Resumo
Este artigo interpela uma questão premente na etnologia amazônica, a saber, a insuficiência ou os limites de categorias como povo, cultura, etnia ou sociedade para narrar as experiências de nossos interlocutores e interlocutoras de pesquisa. Em diálogo com a noção de objetificação de Marilyn Strathern, com as ideias de Tânia Stolze Lima sobre grupos-sujeitos e totalização contra-hierárquica, e com a teoria do ritual de Roy Wagner, procura-se mostrar como, entre os Karo-Arara de Rondônia, um povo é a instanciação de um coletivo estendido de parentes que somente pode vir a existir sob uma forma específica e convencional, em contextos rituais, e capitaneado por sujeitos concretos. O exercício analítico parte da etnografia de uma festa, o Wayo ‘at Kanã, que é entendida pelos meus interlocutores como, entre outras coisas, uma apresentação.
Palavras-chave:
Ritual; Forma-povo; Perspectiva; Estética; Apresentação cultural
Abstract
This article raises an important issue in Amazonian ethnology, to wit, the insufficiency or limits of categories such as ‘people’, ‘culture’, ‘ethnic group’ or ‘society’ to narrate the experiences of our research interlocutors. In dialogue with Strathern’s notion of objectification, with Tânia Stolze Lima’s ideas about subject-groups and counter-hierarchical totalization, and with the ritual theory of Roy Wagner, I show how, among the Karo-Arara of Rondônia, a ‘people’ is the instantiation of an extended collective of relatives which can only come to exist in a specific and conventional form in ritual contexts, led by concrete subjects. The analytical exercise takes the ethnography of a festival, the Wayo ‘at Kanã, which is my interlocutors understand as, among other things, a cultural presentation.
Keywords:
Ritual; People-form; Perspective; Aesthetics; Cultural presentation
Resumen
Este artículo aborda un tema acuciante en la etnología amazónica, a saber, la insuficiencia o los límites de categorías como pueblo, cultura, etnia o sociedad para narrar las vivencias de nuestros interlocutores. En diálogo con la noción de objetivación de Marilyn Strathern, con las ideas de Tânia Stolze Lima sobre los grupos de sujetos y la totalización contrajerárquica y con la teoría ritual de Roy Wagner, busca mostrar cómo, entre los Karo-Arara de Rondônia, un pueblo es un colectivo extenso de parientes que sólo puede existir en una forma específica y convencional, en contextos rituales, y dirigidos por sujetos concretos. El ejercicio analítico parte de la etnografía de una fiesta, el Wayo ‘at Kanã, que mis interlocutores entienden, entre otras cosas, como una presentación cultural.
Palabras clave:
Ritual; Forma-pueblo; Perspectiva; Estética; Presentación cultural
Este artigo interpela uma questão premente na antropologia e também na etnologia amazônica, a saber, a insuficiência ou os limites de categorias totalizadoras como povo, cultura, etnia ou sociedade para narrar as experiências de nossos interlocutores e interlocutoras de pesquisa. Não se trata evidentemente de recusar tais construtos, uma vez que eles compõem parte da vida e da luta desses sujeitos, mas apenas apontar para o caráter parcial e construído dessas categorias. O risco que se corre em qualquer etnografia é, como aponta Saez (2012SAEZ, Oscar. 2012. “Do perspectivismo ameríndio ao índio real”. Campos, 13 (2):7-13.), o de se reduzirem as variações de discursos e práticas dos sujeitos a predicados coletivos ou, ainda segundo o autor, manter a sociedade como figura e a fluidez ameríndia como fundo. O que se segue é uma tentativa de acolher o esforço de Pedro Agamenon, cacique de Paygap, e seu grupo familiar, sempre acompanhados pelo grande pajé Cícero Xía Mot, vítima de covid-19 em 2020, para oferecer alguma estabilidade a seus parentes (no sentido amplo do termo), considerados por Pedro demasiadamente inconstantes. Aos olhos de Pedro, os Karo-Arara, falantes de língua tupi ramarama e habitantes desde tempos imemoriais na bacia do médio rio Machado, afluente da margem direita do rio Madeira, têm casas demais, nomes demais e, com todas as aspas necessárias, povo “de menos”.
O empenho de Pedro em dar uma forma específica aos Karo-Arara inicialmente me causou certo espanto, absorta que estava com as leituras sobre a inconstância ameríndia e, principalmente, dos Tupi (Viveiros de Castro 1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, ANPOCS., 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif Edições. ). Ainda levou algum tempo para que meu assombro se transformasse em comoção e admiração pelo trabalho monumental dedicado por ele para reunir os parentes no que denomino de forma-povo, talvez o mais instável agregado de parentes que se pode trazer à existência.
Uma vida na qual a promoção de contextos de sociabilidade interfamiliar se faz com dificuldades é a que meus amigos dizem viver em Paygap e Iterap, as aldeias mais antigas e populosas.2 2 Este artigo retoma algumas reflexões de minha tese de doutorado (Otero dos Santos 2015). O trabalho de campo se deu entre setembro 2010 e fevereiro de 2013, em diferentes etapas, perfazendo um total de doze meses divididos entre Paygap e Iterap. Para realizá-lo, contei com o apoio da Fundação Ford, por meio do projeto “Effects of intellectual and cultural rights protection on traditional people and traditional knowledge. Case studies in Brazil”, coordenado por Manuela Carneiro da Cunha. Parte da pesquisa também foi financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa Científica (Cnpq) por meio do projeto “Socialidades Perspectivas: transformações rituais no mundo indígena centro-brasileiro”, coordenado por Marcela Coelho de Souza. As reflexões desenvolvidas neste texto são devedoras do debate travado no âmbito destes dois projetos. Em Iterap vivem cerca de 230 pessoas (Funasa 2011) distribuídas em seções residenciais distantes entre cinco ou trinta minutos de caminhada umas das outras. Cada seção é composta por várias casas que contêm, cada uma, uma família nuclear que compartilha com as demais um terreiro, às vezes, uma cozinha e, quando não uma roça, o trabalho para a derrubada, a queima e o plantio da roça de cada casa. Estes núcleos são formados, em geral, por um casal mais idoso, seus filhos e filhas solteiros, filhos casados e suas esposas e, mais raramente, filhas casadas, configurando um grupo doméstico3 3 Chamo estes núcleos de grupos domésticos por eles manterem uma contiguidade espacial e relações de produção e consumo mais próximas do que com outras residências. distribuído em várias casas contíguas. O padrão de residência mais comum é, portanto, a virilocalidade.
Em Paygap, uma aldeia menor, composta pela família de Pedro e pelos pais, irmãos e irmãs de Arõy, sua esposa, o esquema de residência em casas compostas por famílias nucleares bem como o padrão virilocal repetem-se. No entanto, as casas são mais próximas umas das outras. Praticamente metade delas pertence aos descendentes do cacique e a outra metade aos irmãos e pais de Arõy, atraídos por Pedro quando ele deixou Iterap no início da década de 1990.
A socialidade cotidiana parece ter sempre gravitado em torno do grupo doméstico. Porém, os relatos dos mais velhos e mesmo de alguns adultos sobre o passado evidenciam que, com exceção do período em que se espalharam pelos seringais (de 1940 a meados de 1960), as ocasiões para os encontros entre diferentes grupos eram menos raras ou, ao menos, mais desejadas do que no presente. Elas incluíam trabalho coletivo, festas e visitas a outras casas, envolvendo bebida fermentada e um estado de animação, wãw nãn, um dos motores do ritual. Meus anfitriões lamentam - alguns mais do que outros - a dificuldade de se promoverem espaços-tempos de sociabilidade interfamiliar: as pessoas preferem viver separado ou individual (como dizem em português), o que pode se referir tanto à família nuclear como ao grupo doméstico. Essa oposição é mais acionada em Paygap e não fala somente deles mesmos. Ela também marca um movimento de diferenciação diante dos moradores de Iterap que, na visão dos moradores de Paygap, estariam cada vez mais desunidos e reticentes em tomar parte nas práticas e festas karo-araras em função da conversão da maioria de seus residentes a uma igreja batista a partir de 2008.
Depois de alguns anos convivendo e refletindo junto com alguns amigos e amigas karo-arara, não temo afirmar que o povo é sempre função da iniciativa de alguns homens - Pedro sendo o principal deles -, e mais raramente, mulheres, que ousam tentar juntar as pessoas e elicitar essa forma, que se faz entre outros e contra outros, humanos e não humanos, e que, no presente, é perpassada pelas experiências com o mundo dos brancos, pela política indigenista e pelo que ela espera serem os modos indígenas de associação.
Neste sentido, a sociedade (e também a cultura) é considerada aqui uma produção coletiva e autoconsciente, isto é, como produto das ações concretas de sujeitos nomeados e empenhados em práticas de objetificação ou reflexividade cultural (Carneiro da Cunha 2009CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: M. Carneiro da Cunha, Cultura com aspas. São Paulo: Cosac & Naif. pp. 311-373.; Coelho de Souza 2010COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. 2010. “A vida material das coisas intangíveis”. In: M. Coelho de Souza & E. Coffaci de Lima (orgs.), Conhecimento e cultura: práticas de transformação no mundo indígena. Brasília: Athalaia. pp. 97-118.). Assim, o par cultura/sociedade apresenta-se não somente enquanto categoria central do pensamento da antropóloga, empregada para articular múltiplos pontos de vista, mas como o resultado dos esforços de pessoas engajadas no que poderia ser descrito como um processo de etnogênese - se, e somente se, o concebermos não como um movimento de reivindicação pública de uma identidade por grupos outrora invisíveis ou misturados, mas como o efeito de um processo colonial que transformou uma multiplicidade de nomes (ou etnônimos), usados como modos de diferenciação e identificação, em entidades discretas como sociedades, povos ou etnias. Como bem observa Saez, essa é a história do indigenismo oficial brasileiro, com a etnogênese sendo um processo histórico, mais ou menos bem sucedido em diferentes lugares, e que “se produziu em toda e qualquer parte onde uma etnia discreta e bem delimitada” (Sáez 2016:170) pode, então, destacar-se.
Aquilo que é tomado muitas vezes como o objeto naturalizado de nossas etnografias ou das políticas indigenistas - uma etnia ou um povo, falante de uma língua e que se divide em uma ou mais aldeias dentro de um território reconhecido ou reivindicado - é, no caso tratado aqui, o resultado, sempre fugaz e provisório, do empenho de algumas pessoas, sendo constantemente atravessado pelas ações e as intenções de outras formas de coletivização, como as famílias e os grupos domésticos, ambos designados pela partícula coletivizadora tap. Assim, a entidade discreta povo, conforme a concebemos usualmente, é apenas um (breve) momento na vida dos Karo-Arara e não um axioma seguro sobre o qual a etnóloga constrói suas descrições ou o Estado disponibiliza suas políticas públicas.
Os Karo-Arara referem-se a si mesmos enquanto um povo como I’tâ tap, “Nós”, uma junção da primeira pessoa do plural inclusiva I’tâ seguido do associativo tap. I’tâ é também um termo que meus anfitriões traduzem por “gente” ou “pessoa”. Como é usual entre os povos ameríndios, trata-se, portanto, menos de um etnônimo do que de um marcador enunciativo que indica a posição de sujeito. Funciona, pois, como um pronome pessoal e não como um nome próprio (cf. Viveiros de Casto 2002b:371; Sáez 2013:9).4 4 Parte do esforço de se constituir como um povo volta-se para uma reflexão e transformação do nome pelo qual são reconhecidos. O etnônimo que usavam quando iniciei a minha pesquisa em 2010, Arara - denominação designada pelos não indígenas em virtude do uso do urucum no rosto inteiro e outras partes do corpo e de adornos de arara vermelha - foi recentemente substituído por Karo, Arara-Karo, Karo-Arara, Karo tap. Karo é arara na língua. Ao longo deste texto será possível somente intuir o apreço desse povo por duplicar as coisas.
Tap é uma partícula associativa que, segundo o linguista Nilson Gabas Jr., “tem a função de categorizar um conjunto de entidades associadas com um referente particular como pertencendo a um grupo temporário” (Gabas 1999:67GABAS JR., Nilson. 1999. A gramar of Karo, Tupí (Brazil). Dissertação de Doutorado em Linguística, University of California, Santa Barbara.). Em seu uso possessivo é usada com o sentido de “parente”, “pessoal (de alguém)” e “coisas”, podendo ser traduzida em alguns contextos, como aqueles que envolvem as movimentações de conjunto de parentes pelo território, como grupo. A definição de quem compõe um tap é contextual e relacional, nunca podendo ser dada a priori. Em qualquer escala em que se produz um agregado de parentes (nos nossos termos, um povo, uma aldeia, um grupo doméstico, uma família), este será sempre provisório e capitaneado por pessoas particulares em eventos específicos. Do ponto de vista do sujeito, ele se refere a qualquer um desses agregados pela expressão wat tap, meu pessoal ou meus parentes. Desconheço outras expressões para designar e diferenciar as múltiplas escalas de um tap, que também incluem outros sujeitos que os humanos. Assim, o pajé Cícero Xía Mot referia-se aos seus espíritos auxiliares como wat tap e, dizem-me, tinha uma família no céu. Ao modo do nawa pano, tap não é um simples pluralizador cujo acréscimo produz gentílicos: “acoplado a qualquer término - nomes de animais são os mais comuns, mas nada impede que entrem na lista seres inanimados - ele anuncia a aparição de um novo agente no discurso” (Saez 2016SAEZ, Oscar. 2016. “Nada menos que apenas nomes: os etnônimos seriais no sudoeste amazônico”. Ilha, 18 (2):149-176.:163-4).
Esta descrição aproxima-se e inspira-se nas ideias de grupos-sujeito e de graus de cristalização da posição de chefia desenvolvidas por Tânia Stolze Lima (2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: UNESP/ISA/NUTI-MN-UFRJ. ). Com essas noções e a de função-Eu, Lima ultrapassa a diferença entre sociedade e parentesco - uma herança da teoria estrutural-funcionalista - inadequada à compreensão de conjuntos que “não gera[m] a diferença entre ego e grupo” (:87).
Para a autora, grupos que se concebem como um “entre si” de parentes podem assumir diferentes facetas: um povo, uma aldeia, um grupo doméstico, uma família ou um pessoal. Cada uma dessas unidades de caráter fractal são identificações, algo arbitrárias, secionadas e tratadas como ponto de referência em um certo campo relacional. Sua estabilização depende da apropriação por um homem de uma função-Eu definida como uma distribuição diferencial da posição de Sujeito ou presença de uma função de caráter eminentemente político que, a depender da unidade que destacamos, apresenta diferentes coeficientes de cristalização. As formas capitão ou chefe seriam mais cristalizadas, operando separações como “uma família ao lado de outras, um grupo doméstico próprio, uma aldeia separada, um povo à parte, a humanidade de Senã’ã” (:116). A forma iwa - glosada como dono pelos Yudja, mas que também se diz de algo pelo qual se tem predileção - circularia mais entre os homens e tornaria “possível a sogros e genros, pais e filhos, cunhados de mesmo sexo, cunhados de sexo oposto, primos cruzados (imana), enfim, homens e mulheres que se entretenham no mesmo círculo em meio uns aos outros” (Lima 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: UNESP/ISA/NUTI-MN-UFRJ. :116). Diferentemente dos Yudja que estavam empenhados em ultrapassar essas separações, se abrindo aos outros nas caiunagens, ao longo da minha pesquisa realizada para o doutorado, entre os Karo-Arara era nítido um pendor para a vida separada em Iterap e Paygap.
A estética da política: forma-povo e parentesco
A artificialidade de nossas categorias para dar conta de outras formas de associação não é nenhuma novidade na antropologia (Wagner 1974WAGNER, Roy. 1974. “Are there Social Groups in the Néw Guinea Highlands?”. In: M. Leaf (org.), Frontiers of Anthropology. Nova York, Cincinnati, Toronto, Londres, Melbourne: D. Van Nostrand Company. pp. 95-122.; Strathern 1980STRATHERN, Marilyn. 1980. “No nature, no culture: the Hagen case”. In: C. Maccormack & M. Strathern (orgs.), Nature, culture and gender. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 174-222., 1996STRATHERN, Marilyn. 1996. “The concept of society is theoretically obsolete: For the motion”. In: T. Ingold (org.), Key Debates in Anthropology. London: Routledge. pp. 50-55.; Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, 2 (2):115-44. ). Particularmente, na minha pesquisa de campo realizada para o doutorado, este problema nunca foi um detalhe facilmente contornável. A variação e a instabilidade das relações - e, portanto, dos seus efeitos sobre o que poderíamos designar, de um ponto de vista “sociológico”, por constituição de grupos - apareceu reiteradamente como uma questão para meus principais interlocutores, sendo abordada a partir de diversos ângulos e vocabulários. Modos de associação, constituição de grupos, elicitação de formas, entre outras variantes que aparecem ao longo do texto, são parte do vocabulário mobilizado para me referir à preocupação recorrente dos moradores de Paygap e Iterap com os efeitos das ações das pessoas umas sobre as outras, bem como no que tange à reunião e à separação de pessoas em grupos. Seguir o rastro dessas ações e relações ocupa boa parte das conversas cotidianas nas duas aldeias. São as avaliações sobre as ações dos outros ao longo do tempo que unem as pessoas em um mesmo tap ou as separam em tap distintos.
As linhas, sempre moventes e circunstanciais, que juntam e dividem os sujeitos podem ser visualizadas, por exemplo, por meio da comida e dos contextos em que ela é a razão de ser, como no caso das roças. É o que procurei mostrar (Otero dos Santos 2016OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2016. “Bebida, roça, caça e as variações do social entre os Arara de Rondônia”. Espaço Ameríndio, 10 (2):118-161. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-6524.64261.
https://doi.org/10.22456/1982-6524.64261...
) ao tratar a caça, a bebida5
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Chamada regionalmente de macaloba, a bebida produzida pelos Karo-Arara é feita de cará-roxo (ya’mo), cará-branco (mara’ã), milho (nãya) ou macaxeira (mani) acrescidos de batata- doce (pe’tik). Ela pode ser feita com pedaços desses tubérculos cozidos (quando é chamada de na’mek kap e sua receita atribuída aos Gavião-Ikoleng) ou desses mesmos tubérculos ralados, receita karo-arara, atualmente pouco fabricada pelas mulheres. Ambas as receitas podem ser produzidas em versão doce ou fermentada. Por diversas razões, os Karo-Arara praticamente abandonaram as cauinagens. O compartilhamento da bebida fermentada, ou azeda, como eles dizem em português, está intimamente relacionado às visitas, ao trabalho coletivo e às festas.
e a roça como materialidades ou coisas (sensuHenare, Holdbraad & Wastell 2007HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin & WASTELL, Sari. 2007. “Introduction: Thinking through things”. In: A. Henare; M. Holbraad & S. Wastell (orgs.), Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically. London: Routledge. pp. 1-31. ). As formas que essas coisas tomam - por exemplo, a distinção entre caça preparada inteira (de uma só vez) ou em pedaços (armazenada para consumo posterior) ou entre a presa ser oferecida crua ou cozida aos parentes de fora da casa do caçador por decisão de sua esposa -, estreitamente vinculadas aos modos de sua produção, seu consumo e sua circulação, são a causa e o efeito das associações. Essas distinções apontam para conexões e desconexões que atualizam um tap, um entre si de parentes, em diferentes composições e escalas. Assim, por exemplo, a ação reiterada no tempo de um casal que distribui partes de sua presa para determinados parentes em detrimento de outras pessoas (que, por isso, tendem a aparecer como menos parentes ou não parentes) ativa determinadas relações (e desativa outras), traçando um tap que exclui aqueles com os quais não se troca caça.
A variação dos tap faz parte de uma sociomorfologia pendular vivida de forma muito marcada no espaço-tempo da maloca e cujo aspecto fundamental era uma oscilação entre um período de dispersão familiar pela floresta ou pelo mato, como meus anfitriões dizem, e um período de parada e reunião na maloca dos pequenos grupos que andavam no mato. As paradas na maloca coincidiam com o período de festas. Funcionando como uma espécie de portal, a maloca transformava os tap que andavam no mato em um único tap.6 6 É exatamente isso que o Wayo ‘at Kanã faz e, não à toa, no passado era imperativa a construção de uma nova maloca para a sua realização. Diferentes malocas se visitavam nesse período de parada. Tal esquema foi interrompido durante a dispersão nos seringais da região do rio Machado e transformado depois que o Serviço de Proteção aos Índios começou a reunir as pessoas que estavam espalhadas em colocações de seringa a partir de 1967. No presente, ele é atualizado de maneira precária, mas ainda assim criativa, como por meio da permanência das famílias por alguns períodos em roças mais distantes das aldeias denominadas de sítios.
Nesse universo relacional, as festas sempre tiveram como efeito uma extensão dos tap e, assim, reuniões do que costumamos denominar de um povo. Recentemente, o povo passa a ser produzido consciente e deliberadamente como parte de um projeto de exibição da cultura karo-arara para uma série de outros (indígenas e não indígenas) e para os próprios Karo-Arara: a reunião (virtualmente) de todas e todos Karo-Arara no Wayo at’ Kanã, uma festa considerada de mulheres e que é traduzida para o português como Festa do Jacaré. Trata-se de uma inovação em relação ao espaço-tempo da maloca e do seringal de um tipo de coletivização que almeja congregar as pessoas em uma unidade denominada, em português, de diversas formas, tais como povo, etnia, cultura, cujos conteúdos semânticos e referentes, senão pragmaticamente idênticos em alguns contextos, compõem um mesmo universo de significação informado por práticas e discursos de objetificação da cultura.
É por seu apelo estético e performático que considero esse modo de coletivização uma forma. Para aparecer, é preciso que a reunião das pessoas em um coletivo ampliado de parentes tenha uma forma determinada no sentido proposto por Strathern (1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The gender of the gift. Barckley and Los Angeles: University of California Press. ). Em sua discussão sobre a objetificação, a autora afirma que as relações são reconhecidas somente quando assumem uma forma apropriada. Embora os rituais karo-araras sejam altamente abertos ao improviso, a presença de corpos enfeitados e alegres e de outros-que-humanos são imprescindíveis para que a forma-povo seja efetivada. Sem isso, um povo não adquire uma forma convencional e, consequentemente, não pode aparecer. A emergência de um povo, definido aqui como um conjunto de relações expresso no idioma do parentesco - no sentido da produção de uma identificação ou assemelhamento entre os corpos - exige uma estética apropriada.
A forma-povo é uma objetificação no sentido definido por Strathern: “a maneira pela qual pessoas e coisas são construídas como tendo valor, isto é, como elas são o objeto do olhar subjetivo das pessoas ou da criação delas” (Strathern 1988:176STRATHERN, Marilyn. 1988. The gender of the gift. Barckley and Los Angeles: University of California Press. ). Evidentemente, essa política da consideração (Kelly & Matos 2019KELLY, José Antonio & MATOS, Marcos. 2019. “Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul”. Mana, 25(2):391-426.) - levar os outros em consideração e ser considerado pelo olhar dos outros - perpassa toda a socialidade ameríndia, não se restringindo a contextos rituais, e pode ser mesmo entendida como a forma da ação e da organização dos coletivos indígenas. Como formularam Kelly e Matos (2019)KELLY, José Antonio & MATOS, Marcos. 2019. “Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul”. Mana, 25(2):391-426. a partir da distinção entre pessoa e agente postulada por Strathern para a pessoa melanésia, nas terras baixas sul-americanas, age-se sempre tendo o outro em mente. A ação separa “uma pessoa que age e uma outra pessoa tomada como a causa da ação” (:391).
Veremos como no caso do Wayo ‘at Kanã o próprio conjunto dos Karo-Arara é objeto de consideração de uma série de outros. De outro lado, vários coletivos são a causa da forma-povo, pois os Karo-Arara se reúnem nos rituais tendo em mente os seus vizinhos Gavião-Ikoleng (povo falante de uma língua tupi-mondé com o qual dividem a Terra Indígena Igarapé Lourdes), os não indígenas e eles mesmos. Uma forma-povo somente pode se atualizar na medida em que ela é objeto do olhar e do reconhecimento de uma multiplicidade de outros.
Transformações do ritual
O Wayo ‘at Kanã consiste na reunião de moradores de diferentes aldeias para desfrutar de dois a quatro dias de danças, cantos e refeições compartilhadas. A festa é sempre conduzida por um dono ou dona em parceria com um pajé.7 7 No passado, a chefia era exercida por um grande xamã. Atualmente, os caciques de aldeias que agregam mais de um grupo doméstico não são pajés. Quando falo em festa organizada por mulheres, me refiro a duas festas encabeçadas por Mali Pem, uma em parceria com seu irmão, em 2011, e outra sozinha, em 2016, ambas atividades do curso de Licenciatura Intercultural Básica da Universidade Federal de Rondônia. A primeira, uma edição menos bem-sucedida, era um trabalho sobre a festa solicitado por uma professora do Intercultural. A segunda, um dos Wayo ‘at Kanã mais animados entre os que participei, aconteceu em comemoração à apresentação, feita em Iterap, do Trabalho de Conclusão de Curso de Marli sobre a festa. Em ambas as festas, Cícero e Pedro deram apoio aos organizadores. As danças alternam entre composições de mesmo sexo e sexo cruzado e, geralmente, envolvem pessoas mais jovens e mais idosas. Adultos que não têm netos ou netas não costumam dançar. Na última tarde da festa, as pessoas dançam com os jacarés moribundos e amordaçados nos braços. Os jacarés, capturados alguns dias antes por caçadores a pedido do organizador ou da organizadora da festa, são da espécie jacaretinga. Após essa dança, se dá o ápice da reunião, com a execução dos jacarés a pauladas levada a cabo por mulheres consideradas pewíup, brabas, com suas filhas ou filhos pequenos e escolhidas na hora pelo pajé. Às matadoras deve ser oferecida uma quantidade exorbitante de bebida fermentada. Na noite da execução, última noite da festa, todos os presentes, incluindo as matadoras, comem a sopa de jacaré, feita preferencialmente de milho.8 8 A exceção são as crianças pequenas, as gestantes, mulheres recém-paridas e mulheres menstruadas, que não devem participar da festa, sob o risco de serem atacadas por wayo ‘at ximit, o espírito do jacaré.
Em outras ocasiões ofereci uma descrição pormenorizada da festa e uma interpretação das ações e relações nela envolvidas (Otero dos Santos 2015OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2015. Sobre mulheres brabas, parentes inconstantes e a vida entre outros: a Festa do Jacaré entre os Arara de Rondônia. Tese de Doutorado, UnB., 2019OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2019. “Sobre mulheres brabas: ritual, gênero e perspectiva”. Amazônica, 11 (2):607-635.). Mostrei como o principal afeto problematizado no ritual é a raiva que espreita as relações entre um marido e sua esposa, mediada por seus filhos e filhas pequenos. Embora o ritual localize a raiva em mulheres pewíup com sua prole, a exegese nativa supõe que homens violentos com suas esposas (mas não com seus/suas filhos/as) e mulheres violentas com seus maridos também poderiam matar os jacarés. A morte impetrada aos animais é concebida como um desconto: desconta-se a raiva para que ela não seja dirigida aos familiares e para demonstrar coragem. A coragem é requerida tanto para matar os jacarés como para beber “até cair”. O ritual é um dispositivo de obviação (Wagner 1981WAGNER, Roy. 1981. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago Press.) da raiva, fazendo esse afeto aparecer, ao mesmo tempo em que o desvincula do referente mais restrito de um tap, a família nuclear, no seio da qual ele não deveria aflorar. Ele também objetiva neutralizar a afecção-onça das mulheres, a porção afim feminina, em um contexto etnográfico em que as mulheres não podem ser associadas ao domínio da consanguinidade (Otero dos Santos 2019OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2019. “Sobre mulheres brabas: ritual, gênero e perspectiva”. Amazônica, 11 (2):607-635.).
Se a configuração de um tap varia, é justamente um ritual cujo enredo versa sobre a dificuldade de se constituir parente ali no menor nível da escala - o que o ritual revela é o risco sempre presente de uma família ser atravessada por afetos ligados primordialmente à alteridade9 9 A raiva vincula-se, de um lado, à inimizade e à guerra, e de outro, aos mortos. Há vários relatos de homens considerados pewíup em vida que, depois de mortos, voltaram sua ira contra os parentes vivos provocando, entre outras coisas, eclipses solares. Como já assinalado, as mulheres guardam sempre certa feição afim. Embora o parentesco seja cognático, existe alguma alteridade entre mãe e filho/a, evidenciada pelo enredo do Wayo ‘at Kanã e por falas recorrentes sobre agressividade de mães dirigida às crianças, algo que nunca presenciei. Vale ressaltar que a grande maioria dos casamentos ocorre entre Karo-Araras, ainda que haja casamentos de homens karo-araras com mulheres não indígenas e um casamento de uma mulher karo-arara com um homem não indígena. Há também mulheres que se casaram com homens zorós e gavião-ikoleng. - que é convocado para atualizar o tap em sua conformação ampliada, isto é, um povo. Digo convocado tendo em mente o “recrutamento” do Wayo ‘at Kanã para compor uma política cultural muito bem pensada, especialmente por Pedro Agamenon, cacique da aldeia Paygap e liderança respeitada em toda a região.
A ascensão da festa à símbolo da cultura e do povo Karo-Arara é impulsionada por sua inclusão como uma das atividades de um projeto aprovado no âmbito do programa Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas do Ministério do Meio Ambiente (PDPI-MMA), em 2009, para a aldeia Paygap. Com isso, firmou-se o compromisso entre a família de Pedro, cacique de Paygap, e alguns moradores de Iterap de realizarem a festa a cada ano em uma das aldeias. Na medida em que a festa passa a figurar como símbolo cultural, a motivação original do ritual - amansar mulheres brabas e restituir as condições de produção do parentesco por meio da obviação da raiva feminina, fazendo um casamento durar - desloca-se para um segundo plano.
Essa associação da festa com casamento acaba se enfraquecendo. Os Karo-Arara não têm nenhum rito matrimonial, mas ouvi de um senhor de Iterap e de Cícero que antigamente matavam jacaré em festas, nos casamentos, segundo o pajé, “para viver junto. Se fizer casamento sem jacaré, a mulher fica separando do marido”. Essa afirmação relaciona-se à transformação da relação de homens e mulheres com o jacaré encenada no ritual.
Na mitologia karo-arara, o jacaré-açu, wayo kût - do qual wayo pûk, jacaretinga é uma versão reduzida - aparece como parte do grupo dos animais sedutores (além do de atravessadores), que atrai as mulheres para o fundo do rio. No mito, uma menina é levada para o fundo do rio pelo jacaré, vivendo e namorando com ele por alguns dias.10 10 Para versões desse mito, ver Otero dos Santos (2015, 2019) e Gabas Jr. e Arara (2009). No Wayo ‘at Kanã, o ato de matar o jacaré, em conjunto com a ingestão de macaloba, realiza duas operações similares que permitem que o casamento se prolongue no tempo. Ao longo do ritual, o jacaré vai deixando de ser espírito (kopât) para aparecer como presa (makûy). O rito transforma o amante predador em comida a ser desfrutada por todos os presentes, logrando uma separação clara entre humanos e não humanos, impossibilitando que as mulheres se identifiquem com estes últimos. Simultaneamente, ele contribui para o processo de desafinização das mulheres - de amansamento de mulheres brabas - realizado cotidianamente por meio do trabalho de produção de um tap.
A associação da festa com casamento não é totalmente perdida. Na festa de 2010, realizada em Paygap como parte das atividades do PDPI, Alicate, à época cacique de Iterap, improvisou o casamento de uma missionária do Cimi com seu namorado. A celebração desse rito (descrita em Otero dos Santos 2015OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2015. Sobre mulheres brabas, parentes inconstantes e a vida entre outros: a Festa do Jacaré entre os Arara de Rondônia. Tese de Doutorado, UnB.) com um casal de não indígenas pode ser vista como uma das dobradiças das transformações desse ritual: impor a perspectiva karo-arara, diferenciando-se não somente (da perspectiva) dos jacarés, mas (da perspectiva) dos brancos.
A elicitação de uma forma-povo é uma extensão do parentesco que se faz sempre contra e junto com outros, humanos e não humanos. No caso do Wayo ‘at Kanã, ela envolve jacarés, brancos e, veremos, Gavião-Ikoleng. A forma-povo é instável e provisória porque seu componente é a alteridade e a diferença. Isto é sempre verdadeiro para o parentesco amazônico, que concebe a afinidade como da ordem do que está dado e a consanguinidade como do domínio do que deve ser produzido (Viveiros de Castro 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “Atualização e contraefetuação do virtual: o processo do parentesco”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif Edições. pp. 401-55., 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2015. “The Gift and the Given: Three Nano-Essays on Kinship and Magic”. In: E. Viveiros de Castro, The Relative Native. Essays on Indigenous Conceptual Worlds. Chicago: Hau Books. ). Beatriz Matos, por exemplo, mostrou para os Matsés, falantes de língua pano do ramo setentrional, “a persistência da afinidade, mesmo onde, segundo as definições do dravidianato amazônico, os valores da consanguinidade deveriam prevalecer (no círculo de parentes próximos, no grupo local)” (Matos 2018:110MATOS, Beatriz. 2018. “Povo onça, povo larva: animais e plantas na constituição da pessoa, diferenciação de gênero e parentesco matses”. Revista de Antropologia, v. 61(3):109-129| ). No caso dos Karo-Arara, isto fica claro no tap delineado pelo conjunto esposa-marido-filhos(as), potencialmente exposto à afecção-onça da mulher. O convívio prolongado, o crescimento dos filhos e o nascimento dos netos acabam por neutralizar essa afecção, mas ela pode ser despertada pela raiva descontrolada.
Há diversas formas ameríndias de obviar a alteridade e boa parte da etnologia trata deste tema. Fazer festa, isto é, cantar, beber e dançar, é uma tecnologia indígena para juntar aquilo - famílias, grupos, aldeias - que na vida cotidiana insiste em permanecer separado. Nem sempre as diferenças são acomodadas e isto é ainda mais verdadeiro para a forma-povo. A reunião ritual karo-arara não é algo que se dá necessariamente sem conflitos e dificuldades, decorrentes em grande parte do envolvimento dos moradores de Iterap com a igreja. Participei de uma festa em que a ausência de adornos nos corpos dos anfitriões, de jacarés vivos para serem executados, de envolvimento dos moradores da aldeia anfitriã e de cantores idosos que acompanham o pajé impossibilitou que, mesmo com pessoas de Paygap e Iterap reunidas, se conformasse ali um povo. Na falta desses elementos que convencionalmente indicam a presença de um ritual bem-sucedido, a objetificação não é eficaz, produzindo uma forma irreconhecível ou mal-ajambrada, impedindo, assim, a ativação de uma forma-povo. Como coloca Strathern, a ativação ou a manutenção das relações só podem ser evidenciadas por meio de formas específicas.
Sendo convencionalmente prescritas, tais formas são reificadas: elas contêm em si a evidência do resultado bem-sucedido. Poderíamos chamar essas coisas de performances. As performances precisam, assim, ser reconhecíveis por seus atributos. Somente certas performances, então, farão “aparecer” apropriadamente as relações que elas objetificam (Strathern 1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The gender of the gift. Barckley and Los Angeles: University of California Press. :181).
Se durante o campo realizado para a pesquisa de doutorado pude observar uma proliferação de rituais considerados tradicionais (como o Wayo ‘at Kanã) e de iniciativas de transmissão do conhecimento e da cultura dos antigos (como o Encontro de Pajés11 11 O Encontro de Pajés é uma iniciativa de Pedro organizada em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Segundo o seu idealizador, tem como objetivo valorizar a cultura por meio dos pajés e transmitir o conhecimento sobre as curas xamânicas e os remédios do mato aos jovens e às crianças. Segundo Pedro, o encontro não é festa, é para ensinar o trabalho do pajé. O encontro costuma reunir pajés de outros grupos indígenas com atuação do Cimi. ), isto se deveu à ação de Pedro Agamenon e seu grupo familiar, que insistiram na promoção de contextos de sociabilidade interfamiliar e interaldeã, então com o apoio de Cícero Xía Mot. É sob a liderança de Pedro - até então acompanhado de Cícero - que os diversos tap, separados na vida cotidiana, se juntam em um povo. Isto se deve à habilidade do cacique em animar a sua aldeia - também composta por diversos tap - para receber outros tap. Como se sabe, para fazer festa, é necessário reunir caça, fabricar bebida, comprar e preparar comida (arroz, feijão, macarrão e proteína) e coletar os materiais necessários para a confecção de adornos. Pedro é uma das poucas pessoas que têm essa capacidade de mobilização. Fez disso um dos sentidos de sua vida e sempre contou com a parceria de Cícero, sogro de seu filho mais velho. Cícero era considerado o pajé mais forte e sempre comandou as danças e os cantos rituais. Com sua lança de buriti, chocalho de semente de mulungu amarrado nos tornozelos e sua alegria, animava seu povo, acompanhado por um grupo de homens idosos também com alguma capacidade xamânica - ditos pajezinhos por uma de minhas interlocutoras - que cantavam e dançavam com ele, na maior parte do tempo acompanhados por suas esposas.
Juntos, o pajé e o cacique, eram os principais responsáveis pela reunião dos múltiplos tap. São as ações impulsionadas por essa dupla e a capacidade de ambos de transformar relações usualmente de distância em relações de proximidade que viabilizam a forma-povo. Cícero fazia a mediação com os espíritos que tomam parte na festa. No caso do Wayo ‘at Kanã, ele convocava e acalmava o espírito do jacaré, garantindo que seu povo pudesse dançar com os animais antes de as mulheres por ele escolhidas matarem os bichos.
A Pedro cabe, além de todos os cuidados com a hospitalidade (compartilhados com sua esposa Arõy), a palavra falada. É o discurso dele que ecoa nessas festas, exortando os participantes à alegria e a momentos de experimentação de um ponto de vista karo-arara e de uma pausa no devir-branco. Por meio de suas palavras e ações firmes, produz-se “uma ‘comunidade’ como um objeto unificado da consideração das pessoas” (Kelly & Matos 2019KELLY, José Antonio & MATOS, Marcos. 2019. “Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul”. Mana, 25(2):391-426.:405). Assim, um povo não é uma entidade discreta e dada a priori, mas o produto da ação eficaz de Pedro e Cícero.12 12 Alguns adultos, especialmente professores das aldeias, também tomam para si a tarefa de juntar as pessoas em uma forma-povo, podendo ser mais ou menos eficazes. Entendida como uma invenção de Pedro em seu formato de símbolo de um povo e sua cultura, as edições mais bem-sucedidas da festa foram comandadas por ele ou tiveram seu apoio, como no caso da festa realizada por sua filha, Marli Pem, em Iterap por ocasião da defesa do TCC dela sobre a Festa do Jacaré.
Fazer festa é necessariamente compor com outros, uma composição que faz do parentesco um modo de ação política ou diplomacia (Coelho de Souza 2020COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. 2020. Terra contra propriedade: uma etnografia pelo chão. Mimeo.). O Wayo ‘at Kanã envolve tanto uma política da consideração (Kelly & Matos 2019KELLY, José Antonio & MATOS, Marcos. 2019. “Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul”. Mana, 25(2):391-426.) entre humanos, capitaneada por Pedro, como uma cosmopolítica entre humanos e outros-que-humanos, trabalho esse o de Cícero. A inovação do Wayo ‘at Kanã se dá com a transformação da festa em símbolo do povo e de sua cultura, acompanhada por certa feição de apresentação que o ritual adquire.
Apresentação e transformação coletiva
A primeira vez em que escutei a formulação foi em uma conversa que tive alguns meses após uma festa realizada em Paygap, em setembro de 2010, quando almoçava na casa de Nakyt, professor em Paygap, e sua esposa Mariza, também professora e filha de Pedro, com a família deles e alguns parentes dela. Conversávamos, então, sobre as festas de antigamente em que os homens matavam um xerimbabo13 13 Denomino o ritual em que os homens matavam um animal criado pelo dono da festa (prototipicamente um queixada) de Festa do Xerimbabo ou Yate ‘at Kanã (Festa do Porco). Em oposição ao Wayo ‘at Kanã, considerado uma festa de mulheres, as festas em que se matava um animal de criação, não realizada há pelo menos vinte anos, são concebidas como um ritual masculino. A relação entre as duas festas e a conexão da primeira com a produção da distinção entre os sexos e da segunda com a distinção entre “nós” e “outros” são abordadas em Otero dos Santos (2015, 2019). Intuo que, em um contexto de relações estremecidas entre Paygap e Iterap devido ao envolvimento dos moradores dessa aldeia com a igreja, optou-se por um ritual que problematiza em um primeiro plano as relações de gênero em lugar das relações entre anfitriões e convidados para reunir os tap e apresentar o povo e sua cultura. Porém, quando perguntadas sobre o porquê de escolherem o Wayo ‘at Kanã, as pessoas sempre afirmavam ser esta a festa tradicional karo-arara. e ele explicava que o matador tinha que “beber até cair”. Nakyt, então, comentou que no Wayo ‘at Kanã, as duas matadoras responsáveis por executar, cada uma, um jacaré, nem tomaram muita macaloba porque, em suas palavras, “foi só apresentação”. Uma das cunhadas de Mariza brincou dizendo que na próxima vez elas teriam que tomar tudo, ao que meu interlocutor insistiu: “não, é só apresentação”.
A outra vez em que a ideia apareceu foi durante uma festa realizada em Iterap em setembro de 2011. Na ocasião, perguntei para Sebastião Kara’yã Péw, professor na escola de Iterap e dono da festa junto com sua irmã Marli Pem, também professora, sobre o porquê de eles fazerem a Festa do Jacaré, ao que ele me respondeu: “rapaz, sabe que eu não sei. Quem deu origem a essa festa foi o Pedro e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Antigamente, pegavam o jacaré para dançar quase toda semana. Mas não tinha esse nome Festa do Jacaré”. Quis saber se também matavam o animal depois de dançarem. “Claro e ia perder a sopa? O pessoal era mais animado. Hoje é apresentação, questão de divulgação da nossa cultura. E o pessoal quer vir”.
Algumas improvisações também passam a ser explicadas em virtude desse aspecto de apresentação que o rito adquire, como, por exemplo, o fato de uma das matadoras escolhidas pelo pajé em 2010 não ser mãe. Kara’yã Péw argumentou que as mulheres tinham sido escolhidas “só para mostrar que quem mata o jacaré é a mulher que judia dos filhos. Isso não significa que elas eram mulheres que judiam dos filhos”. Essa ideia de exibição didática também faz parte do conjunto de ideias que compõem o campo semântico da apresentação.
Uma das principais motivações para a realização do ritual é visibilizar os Karo-Arara. Para nos aproximarmos do que imagino ser um entendimento karo-arara da apresentação, precisamos nos perguntar para quem eles desejam se tornar visíveis. A quem a forma-povo constituída no Wayo ‘at Kanã se dirige? Pelo que depreendo da fala dos meus interlocutores, a festa é performada tendo em mente os Gavião-Ikoleng, os brancos, os próprios Karo-Arara, especialmente os mais jovens e, como já vimos, os jacarés. São eles a causa do ritual no sentido desenvolvido por Kelly e Matos (2019KELLY, José Antonio & MATOS, Marcos. 2019. “Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul”. Mana, 25(2):391-426.): são eles que impelem os Karo-Arara à ação.
Comecemos pelos primeiros. É com o intuito de diferenciar-se desses vizinhos que Pedro organiza o Wayo ‘at Kanã. Apresentar-se enquanto Karo-Arara e diferenciar-se são duas intenções, dois movimentos simultâneos, como a fala do cacique em entrevista concedida a Kara’yã Péw deixa entrever:
a gente não era reconhecido aqui no Igarapé Lourdes como Arara. Os brancos pensavam que a gente era tudo um povo só. Eu pensei, eu digo “Não. Vamos fazer que nós somos Arara, nós não somos Gavião”. Então eu comecei, essa ideia minha [de fazer a festa] começou assim, que eu vi que a gente realmente não queria caminhar no mesmo caminho que os outros, que nós era diferente mesmo (setembro de 2012).
Em fuga dos ataques dos Surui Paiter e dos fazendeiros que tomavam suas terras do outro lado da Serra da Providência (estado do Mato Grosso), os Gavião chegaram ao igarapé Lourdes provavelmente no início da década de 1940, onde encontraram alguns Karo-Arara ali vivendo (Leonel Jr. 1983LEONEL JR., Mauro de Mello. 1983(novembro). Relatório de Avaliação da Situação dos Gavião (Digüt) - P.I. Lourdes. Ministério do Interior e Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE).). As narrativas gaviões reunidas por Mindlin et alli (2001 MINDLIN, Betty; DIGÜT, Tsorobá & CATARINO, Sebirop. 2001. Couro dos espíritos: namoro, pajés e cura entre os índios Gavião-Ikolen de Rondônia. São Paulo: Terceiro Nome/ Senac.) e um artigo do etnólogo Harald Schultz (1955SCHULTZ, Harald. 1955. “Vocábulos Urukú e Digût”. Journal de la Société des Américanistes, 44:81-97.) mostram de maneira inequívoca o caráter pacífico da aproximação inicial. As visitas entre os dois grupos eram frequentes, sendo comum que os Gavião permanecessem alguns dias nas malocas karo-araras. Houve trocas matrimoniais e intercâmbio cultural.
As relações ficaram estremecidas depois que alguns Gavião-Ikoleng atacaram os Karo-Arara em virtude da suspeita por parte dos Karo-Arara de que estavam sendo vítimas de feitiçaria nas mãos dos novos vizinhos. Mesmo os Karo-Arara sendo mais numerosos, os Gavião-Ikoleng os atacaram várias vezes. A última grande investida ocorreu em 1959 contra quatro aldeias karo-araras e urubus.14 14 Urubu, Uruku ou Pulsos-Vermelhos (Babekáwei na língua gavião) é como aparecem na literatura aqueles que os Karo-Arara chamam de Pibe Pûk, Pés Pretos, e que seria o único grupo de que se tem notícia que falava a mesma língua que os Karo-Arara. Alguns homens e mulheres karo-araras mais idosos são considerados pibe pûk ou mestiços. Ninguém se autoidentifica dessa forma, sendo a designação uma atribuição conferida por outrem, sempre com certa discrição e nunca diretamente. Os Urubu foram dizimados pelos próprios Karo-Arara, pelos Gavião-Ikoleng e pelos seringalistas. Meus anfitriões referem-se a eles ora como parentes, ora como inimigos. Sete pessoas morreram e algumas mulheres foram raptadas (Leonel Jr. 1983LEONEL JR., Mauro de Mello. 1983(novembro). Relatório de Avaliação da Situação dos Gavião (Digüt) - P.I. Lourdes. Ministério do Interior e Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE).:81).
No presente, os Karo-Arara usam pinturas, paneiros e alguns adornos que dizem ser de origem gavião. A macaloba tomada na maioria das casas também é receita dos vizinhos. Mesmo o Wayo at Kanã, alguns dizem ser uma festa gavião, embora os próprios Gavião digam ter aprendido a dançar com jacaré com os Karo-Arara. A maior influência destes últimos sobre os Gavião-Ikoleng concentra-se no âmbito do xamanismo. Os casamentos com Gavião não são usuais, mas sempre aconteceram e geram alguma preocupação. Embora os Karo-Arara não o formulem dessa maneira, pode-se dizer que é um contexto de mistura que subjaz à intenção de se diferenciar. Além disso, o protagonismo político dos vizinhos, de certa forma, contribui para o sentimento de invisibilidade experimentado por meus anfitriões. Colabora para isso o fato de os Karo-Arara acabarem sendo inseridos em um conjunto Tupi-Mondé composto por vários outros povos falantes de línguas dessa família, como os Zoró e os Surui Paiter, com a qual a língua karo não possui nenhuma semelhança perceptível aos falantes, mas que a política indigenista coloca para conversar. A afirmação de que eles são isolados - uma extensão da língua (de uma família isolada) para a política - é recorrente.
O Wayo ‘at Kanã constitui-se como um espaço-tempo no qual os Karo-Arara aparecem como um conjunto diferente dos Gavião-Ikoleng. A diferença entre os dois conjuntos é mediada pelos brancos, que funcionam como um terceiro diante do qual Gavião e Karo-Arara podem aparecer como povos distintos. E, assim, nos encontramos com o “caráter perspectivo do todo”, do qual nos fala Lima (2008LIMA, Tânia Stolze. 2008. A “história do um, do dois e do terceiro”. In: R. Caixeta & R. Freire (orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora UFMG. pp. 209-263.:230) em seu longo e intrigante comentário aos escritos de Lévi-Strauss sobre as organizações dualistas e o triadismo a elas inerente. Ambos os autores partem da discussão sobre sociedades divididas em metades, porém, Lima, interessada em problematizar a noção de todo nesses sistemas dualistas, opta por encarar o aspecto morfológico do terceiro lévi-straussiano como “um passo provisório das críticas etnográficas contemporâneas ao conceito de todo” (:214). Da sociologia bororo, Lima extrai o postulado mais generalizável de que “não há ponto de vista do todo” (:231). O que a autora se põe a delinear é um todo não hierárquico (expressão dela), que escapa, portanto, ao englobamento dumontiano, ou ainda uma relação de oposição - aquela entre ser e não ser abordada por Lévi-Strauss ao final de O homem nu - cujo entendimento só pode ser dito hierárquico, “reconhecendo-se que aqui se submete a desigualdade à exigência da reciprocidade ou a um regime contra-hierárquico” (:247).
As teorias do dualismo do antropólogo francês, examinadas cuidadosa e criativamente por Lima, são reinterpretadas pela autora a partir da noção de perspectiva (Lima 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana, 2(2):21-47. ; Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, 2 (2):115-44. ) e da conversão operada por Lévi-Strauss da noção de terceiro presente em As organizações dualistas existem?, em “abertura para o Outro” em História de lince. O que essas conceituações deixam antever é o caráter perspectivo do terceiro ou do todo. “O terceiro é a própria perspectiva”, afirma Lima (2008:238LIMA, Tânia Stolze. 2008. A “história do um, do dois e do terceiro”. In: R. Caixeta & R. Freire (orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora UFMG. pp. 209-263.).
Se as teorias da segmentaridade ou da classificação clássicas não são adequadas a “sistemas que se recortam em sistemas por pontos de vista irredutíveis ao agenciamento hierárquico das partes e dos todos” (:249), tampouco poderia ser a visão de povos ou etnias como totalidades estáveis e dadas a priori. O que se tem sempre, em qualquer lugar, é uma perspectiva que faz diferir os termos, os quais se relacionam por meio desta perspectiva. Neste sentido, meu argumento aqui é que, se toda uma tradição em etnologia se voltou para a centralidade da construção da pessoa e da fabricação corporal sempre em operação na escala dos sujeitos, as variações dos grupos também precisam estar no horizonte de investigação. Pois, parte do que esta tradição demonstrou é “o alto grau de resistência [das sociedades outrora consideradas amorfas] às operações sociocêntricas que as técnicas etnográficas exigiam” (Lima 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: UNESP/ISA/NUTI-MN-UFRJ. :86).
Em outra oportunidade (Otero dos Santos 2019OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2019. “Sobre mulheres brabas: ritual, gênero e perspectiva”. Amazônica, 11 (2):607-635.), procurei mostrar como o mesmo ocorre com a diferença entre os sexos. As perspectivas masculina e feminina diferenciam-se em relação ao jacaré/filho. É porque o jacaré é inimigo espiritual para os homens e predador sexual para as mulheres que uma diferença entre os sexos se instaura. Assim como os brancos, o jacaré funciona como um terceiro.
Os Gavião-Ikoleng não são convidados usuais da festa, embora algumas lideranças possam participar ocasionalmente. Ainda assim, é de olho neles que Pedro mobiliza seu povo para a festa. Já os não indígenas costumam ser convidados. Pessoas provenientes de uma série de instituições (Funai, Cimi, Conselho de Missão entre Povos Indígenas, vinculado à Igreja Luterana (Comin), Secretaria de Educação do Estado (Seduc), Licenciatura Intercultural) e os vizinhos das pequenas fazendas próximas estiveram presentes em várias festas. Elas estão lá para ver uma manifestação da “cultura indígena brasileira” e meus anfitriões têm plena consciência disso e, neste sentido, preocupam-se explicitamente com uma execução do ritual que leve em conta esse desejo.
Na festa organizada por Marli e Sebastião em Iterap, o cacique de Paygap quis saber o que seria feito com o único jacaré, abatido pelo cunhado dos organizadores e pelo marido de Marli, para a festa. Afirmou que era necessário que os animais fossem exibidos no ritual “porque o branco gosta de ver”. Ponderou ainda que a quantidade de carne de jacaré era muito pequena e seria preciso pisá-la (amassá-la) para que todos pudessem comê-la. A preocupação com o caráter de apresentação da festa não está, portanto, dissociada do sentimento de equidade que o ritual deve suscitar: é preciso que todos comam. Os organizadores da festa também se mostram preocupados em se mostrar enfeitados para os brancos.
A inserção da festa em um contexto de objetificação da cultura tem como principal causa/efeito a produção de um devir-karo-arara deliberado, em uma época em que muitos dos meus interlocutores dizem estar virando brancos em função do trânsito frequente para a cidade, da adoção de alimentos oriundos de lá, da diminuição do consumo da bebida tradicional (doce ou fermentada) e de alguns poucos casamentos com não indígenas. Com isso, não imaginam uma transformação definitiva e irremediável em não indígena, mas um acesso a múltiplos pontos de vista. O ritual propicia um modo coletivo de deter momentaneamente a transformação em branco, ativando um corpo karo-arara por meio do uso de adornos tradicionais, da performance de cantos e danças e da ingestão de alimentos da culinária karo-arara. No presente, a forma-povo é produzida também com isto em mente.
Afirmar que durante a performance ritual as pessoas levam os não indígenas em consideração - fazendo deles uma das causas do ritual - não significa compactuar com a ideia de uma invenção fantasiosa de uma identidade indígena “para branco ver”. Apresentação é uma categoria êmica e, enquanto tal, distancia-se de qualquer conotação de falseamento ou inautenticidade que a palavra possa vir a carregar em contextos de objetificação da cultura encabeçados por povos indígenas. Nessas festas, meus anfitriões estão inventando e experimentando múltiplos pontos de vista, mas isto não passa pela produção de uma identidade. Para nos aproximarmos dos sentidos da apresentação bem como dos efeitos da festa, trago brevemente os significados da pintura corporal do ponto de vista de dois professores, acostumados com o trânsito no mundo dos brancos e com o discurso sobre a cultura aprendido, entre outros espaços, no curso de Licenciatura Intercultural Básica da Universidade Federal de Rondônia que cursaram.
Os Karo-Arara contam que aprenderam a pintura de jenipapo com os Gavião-Ikoleng e, em menor medida, os Zoró, povos falantes de tupi-mondé. Antes de serem apresentados à tintura de jenipapo, só utilizavam o urucum no corpo inteiro. A exceção era nas expedições guerreiras, ocasião em que faziam uso do carvão. O urucum, quando aplicado em corpos que saíam para a guerra, não se fixava na pele ou desaparecia.
As pessoas referem-se à pintura de jenipapo com motivos animais pelo nome da espécie acrescido do substantivo peón, couro ou pele, donde, por exemplo, desenho da sucuri, mãygãra xa peon, “couro da sucuri”. Segundo Ernandes, filho de Pedro e, quando conversávamos sobre o tema em 2012, professor em Paygap, a pintura era “que nem uma roupa”. Assim, faziam pintura da onça “porque a onça é braba”. O que a roupa-pintura faz é transformar os corpos, conferindo um novo conjunto de afecções à pessoa.
Certa vez em sua casa, quando eu o ajudava em uma tarefa para o curso de Licenciatura Intercultural sobre as pinturas corporais karo-araras, Nakyt explicou-me que as pinturas da jiboia, do tatu, da arraia - dos animais, em geral - desenhadas no corpo com tintura de jenipapo “tinham apresentação em que as pessoas se comportavam que nem animais e chamavam a atenção das mulheres das comunidades”. As festas em que se fazia uso dessas pinturas, não especificadas por ele, aconteciam em várias aldeias e os homens ensaiavam antes, “que nem teatro”. O desenho do animal era escolhido com base em suas afecções - a jiboia atrai as pessoas, a arraia se esconde, por exemplo. Os homens buscavam imitar os gestos e o comportamento desses animais. Em contrapartida, as pinturas para manifestação, encontros e festas consideradas inovações (como comemorações do Dia do Índio e o Encontro de Pajés) não teriam, nas palavras de meu interlocutor, “nenhum significado”. Meu interlocutor refere-se à invenção pelos jovens de grafismos de motivos geométricos e retilíneos desvinculados das pinturas de animais.
A apresentação parece estar ligada à aquisição de novas afecções e capacidades e, portanto, de perspectivas, por meio da transformação dos corpos. A ornamentação corporal aparece como um dos principais vetores de metamorfose para meus interlocutores. No caso dos encontros e das manifestações que reúnem diversos povos, talvez o ponto de vista karo-arara seja eclipsado por um ponto de vista indígena mais genérico, mas isto é algo a ser mais bem investigado. No Wayo ‘at Kanã, alguns jovens se pintam com motivos geométricos em jenipapo, sem “nenhum significado”. A pintura predominante, contudo, costuma ser o rosto todo pintado de urucum, ou seja, a pintura considerada originalmente karo-arara. Em um cotidiano em que as pessoas se veem como perigosamente suscetíveis a outros pontos de vista (como os dos jacarés, dos brancos e dos Gavião), pintar a pele de urucum parece ser crucial para apresentar-se como Karo-Arara, isto é, para assumir um ponto de vista karo-arara por meio de uma metamorfose coletiva no espaço-tempo relativamente controlado que é o do ritual.
A festa jamais pode ser somente apresentação se com isto imaginamos uma invenção sem efeitos. Os aspectos inventivos e as inovações estão sempre presentes no ritual. Assim, se tomarmos a associação de Nakyt entre imitação e apresentação em conjunto com a percepção de que a pintura é como uma pele ou roupa, formulação corriqueira entre os ameríndios, como notou Viveiros de Castro (1996)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, 2 (2):115-44. , nós nos colocaremos, creio, mais próximos do sentido da expressão: uma exibição, somente possível por meio de uma transformação coletiva dos corpos, que leva em consideração uma série de outros - jacarés, brancos, Gavião-Ikoleng e, veremos, os próprios Karo-Arara.
O ritual possibilita aos Karo-Arara diferenciarem-se das diversas perspectivas contra as quais se fabrica um corpo de parentes. Em festa realizada em Paygap em 2010, a adesão aos adornos foi paulatina e os velhos promoveram uma espécie de “ataque” às crianças e aos jovens, principalmente do sexo masculino, para impor-lhes a pintura tradicional (o rosto todo pintado de urucum). Aos poucos, os corpos iam se transformando. Se nos primeiros dias o urucum aparecia no rosto de alguns poucos velhos, no dia da matança dos jacarés, ele estampava a face de praticamente todos os participantes.
O Wayo ‘at Kanã instaura um espaço-tempo no qual corpos karo-araras podem ser fabricados em um contexto em que as pessoas dizem estar virando brancas. Assim, as iniciativas de Pedro são tentativas deliberadas de reverter o movimento de virar branco, isto é, de se diferenciar dos não indígenas, estabelecendo relações amistosas e de hospitalidade entre aldeias, por um lado, e um investimento na alteração e na metamorfose corporal, por outro. Aos olhos do cacique, a “contração” dos tap está intimamente associada a um processo de virar branco. O antídoto contra esse ensimesmamento das famílias e o virar branco é o ritual. É por meio dele que Pedro busca levantar a sua comunidade de um estado considerado letárgico.
O movimento de virar branco é ao mesmo tempo freado (principalmente pelas lideranças) e desejado pelos meus anfitriões. Não está em questão abrir mão das mercadorias, dos conhecimentos e das relações que uma vivência no mundo dos não indígenas traz, porém temem-se os efeitos desse engajamento e uma metamorfose definitiva (Coelho de Souza 2010COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. 2010. “A vida material das coisas intangíveis”. In: M. Coelho de Souza & E. Coffaci de Lima (orgs.), Conhecimento e cultura: práticas de transformação no mundo indígena. Brasília: Athalaia. pp. 97-118.:107). É entre um virar pég (branco) e um virar i’tâ (karo-arara) que as pessoas escolheram transitar, o que nos afasta um pouco da cultura enquanto aparato identitário e coloca no centro da questão a pregnância da alteridade e do devir: o impulso é por transformar-se sempre.
Talvez o que autores como Coelho de Souza estejam a apontar seja menos o devir como desejo do que como efeito. As pessoas transformam-se por meio de suas ações. São estes atos que criam diferença. Age-se em um determinado espaço-tempo com vistas a se fazer único, diferenciando-se de uma série de outros. Não estamos falando de um desejo de autotransformação no sentido da assunção de uma outra identidade.
Desde esta perspectiva, o problema não é mais quem a pessoa é (sua identidade), mas os poderes que ela tem (suas capacidades) e os pontos de vista que ela acessa. O ritual, máquina de transformação por excelência, ao efetuar uma operação sobre os corpos dos participantes, mostra isto muito bem, inclusive a capacidade e o empenho de um pajé e de um cacique de fazerem um povo existir em relação com uma multiplicidade de outros. A existência de um povo é, assim, função da ação de sujeitos nomeáveis que são capazes de elicitar um coletivo estendido de parentes, um tap, por meio da ativação de relações que possibilitam a um coletivo alegre e belo tomar uma forma identificável.
A alegria é um vetor de consubstancialização. Junto com a bebida - ou, melhor, impulsionada pela bebida -, ela possibilita que certas diferenças (entre os tap, entre os gêneros, entre aldeias, entre gerações, entre humanos e não humanos) sejam neutralizadas. O ritual é um tipo de enquadramento em que os participantes colocam a alegria em primeiro plano e certas diferenças ficam no fundo e, portanto, momentaneamente suspensas.
Sem bebida é muito difícil atingir esse estado wãw nãn, que os Karo-Arara traduzem por animação. Na’mẽk kap xa’yõk, a bebida fermentada, esquenta o corpo e o sangue, impedindo o cansaço e engajando os corpos na dança e no ritual. Não à toa, os Wayo ‘at Kanã mais bem-sucedidos de que participei foram aqueles em que a bebida fermentada foi oferecida durante os dias de festa. Em Iterap, houve edições sem macaloba fermentada com o intuito de atrair as famílias envolvidas com a igreja.
Considerações finais: ritual como invenção
Como espero ter deixado claro, esse processo de consubstancialização se faz sempre com e contra outros. Ao contrário da vida cotidiana - definida pelo parentesco, a saber, “pelo investimento social nos processos de extração da alteridade que permitem diferenciar os corpos sociais e coletivos, e portanto conferir a eles identidade” (Coelho de Souza et alii 2010COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler; GUERREIRO, Antonio; OTERO DOS SANTOS, Júlia; SOARES-PINTO, Nicole; NUNES, Eduardo. 2010. Socialidades perspectivas: transformações rituais no mundo indígena centro-brasileiro. Projeto de pesquisa financiado pelo CNPq. Brasília. :9) -, o investimento do ritual é em dispositivos (canto, música, ornamentação corporal e uso de alteradores da consciência) que possibilitam a metamorfose. Como afirmam Coelho de Souza et alii, é próprio do ritual fazer a diferença atuar, garantindo, assim, “a reprodução/recriação das próprias condições da ação cotidiana” (2010:11). O ritual volta-se para a (re)produção da diferença, uma vez que muito do seu trabalho é realizado acessando-se aquilo que Viveiros de Castro define como o “fundo de socialidade metamórfica implicado no mito”,
onde se acha registrado o processo de atualização do presente estado de coisas a partir de um pré-cosmos dotado de transparência absoluta, no qual as dimensões corporal e espiritual dos seres ainda não se ocultavam reciprocamente. Ali, muito longe de qualquer indiferenciação originária entre humanos e não humanos - ou índios e brancos etc. -, o que se vê é uma diferença infinita, mas interna a cada personagem ou agente (ao contrário das diferenças finitas e externas que codificam o mundo atual) (2002b:419VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “Atualização e contraefetuação do virtual: o processo do parentesco”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif Edições. pp. 401-55.).
Neste sentido, se o trabalho do parentesco intervém para a fabricação de um corpo e de um ponto de vista especificamente humanos, eclipsando, assim, a ligação entre a pessoa e a alteridade pré-cosmológica, o ritual atua na orientação inversa. Seu esforço é justamente para reativar essas conexões potenciais (Coelho de Souza et alli 2010COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler; GUERREIRO, Antonio; OTERO DOS SANTOS, Júlia; SOARES-PINTO, Nicole; NUNES, Eduardo. 2010. Socialidades perspectivas: transformações rituais no mundo indígena centro-brasileiro. Projeto de pesquisa financiado pelo CNPq. Brasília. b:11). A metamorfose mítica - “um acontecimento ou um devir (uma superposição intensiva de estados) e não um ‘processo’ de ‘mudança’ (uma transposição extensiva de estados)” (Viveiros de Castro 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “Atualização e contraefetuação do virtual: o processo do parentesco”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif Edições. pp. 401-55.) - reaparece, desta forma, no contexto controlado do ritual, na contramão da socialidade construída pelo regime do parentesco.
O que significa, então, dizer que, no Wayo ‘at Kanã, as pessoas estão virando i’tâ tap? O que elas são que não i’tâ tap, que não gente reunida? Quando meus anfitriões exibem a cultura para si mesmos e para os outros, alguns deles interpretam esta ação como uma apresentação que, como vimos, aponta para uma metamorfose corporal. O que significa fazer uma festa para aparecer como aquilo que já se é? Ou bem eles são duplos de si mesmos15 15 Essa possibilidade não seria nem um pouco estranha (e mereceria ser examinada em outra oportunidade), dado que um procedimento xamânico realizado somente por Cícero visava justamente isso: produzir uma cópia (xáp) do espírito (ximit) da pessoa viva. A xáp era feita pelo pajé quando a criança era pequena e também quando as pessoas se casavam para que não se separassem. Depois que Cícero, ou seus espíritos auxiliares, fotografava a ximit com sua própria máquina - uma espécie de cabacinha -, a pessoa passava a ter uma cópia idêntica vivendo no céu. Xáp era, a partir de então, zelada pelo pajé. Pergunto-me o que será das pessoas e de seus duplos agora que Cícero não poderá mais cuidar deles. ou são outra coisa. Esse movimento certamente tem a ver com as transformações profundas advindas da irrupção da presença dos brancos, o que meus interlocutores e interlocutoras pontuam incansavelmente. Mas isso não é tudo. Virar deliberadamente i’tâ tap só é possível porque as pessoas também se percebem, em determinados contextos, como outra(s) coisa(s) ou relacionando-se com outras coisas que não aquelas próprias ao universo da humanidade karo-arara. Isto inclui brancos, Gavião-Ikoleng e jacarés.
Sair para a mata, abrir uma roça, iniciar uma união conjugal, cozinhar uma caça, fazer uma visita à cidade são ações mais ou menos cotidianas que podem nublar a distinção entre seres propriamente humanos - no sentido de gente, pessoa - e outros-que-humanos, uma distinção nunca totalmente precisa e extensiva, mas cujo manejo e modulação é condição para a existência nos mundos ameríndios. Assim, é próprio da vida - de se agir no mundo - que as coisas se misturem e que as diferenças entre elas se confundam ou comecem a esmaecer. Que se possa retornar ao fundo metamórfico virtual ou ser capturado pela perspectiva do outro: bicho, espírito, inimigo, afim.
O ritual pode ser definido como um contexto em que as condições de possibilidade da vida são repostas, como bem mostrou Nunes (2021NUNES, Eduardo Soares. 2021. No asfalto não se pesca: parentesco, mistura e transformação entre os Karajá de Burina (Aruanã - GO). No prelo.) para um “ritual de resgate” karajá. Em sociedades que privilegiam o modo de simbolização diferenciante,16 16 Lembrando que no modo de simbolização e ação diferenciante, a convenção ou o coletivo estão dados e cabe às pessoas produzirem diferença, individualidade. O dado, para Wagner (1981), não é um fundamento universal do mundo, mas aquilo que é anterior à ação e é percebido como uma motivação, no sentido de ser tomado como já constituído, como a base a partir da qual se age. ele é um modo de ação no qual aquilo que, no cotidiano, é tomado como motivação ou dado e, portanto, não questionado, é deliberadamente fabricado. É, diria Wagner (1981WAGNER, Roy. 1981. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago Press.), o momento de coletivização em regimes diferenciantes. Na definição do autor, o ritual é a ocasião de “invenção deliberada do dado” cujo efeito é restaurar as condições para a ação cotidiana que, no transcurso da vida, passam a vacilar e ser relativizadas.
O Wayo ‘at Kanã é um contexto complexo que pode ser compreendido de múltiplas formas, a depender de onde se olha e, principalmente, de como as pessoas estão se vendo, o que, como vimos, depende de contra quem e diante de quem elas se veem (o que talvez pudesse ser uma outra definição de objetificação na Amazônia...). No passado, colocava-se em um primeiro plano a relação com os jacarés, mas o objetivo era, digamos, o mesmo: assegurar a humanidade dos Karo-Arara, que é sempre constituída com e contra outros. No presente, a festa almeja explicitamente uma metamorfose em i’tâ de corpos que vêm sendo transformados por tecnologias, conhecimentos e jeitos não indígenas. A fabricação deliberada de uma forma-povo, vinculada à ideia de uma apresentação da cultura, que pretendemos descrever e analisar ao longo deste texto, talvez seja uma novidade, mas o recurso ao ritual para inventar a convenção a partir do contraste com o mundo dos outros certamente não o é.
Neste cenário de transformações intensas, o ritual é convocado para novas finalidades - como apresentar a cultura do povo Karo-Arara - e responde à presença de novas alteridades, como a dos brancos. Como bem pontuou Wagner (1981WAGNER, Roy. 1981. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago Press.:xiii-xiv), em regimes de simbolização diferenciantes, a mudança é gerenciada por meio da alternância entre os modos de ação cotidiano (diferenciante) e ritual (coletivizante). Este seria, segundo o autor, o único regime ideológico capaz de lidar com a mudança. Talvez isto explique em parte a proliferação de rituais de apresentação da cultura fartamente documentada nas etnografias (ver Nunes 2021NUNES, Eduardo Soares. 2021. No asfalto não se pesca: parentesco, mistura e transformação entre os Karajá de Burina (Aruanã - GO). No prelo.; Guerreiro 2015GUERREIRO, Antonio. 2015. “Quarup: transformações do ritual e da política no alto Xingu”. Mana, 21 (2):377-406.), os quais não deveriam, portanto, ser interpretados somente na chave de uma representação/apresentação para os não indígenas, mas como um dispositivo de alteração, metamorfose e invenção da cultura (no sentido wagneriano, evidentemente) que inclui os brancos como parte de si (da pessoa indígena) e como alteridade. Possivelmente, também nos ajuda a compreender porque é fazendo festa que se pode ativar uma forma-povo.
Se, conforme postulado por Lima (2008LIMA, Tânia Stolze. 2008. A “história do um, do dois e do terceiro”. In: R. Caixeta & R. Freire (orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora UFMG. pp. 209-263.), as sociedades contra o Estado escapam às totalizações por meio de movimentos contra-hierárquicos, sua inserção no discurso interétnico, que disponibiliza uma nova forma de diferenciação por meio da emergência de coletivos percebidos enquanto “povos”, “etnias” ou “culturas”, só pode se dar em seus próprios termos. O fato de os brancos ocuparem a posição de terceiro no Wayo ‘at Kanã não significa postular um englobamento do ritual (ou da vida das pessoas) pelo discurso interétnico ou uma determinação completa da socialidade indígena pela relação com o mundo não indígena. Como adverte Coelho de Souza, a lógica interétnica não é exclusiva de uma situação de contato, “ela corresponde apenas a uma aplicação, em nova escala, de uma mesma lógica geral de organização e ênfase de diferenças culturais” (Coelho de Souza 2010:110COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. 2010. “A vida material das coisas intangíveis”. In: M. Coelho de Souza & E. Coffaci de Lima (orgs.), Conhecimento e cultura: práticas de transformação no mundo indígena. Brasília: Athalaia. pp. 97-118.). Neste sentido, o vocabulário interétnico forneceria mais um conjunto de práticas e ideias aos processos de diferenciação, produzindo, sempre que acionado, uma etnogênese.
O que busquei mostrar é como essa totalização, muitas vezes tomada como dado em nossas descrições antropológicas ou no desenho e no oferecimento de políticas públicas, é sempre provisória e resultado da ação de sujeitos concretos. A prova dos nove é a alegria. O todo dura o tempo dela.
Para Pedro Agamenon, que se faz fortaleza para levantar um povo. Para Cícero Xia Mót, que fazia um povo em pé dançar.
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Notas
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1
Agradeço a um dos pareceristas anônimos deste artigo que apontou algumas imprecisões que busquei solucionar, além de ter levantado questões pertinentes e instigantes de forma muito generosa, dialógica e respeitosa. Também sou grata a Andressa Lewandowski, Beatriz Matos, Eduardo Soares Nunes e Marcela Coelho de Souza que debateram comigo este texto, indicando caminhos possíveis para o argumento.
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2
Este artigo retoma algumas reflexões de minha tese de doutorado (Otero dos Santos 2015OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2015. Sobre mulheres brabas, parentes inconstantes e a vida entre outros: a Festa do Jacaré entre os Arara de Rondônia. Tese de Doutorado, UnB.). O trabalho de campo se deu entre setembro 2010 e fevereiro de 2013, em diferentes etapas, perfazendo um total de doze meses divididos entre Paygap e Iterap. Para realizá-lo, contei com o apoio da Fundação Ford, por meio do projeto “Effects of intellectual and cultural rights protection on traditional people and traditional knowledge. Case studies in Brazil”, coordenado por Manuela Carneiro da Cunha. Parte da pesquisa também foi financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa Científica (Cnpq) por meio do projeto “Socialidades Perspectivas: transformações rituais no mundo indígena centro-brasileiro”, coordenado por Marcela Coelho de Souza. As reflexões desenvolvidas neste texto são devedoras do debate travado no âmbito destes dois projetos.
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3
Chamo estes núcleos de grupos domésticos por eles manterem uma contiguidade espacial e relações de produção e consumo mais próximas do que com outras residências.
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4
Parte do esforço de se constituir como um povo volta-se para uma reflexão e transformação do nome pelo qual são reconhecidos. O etnônimo que usavam quando iniciei a minha pesquisa em 2010, Arara - denominação designada pelos não indígenas em virtude do uso do urucum no rosto inteiro e outras partes do corpo e de adornos de arara vermelha - foi recentemente substituído por Karo, Arara-Karo, Karo-Arara, Karo tap. Karo é arara na língua. Ao longo deste texto será possível somente intuir o apreço desse povo por duplicar as coisas.
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5
Chamada regionalmente de macaloba, a bebida produzida pelos Karo-Arara é feita de cará-roxo (ya’mo), cará-branco (mara’ã), milho (nãya) ou macaxeira (mani) acrescidos de batata- doce (pe’tik). Ela pode ser feita com pedaços desses tubérculos cozidos (quando é chamada de na’mek kap e sua receita atribuída aos Gavião-Ikoleng) ou desses mesmos tubérculos ralados, receita karo-arara, atualmente pouco fabricada pelas mulheres. Ambas as receitas podem ser produzidas em versão doce ou fermentada. Por diversas razões, os Karo-Arara praticamente abandonaram as cauinagens. O compartilhamento da bebida fermentada, ou azeda, como eles dizem em português, está intimamente relacionado às visitas, ao trabalho coletivo e às festas.
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6
É exatamente isso que o Wayo ‘at Kanã faz e, não à toa, no passado era imperativa a construção de uma nova maloca para a sua realização.
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7
No passado, a chefia era exercida por um grande xamã. Atualmente, os caciques de aldeias que agregam mais de um grupo doméstico não são pajés. Quando falo em festa organizada por mulheres, me refiro a duas festas encabeçadas por Mali Pem, uma em parceria com seu irmão, em 2011, e outra sozinha, em 2016, ambas atividades do curso de Licenciatura Intercultural Básica da Universidade Federal de Rondônia. A primeira, uma edição menos bem-sucedida, era um trabalho sobre a festa solicitado por uma professora do Intercultural. A segunda, um dos Wayo ‘at Kanã mais animados entre os que participei, aconteceu em comemoração à apresentação, feita em Iterap, do Trabalho de Conclusão de Curso de Marli sobre a festa. Em ambas as festas, Cícero e Pedro deram apoio aos organizadores.
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8
A exceção são as crianças pequenas, as gestantes, mulheres recém-paridas e mulheres menstruadas, que não devem participar da festa, sob o risco de serem atacadas por wayo ‘at ximit, o espírito do jacaré.
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9
A raiva vincula-se, de um lado, à inimizade e à guerra, e de outro, aos mortos. Há vários relatos de homens considerados pewíup em vida que, depois de mortos, voltaram sua ira contra os parentes vivos provocando, entre outras coisas, eclipses solares. Como já assinalado, as mulheres guardam sempre certa feição afim. Embora o parentesco seja cognático, existe alguma alteridade entre mãe e filho/a, evidenciada pelo enredo do Wayo ‘at Kanã e por falas recorrentes sobre agressividade de mães dirigida às crianças, algo que nunca presenciei. Vale ressaltar que a grande maioria dos casamentos ocorre entre Karo-Araras, ainda que haja casamentos de homens karo-araras com mulheres não indígenas e um casamento de uma mulher karo-arara com um homem não indígena. Há também mulheres que se casaram com homens zorós e gavião-ikoleng.
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10
Para versões desse mito, ver Otero dos Santos (2015OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2015. Sobre mulheres brabas, parentes inconstantes e a vida entre outros: a Festa do Jacaré entre os Arara de Rondônia. Tese de Doutorado, UnB., 2019OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2019. “Sobre mulheres brabas: ritual, gênero e perspectiva”. Amazônica, 11 (2):607-635.) e Gabas Jr. e Arara (2009).GABAS JR., Nilson & ARARA, Sebastião (orgs.). 2009. Mitos Arara. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.
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11
O Encontro de Pajés é uma iniciativa de Pedro organizada em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Segundo o seu idealizador, tem como objetivo valorizar a cultura por meio dos pajés e transmitir o conhecimento sobre as curas xamânicas e os remédios do mato aos jovens e às crianças. Segundo Pedro, o encontro não é festa, é para ensinar o trabalho do pajé. O encontro costuma reunir pajés de outros grupos indígenas com atuação do Cimi.
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12
Alguns adultos, especialmente professores das aldeias, também tomam para si a tarefa de juntar as pessoas em uma forma-povo, podendo ser mais ou menos eficazes. Entendida como uma invenção de Pedro em seu formato de símbolo de um povo e sua cultura, as edições mais bem-sucedidas da festa foram comandadas por ele ou tiveram seu apoio, como no caso da festa realizada por sua filha, Marli Pem, em Iterap por ocasião da defesa do TCC dela sobre a Festa do Jacaré.
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13
Denomino o ritual em que os homens matavam um animal criado pelo dono da festa (prototipicamente um queixada) de Festa do Xerimbabo ou Yate ‘at Kanã (Festa do Porco). Em oposição ao Wayo ‘at Kanã, considerado uma festa de mulheres, as festas em que se matava um animal de criação, não realizada há pelo menos vinte anos, são concebidas como um ritual masculino. A relação entre as duas festas e a conexão da primeira com a produção da distinção entre os sexos e da segunda com a distinção entre “nós” e “outros” são abordadas em Otero dos Santos (2015OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2015. Sobre mulheres brabas, parentes inconstantes e a vida entre outros: a Festa do Jacaré entre os Arara de Rondônia. Tese de Doutorado, UnB., 2019)OTERO DOS SANTOS, Júlia. 2019. “Sobre mulheres brabas: ritual, gênero e perspectiva”. Amazônica, 11 (2):607-635.. Intuo que, em um contexto de relações estremecidas entre Paygap e Iterap devido ao envolvimento dos moradores dessa aldeia com a igreja, optou-se por um ritual que problematiza em um primeiro plano as relações de gênero em lugar das relações entre anfitriões e convidados para reunir os tap e apresentar o povo e sua cultura. Porém, quando perguntadas sobre o porquê de escolherem o Wayo ‘at Kanã, as pessoas sempre afirmavam ser esta a festa tradicional karo-arara.
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14
Urubu, Uruku ou Pulsos-Vermelhos (Babekáwei na língua gavião) é como aparecem na literatura aqueles que os Karo-Arara chamam de Pibe Pûk, Pés Pretos, e que seria o único grupo de que se tem notícia que falava a mesma língua que os Karo-Arara. Alguns homens e mulheres karo-araras mais idosos são considerados pibe pûk ou mestiços. Ninguém se autoidentifica dessa forma, sendo a designação uma atribuição conferida por outrem, sempre com certa discrição e nunca diretamente. Os Urubu foram dizimados pelos próprios Karo-Arara, pelos Gavião-Ikoleng e pelos seringalistas. Meus anfitriões referem-se a eles ora como parentes, ora como inimigos.
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15
Essa possibilidade não seria nem um pouco estranha (e mereceria ser examinada em outra oportunidade), dado que um procedimento xamânico realizado somente por Cícero visava justamente isso: produzir uma cópia (xáp) do espírito (ximit) da pessoa viva. A xáp era feita pelo pajé quando a criança era pequena e também quando as pessoas se casavam para que não se separassem. Depois que Cícero, ou seus espíritos auxiliares, fotografava a ximit com sua própria máquina - uma espécie de cabacinha -, a pessoa passava a ter uma cópia idêntica vivendo no céu. Xáp era, a partir de então, zelada pelo pajé. Pergunto-me o que será das pessoas e de seus duplos agora que Cícero não poderá mais cuidar deles.
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16
Lembrando que no modo de simbolização e ação diferenciante, a convenção ou o coletivo estão dados e cabe às pessoas produzirem diferença, individualidade. O dado, para Wagner (1981), não é um fundamento universal do mundo, mas aquilo que é anterior à ação e é percebido como uma motivação, no sentido de ser tomado como já constituído, como a base a partir da qual se age.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Set 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
22 Fev 2022 -
Aceito
29 Jun 2022