Resumo
Na interseção da etnologia indígena, a antropologia das relações humano-animais e os estudos sobre artefatos, este artigo analisa um ritual masculino entre os Karitiana, povo indígena Tupi-Arikém no sudoeste da Amazônia brasileira. O Osiipo consistia, sobretudo, no emprego de picaduras de uma variedade de vespas para a fabricação de caçadores. Os dados de que dispomos sugerem que os principais agentes dessa constituição da pessoa masculina eram os insetos, replicando nos homens suas qualidades de ferozes predadores e guerreiros. Nesse processo, destacava-se a presença de cintos de dentes de macaco, signos dos grandes caçadores, e que também são portados pelas vespas. A análise deste objeto específico - as fileiras de dentes de macaco - torna possível compreender como agências outras-que-humanas diversas se interpenetram no ritual que fabricava bons caçadores, cuja versão integral não é mais realizada. Tais artefatos multiespécies tornam-se, assim, expressões materiais privilegiadas para a investigação das interações dos Karitiana com muitos outros seres não humanos com os quais partilham o mundo.
Palavras-chave:
Artefatos; Ritual; Relações multiespécies; Pessoa; Animais
Abstract
At the intersection of Amazonian ethnology, the anthropology of human-animal relations and studies of artifacts, this article analyzes a male ritual among the Karitiana, a Tupi-Arikém-speaking people in the southwestern Brazilian Amazon. Osiipo consisted, above all, in the use of stings from a variety of wasps for the production of hunters. The available information suggests that the main agents of this constitution of the male person were these insects, replicating in men their own qualities as ferocious predators and warriors. In this process, the presence of monkey teeth belts, emblems of great hunters, and which are also carried by wasps, stood out. The analysis of this specific object - the rows of monkey teeth - makes it possible to understand how different other-than-human agencies interpenetrate in this ritual which was intended to make good hunters, the full version of which is no longer performed. Such multi-species artifacts thus become privileged material expressions for investigating the interactions of the Karitiana with many other non-human beings with which they share the world.
Keywords:
artifacts; ritual; multispecies relations; personhood; animals
Resumen
En la intersección entre la etnología indígena, la antropología de las relaciones humano-animal y los estudios de artefactos, este artículo analiza un ritual masculino entre los Karitiana, pueblo indígena Tupi-Arikém, en el suroeste de la Amazonía brasileña. Osiipo consistió principalmente en usar picaduras de una variedad de avispas para hacer cazadores y guerreros. Los datos de los que disponemos sugieren que los principales agentes de esta constitución de los hombres fueron los insectos, que replican en los jóvenes sus cualidades de feroces depredadores. En este proceso se destacó la presencia de cinturones de dientes de mono, signo de los grandes cazadores, y que también son portados por las mismas avispas. El análisis de este objeto específico, las hileras de dientes de mono, permite comprender cómo diferentes agencias distintas a las humanas se interpenetran en el ritual que hace buenos cazadores, cuya versión completa ya no se realiza. Tales artefactos multiespecies se convierten así en expresiones materiales privilegiadas para investigar las interacciones de los Karitiana con muchos otros seres no-humanos con los que comparten el mundo.
Palabras-clave:
artefactos; ritual; relaciones multispécies; persona; animales
Introdução
Este artigo trata do encontro entre os Karitiana, suas pulseiras e outros. Os Karitiana (Yjxa) falam uma língua da família Arikém, pertencente ao tronco Tupi. Eles são hoje aproximadamente 450 pessoas distribuídas por sete aldeias no norte do estado de Rondônia, nos municípios de Porto Velho e Candeias de Jamari; cinco aldeias localizam-se no interior da Terra Indígena Karitiana (que tem cerca de 90 mil hectares que foram homologados em 1986), e duas situam-se fora de seus limites,2 2 No interior da T.I. estão as aldeias Central (Kyõwã, a maior e mais antiga), Bom Samaritano, Caracol, Beijarana e São Francisco. Fora localizam-se as aldeias do Rio Candeias (Byyjyty ‘Osop Aky) e Juari (ou Igarapé Preto). há anos contestados pelo grupo, que reivindica terras tradicionalmente ocupadas que foram deixadas de fora da demarcação oficial (Vander Velden 2012:95-106 VANDER VELDEN, Felipe. 2012. Inquietas companhias: sobre os animais de criação entre os Karitiana. São Paulo: Alameda.). Das peças que os artesãos karitiana e outros povos indígenas habitualmente comercializam em distintos espaços na cidade de Porto Velho, capital do estado de Rondônia (Seplan/Planafloro 1998SEPLAN/Planafloro. 1998. Artesanato indígena. Porto Velho: Seplan-Rondônia/Planafloro.), as mais apreciadas são as belas pulseiras feitas com dentes de macacos e canutilhos de caroço de tucumã, que atualmente estão entre R$ 50 e R$ 100 o exemplar, valor consideravelmente mais alto do que outros adornos karitiana à venda, que são confeccionados sobretudo com sementes.
Materialmente, essas pulseiras (pypit, nome genérico para adornos de pulso) combinam dentes de macaco - principalmente do macaco-prego (gênero Sapajus, em karitiana, pikom, que é o nome comum para os primatas) e de macaco preto (gênero Ateles, em karitiana, ‘orõm) - e diminutos cilindros feitos do caroço lenhoso do fruto da palmeira tucumã (Astrocaryum vulgare Mart., em karitiana, okõrã, que são amplamente utilizados em seu artesanato), enfiados, originalmente, em um fio de algodão nativo (hoje feito de algodão industrial ou de nylon). São peças de confecção trabalhosa, pois furar os pequenos dentes e o duro endocarpo do tucumã exige paciência e cuidado.3
3
Costa (2009:81) observa acerca dos colares de contas pretas feitas de coco de tucum (A3lo3ke1su2) pelos Nambiquara do cerrado que são “peças de grande valor, por levar em consideração as etapas e os esforços que sua confecção requer”. Note-se que os Nambiquara confeccionam adereços de pulso (Ho3sa3ne1su2) de coco de tucum intercaladas com dentes de macaco muito semelhantes às pulseiras karitiana discutidas neste artigo (ver ilustração em Costa 2009:88).
Além disso, os Karitiana compreendem o fascínio que este tipo de adorno representa para os não indígenas (opok), ainda que sua comercialização para fora das aldeias seja, a rigor, proibida pela Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 2018 (a chamada lei de crimes ambientais), pois “[c]omprar essas coisas de índio é também traficar animal silvestre” (Araújo 2019ARAÚJO, Jordeanes. 2019. O fenômeno da liderança Tupi Kagwahiva: trajetórias sociais, resistências e movimento indígena no sul do Amazonas. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, FCLAr/Unesp. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/182586 . Acesso em 22/02/2021.
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:46).
Pulseiras como essas são de uso exclusivamente masculino: contam os Karitiana que, antigamente, quando ainda se caçava com arcos e flechas, os homens cobriam seus braços com longos fios como estes para proteger o punho do golpe da corda do arco ao ser liberada para o tiro. Mas a relação de tais pulseiras com caçadores vai muito além desta pretérita função ou utilidade. À primeira vista, poderia dizer que elas são um tipo de artefato multiétnico, que nos conta algo do encontro entre os Karitiana e os brancos na síntese entre o tucumã, os dentes de macaco e o fio sintético de nylon. Mas quero pensar em outra possibilidade. De fato, há uma série de práticas relacionadas a estes adereços, e um conjunto de conhecimentos zoológicos condensados neles: é por esta razão que estou propondo denominar objetos como estes de artefatos multiespécies ou mutiespecíficos - inspirando-me, portanto, na sugestão de uma etnografia multiespécies (Kirksey & Helmreich 2020KIRKSEY, Eben & HELMREICH, Stefan. 2020. “A emergência da etnografia multispécies”. R@u - Revista de Antropologia da UFSCar, 12 (2):273-307. Disponível em: Disponível em: http://www.rau.ufscar.br/?p=1659 . Acesso em 04/10/2021.
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). Esta “centra-se em como a infinidade de modos de vida dos organismos molda e é moldada por forças políticas, econômicas e culturais” ao propor a atenção etnográfica para “uma série de organismos cujas vidas e mortes estão ligadas aos mundos sociais humanos” (:274).4
4
Há apenas uma ressalva a ser feita aqui: a ideia de multiespécies faz óbvia referência às (muitas) relações entre espécies, embora seja certo que os Karitiana não manejem o conceito de espécie tal como operado pelas Ciências Biológicas. Trata-se, afinal de, ao menos neste momento (antes de uma revisão, mais do que necessária, do modo como a Antropologia trata a noção de espécie), tomar a ideia de interação entre uma multiplicidade de seres distintos, humanos e não humanos, categorizados de formas diferentes nas diversas ontologias. Macacos, para os Karitiana, são himo, termo que é, às vezes, genericamente empregado para designar o que chamamos de “animais”, mas que se traduz literalmente como “carne/presa de caça” e se emprega, de modo mais restrito, apenas para os seres que são caçados para servir de alimento - animais domésticos e aqueles de consumo interdito, por exemplo, não são himo (cf. Vander Velden 2012:242-264). O tucumã, assim como outras árvores (‘ep, “pau”, mas também “osso”), não é uma presa de caça e, assim, pode-se dizer, constitui “outra espécie” de ente. Deste modo, posso tratar a pulseira como um artefato multiespécies no sentido de que agrega, em sua composição, dois seres distintos (macacos e tucumãs), além de vários outros (sobretudo humanos e vespas) cuja conexão com o objeto este artigo pretende descortinar.
A atenção que os Karitiana dão à pulseira, e tudo o que está implicado em sua confecção e uso - particularmente um ritual masculino específico -, pode nos dizer muitas coisas sobre as relações entre humanos e seres outros-que-humanos entre eles. É por esta razão que estou sugerindo que este é um artefato multiespécies: um “objeto” que, mais do que agregar matérias-primas, substâncias ou partes de corpos de distintos seres não humanos (que são, obviamente, muito comuns por toda parte), também plasma um conjunto de relações entre seres, que podem, então, ser “lidas” em sua materialidade e nas formas de sua produção e utilização. Há uma ecologia de relações a ser extraída dessas pulseiras de dentes, como espero demonstrar.
Embora atendam às suas necessidades materiais por diferentes atividades, os Karitiana seguem se definindo como caçadores, e as pulseiras de dentes de macaco, ainda que não cumpram mais sua antiga função técnica - pois não se caça com arco e flecha -, continuam bastante valorizadas pelos homens. Eu mesmo uso, no pulso, duas dessas pulseiras. Estão aqui há quase vinte anos, desde que comecei minha pesquisa com os Karitiana, presentes de amigos que por lá fiz. Só agora, contudo, ocorreu-me pensar sobre elas. Ou, melhor, pensar com elas. E pensando com elas, chego a um complexo ritual do qual só tomei conhecimento ao dedicar minha atenção às pulseiras e às vespas que, com seus cintos de dentes de macaco às vezes importunavam minhas tardes de pesquisa de campo. Começo, assim, pelo rito, embora este se tenha descortinado para mim após os adornos e os insetos, conforme explicarei adiante.
Pegar beiju de caba: o Osiipo
Antigamente, os jovens rapazes karitiana, para se tornarem adultos, deveriam passar por um ritual de iniciação masculina - que os Karitiana chamam de “prova” (horop, literalmente “comprido, longo, alto”, talvez fazendo referência à sua duração), mas também de “castigo” e de “conselho” (Karitiana 2018KARITIANA, Edelaine Om Etepãrãrã. 2018. Kerep õwã aopika: a educação Karitiana antes da criação da escola. Ji-Paraná: Deinter/Unir.) - denominado Osiipo, que eles traduzem, em português, como “prova da caba”, e que caiu em desuso possivelmente já há cerca de cinquenta anos.5
5
O Osiipo já foi descrito e analisado por um conjunto de trabalhos (Storto 1996, 2019; Vander Velden 2004:51-54; Araújo 2014:84-85; Karitiana 2018). Luciana Storto prepara a publicação de uma detalhada narrativa do Osiipo recolhida com o pajé Cizino Karitiana em 1992, cujo manuscrito ela gentilmente me cedeu e foi recentemente publicado (Storto 2022). Pelo fato de não ser realizado há décadas, a análise aqui é integralmente baseada em relatos orais e entrevistas. Ver Vilaça (1992) para um exemplo primoroso de etnografia de um ritual baseada apenas nas descrições de seus antigos participantes. Além de estarmos tratando de reminiscências de um processo ritual abandonado, é necessário reconhecer que várias das conexões propostas aqui não são explicitamente evocadas pelos Karitiana, mas decorrem do encadeamento de associações recolhidas nos discursos e nas práticas deste povo indígena que me permitem, penso, propor um nexo entre os objetos, o ritual e os seres humanos e outros-que-humanos com eles envolvidos. Trata-se, assim, de hipóteses. Subscrevo, deste modo, a clássica advertência de Malinowski sobre o trabalho etnográfico: é necessário estar atento não apenas ao que as pessoas dizem que fazem, mas também ao que fazem e ao que pensam que fazem. Esta atenção franqueia hipóteses explicativas que estão além dos enunciados nativos tomados em sua literalidade. De fato, desconheço um indígena que, por exemplo, se afirme perspectivista ou animista e, como disse Jorge Luis Borges, o real não tem a obrigação de ser interessante, obrigação que cabe, antes, às hipóteses sobre ele.
Luciana Storto (2019:147-167 STORTO, Luciana. 2019. Línguas indígenas: tradição, universais e diversidade. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp.), analisando parte de uma narrativa sobre o Osiipo contada por Cizino Karitiana, assim glosa o nome do ritual: “Osiip significa, literalmente, algo como ‘sobre a salvação do mau caçador’, sendo que a raiz {osii} é um nome que significa ‘salvação do mau caçador’ e {p-} é uma posposição locativa. O sufixo {o-} que ocorre no título da narrativa [ou seja, Osiipo] é um enfático usado apenas em nomes” (Storto 2019:150 STORTO, Luciana. 2019. Línguas indígenas: tradição, universais e diversidade. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp.). Os Karitiana também comparam o rito a um treinamento militar para que o adolescente “se forme como homem [...] preparado para ter família” (Silva 2013:94SILVA, Gracilene N. da. 2013. Narrativas de uma identidade em mudança: ritos de passagem dos Karitiana. Dissertação de Mestrado, UNIR. Disponível em: Disponível em: https://www.ri.unir.br/jspui/handle/123456789/2224 . Acesso em 23/09/2020.
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).
Andreia Castro (2018:93CASTRO, Andréa C. M. de Oliveira. 2018. Koro’op: E-moções, sociabilidade, paisagem e temporalidade entre os Karitiana. Tese de Doutorado, UFJF. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/7569 . Acesso em 10/10/2020.
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) fala do Osiipo como “momento ritual de passagem para a vida adulta”, no qual os homens, após suportarem o rito aos 15-16 anos,6
6
Storto (2019:153) aponta que o ritual ocorria pela primeira vez aos 10 anos de idade, e eu registrei a mesma idade, com um adendo de que acontecia quando os rapazes “arrumavam noiva ou mulher”.
furavam o nariz onde se inseria um pequeno cilindro de madeira. As descrições existentes coincidem nos aspectos centrais do evento: os jovens deviam, sob supervisão dos homens adultos, enfiar os braços em ninhos arborícolas de cabas, marimbondos ou vespas (gop, na língua karitiana7
7
Quando falam português, os Karitiana empregam indistintamente as palavras caba (de origem Tupi, mas brasileirismo do português amazônico) e marimbondo (de origem nas línguas da África meridional), nunca o termo vespa (cf. Lenko & Papavero 1996:147, 158-163).
), arrancar uma porção dos favos (“beiju de caba”) e trazê-la para junto do peito - “passar maribondo no corpo” (Karitiana 2018KARITIANA, Edelaine Om Etepãrãrã. 2018. Kerep õwã aopika: a educação Karitiana antes da criação da escola. Ji-Paraná: Deinter/Unir.:56), suportando estoicamente a dor das picadas (apenas a cabeça e os genitais eram protegidos com um cesto e folhas). Logo depois, em seus braços machucados pelas ferroadas das vespas era esfregado o sumo leitoso de uma planta chamada sojoty (“é como batata do mato”, ou “folha que arde”, dizem; certamente se trata de uma Araceae, talvez a que chamamos de “comigo-ninguém-pode”, possivelmente Dieffenbachia seguine). Contam os Karitiana que este procedimento fazia descamar a pele que, então, caía, revelando uma pele nova, fresca e cheirosa - “passava maribondo no corpo, na cabeça, no braço, na perna, para ficar cheiroso”8
8
Um corpo cheiroso atrai os animais de presa, contrapondo-se ao corpo podre e fétido do caçador panema (naam, um dos termos para panema, traduz-se literalmente como “podre”; nãm = podre, em Landin 1983:111). Jara (1996a:288) sugere, de modo geral (mas partindo de seu material Akuriyó no Suriname), que talvez o caçador, para ter sucesso, deva misturar seu sangue com o “fogo líquido” das vespas, alterando, assim, sua carne - tal qual o fogo de cozinha altera as carnes para consumo, despojando-as do seu odor característico e, assim, como que apagando a identidade do que se come.
(Karitiana 2018:56KARITIANA, Edelaine Om Etepãrãrã. 2018. Kerep õwã aopika: a educação Karitiana antes da criação da escola. Ji-Paraná: Deinter/Unir.) - do rapaz recém-tornado homem.
Um dos principais objetivos do Osiipo, contudo, era fazer os homens “ficarem fortes” e fazê-los bons caçadores - por isso eles poderiam passar pela “prova das cabas” várias vezes. Nesse momento, a ideia era transferir o “veneno” (kinda sara ou kinda oti, termo empregado também para “doença” e que se pode traduzir como “coisa feia ou ruim”) das vespas para os corpos dos homens, porque bons caçadores são aqueles que possuem corpos amargo-venenosos (tapo, “amargo”, ou tap pitat, “muito amargo”, o campo semântico do termo conecta o que, para nós, são dois atributos distintos, ainda que relacionados), o que acaba por se estender às suas armas. Flechas precisam ser amargo-venenosas para bem matar: isto se obtém por meio de um corpo humano amargo-venenoso, que modera no consumo de alimentos doces (frutas, açúcar) para que flechas não acertem as presas sem matá-las, ou que se abstém do consumo de óleos, para que as flechas lançadas não resvalem no corpo do animal, não o ferindo (Vander Velden 2011a VANDER VELDEN, Felipe. 2011a. “As flechas perigosas: notas sobre uma perspectiva indígena da circulação mercantil e artefatos”. Revista de Antropologia 54:231-267.). O que está em jogo, assim, é tornar os corpos dos caçadores e seus “ferrões” (ou seja, suas flechas) o mais semelhantes possível com os corpos das vespas.
Diz-se que o Osiipo é “remédio” que faz os animais “aparecerem por eles mesmos” (ta’aso’ootap’oot, termo que descreve o ato de os animais se aproximarem dos caçadores por conta própria), e os homens não precisarem andar muito para encontrar presas. Com isso, os jovens aprendem a caçar e a flechar, e seus corpos não ficam “moles” (osowot, diz-se do caçador que não tem força para usar o arco), fazendo os homens “pegarem firmeza” (ypyokõrong) para atirar. Além disso, as flechas de caça ficam “como caba”, não erram o alvo, tornando-se predadoras eficazes como as vespas caçadoras. É interessante que o efeito do ritual sobre os animais de caça seja descrito de modo aparentemente antitético: ou ele “faz as caças bestas” (isto é, mansas), “bate na cabeça das caças”, “bate nas caças”, deixando-as mansas, ou seja, o veneno das cabas “ataca” os animais de presa, deixando-os entorpecidos, “como bêbados”, e então eles se aproximam dos caçadores; ou, por outro lado, ele “faz as caças bravas” e, assim, elas querem atacar o caçador e, para tanto, chegam perto, tornando-se alvos fáceis. Ambos os efeitos, creio, podem ser compreendidos diante do efeito das picadas das vespas: um torpor em função do veneno injetado, e a reação agressiva diante da dor e do incômodo do ataque. “Após o osiipo, caça como mutum, cotia ficavam paralisados. A presa ficava mais fácil de matar” (Karitiana 2018KARITIANA, Edelaine Om Etepãrãrã. 2018. Kerep õwã aopika: a educação Karitiana antes da criação da escola. Ji-Paraná: Deinter/Unir.:58). Os resultados do Osiipo, portanto, eram muitos, mas todos eles concorrendo para fazer homens e caçadores.
Conta-se que os iniciandos não podiam correr das picadas das cabas, pois ficariam panema, e “não matavam caça”. Se aguentavam as picadas, passavam a matar todos os animais; se não suportassem a dor, além do azar na caça, havia outra consequência: não conseguiriam se casar, porque o fracasso no Osiipo indicava que a potencial esposa teria fome, pois não haveria carne, e não cozinharia para o marido. Além disso, os jovens não podiam gritar durante o rito - “ah, marimbondo tá me matando!” - pois, diz-se, com isso os marimbondos “ficavam com vergonha” (pyrombykyn gop, “caba tem vergonha”, de ombyk, “vergonha”) porque estariam matando o jovem, “e não davam caça para a gente”. As mulheres não podiam presenciar o rito, já que isso também fazia os rapazes panema; o ritual era realizado “no mato”, fora das aldeias, onde os mais velhos, que comandavam a cerimônia, faziam muita “reza” (isto é, cantavam) antes de os meninos pegarem o “beiju de caba”. Alguns homens com os quais conversei, que passaram pelo Osiipo (alguns até cinco vezes), lembram que “picada de caba dói muito”, e que “sofreram muito” quando encararam o ritual. Dado interessante, diz-se que os rapazes, encolhidos ou vergados pela dor das múltiplas ferroadas, sentiam no corpo o peso das presas - do paneiro (cesto) repleto de carne - que iriam carregar a partir de então.
O veneno das vespas agia em concerto com o sumo do sojoty: diz-se que a dor enfrentada pelos rapazes decorria tanto das ferroadas das vespas quanto da massagem com o suco da planta, e ambos alteram a condição corporal do caçador e também de suas presas, fazendo com que os animais fiquem “bêbados por causa do veneno do sojoty” e se aproximem incautos dos caçadores. Durante o rito, não se podia consumir alimentos doces (frutas como mamão e abiu) e oleosos (como o gongo, kentak): na verdade, os jovens pouco se alimentavam, subsistindo basicamente, depois de três dias de fome, deitados em silêncio, de cerveja (chicha, em karitiana, kytop) de milho, a bebida ritual karitiana por excelência, sendo a chicha de mandioca, mais comum no cotidiano hoje em dia, estritamente vedada. Nos dias subsequentes às provas, novos alimentos eram gradativamente inseridos na dieta dos jovens: primeiro o milho assado (j̃om pyka ou j̃om porojo) ou torrado (j̃om hopo), ou um mingau de milho torrado e moído com amendoim (sojsara), em seguida a carne de pássaros pequenos,9 9 Dois passarinhos cujo consumo nesta fase é recomendado são o ij̃aj̃o (“passarinho pintadinho”) e o morondeko (“verdinho”): essas duas aves (não identificadas) são consideradas mensageiros, trazendo aos caçadores avisos sobre a presença de presas. O pássaro piisomo (não identificado, que traduz como “pé vermelho”) também era prescrito, pois, como os demais, não faz barulho. Existe uma controvérsia em relação ao consumo do ij̃aj̃o, pois alguns dizem que, como ele canta bastante, seu “zoado” espanta as presas. para, só mais tarde, se chegar às caças grossas.
As restrições impostas antigamente no Osiipo parecem replicar, em certa medida, aquelas indicadas, ainda atualmente, para os parentes próximos pelo nascimento de uma criança: a abstenção de sexo (no Osiipo, os jovens sequer podiam tocar seus genitais), o controle dos movimentos bruscos (nos primeiros dias da criança, os pais devem abster-se de atividades que exigem esforço físico e os alimentos precisam ser comidos vagarosamente; no Osiipo, os jovens iniciandos deviam manter-se silenciosos a maior parte do tempo e observar uma série de interditos alimentares (Lúcio 1996LÚCIO, Carlos Frederico. 1996. Sobre algumas formas de classificação social: etnografia sobre os Karitiana de Rondônia. Dissertação de Mestrado, IFCH/Unicamp. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/280525 . Acesso em 09/04/2020.
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:78-80; Araújo 2014ARAÚJO, Íris. 2014. Osikirip: os “especiais” Karitiana e a noção de pessoa ameríndia. Tese de Doutorado, FFLCH/USP. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-05082015-142648/pt-br.php. Acesso em 30/02/2021.
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:84-85).
Ademais, o Osiipo poderia também ocorrer sempre que um caçador desejasse reverter o estado panema em que momentaneamente se encontrava. Nestes casos, se o ritual se prestava a retirar os caçadores do estado de podridão (naam) que os impedia de terem sucesso na caça, para isso eles deveriam, primeiro, fazer apodrecer os homens, para depois retirá-los desta condição: na sequência final do evento uma infusão de diferentes folhas e cascas10 10 Preparava-se uma mistura de marimbondos amassados com sojoty (“folha que coça”), ewoketo (uma casca de pau), gosonderepo (uma folha), osiip tepy (“cipó do osiipo”, “folha podre”) e pasy͂ (uma raspa de casca)”, todos considerados “remédios de caçador”. era aplicada nos corpos dos jovens; diz-se que as folhas eram deixadas na água “até apodrecerem”, e que os homens, no Osiipo, estavam “como podres, com cheiro de podres”. O sentido dos banhos (fala-se em quatro) tomados com a mistura do sojoty era remover a parte podre do indivíduo - contam que “o couro do homem sai todo, como cobra, sai todo o couro velho, e junto sai o panema” - e, com ela, tanto o estado panema (ta’so so ndakap, “homem que não vê caça”) quanto aquele outro estado em que o sujeito se torna potencialmente apto a adquirir doenças, sofrer acidentes e ataques de animais, chamado pa’ydna. Dizem os Karitiana que a água do igarapé leva com ela as doenças do corpo. Poder-se-ia sugerir que a água lava a superfície apodrecida da pele, revelando um corpo forte, firme, belo e liso como o tronco de certas árvores, bem liso e sem manchas (especialmente o eparaka’epo e o boroja hypo,11 11 Eparaka’epo (eparaka = trovão, relâmpago + ‘ep = tronco, madeira; o nome vem de trovão pois o remédio de sua casca mata doenças com um raio) e boroja hyypo (lit. “cobra-liso”, pois o tronco é liso - hyywa - como cobra - boroja). Raspas da casca dessas árvores são amplamente empregadas como “remédios” pelos Karitiana, para os quais a pele lisa é um dos mais confiáveis índices de boa saúde e vitalidade. não identificadas), em que a doença e o infortúnio não logram se fixar.
Verifica-se, portanto, a crer nas narrativas coletadas, que as cabas (vespas) faziam homens adultos ao mesmo tempo que caçadores picantes e eficientes. “Perfurar verspeiro” (Storto 1996STORTO, Luciana. 1996. Livro de apoio ao aprendizado da ortografia Karitiana. Porto Velho, mimeo (inédito).) era a forma de iniciação dos jovens karitiana, tornando-os aptos ao casamento. As imbricações entre os insetos, a caça e a masculinidade - e seus reflexos, por assim dizer, nas pulseiras de dentes de macaco - serão desenvolvidas no que segue.
Das cabas
Contam os idosos karitiana, que passaram pelo Osiipo, mas também o observaram várias vezes, que diferentes tipos de vespas (gop) eram empregados. Algumas vespas são tidas como particularmente apropriadas para fazer dos homens caçadores especializados em certas presas: a caba vermelha (gopisõwõra) e a “caba bunda branca” (gop him j̃oj̃a, em que “bunda” se refere ao abdômen), por exemplo, trazem sorte no abate de macacos, enquanto o marimbondo-quati (gop’irisa) torna o caçador apto a matar quatis (seu ninho se assemelha à cabeça de um quati). O inseto que os Karitiana chamam, em português, de mamangaba (gop syyto) traz a excelência na caça do macaco-velho (Pithecia irrorata; orori, em karitiana). De um modo geral, afirma-se que vespas que fazem ninhos “em oco de pau” são as mais eficazes para “fazer formar caçador”. Este é o caso, além das já citadas, de gop sõwõra (caba vermelha-amarelada), gop miem (caba preta, que “vive em oco de pau”), gop mi (caba de “rosto” vermelho, corpo preto e olho verde), gop bikiip (caba amarela).12 12 Um tipo de marimbondo grande (comparado a uma “formiga tocandeira preta grande, formigão, com asa”) chamado dopĩ kendo é utilizado para fazer cachorro caçador: amassa-se o inseto sem a cabeça, mistura-se com certas folhas e passa-se no cão.
Algumas vespas são consideradas impróprias para as técnicas de fazer bons caçadores: do marimbondo preto e amarelo (gop’ewak), da vespinha vermelha (gop’orokojo), do marimbondo azul grande (gop sosy, considerado “muito bravo”) e de dois marimbondos pequeninos (gop’ap’ e gop’okoty yjpy) diz-se que “não prestam pra passar”. Alguns têm picadas muito dolorosas que, segundo consta, podem matar e, por isso, são ditos serem “bichos” (kinda), categoria nativa que inclui seres monstruosos, perigosos e ameaçadores, e que, em geral, “não prestam para nada” (Vander Velden 2012:261-263 VANDER VELDEN, Felipe. 2012. Inquietas companhias: sobre os animais de criação entre os Karitiana. São Paulo: Alameda.).13 13 Ciola (2019:120) sugere traduzir kinda como “predador”. São portadores da morte ou da agressão pura e simples, que não frutifica em efeitos benéficos como se passa com as vespas utilizadas no Osiipo. Também são desprezadas as vespas gop ewak (tapium, “caba muito brava”), ereryp (grande, parecida com abelha), gop gerepa (faz ninho achatado no pau; diz-se que “dorme muito”), gop’i (“caba-pium”, bem pequena, nidifica em galhos) e gop apo (nidifica sob folhas). Sobre alguns outros tipos de vespas, como õrõm jopiopo (caba amarela), não existe hoje consenso se serviam ou não para o ritual.
Vespas são insetos pertencentes à ordem Hymenoptera, usualmente definidos como himenópteros de cintura fina que não são formigas nem abelhas. Alguns de seus hábitos mais significativos, como o parasitismo, a caça e a predação (especialmente quando dirigidas contra aranhas), não passaram despercebidos das mitologias e das cosmologias de vários povos amazônicos (Jara 1996b:233-244JARA, Fabiola. 1996b. “La miel y el aguijón: taxonomía zoológica y etnobiología como elementos en la defnición de las nociones de género entre los Andoke (Amazonia colombiana)”. Journal de la Société des Américanistes, 82:209-258.; Rojas Zolezzi 2002:212ROJAS ZOLEZZI, Enrique. 2002. “Las clasificaciones Ashaninka de la fauna del piedemonte central: un caso de diferentes niveles de aproximación”. Bulletin de l’Institut Français d’Études Andines, 31 (2):185-212. Disponível em : Disponível em : https://journals.openedition.org/bifea/6468 . Acesso em 10/08/2020.
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; Karadimas 2012KARADIMAS, Dimitri. 2012. “Historias de diablos, mitos de avispas: acercamiento iconográfico a una unificación regional”. In: F. Correa Rubio; J.-P. Chaumeil & R. Pineda Camacho (eds.), El aliento de la memoria: antropología e historia en la Amazonia Andina. Bogotá: CNRS/IFEA/Universidad Nacional de Colombia. pp. 68-86., 2016 KARADIMAS, Dimitri. 2016. “Monkeys, wasps and gods: graphic perspectives on Middle Horizon and later pre-Hispanic painted funerary textiles from the Peruvian coast”. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [on-line]. Disponível em: Disponível em: http://www.doi.org/10.4000/nuevomundo.69281 . Acesso em 28/10/2020.
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). Várias delas são empregadas pelos Karitiana no Osiipo, conforme vimos acima: todas aquelas consideradas boas caçadoras porque agressivas, mas na medida correta. A identificação dos insetos empregados no Osiipo não é tarefa fácil (especialmente para mim, um antropólogo, não entomólogo) e, por esta razão, encontra-se largamente ausente aqui. Com efeito, se não identifiquei as espécies de himenópteros em questão, pude ver várias delas e discutir com os Karitiana suas características. Gostaria, assim, de me concentrar em um gênero específico de vespas sociais (Vespidae, Polistinae), pois é muito provável que os insetos que interessam a esta discussão sejam vespas do gênero Polybia, como as ilustradas abaixo:
Numerosas espécies de vespídeos do gênero Polybia (incluindo as ilustradas acima) têm ocorrência verificada no norte do estado de Rondônia, região bastante rica em termos de vespas sociais. Essas, de fato, apresentam sua maior diversidade na Amazônia, que concentra mais de 200 espécies, 70% das espécies de vespas Polistinae encontradas no Brasil (Gomes 2013GOMES, Bruno. 2013. Diversidade de vespas sociais (Vespidae, Polistinae) na região norte de Rondônia e a relação dos ciclos ambientais abióticos sobre o forrageio. Tese de Doutorado, FFCLRP/USP. Disponível em: Disponível em: http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/USP_9f47292f60687d17f36825b402570ec0 . Acesso em 09/03/2021.
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; Gomes et al. 2020GOMES, Bruno; LIMA, Caio Souza; SILVA, Marjorie da & NOLL, Fernando Barbosa. 2020. “High number of species of social wasps (Hymenoptera, Vespidae, Polistinae) corroborates the great biodiversity of Western Amazon: a survey from Rondônia, Brazil”. Sociobiology, 67 (1):112-120. Disponível em: Disponível em: http://periodicos.uefs.br/ojs/index.php/sociobiology/article/view/4478 . Acesso em 10/06/2021.
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; Somavilla et al. 2020SOMAVILLA, Alexandre; MORAIS JUNIOR, Raimundo Nonato de; BARROSO, Paulo Cézar; OLIVEIRA, Márcio Luiz & RAFAEL, José Albertino. 2020. “Biodiversity of Insecta in Amazonia: updating the geographic records of social wasps (Vespidae: Polistinae) in Acre and Rondônia states, Brazil”. Sociobiology, 67 (4):584-592. Disponível em: Disponível em: http://periodicos.uefs.br/index.php/sociobiology/article/view/5789 . Acesso em 11/08/2021.
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). Algumas dessas espécies de Polybia são assaz agressivas, e seus ninhos podem ser bem grandes, alcançando mais de um metro (caso dos ninhos de Polybia liliácea,14
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Segundo Posey (1997:316), a espécie de vespa “mais poderosa e agressiva” empregada pelos Kayapó em seu ritual de ataque aos ninhos é, justamente, Polybia liliacea (amuh-djà-kên).
ilustrados abaixo), ou seja, são apropriadas ao procedimento ritual em que os homens arrancam pedaços dos ninhos e os colocam junto ao tórax para serem ferroados pelos insetos, especialmente quando os ninhos são construídos “dentro de oco de pau”. Guardemos, por um instante, o padrão gráfico do abdômen dessas vespas, com faixas alternadas de preto e branco-amarelado (escuro e claro). É ele que nos interessará na seção seguinte. Antes uma palavra sobre ritos ameríndios envolvendo Hymenoptera.
Rituais indígenas sul-americanos que incorporam vespídeos são documentados, sobretudo, entre os povos Jê (Vidal 1977VIDAL, Lux. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os Kayapó-Xikrin do rio Cateté. São Paulo: Hucitec/Edusp.:126; Posey 1981POSEY, Darrell. 1981. “Wasps, warriors and fearless men: ethnoentomology of the Kayapó Indians of Central Brazil”. Journal of Ethnobiology, 1(1):165-174., 1997 POSEY, Darrell. 1997. “Etnoentomologia de tribos indígenas na Amazônia. In: B. Ribeiro (ed.), Suma etnológica brasileira - 1: Etnobiologia. Belém: Editora Universitária da UFPA . pp. 297-319., 2002 POSEY, Darrell. 2002. “Ethnoentomological survey of Brazilian Indians”. In: K. Plenderleith (ed.), Indigenous knowledge and ethics: a Darrell Posey reader. London: Taylor & Francis. pp. 23-33.; Giraldin 1997GIRALDIN, Odair. 1997. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um povo Jê no Brasil Central. Campinas: Editora da Unicamp.), Karib (Jara 1996a:167-197JARA, Fabiola. 1996a. El camino del kumu: ecología y ritual entre los Akuriyó de Surinam. Quito: Abya-Yala .), Pano (Gonçalves 1991:253GONÇALVES, Marco Antonio (org.). 1991. Acre: história e etnologia. Rio de Janeiro: Núcleo de Etnologia Indígena/Laboratório de Pesquisa Social/DCS-IFCS-UFRJ.; Goés 2009:90GOÉS, Paulo R. H. de. 2009. Infinito povoado: domínios, chefes e lideranças em um grupo indígena do Alto Juruá. Dissertação de Mestrado, PPGAS/UFPR. Disponível em Disponível em https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/27376 . Acesso em 20/02/2021.
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) e Tacana (Hissink & Hahn 2000:149HISSINK, Karin & HAHN, Albert. 2000. Los Tacana II: datos sobre la historia de su civilización. La Paz: APCOB.). Os fundamentos destes ritos apresentam notáveis similitudes com as intenções dos Karitiana em sua guerra contra as vespas para fazerem caçadores aptos. Segundo Posey (2002) POSEY, Darrell. 2002. “Ethnoentomological survey of Brazilian Indians”. In: K. Plenderleith (ed.), Indigenous knowledge and ethics: a Darrell Posey reader. London: Taylor & Francis. pp. 23-33., por exemplo, os guerreiros kayapó procuravam as ferroadas de “vespas sociais agressivas” como forma de capturar sua ferocidade. Não obstante, um estudo sistemático e abrangente dos usos de picadas e ferroadas de vespas, abelhas e formigas (todos Hymenoptera15
15
Note-se, todavia, que estes artrópodes (abelhas, formigas e vespas) que a taxonomia agrega na ordem Hymenoptera (na classe Insecta) são bastante diferenciados dos pontos de vista indígenas (Rojas Zolezzi 2002:211), e Lévi-Strauss (2004:73-74, 264) evidenciou a oposição no pensamento indígena entre vespas e abelhas a partir da experiência (respectivamente tóxica ou sadia) com seus distintos méis. Por outro lado, parece haver nas terras baixas conexões instigantes entre a dor, a pimenta, o veneno (num complexo sensorial que agrega picante-quente-amargo-venenoso-doloroso) e um conjunto de seres peçonhentos como vespas, abelhas, formigas, aranhas, escorpiões e serpentes, além de certas plantas. Landin (1983:148) registra soj como termo para “pimenta”; assim, sojoty poderia ser traduzido como “pimenta grande”.
) para a formação de corpos (sobretudo masculinos, caçadores e guerreiros) nas terras baixas sul-americanas - o difundido emprego desses seres em “ordálias cerimoniais” (Gilmore 1997:271GILMORE, Raymond. 1997. “Fauna e etnozoologia da América do Sul tropical”. In: B. Ribeiro (ed.), Suma etnológica brasileira - 1: Etnobiologia. Belém: Editora Universitária da UFPA. pp. 217-277.) - ainda está por ser efetuado (cf. Balée 2000BALÉE, William. 2000. “Antiquity of traditional ethnobiological knowledge in Amazonia: The Tupí-Guaraní family and time”. Ethnohistory, 47(2):399-422.).
De todo modo, apesar de constituírem a classe mais numerosa e biodiversa de seres vivos, e de serem presença absolutamente constante nas vidas de todos os seres humanos, insetos foram surpreedentemente pouco estudados pela antropologia (Motte-Florac & Thomas 2003MOTTE-FLORAC, Elisabeth & THOMAS, Jacqueline (eds.). 2003. Les “insects” dans la tradition orale - “Insects” in oral literature and traditions. Paris: Peeters. ; Raffles 2010RAFFLES, Hugh. 2010. Insectopedia. New York: Vintage.; Costa Neto 2014 COSTA NETO, Eraldo. (org.). 2014. Entomologia cultural: ecos do I Simpósio Brasileiro de Entomologia Cultural 2013. Feira de Santana: UEFS Editora.). Mesmo no Neotrópico megadiverso temos tão somente raros estudos sobre as interações entre insetos e povos indígenas, a maioria deles interessados nas abelhas, especialmente nas Meliponas e Trigonas (subfamília Meliponinae, abelhas sem ferrão) nativas (Posey 1983POSEY, Darrell. 1983. “Folk apiculture of the Kayapó Indians of Brazil”. Biotropica, 15 (2):154-158.; Cebolla Badie 2009CEBOLLA BADIE, Marilyn. 2009. Una etnografía sobre la miel en la cultura Mbya-Guaraní. Quito: Abya-Yala.; Medrano & Rosso 2010MEDRANO, Celeste María & ROSSO, Cintia. 2010. “Otra civilización de la miel: utilización de miel en grupos indígenas Guaycurúes a partir de la evidencia de fuentes jesuitas (siglo XVIII)”. Espaço Ameríndio, 4 (2):147-171. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/17362/10562 . Acesso em 15/03/2021.
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; Léo Neto & Grünewald 2012LÉO NETO, Nivaldo & GRÜNEWALD, Rodrigo. 2012. “‘Lá no meu reinado eu só como é mel’: dinâmica cosmológica entre os índios Atikum, PE”. Tellus, 12 (22):49-80. Disponível em : Disponível em : http://www.gpec.ucdb.br/projetos/tellus/index.php/tellus/article/view/ 274 . Acesso em 10/04/2021.
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; Costa Neto 2013COSTA NETO, Eraldo. 2013. “Análise etnossemântica de nomes comuns de abelhas e vespas (Insecta, Hymenoptera) na Terra Indígena Pankararé, Bahia, Brasil”. Cadernos de Linguagem e Sociedade, 14 (1):237-251. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/22248 . Acesso em 03/05/2021.
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, entre outros).
Dos dentes de macaco
Berta Ribeiro (1988RIBEIRO, Berta. 1988. Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Edusp.:188) assevera que “dentes de mamíferos são amplamente empregados na confecção de colares e cintos”, estando, entre os mais citados, aqueles dos macacos-prego. Qual seria, pois, a especificidade dessas pequenas pulseiras karitiana, e de que forma elas se relacionam com vespas, caçadores e animais de presa (caça/carrne) que discutimos até aqui?
Conta-se que, antigamente, durante o Osiipo, os jovens acumulavam os “dentes superiores” dos macacos abatidos, e os colocavam em um cinto: dizia-se, em referência à combinação dos dentes e canutilhos de tucumã nos cintos (e nas pulseiras), que “[n]o pé de tucumã ficava cheio de dentes de macaco preto. Macaco velho no pé de tucumã” (Karitiana 2018KARITIANA, Edelaine Om Etepãrãrã. 2018. Kerep õwã aopika: a educação Karitiana antes da criação da escola. Ji-Paraná: Deinter/Unir.:57). Nota-se, aqui, uma antiga conexão antes materializada nos cintos e, hoje, nas pulseiras entre os dentes de macaco e o tucumã: este (okõrã), assim como outras plantas com troncos espinhosos (como o toari e mesmo limoeiros e laranjeiras; o Dicionário Karitiana de David Landin [1983LANDIN, David. 1983. Dicionário e léxico Karitiana/Português. Brasília: SIL.:147] sugere que okõrã é o próprio termo para “espinho”) e está associado, entre outros efeitos, ao sucesso na caça: um dos imperativos éticos mais contundentes entre os Karitiana reza que os despojos dos animais caçados e consumidos nunca devem ser descartados de qualquer maneira, sendo idealmente depositados no alto dos troncos dessas espécies; alega-se que seus espinhos não permitem a aproximação de seres malfazejos que podem prejudicar os caçadores, ao mesmo tempo em que evitam que os restos de alimentos sejam remexidos e devorados por certos animais, o que traria, como imediata consequência, o estado panema. Nesse sentido, a pulseira combina a presa de caça mais cobiçada com porções de uma palmeira (canutilhos de caroço de tucumã) cujo propósito é justamente proteger os restos não consumidos dos animais para que não sejam remexidos, o que pode trazer consequências desastrosas aos caçadores. As pulseiras, assim, podem ser exibidas todo o tempo por seus portadores, ao contrário dos cintos antigos que, repletos de dentes de macacos consumidos, deviam restar protegidos pelos espinhos do tucumãzeiro.
Voltando ao Osiipo, como vimos, este fazia bons caçadores para, em um segundo momento, ao demonstrarem suas habilidades com arcos e flechas, produzi-los também enquanto homens adultos e aptos ao casamento: preparava-se, portanto, para caçar e para guerrear e, em seguida, para casar. O Osiipo, desta forma, fazia caçadores e guerreiros para fazer maridos: “agora, meu filho, você vai matar caça para sua mulher e para suas irmãs”, diziam os mais velhos aos meninos iniciandos. O signo visível desta capacidade cinegética que tornava os jovens elegíveis e desejáveis para o matrimônio - lembrando-se que o casamento preferencial entre os Karitiana era o avuncular, em que a irmã = sogra (Landin 1989LANDIN, Rachel. 1989. Kinship and naming among the Karitiana of Northwestern Brazil. Master Thesis, University of Texas.; Castro 2018CASTRO, Andréa C. M. de Oliveira. 2018. Koro’op: E-moções, sociabilidade, paisagem e temporalidade entre os Karitiana. Tese de Doutorado, UFJF. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/7569 . Acesso em 10/10/2020.
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) - eram os dentes de macaco acumulados: “[S]e homem não mata nada, se não tem nem dente de macaco, não pode casar” (Karitiana 2018:60). Contam os Karitiana que as cabas (vespas) davam a caça para os caçadores, principalmente macacos, o que deixava os homens alegres por conta dos dentes, pois cada um deles “juntava muito dente de macaco para casar com mulher”. A abundância de dentes com esses jovens caçadores era considerada índice seguro de um bom enlace: “caçador que tem muito dente de macaco não passa fome, ele é caçador, mulher tem muita carne pra comer”.
Os dentes dos macacos parecem, inclusive, ter sido considerados uma forma de riqueza: “era dinheiro”, diz-se, ou “é como o branco que tem dinheiro e dá ouro para a mulher; mulher fica alegre com dente de macaco, colar, pulseira de dente de macaco que recebia do homem”. Conforme Andréa Castro (2018CASTRO, Andréa C. M. de Oliveira. 2018. Koro’op: E-moções, sociabilidade, paisagem e temporalidade entre os Karitiana. Tese de Doutorado, UFJF. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/7569 . Acesso em 10/10/2020.
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:309, itálicos no original), “os mais velhos costumam comparar o homem que, no passado, confeccionava muitos e grandes colares de dentes de macaco - evidências de um exímio caçador - com o ‘branco rico’ que possuía bens, como veículos automotores, ‘carro caro’ e alinham o entendimento de que ‘do mesmo jeito que um branco rico tem qualquer mulher que ele quer, do mesmo jeito era o homem caçador’”. Ao contrário, não dispor, ou dispor de poucos dentes para ofertar às mulheres apontava um homem panema, que era motivo de escárnio, e anúncio jocoso de uma sombria existência solitária: “se homem não tinha dentes de macaco, os outros gozavam dele, diziam ‘- o cara não mata nada’; aí não casava com mulher, não mata nada! Não tem nada, não tem roçado. Mulher gosta de homem que era caçador, tinha roçado”.
Os dentes dos macacos, e apenas desses animais, abatidos pelos jovens caçadores eram incorporados a diversos artefatos, como colares e pulseiras, mas o principal deles eram os cintos (sokoty) que, usados pelos homens nas “festas” (myy͂j), os tornavam “bonito pra mulher”, pois “mulher gosta de homem com muito cinto de dente”. Pude ver um desses cintos, hoje raros entre os Karitiana. O artefato pertence ao xamã Cizino:
De confecção masculina, esses cintos eram também denominados him j̃oj̃ sokotydna, literalmente “cinto de dente de macaco”, em que him j̃oj̃ traduz-se, mais precisamente, como “dente de presas”, pois os macacos são considerados “a carne primeira”, a mais apreciada, “do índio”, espécie de presas prototípicas e carne por excelência (Vander Velden 2012:252 VANDER VELDEN, Felipe. 2012. Inquietas companhias: sobre os animais de criação entre os Karitiana. São Paulo: Alameda.).
As narrativas dão conta de que, antigamente, os homens portavam esses artefatos com um barbante que ocultava o pênis durante as festas, principalmente a da chicha (kytop myy͂j), que também não é mais realizada hoje em dia. Os cintos - dos quais havia brancos e vermelhos, devido à tintura do cordame de algodão - podiam também ser usados no pescoço, como colares, ou nos dois braços, e eram às vezes enfeitados com penas de tucano. Quando exibidos na cintura, podiam subir pelo abdômen acima, evidenciando um caçador “rico”, e um bom partido para o casamento. Havia, ainda, um outro momento em que os homens karitiana portavam esses adornos. O Osiipo é descrito como um treinamento de guerra dos adolescentes: conta-se que o jovem caçador, quando atacava os vespeiros, “era tipo guerra, cantava como na guerra”. O rito fazia “soldados”: “antigamente tem prova, coisa doída, como soldado do exército”. Assim como em outros contextos (Dal Poz 1993DAL POZ, João. 1993. “Homens, animais e inimigos: simetria entre mito e rito nos Cinta Larga”. Revista de Antropologia, 36:177-206.; Lima 1996LIMA, Tânia Stolze.1996 “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”.Mana, 2 (2): 21-47. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131996000200002 . Acesso em 10/03/2021.
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; Garcia 2012GARCIA, Uirá. 2012. “O funeral do caçador: caça e perigo na Amazônia”. Anuário Antropológico, 2011-II:35-55.), caça e guerra constituem-se mutuamente aqui: os Karitiana asseveram que, quando atacavam grupos inimigos (os opok pita, “outro índio”, de quem se diz que “não era gente, era índio”), saíam para “matar caça” (“índio era caça grande”) e, à devoração dos corpos dos contrários mortos seguiam-se, com seus crânios e ossos remanescentes, os mesmos procedimentos aplicados aos despojos dos animais (ver abaixo).
“Bem cedo começava a guerra”, asseveram, associando-se as ferroadas das cabas e a dor provocada por elas aos conflitos com inimigos. Ademais, os Karitiana afirmam que, antes das expedições para matar inimigos - destinadas, em resumo, a fazer “chefes de guerra” (mahipito) - os guerreiros enrolavam na cintura grandes cintos de dentes de macaco (traduzidos, aqui como “cinturão”), que eram parte da elaborada indumentária dos potenciais homicidas (Vander Velden 2011b VANDER VELDEN, Felipe. 2011b. “Banhos de sangue: relatos Karitiána de guerras, canibalismo e troféus humanos”. In: A. S. C, Cabral, A. D. Rodrigues, J. Lopes & M. R. Julião (orgs.), Línguas e culturas Tupí - volume 3/Línguas e culturas Macro-Jê - volume 2. Campinas/Brasília: Editora Curt Nimuendajú/LALI-UnB. pp. 27-58.). Tratava-se, portanto, de uma guerra contra as vespas, que produzia caçadores, homens adultos, maridos desejáveis e preparava os homens para a guerra com seus vizinhos inimigos. Parecia haver, então, um nexo tanto entre os insetos, os homens karitiana e seus inimigos16 16 As vespas são “bravas” e “venenosas” como os inimigos, mas os homens karitiana também deveriam, por meio da “guerra contra as cabas”, assumir as mesmas qualidades, pois é a braveza (sohop, que se distancia de pa’ira, “agressividade descontrolada”) e o amargo-veneno (tapo) dos corpos comunicados às armas que produzem caçadores e guerreiros eficientes. quanto entre a caça e a guerra.
Associações similares são registradas por outras etnografias: os Panará, por exemplo, no ritual em que destroem uma casa de marimbondos com as mãos, consideram os insetos como inimigos humanos, pois ambos “furam” com ferrões ou flechas (Giraldin 1997GIRALDIN, Odair. 1997. Cayapó e Panará: luta e sobrevivência de um povo Jê no Brasil Central. Campinas: Editora da Unicamp.:43-44); e Posey (1997 POSEY, Darrell. 1997. “Etnoentomologia de tribos indígenas na Amazônia. In: B. Ribeiro (ed.), Suma etnológica brasileira - 1: Etnobiologia. Belém: Editora Universitária da UFPA . pp. 297-319.:316) igualmente se refere ao ritual kayapó como uma luta das vespas sociais “contra os índios”, aproximando estes himenópteros, seus ataques agressivos e seus potentes ferrões do modelo do guerreiro ideal (Posey 1981:172POSEY, Darrell. 1981. “Wasps, warriors and fearless men: ethnoentomology of the Kayapó Indians of Central Brazil”. Journal of Ethnobiology, 1(1):165-174.), no que é complementado por Vidal (1977VIDAL, Lux. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os Kayapó-Xikrin do rio Cateté. São Paulo: Hucitec/Edusp.:126) ao mencionar que marimbondos e índios inimigos recebem a mesma denominação entre os Kayapó-Xikrin (mekure-djuoy). Não estamos tratando, parece-me, apenas de uma comparação na qual a dureza das “provas de caba” é vista em paralelo com o treinamento militar dos não índios, pois o Osiipo destinava-se a fazer também guerreiros: por meio da guerra contra as vespas - que se destinava a adquirir seu veneno e sua braveza (os Karitiana denominam “guerra”, em português, a todo tipo de agressão, como, por exemplo, o avanço de uma doença sobre o corpo) - os homens se tornavam venenosos, duros e bravos para a caça e para a luta que, ao fim e ao cabo, funcionam seguindo idêntica operação.
Retornemos, então, para os corpos das vespas ilustrados acima. Os Karitiana apontam que esses insetos portam exatamente cintos ou pulseiras como os que discutimos neste texto: as listras claras em torno do abdômen negro das vespas são cintos de dentes de macaco, versões maiores das pulseiras, que testemunham as habilidades cinegéticas e venenosas dos insetos. Os Karitiana chamam essas vespas “caba bunda branca” ou, na sua língua, gop him j̃oj̃a, termo que literalmente se traduz por “vespa dentes (j̃oj̃) de caça/carne” (him), e afirmam que elas são úteis, em especial, para dar “sorte pra matar macaco” - animal cujos dentes compõem a pulseira no meu braço, e caça/carne (himo, a palavra é a mesma) por excelência entre os Karitiana. Outras variedades de cabas também portam os mesmos adornos dos caçadores-guerreiros humanos; é o caso do gop okyty yjpy, um marimbondo preto e “riscadinho”, comum no verão, e que tem “pintura” que parece cinto de dentes. Essas vespas são “caçadoras”, afirmam os Karitiana, acrescentando que “dente de caça (macaco, cotia, todos) está cheio nesse marimbondo”.
Os marimbondos listrados com os quais se guerreia no Osiipo portam várias voltas de cintos feitos com dentes de presas caçadas. Eles são como caçadores humanos bem-sucedidos, que matam muita caça e, por esta razão, acumulam dentes de animais para a confecção dos cintos. Os Karitiana movem, destarte, uma verdadeira “guerre des dents” (Chaumeil 1985CHAUMEIL, Jean-Pierre. 1985. “Éxchange d’énergie: guerre, identité et reproduction sociale chez les Yagua de l’Amazonie Péruvienne”. Journal de la Société des Américanistes, LXXI:143-157.:152) contra os macacos, a caça por excelência, para se tornarem desejáveis para um bom casamento. Mesmo que o Osiipo tenha sido, como rito geral de iniciação masculina, abandonado, os homens continuam empregando estas vespas como “remédio para não ficar panema”. Na narrativa-modelo, panema revela-se quando o caçador vai para a floresta e não encontra nenhum animal; ao retornar para casa, sua esposa, aborrecida, informa que ninguém vai comer “arroz ou macaxeira, coisa pura”, ou seja, uma refeição sem carne, que não constitui, a rigor, uma refeição. Em um procedimento que me foi descrito para reverter panema (e, de quebra, também a instabilidade conjugal), queima-se uma casa de marimbondos, juntando-se um bom punhado de insetos mortos em um copo. Em seguida, eles são amassados e esfregados nos dedos das mãos, nos braços, na testa e no peito. Feito isso, “caçador não erra nada, mata tudo os bichos”, e é notável constatar que a massa de vespas esmagadas também pode ser passada nas armas de fogo: assim, “o tiro só acerta”. Este procedimento é igualmente denominado de Osiipo.
Se o veneno das cabas torna os caçadores envenenados e infalíveis, o uso de cintos e pulseiras confeccionados com dentes de presas de caça idênticos àqueles portados pelos insetos transforma os guerreiros na imagem das vespas armadas com seus adereços de guerra. Algumas armas, inclusive, como flechas com pontas de metal e zagaias (lanças compridas com pontas metálicas) têm dentes (são chamadas j̃oj̃ ha), e diz-se das facas em geral, quando estão bem afiadas, que o “metal é o dente delas”.
O Osiipo, então, busca a apropriação do amargo-veneno dessas formidáveis caçadoras, mas devem os caçadores humanos também portar os mesmos adornos corporais para que tenham sucesso na caça, na guerra e na vida matrimonial. Por uma lógica comum às várias formas de tratamento dos despojos dos animais caçados, quanto mais cintos e pulseiras - e, portanto, quanto mais dentes de macaco - mais claras e vistosas são as evidências de que um homem é um caçador bem-sucedido. Nesse sentido, esses artefatos de uso pessoal funcionam como as him’o kyryj (que traduzem como “caveira de caça”), crânio de presas abatidas que os homens karitiana penduram amarrados em sequência nos arredores de suas casas, geralmente em árvores próximas.
Os crânios de animais de maior porte também são um meio, ainda comum nos dias de hoje, de exibir as proezas dos caçadores. Diz-se que a prática também ajuda a imobilizar os animais na floresta, tornando-os presas ainda mais fáceis: para isso, pode-se adicionalmente amarrar os ossos com fios de envira, prendendo, deste modo, as pernas dos animais e paralisando-os por completo. A manipulação de crânios e dentes, assim, configura meios de ação sobre os animais de presa, simultaneamente aguçando as capacidades predatórias dos caçadores e entorpecendo ou prejudicando as estratégias de defesa, ataque ou fuga dos animais.
Em vista de tudo isso, os Karitiana afirmam que as pulseiras de dentes de macaco e tucumã são uma versão reduzida e contemporânea dos cintos de dentes, modelos mais apropriados aos usos atuais e, claro, ao comércio. No passado, esses adornos constituíam os presentes do jovem caçador à sua futura esposa que, no “dia do casamento, a menina vinha toda enfeitada com o colar de dentes de macaco, pulseiras de dentes de macaco nos dois pulsos, bracelete de pena de mutum, trazendo sua rede para junto do marido” (Castro 2018CASTRO, Andréa C. M. de Oliveira. 2018. Koro’op: E-moções, sociabilidade, paisagem e temporalidade entre os Karitiana. Tese de Doutorado, UFJF. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/7569 . Acesso em 10/10/2020.
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:340). Colares e pulseiras femininos complementavam-se nos cintos masculinos, formando o casal de sucesso, sempre abastecido de carne em abundância. Mais acima afirmei - reproduzindo o que me informaram os Karitiana - que as pulseiras são atualmente de uso exclusivo dos homens: é por esta razão que, sugiro, elas conformam uma transformação dos velhos cintos de dentes, passando a exibir nos pulsos, e não mais na cintura, a bravura e a eficácia dos caçadores.
Essas pulseiras, por conseguinte, e parafraseando Fabio Mura (2019MURA, Fabio. 2019. À procura do ‘bom viver’: território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os Kaiowa. Rio de Janeiro: ABA Publicações/Laced. :42), comportam-se como infraestrutura material de uma esfera ritual e epistêmica karitiana: assim, elas funcionam como “infraestruturas simbólicas” (Sahlins 1990SAHLINS, Marshall. 1990 [1985]. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar.) que sustentam, hoje, a conexão entre humanos, insetos e os cruzamentos de suas habilidades e potências corporais; ou, em outras palavras, elas são artefatos que não apenas exibem nos corpos dos homens a essência do guerreiro-caçador que se assemelha às ferozes vespas sociais que pretendem emular, mas também condensam uma série de conhecimentos, técnicas e práticas que conectam os Karitiana humanos às cabas, aos macacos e aos demais animais de presa, além de seus inimigos (opok pita, os “outros de verdade”), que são igualmente pensados como presas de caça. Colares, cintos e pulseiras de dentes de macaco constituem, assim, artefatos multiespécies. Tais artefatos fazem referência complexa e direta ao meio ambiente, materializando uma miríade de relações interespecíficas. Dessa maneira, não são apenas objetos tecnicamente vinculados, em sentido estrito, à caça ou à pesca - como as armas (Vander Velden 2011a VANDER VELDEN, Felipe. 2011a. “As flechas perigosas: notas sobre uma perspectiva indígena da circulação mercantil e artefatos”. Revista de Antropologia 54:231-267.), as armadilhas (cf. Gell 1996GELL, Alfred. 1996. “Vogel’s net: traps as artworks and artworks as traps”. Journal of Material Culture, 1(1):15-38.) e os amuletos de caçadores (Hill 2011HILL, Jonathan & CHAUMEIL, Jean-Pierre (eds.). 2011. Burst of breath: indigenous ritual wind instruments in Lowland South America. Lincoln: University of Nebraska Press.) que nos falam da caça e da pesca e dos animais - uma pequena pulseira, objeto aparentemente banal, pode fazê-lo, e com riqueza de detalhes.
Artefatos multiespécies
O rito do Osiipo é destinado a fazer homens crescidos, caçadores e guerreiros, dotando-os com o veneno das vespas, transferido posteriormente de seus corpos para suas flechas de caça e de guerra. Portando cintos de dentes de macaco - assim como sua versão em ponto pequeno, e mais recentes, as pulseiras - os homens mimetizavam as vespas caçadoras, que usam cintos/pulseiras idênticos como se pode notar no padrão de cores de seu abdômen. Ferozes, “bravos (pa’ira) como marimbondo”, asseveram os Karitiana, partiam para a caça e para a guerra na busca por dentes de macaco e por crânios, neste último caso, tanto de animais (como vimos) quanto de humanos-outros (como discuti em Vander Velden 2011b VANDER VELDEN, Felipe. 2011b. “Banhos de sangue: relatos Karitiána de guerras, canibalismo e troféus humanos”. In: A. S. C, Cabral, A. D. Rodrigues, J. Lopes & M. R. Julião (orgs.), Línguas e culturas Tupí - volume 3/Línguas e culturas Macro-Jê - volume 2. Campinas/Brasília: Editora Curt Nimuendajú/LALI-UnB. pp. 27-58.). Cintos e pulseiras de dentes, assim, são como materializações de uma série de atributos de vespas-guerreiros, produzidos e mobilizados no rito do Osiipo, e é partindo desses “objetos” que chegamos ao complexo ritual que, na sua versão mais elaborada, já não é mais realizado.
Distanciando-se da perspectiva inventariante, formalista e descritiva dos estudos de cultura material, as mais recentes abordagens antropológicas dos objetos nas terras baixas da América do Sul vêm enfatizando a agentividade, a subjetividade e a corporeidade dos artefatos, anulando ou diminuindo o fosso ontológico, cavado pelo pensamento ocidental, entre o vivo e o inanimado, o natural e o artefactual, os objetos, os animais, as plantas e outros seres (Barcelos Neto 2002BARCELOS NETO, Aristóteles. 2002. A arte dos sonhos: uma iconografia ameríndia Lisboa: Assírio & Alvim/Museu Nacional de Etnologia. , 2009 BARCELOS NETO, Aristóteles. 2009. “The (de)animalization of objects: food offerings and subjectivization of masks and flutes among the Wauja of Southern Amazonia”. In: F. Santos-Granero (ed.), The occult life of things: native Amazonian theories of materiality and personhood. Tucson: The University of Arizona Press. pp. 128-151.:; van Velthem 2003Van VELTHEM, Lucia. 2003. O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim/Museu Nacional de Etnologia . , 2009Van VELTHEM, Lucia. 2009. “Mulheres de cera, argila e arumã: princípios criativos e fabricação material entre os Wayana”. Mana, 15 (1):213-236. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132009000100008 . Acesso em 10/09/2020.
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; Santos-Granero 2009SANTOS-GRANERO, Fernando (ed.). 2009. The occult life of things: native Amazonian theories of materiality and personhood. Tucson: The University of Arizona Press .; Hill & Chaumeil 2011HILL, Erica. 2011. “Animals as agents: hunting ritual and relational ontologies in prehistoric Alaska and Chukotka”. Cambridge Anthropological Journal, 21(3):407-426.; Goulard & Karadimas 2011GOULARD, Jean-Pierre & KARADIMAS, Dimitri (eds.). 2011. Masques des hommes, visages des dieux: regards d’Amazonie. Paris: CNRS.; Schien & Halbmayer 2014SCHIEN, Stefanie & HALBMAYER, Ernst. 2014. “The return of things to Amazonian anthropology: a review”. Indiana, 31:421-437. Disponível em: Disponível em: https://www.iai.spk-berlin.de/fileadmin/dokumentenbibliothek/Indiana/Indiana_31/IND_31_2014_421-437_Schien-Halbmayer.pdf . Acesso em 10/08/2021.
https://www.iai.spk-berlin.de/fileadmin/...
; Fortis 2014FORTIS, Paolo. 2014. “Artefacts and bodies among Kuna people from Panamá”. In: E. Hallam & T. Ingold (eds.), Making and growing: anthropological studies of organisms and artefacts. Farnham: Ashgate. pp. 89-106.; Miller 2018MILLER, Joana. 2018. As coisas: os enfeites corporais e a noção de pessoa entre os Mamaindê (Nambiquara). Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj.). Meu ponto neste artigo, contudo, é enfatizar o caráter compósito de muitos dos objetos indígenas, e como tais composições de múltiplos materiais e das diferentes histórias e distintas modalidades de agência desses mesmos materiais capturam e tornam concretas relações de natureza etológica ou ecológica. Ou seja, para além de pensar nas coisas ameríndias como “artefatos subjetivados” (Barcelos Neto 2009:128 BARCELOS NETO, Aristóteles. 2009. “The (de)animalization of objects: food offerings and subjectivization of masks and flutes among the Wauja of Southern Amazonia”. In: F. Santos-Granero (ed.), The occult life of things: native Amazonian theories of materiality and personhood. Tucson: The University of Arizona Press. pp. 128-151.:), trata-se de considerá-los como operadores técnico-materiais de relações, nos limites de um perpétuo jogo de permutações entre corpos humanos, animais, vegetais e artefactuais. Mais do que somente “objetos como testemunhos do contato cultural” (Kraus et al. 2018KRAUS, Michael; HALBMAYER, Ernst & KUMMELS, Ingrid (eds.). 2018. Objetos como testigos del contacto cultural: perspectivas interculturales de la historia y del presente de las poblaciones indígenas del alto río Negro (Brasil/Colombia). Berlim: Ibero-Amerikanisches Institut Preußischer Kulturbesitz/Gebr. Mann Verlag (Estudios Indiana 11).), quero sugerir que temos, em muitos exemplares, testemunhos dos contatos interespecíficos.
Seguindo análises que efetuei em trabalhos anteriores (Vander Velden 2011a VANDER VELDEN, Felipe. 2011a. “As flechas perigosas: notas sobre uma perspectiva indígena da circulação mercantil e artefatos”. Revista de Antropologia 54:231-267., 2020 VANDER VELDEN, Felipe. 2020. “Entre la serpiente y la arpía: apuntes para una zoología karitiana en el suroeste de la Amazonía brasileña”. In: C. Medrano & F. Vander Velden (orgs.), Qué es un animal? Buenos Aires: Asociación Civil Rumbo Sur. pp. 45-61.), as flechas karitiana também podem ser abordadas como artefatos multiespécies,17 17 Ao tomar os artefatos multiespécies como “objetos” que articulam permutações materiais (corporais) e semiótico-simbólicas entre humanos e não humanos, talvez fosse mais preciso denominá-los de artefatos interespécies. Não obstante, conservo o termo multiespécie de modo a vincular minha proposta às discussões de que é caudatária. ao se levar em conta a complexidade do que elas dizem sobre serpentes e gaviões-reais, e vice-versa. Flechas (especialmente as bokore, “flechas-fêmea”, de pontas lanceoladas de taquara apropriadas para caças de grande porte) são compósitos de cobras (boroja), que performam a eficácia venenosa de suas afiadas pontas de taquara, e de harpias (pytpyrĩ), que emprestam sua ferocidade e precisão à emplumação feita com suas penas. Nesse sentido, há muito a saber sobre as relações entre os Karitiana e esses seres, répteis e aves, em larga medida complementares: as flechas, enfim, poderiam ser definidas como “serpentes emplumadas”18 18 Imagem que emprego a título de ilustração, e que nada tem que ver, advirto logo, com Quetzalcoátl, a conhecida serpente emplumada mesoamericana. (ver Vander Velden 2020 VANDER VELDEN, Felipe. 2020. “Entre la serpiente y la arpía: apuntes para una zoología karitiana en el suroeste de la Amazonía brasileña”. In: C. Medrano & F. Vander Velden (orgs.), Qué es un animal? Buenos Aires: Asociación Civil Rumbo Sur. pp. 45-61.).
Há algo também nas flechas a se conhecer sobre as próprias cabas (vespas) que fazem caçadores letais e homens adultos núbeis nos momentos rituais do Osiipo. Isto porque, observam os Karitiana, as pontas de flecha são envenenadas, amargas (tapo) e, caso não sejam regularmente alimentadas com o sangue de suas presas, deterioram-se, “apodrecem”, transformando-se em toda uma sorte de seres peçonhentos: aranhas, lacraias, escorpiões, formigas... e vespas.19 19 Lucas Ciola (2019:123) sugere que uma categoria abrangente para os insetos na língua karitiana seria kida ‘it/kinda ‘it, que ele traduz como “bichos pequenos”, mas que, em nota, aventa também a possibilidade de verter o termo como “filho/larva de bicho”, apontando justamente para as ações predatórias desses seres, muitos dos quais picam, ferroam, sugam e machucam. É interessante que as vespas emerjam das pontas de flecha de taquara, o que talvez permita associar ferrões (armas animais) e armas (humanas). Entre os Yanesha, no começo dos tempos, o atual ferrão das vespas era uma lança (Santos-Granero 2011:201). De fato, todos esses seres agressivos e venenosos surgem, conforme o mito de origem das serpentes, da metamorfose das lascas de uma ponta de flecha de taquara sendo amolada por Orowo, um índio de um grupo inimigo raptado pelos Karitiana quando criança (Vander Velden 2011a:242-243 VANDER VELDEN, Felipe. 2011a. “As flechas perigosas: notas sobre uma perspectiva indígena da circulação mercantil e artefatos”. Revista de Antropologia 54:231-267.).
Neste artigo, sugiro que objetos como os cintos e as pulseiras são artefatos multiespécies, a partir de, talvez, dois pontos de vista: primeiro, porque a pulseira agrega partes dos corpos de uma planta (o tucumã) e de um animal (o macaco-prego). Mas também porque, da perspectiva dos Karitiana, estas pulseiras conectam os homens às vespas, aos macacos e aos animais de presa em geral: com elas, os caçadores se tornam vespas (pois usam os mesmos adornos corporais desses insetos), precisos, agressivos e venenosos como elas, especializando-se, neste caso, sobretudo na caça de macacos, mas também de outras presas, incluindo opok pita. Podemos ler e conhecer as relações multiespecíficas dos Karitiana neste pequeno e aparentemente banal objeto, que age como uma espécie de chave comutadora que permite “traduzir”, por assim dizer, relações entre um conjunto de seres de naturezas distintas.
Chamo objetos como estes de artefatos multiespécies, porque eles constituem um dos muitos aspectos que conformam as relações entre seres humanos e outros-que-humanos: evidências materiais dos encontros materiais e/ou simbólico-semióticos entre uns e outros. Nesse sentido, sugiro olhar para essas peças como mais do que expressões de relações apenas entre grupos humanos (neste caso, indígenas e não indígenas) - como artefatos transculturais ou mesmo multiétnicos, poderíamos dizer. Trata-se, desta forma, de introduzir um outro termo (ou outros termos) numa relação pensada, até o momento, como apenas intra-humana (ainda que interétnica). A pergunta, então, é a que segue: de que forma tais objetos, confeccionados com corpos e partes de corpos de animais, combinam humanos e não humanos, veiculam conhecimentos e conteúdos semiótico-simbólicos sobre estes seres, e configuram relações entre eles e/ou permitem analisar e compreender essas mesmas relações - sendo naturalmente eles mesmos um certo tipo de não humano?
Poder-se-ia dizer que essas pulseiras são uma tradução artefactual de conhecimentos etológicos e ecológicos. Conforme observou Lévi-Strauss (1997:42)LÉVI-STRAUSS, Claude. 1997[1962]. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus. sobre a famosa clava Haida de cedro, matadora de peixes, que conservava em sua biblioteca: “[...] tudo parece estrutural nesse utensílio, que é também uma maravilhosa obra de arte: tanto seu simbolismo mítico quanto sua função prática. Mais exatamente, o objeto, sua função e seu símbolo parecem dobrados um sobre o outro, formando um sistema fechado [...]”. Arrisco-me a dizer o mesmo das pulseiras karitiana, mas talvez, ao sugerir que elas são transformações dos antigos cintos de dentes de macaco, tenha que conceder que o fato ou as circunstâncias históricas tiveram a chance de se introduzir no sistema, reduzindo suas dimensões e readequando suas funções e seus circuitos biográficos: agora não mais adornando a cintura de guerreiros e matadores, mas o pulso dos jovens líderes karitiana na luta por seus direitos étnicos e no de turistas e antropólogos fascinados pela arte indígena.
O que tais artefatos podem nos dizer da qualidade e da história das relações interespecíficas, para além do que dizem sobre as “circunstâncias históricas” do contato? Podemos tomar tais objetos como evidências tangíveis do encontro e da contaminação recíproca entre dois (ou mais) mundos distintos, humanos (de diferentes tipos) e outros-que-humanos (também de uma enormidade de tipos variados)? É possível investigar tais peças como expressões materiais das relações entre humanos e animais? Sabemos há tempos que, por meio de suas biografias (Appadurai 1986APPADURAI, Arjun (ed.). 1986. The social life of things: commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press.), objetos podem ser pensados como complexos sistemas de comunicação; adornos corporais, em particular, podem ser poderosos veículos de múltiplas informações sobre etnicidade, classe, gênero, região, status político e ritual (Mărgărit & Boroneanţ 2020MĂRGĂRIT, Monica & BORONEANŢ, Adina (eds.). 2020. Beauty and the eye of the beholder: personal adornments across the millennia. Târgovişte: Cetatea de Scaun. ). Por que não podemos igualmente extrair de seu estudo o que potencialmente informam sobre relações entre espécies?
Partindo dos objetos, e na sequência da dissecação de suas matérias-primas constituintes, agregam-se histórias e as conexões do mesmo objeto com seres outros-que-humanos por meio da análise de seus contextos de origem, produção, decoração, significado e uso. Com isso, imagino haver uma via de acesso para entender o que representam ou presentificam, o que mobilizam, o que informam, e de que modo criam e movimentam relações entre distintos seres humanos e não humanos que são criados por elas, ou falam sobre elas ao mesmo tempo em que elas, as interações multiespécies, falam sobre eles. Na verdade, o que temos nesses artefatos são “relational ensembles”, que são “simultaneously objects to be interpreted and methods of interpretation” (Kockelman 2016KOCKELMAN, Paul. 2016. The chicken and the quetzal: incommensurate ontologies and portable values in Guatemala’s cloud forest. Durham: Duke University Press.:4). Trata-se, portanto, de objetos que materializam relações diversas - caça, domesticação, familiarização, coleta, convívio, dominação, exploração, conhecimento, transformações e muitas outras - entre certos grupos humanos e coletivos de não humanos, informando-nos sobre posições cosmológicas, interações técnicas, considerações éticas e percepções estéticas de animais e plantas, que se desdobram em contextos multiespecíficos de interação (Ingold 2000INGOLD, Tim. 2000. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling, and skill. London: Routledge . ), em que uma miríade de seres constituem-se mutuamente por meio de suas (inter)ações e relações.
Isto vai ao encontro a um aspecto ainda pouco abordado pelos estudos das interações entre humanos e animais inaugurados com a assim chamada virada animal ou animalista: a saber, sua dimensão material, relativa aos objetos que, como outro tipo de ente não humano, conectam ou vinculam distintas espécies, material e/ou simbolicamente e/ou epistemologicamente, e expressam, a seu modo, formas variadas de relação. Parece-me, assim, serem esses artefatos multiespécies como “ensembles of social relations, semiotic practices, and material processes” (Kockelman 2016KOCKELMAN, Paul. 2016. The chicken and the quetzal: incommensurate ontologies and portable values in Guatemala’s cloud forest. Durham: Duke University Press.:4), e alinho-me, desta forma, com uma rica corrente de estudos que, na esteira das proposições iniciais de Latour (2007LATOUR, Bruno. 2007. Reassembling the social: an introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford University Press.) e Haraway (2008HARAWAY, Donna. 2008. When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press.), vem etnografando complexas redes de conectividade que vinculam humanos, animais, plantas, objetos e outros entes ditos não humanos, mais-que-humanos ou outros-que-humanos (para propostas semelhantes, ver Watts 2013WATTS, Christopher (ed.). 2013. Relational archaeologies: humans, animals, things. London: Routledge .; Hallam & Ingold 2014HALLAM, Elizabeth & INGOLD, Tim (eds.). 2014. Making and growing: anthropological studies of organisms and artifacts. London: Routledge.). Penso, então, que objetos produzidos com partes de corpos animais (couro, pele, dentes, ossos, penas, bicos, garras, nervos, órgãos internos ou seus produtos e excreções) e aqueles empregados nas interações com animais (coleiras, laços, selas, seringas, gaiolas, roupas, ração, cambões, dardos, facas, ganchos, arcos e flechas, zarabatanas, clavas e muitos e muitos outros) têm muito a nos dizer sobre as relações multiespécies que constituem mutuamente nossos mundos sociais.
Se os animais passam a ser visualizados como sujeitos co-constituintes da vida social - pensada, até recentemente, como exclusivamente fundada e operada por seres humanos - isto implica reavaliarmos as expressões materiais de nossas relações com a multiplicidade desses seres. Com efeito, tal movimento parece relativamente avançado no tocante à reavaliação da posição da matéria cárnea e outros produtos de origem animal e seu consumo em nossas práticas cotidianas e nas reflexões sobre as mesmas. Também encontramos alguma coisa relativa ao que poderíamos chamar - parafraseando David Anderson et al. (2017ANDERSON, David; LOOVERS, Jan Peter; SCHROER, Sara & WISHART, Robert. 2017. “Architectures of domestication: on emplacing human-animal relations in the North”. Journal of the Royal Anthropological Institute (N. S.), 23:398-418. Disponível em: Disponível em: https://rai.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-9655.12613_1 . Acesso em 10/04/2021.
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) - de artefatos da domesticação: estruturas, ferramentas, aparelhos e máquinas cuja materialidade em si mesma funciona como propiciadora de um certo tipo de encontro entre humanos e animais - artefatos que se prestam unicamente para controlar, dominar e subjugar os animais, retirando-se destes toda e qualquer agência (Hansen 2014aHANSEN, Paul. 2014a. “Becoming bovine: mechanics and metamorphosis in Hokkaido’s animal-human-machine”. Journal of Rural Studies, 33:119-130. Disponível em: Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0743016713000107 . Acesso em 10/06/2021.
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, 2014b HANSEN, Paul. 2014b. “Hokkaido’s frontiers: blurred embodiments, shared affects and the evolution of dairy farming’s animal-human-machine”. Critique of Anthropology, 34 (1):48-72. Disponível em: Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0308275X13510186 . Acesso em 08/06/2021.
https://journals.sagepub.com/doi/abs/10....
; Pires 2015PIRES, Pedro Stoeckli. 2015. Laços brutos: vaqueiros e búfalos no baixo Araguari - Amapá. Tese de Doutorado, DAN/UnB. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/19941 . Acesso em 22/10/2020.
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https://www.journals.uchicago.edu/doi/fu...
) - e cuja análise, hoje, tem buscado superar o conteúdo eminentemente assimétrico das interpretações correntes sobre a domesticidade. No entanto, muito ainda resta por ser feito no tocante às evidências materiais ou à materialização das relações humanos-animais em diferentes contextos, assumindo-se plenamente uma abordagem mais horizontal da natureza destas mesmas relações. Que os animais têm muito a fazer e ensinar, sabemos bem; que isto possa ser feito por meio de artefatos ainda é tarefa a cumprir.
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Notas
-
1
Este artigo baseia-se em pesquisa de campo entre os Karitiana, com os quais passei cerca de 18 meses, distribuídos de forma intermitente entre 2003 e 2015. As reflexões aqui avançadas contaram com a inestimável colaboração da entomóloga Marjorie da Silva, do Laboratório de Vespas Sociais do Departamento de Zoologia e Botânica, Ibilce - Unesp, São José do Rio Preto - SP. Também agradeço as leituras e os comentários de Andréa Osório, Miriam Adelman e aos demais participantes do ST 35 - Relações Humano-Animal: Presente, Passado e Futuros Possíveis, realizado no âmbito do 43º Encontro Anual da Anpocs, em 2019, no qual uma versão preliminar deste texto foi apresentada. Por fim, registro as generosas contribuições de Pedro Lolli, Luciana Storto, Lucas Ciola, Marina Fontanelli e, muito especialmente, de Piero Leirner.
-
2
No interior da T.I. estão as aldeias Central (Kyõwã, a maior e mais antiga), Bom Samaritano, Caracol, Beijarana e São Francisco. Fora localizam-se as aldeias do Rio Candeias (Byyjyty ‘Osop Aky) e Juari (ou Igarapé Preto).
-
3
Costa (2009:81)COSTA, Anna M. R. da. 2009. Além do artefato: cultura material e imaterial Nambiquara. Cuiabá: Editora da UFMT. observa acerca dos colares de contas pretas feitas de coco de tucum (A3lo3ke1su2) pelos Nambiquara do cerrado que são “peças de grande valor, por levar em consideração as etapas e os esforços que sua confecção requer”. Note-se que os Nambiquara confeccionam adereços de pulso (Ho3sa3ne1su2) de coco de tucum intercaladas com dentes de macaco muito semelhantes às pulseiras karitiana discutidas neste artigo (ver ilustração em Costa 2009:88COSTA, Anna M. R. da. 2009. Além do artefato: cultura material e imaterial Nambiquara. Cuiabá: Editora da UFMT.).
-
4
Há apenas uma ressalva a ser feita aqui: a ideia de multiespécies faz óbvia referência às (muitas) relações entre espécies, embora seja certo que os Karitiana não manejem o conceito de espécie tal como operado pelas Ciências Biológicas. Trata-se, afinal de, ao menos neste momento (antes de uma revisão, mais do que necessária, do modo como a Antropologia trata a noção de espécie), tomar a ideia de interação entre uma multiplicidade de seres distintos, humanos e não humanos, categorizados de formas diferentes nas diversas ontologias. Macacos, para os Karitiana, são himo, termo que é, às vezes, genericamente empregado para designar o que chamamos de “animais”, mas que se traduz literalmente como “carne/presa de caça” e se emprega, de modo mais restrito, apenas para os seres que são caçados para servir de alimento - animais domésticos e aqueles de consumo interdito, por exemplo, não são himo (cf. Vander Velden 2012:242-264 VANDER VELDEN, Felipe. 2012. Inquietas companhias: sobre os animais de criação entre os Karitiana. São Paulo: Alameda.). O tucumã, assim como outras árvores (‘ep, “pau”, mas também “osso”), não é uma presa de caça e, assim, pode-se dizer, constitui “outra espécie” de ente. Deste modo, posso tratar a pulseira como um artefato multiespécies no sentido de que agrega, em sua composição, dois seres distintos (macacos e tucumãs), além de vários outros (sobretudo humanos e vespas) cuja conexão com o objeto este artigo pretende descortinar.
-
5
O Osiipo já foi descrito e analisado por um conjunto de trabalhos (Storto 1996STORTO, Luciana. 1996. Livro de apoio ao aprendizado da ortografia Karitiana. Porto Velho, mimeo (inédito)., 2019 STORTO, Luciana. 2019. Línguas indígenas: tradição, universais e diversidade. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp.; Vander Velden 2004:51-54VANDER VELDEN, Felipe. 2004. Por onde o sangue circula: os Karitiana e a intervenção biomédica. Dissertação de Mestrado, IFCH/UnicamP.; Araújo 2014:84-85ARAÚJO, Íris. 2014. Osikirip: os “especiais” Karitiana e a noção de pessoa ameríndia. Tese de Doutorado, FFLCH/USP. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-05082015-142648/pt-br.php. Acesso em 30/02/2021.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive... ; Karitiana 2018KARITIANA, Edelaine Om Etepãrãrã. 2018. Kerep õwã aopika: a educação Karitiana antes da criação da escola. Ji-Paraná: Deinter/Unir.). Luciana Storto prepara a publicação de uma detalhada narrativa do Osiipo recolhida com o pajé Cizino Karitiana em 1992, cujo manuscrito ela gentilmente me cedeu e foi recentemente publicado (Storto 2022 STORTO, Luciana. (org.). 2022. Não havia mais homens. São Paulo: Hedra.). Pelo fato de não ser realizado há décadas, a análise aqui é integralmente baseada em relatos orais e entrevistas. Ver Vilaça (1992)VILAÇA, Aparecida. 1992. Comendo como gente: formas do canibalismo Wari’. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. para um exemplo primoroso de etnografia de um ritual baseada apenas nas descrições de seus antigos participantes. Além de estarmos tratando de reminiscências de um processo ritual abandonado, é necessário reconhecer que várias das conexões propostas aqui não são explicitamente evocadas pelos Karitiana, mas decorrem do encadeamento de associações recolhidas nos discursos e nas práticas deste povo indígena que me permitem, penso, propor um nexo entre os objetos, o ritual e os seres humanos e outros-que-humanos com eles envolvidos. Trata-se, assim, de hipóteses. Subscrevo, deste modo, a clássica advertência de Malinowski sobre o trabalho etnográfico: é necessário estar atento não apenas ao que as pessoas dizem que fazem, mas também ao que fazem e ao que pensam que fazem. Esta atenção franqueia hipóteses explicativas que estão além dos enunciados nativos tomados em sua literalidade. De fato, desconheço um indígena que, por exemplo, se afirme perspectivista ou animista e, como disse Jorge Luis Borges, o real não tem a obrigação de ser interessante, obrigação que cabe, antes, às hipóteses sobre ele. -
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Storto (2019:153) STORTO, Luciana. 2019. Línguas indígenas: tradição, universais e diversidade. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp. aponta que o ritual ocorria pela primeira vez aos 10 anos de idade, e eu registrei a mesma idade, com um adendo de que acontecia quando os rapazes “arrumavam noiva ou mulher”.
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Quando falam português, os Karitiana empregam indistintamente as palavras caba (de origem Tupi, mas brasileirismo do português amazônico) e marimbondo (de origem nas línguas da África meridional), nunca o termo vespa (cf. Lenko & Papavero 1996:147, 158-163LENKO, Karol & PAPAVERO, Nelson. 1996. Insetos no folklore. São Paulo: Editora Plêiade/Fapesp.).
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Um corpo cheiroso atrai os animais de presa, contrapondo-se ao corpo podre e fétido do caçador panema (naam, um dos termos para panema, traduz-se literalmente como “podre”; nãm = podre, em Landin 1983:111LANDIN, David. 1983. Dicionário e léxico Karitiana/Português. Brasília: SIL.). Jara (1996a:288)JARA, Fabiola. 1996a. El camino del kumu: ecología y ritual entre los Akuriyó de Surinam. Quito: Abya-Yala . sugere, de modo geral (mas partindo de seu material Akuriyó no Suriname), que talvez o caçador, para ter sucesso, deva misturar seu sangue com o “fogo líquido” das vespas, alterando, assim, sua carne - tal qual o fogo de cozinha altera as carnes para consumo, despojando-as do seu odor característico e, assim, como que apagando a identidade do que se come.
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Dois passarinhos cujo consumo nesta fase é recomendado são o ij̃aj̃o (“passarinho pintadinho”) e o morondeko (“verdinho”): essas duas aves (não identificadas) são consideradas mensageiros, trazendo aos caçadores avisos sobre a presença de presas. O pássaro piisomo (não identificado, que traduz como “pé vermelho”) também era prescrito, pois, como os demais, não faz barulho. Existe uma controvérsia em relação ao consumo do ij̃aj̃o, pois alguns dizem que, como ele canta bastante, seu “zoado” espanta as presas.
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Preparava-se uma mistura de marimbondos amassados com sojoty (“folha que coça”), ewoketo (uma casca de pau), gosonderepo (uma folha), osiip tepy (“cipó do osiipo”, “folha podre”) e pasy͂ (uma raspa de casca)”, todos considerados “remédios de caçador”.
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Eparaka’epo (eparaka = trovão, relâmpago + ‘ep = tronco, madeira; o nome vem de trovão pois o remédio de sua casca mata doenças com um raio) e boroja hyypo (lit. “cobra-liso”, pois o tronco é liso - hyywa - como cobra - boroja). Raspas da casca dessas árvores são amplamente empregadas como “remédios” pelos Karitiana, para os quais a pele lisa é um dos mais confiáveis índices de boa saúde e vitalidade.
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Um tipo de marimbondo grande (comparado a uma “formiga tocandeira preta grande, formigão, com asa”) chamado dopĩ kendo é utilizado para fazer cachorro caçador: amassa-se o inseto sem a cabeça, mistura-se com certas folhas e passa-se no cão.
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Ciola (2019:120)CIOLA, Lucas. 2019. Léxico ilustrado pedagógico de plantas e animais Karitiana. Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8139/tde-28022020-145739/pt-br.php . Acesso em 19/03/2021.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive... sugere traduzir kinda como “predador”. -
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Segundo Posey (1997:316) POSEY, Darrell. 1997. “Etnoentomologia de tribos indígenas na Amazônia. In: B. Ribeiro (ed.), Suma etnológica brasileira - 1: Etnobiologia. Belém: Editora Universitária da UFPA . pp. 297-319., a espécie de vespa “mais poderosa e agressiva” empregada pelos Kayapó em seu ritual de ataque aos ninhos é, justamente, Polybia liliacea (amuh-djà-kên).
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Note-se, todavia, que estes artrópodes (abelhas, formigas e vespas) que a taxonomia agrega na ordem Hymenoptera (na classe Insecta) são bastante diferenciados dos pontos de vista indígenas (Rojas Zolezzi 2002:211ROJAS ZOLEZZI, Enrique. 2002. “Las clasificaciones Ashaninka de la fauna del piedemonte central: un caso de diferentes niveles de aproximación”. Bulletin de l’Institut Français d’Études Andines, 31 (2):185-212. Disponível em : Disponível em : https://journals.openedition.org/bifea/6468 . Acesso em 10/08/2020.
https://journals.openedition.org/bifea/6... ), e Lévi-Strauss (2004:73-74, 264) LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004 [1967]. Do mel às cinzas. São Paulo: Cosac Naify. evidenciou a oposição no pensamento indígena entre vespas e abelhas a partir da experiência (respectivamente tóxica ou sadia) com seus distintos méis. Por outro lado, parece haver nas terras baixas conexões instigantes entre a dor, a pimenta, o veneno (num complexo sensorial que agrega picante-quente-amargo-venenoso-doloroso) e um conjunto de seres peçonhentos como vespas, abelhas, formigas, aranhas, escorpiões e serpentes, além de certas plantas. Landin (1983:148)LANDIN, David. 1983. Dicionário e léxico Karitiana/Português. Brasília: SIL. registra soj como termo para “pimenta”; assim, sojoty poderia ser traduzido como “pimenta grande”. -
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As vespas são “bravas” e “venenosas” como os inimigos, mas os homens karitiana também deveriam, por meio da “guerra contra as cabas”, assumir as mesmas qualidades, pois é a braveza (sohop, que se distancia de pa’ira, “agressividade descontrolada”) e o amargo-veneno (tapo) dos corpos comunicados às armas que produzem caçadores e guerreiros eficientes.
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Ao tomar os artefatos multiespécies como “objetos” que articulam permutações materiais (corporais) e semiótico-simbólicas entre humanos e não humanos, talvez fosse mais preciso denominá-los de artefatos interespécies. Não obstante, conservo o termo multiespécie de modo a vincular minha proposta às discussões de que é caudatária.
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Imagem que emprego a título de ilustração, e que nada tem que ver, advirto logo, com Quetzalcoátl, a conhecida serpente emplumada mesoamericana.
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Lucas Ciola (2019:123)CIOLA, Lucas. 2019. Léxico ilustrado pedagógico de plantas e animais Karitiana. Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8139/tde-28022020-145739/pt-br.php . Acesso em 19/03/2021.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive... sugere que uma categoria abrangente para os insetos na língua karitiana seria kida ‘it/kinda ‘it, que ele traduz como “bichos pequenos”, mas que, em nota, aventa também a possibilidade de verter o termo como “filho/larva de bicho”, apontando justamente para as ações predatórias desses seres, muitos dos quais picam, ferroam, sugam e machucam. É interessante que as vespas emerjam das pontas de flecha de taquara, o que talvez permita associar ferrões (armas animais) e armas (humanas). Entre os Yanesha, no começo dos tempos, o atual ferrão das vespas era uma lança (Santos-Granero 2011:201 SANTOS-GRANERO, Fernando. 2011. “Beinghood and people-making in native Amazonia. A constructional approach with a perspectival coda”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 2 (1):181-211.).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Set 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
20 Mar 2021 -
Aceito
30 Mar 2022