estudos realizados em países da América Latina relataram associações nulas de agrotóxicos com níveis de TFGe ou prevalência de DRC⁵⁵. A maioria desses estudos teve um desenho transversal, tamanho amostral pequeno e baseou-se em estimativas de exposição autorrelatadas, o que pode resultar em viés de informação, níveis de exposição imprecisos, limitando a validade do estudo. Embora alguns estudos não tenham encontrado uma associação clara entre a exposição a agrotóxicos e a DRCnt, sua influência como um forte contribuinte não pode ser definitivamente descartada sem avaliações adequadas da exposição⁴⁷.

Regulamentação e Políticas Públicas Brasileiras Sobre a Exposição dos Trabalhadores ao Calor, Metais e Agrotóxicos

Algumas leis trabalhistas brasileiras abordam a exposição dos trabalhadores ao calor, metais e agrotóxicos. Elas definem procedimentos para identificação e avaliação de exposições ocupacionais a agentes físicos, químicos e biológicos, estabelecem limites de exposição dos trabalhadores, incluindo calor e metais (manganês, arsênio, cromo, chumbo e mercúrio), definem medidas preventivas e de controle para exposições ocupacionais⁵⁶,⁵⁷, determinam o adicional de periculosidade para trabalhadores superexpostos a agentes nocivos⁵⁷ e estabelecem acompanhamento e monitoramento clínicos para identificar alterações metabólicas e fisiológicas dos trabalhadores em estágio inicial⁵⁸.

A avaliação quantitativa da exposição ocupacional ao calor considera a sobrecarga térmica e a taxa metabólica do trabalhador por tipo de atividade⁵⁶,⁵⁹. Para agentes que não possuem limites de tolerância definidos, as medidas de prevenção devem considerar aquelas fornecidas pela American Conference of Governmental Industrial Hygienists⁵⁶. Além disso, existem normas trabalhistas específicas para saúde e segurança no trabalho (SST) em trabalhos a céu aberto⁶⁰, construção⁶¹, mineração⁶², agricultura, pecuária, silvicultura e aquicultura⁶³, onde os trabalhadores são frequentemente expostos ao calor, agrotóxicos e metais.

No que diz respeito aos metais, o Brasil é signatário da Convenção de Minamata sobre Mercúrio e deve implementar ações para prevenir e remediar a exposição ao mercúrio. Nesse contexto, o Ministério da Saúde está elaborando uma matriz de exposição ocupacional para estimar os trabalhadores expostos no país (Carex Brasil), mas os resultados ainda não foram publicados. Em 2006, o Ministério da Saúde publicou uma série de protocolos para serviços de saúde a fim de facilitar a vigilância da saúde dos trabalhadores, incluindo um protocolo sobre exposição ao chumbo. Atualmente, o material está sendo revisado e ampliado para abranger três metais, a saber, chumbo, cromo e mercúrio, mas ainda não foi publicado. Ainda faltam publicações técnicas sobre outros metais. Além disso, um programa de biomonitoramento populacional está sendo desenvolvido pelo Ministério da Saúde do Brasil, mas ainda está em fase inicial e, até dezembro de 2023 nenhum biomarcador havia sido coletado e analisado.

A primeira regulamentação brasileira sobre agrotóxicos data de 1934, mas foi somente após 1989 que foram estabelecidas normas legais para regulamentar o registro, uso, produção, armazenamento, transporte e descarte de agrotóxicos por meio da Lei Federal nº 7802/1989 e das Leis nº 4074/2002 e 5981/2006⁶⁴. Além disso, a regulamentação do trabalho agrícola estabelece critérios para SST, apresenta riscos potenciais e define diretrizes de proteção, treinamentos obrigatórios e programas de prevenção, como o Programa de Gerenciamento de Riscos no Trabalho Rural (PGRTR), o Serviço Especializado em Segurança e Saúde no Trabalho Rural (SESTR) e a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes no Trabalho Rural (CIPATR)⁶³. Nessas normas, os agrotóxicos organofosforados e organoclorados são reconhecidos como substâncias perigosas sujeitas a pagamento adicional por periculosidade⁵⁷, embora nenhuma outra classe química seja mencionada e nenhum limite de tolerância seja definido. O treinamento regular sobre agrotóxicos e prevenção de acidentes é especificado, mas não são definidos programas regulares de biomonitoramento para trabalhadores expostos⁶³.

Embora a regulamentação trabalhista seja bastante abrangente no Brasil, ela é obrigatória apenas para trabalhadores contratados formalmente, e os empregadores que não seguirem essas normas podem ser multados. Além disso, o Brasil não possui infraestrutura suficiente para fiscalizar as condições de trabalho dos trabalhadores em todo o país e depende principalmente de denúncias formais para a aplicação da lei. É importante ressaltar que milhões de trabalhadores informais e autônomos podem estar superexpostos e podem contar apenas com sua autoconsciência e comportamento para se proteger, já que não são cobertos por normas e regulamentações trabalhistas.

Quanto às ações de saúde, além da Política Nacional de Saúde do Trabalhador (PNSTT) e da Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS), algumas políticas e programas do Ministério da Saúde são voltados para o setor agrícola e para a vigilância de agrotóxicos, como a Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos (VSPEA), de 2012, que tem como objetivo implementar medidas integradas para prevenir a exposição e promover a vigilância em saúde de indivíduos expostos a agrotóxicos, e a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA), criada em 2011 para promover ações que ajudem a prevenir doenças e promover a saúde⁶⁵. Além disso, outras iniciativas foram elaboradas para promover o desenvolvimento rural sustentável e a restrição de agrotóxicos no Brasil, como o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA) e a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). No entanto, algumas dessas iniciativas nunca foram totalmente implementadas, e outras foram descontinuadas ou enfraquecidas pelas alterações políticas durante o governo Bolsonaro (2019–2022)⁶⁶.

Recentemente, o Brasil publicou o novo marco regulatório para agrotóxicos e adotou o Sistema Globalmente Harmonizado (GHS, por sua sigla em inglês) de classificação e rotulagem, atualizando os critérios de classificação toxicológica, reduzindo a importância dos efeitos crônicos, reclassificando muitos produtos como menos tóxicos e alterando as informações de segurança nos rótulos e nas embalagens de agrotóxicos⁶⁷. Essas alterações foram bastante questionadas por especialistas, principalmente porque reduziram os riscos agudos e não foram acompanhadas de campanhas de comunicação e informação sobre riscos para garantir que os trabalhadores expostos compreendessem tais mudanças.

Existem também regulamentações sobre a contaminação química de matrizes ambientais, como solo e alimentos. O Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) estabelece limites de referência para metais no solo e diretrizes para a gestão ambiental de áreas contaminadas⁶⁸, enquanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) fornece os limites máximos tolerados (LMT) de metais e agrotóxicos em alimentos, define os métodos de análise para avaliação de conformidade e realiza programas de triagem⁶⁹. Ainda assim, a contaminação por metais e agrotóxicos em solos agrícolas, sedimentos de rios e vida aquática tem sido comumente relatada¹¹,⁷⁰,⁷¹. Essa contaminação ambiental e os riscos associados à doença renal são extremamente importantes, mas isso está além do escopo deste manuscrito.

De acordo com nosso conhecimento, não há outros programas ou ações de vigilância e assistência à saúde em andamento no Brasil por parte do Ministério da Saúde relacionados à exposição ao calor, metais e agrotóxicos na saúde renal , nem há documentos, protocolos ou diretrizes publicadas.

Conclusões

Esta revisão descritiva destaca a necessidade urgente de mais estudos no Brasil, em países da América Latina e em outros países de baixa e média renda (PBMR) para investigar os efeitos da exposição ambiental e ocupacional ao estresse térmico, metais e agrotóxicos na função renal, especialmente com um desenho longitudinal, biomarcadores confiáveis e com foco nos trabalhadores mais vulneráveis⁴³,⁵⁵, como os trabalhadores rurais. Estima-se que o Brasil tenha mais de 18 milhões de trabalhadores rurais, o que representa 20% da população economicamente ativa do país⁷². Em geral, eles têm baixos níveis de escolaridade e renda e estão mais concentrados em regiões menos industrializadas, com piores índices sociais e de saúde⁷³, onde nem sempre há serviços públicos de saúde e serviços especializados disponíveis. Normalmente, as populações rurais não procuram atendimento médico até que os sintomas e as limitações funcionais já estejam avançados⁷³. Isso é particularmente preocupante para a detecção da DRC, uma vez que é uma doença silenciosa e os sintomas aparecem somente quando a função renal está muito baixa. Além disso, os trabalhadores rurais no Brasil ainda são comumente encontrados em trabalho escravo moderno e alguns são resgatados por agentes da justiça em condições sanitárias precárias⁷⁴.

A saúde e a segurança dos trabalhadores no Brasil devem ser promovidas e as regulamentações, políticas os e programas para proteger trabalhadores (e a população em geral) de exposições a calor, metais e agrotóxicos devem ser fortalecidos. Os programas existentes devem ser reforçados, e ações programáticas adicionais, como aquelas relacionadas ao treinamento e à qualificação de profissionais de saúde, precisam ser elaboradas e implementadas para aumentar a conscientização sobre os fatores de risco para DRCnt. Além disso, é importante avaliar os efeitos renais de exposições de curto e longo prazo, principalmente nos trabalhadores mais expostos e vulneráveis. Assim, o estabelecimento de um programa nacional de biomonitoramento abrangente e coordenado pode ajudar a revelar a verdadeira extensão da exposição dos trabalhadores e o impacto na saúde renal.

Nesse sentido, são urgentemente necessárias iniciativas regulatórias, de fiscalização e vigilância em saúde, bem como uma parceria com representantes da sociedade, empresas privadas e universidades, a fim de investigar e implementar estratégias para mitigar os efeitos adversos à saúde associados à exposição ao estresse térmico, metais e agrotóxicos.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  05 Abr 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  16 Ago 2023
• Aceito
  14 Dez 2023