Acessibilidade / Reportar erro

REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO ACADÊMICA NA EDUCAÇÃO FÍSICA À LUZ DAS TECNOLOGIAS DE SI EM FOUCAULT

REFLEXIONES SOBRE LA FORMACIÓN ACADÉMICA EN EDUCACIÓN FÍSICA A LA LUZ DE LAS TECNOLOGÍAS DEL YO EN FOUCAULT

Resumo

Este artigo busca respaldo nas concepções foucaultianas de ética e estética da existência para compor reflexões sobre a formação acadêmica na Educação Física. Como guisa à mobilização desse intento, se contextualiza a noção de “tecnologias de si”, encontrada na última etapa da obra de Michel Foucault. Na sequência, traçam-se aproximações, heterogêneas e diferenciais, entre a problemática ética colocada à constituição do sujeito e a formação acadêmica. Ainda que essas aproximações devam ser vistas com cautela - para não tomar as práticas de constituição dos sujeitos antigos como origem longínqua para forjar e explicar um modelo formativo para os sujeitos modernos - tais aproximações apontam para outras racionalidades não-hegemônicas que se contrapõem às lógicas capacitativas comumente atribuídas à formação acadêmica, que tendem a ser reduzidas apenas a seus aspectos instrumentais. Deste modo, as reflexões que aqui se avizinham não afirmam teorias gerais, tampouco verdades boas ou ruins sobre a formação, mas dão visibilidade para a composição de práticas discursivas e não-discursivas alternativas de elaboração e lapidação de si, estabelecidas nos jogos de força que as sustentam ao longo do percurso formativo.

Palavras-chave:
Tecnologias de si; Educação Física; Formação; Processo de Subjetivação.

Resumen

Este artículo busca apoyo en las concepciones de Foucault sobre ética y estética de la existencia para reflexionar sobre la formación académica en Educación Física. Como guía para esta reflexión, se contextualiza la noción de 'tecnologías del yo', que se encuentra en la última etapa de la obra de Michel Foucault. Posteriormente, se establecen aproximaciones heterogéneas y diferenciales entre la cuestión ética planteada en la constitución del sujeto y la formación académica. Aunque estas aproximaciones deben ser vistas con cautela - para no considerar las prácticas de constitución de sujetos antiguos como un origen lejano para forjar y explicar un modelo formativo para los sujetos modernos - tales aproximaciones apuntan a otras racionalidades no hegemónicas que se oponen a las lógicas capacitativas comúnmente atribuidas a la formación académica, que tienden a reducirse a sus aspectos instrumentales. De esta forma, las reflexiones que aquí se adelantan no afirman teorías generales ni verdades absolutas sobre la formación, pero dan visibilidad a la composición de prácticas alternativas, discursivas y no discursivas, de elaboración y transformación del yo, establecidas en los juegos de fuerza que las sustentan a lo largo del camino de la formación.

Palabras clave:
Tecnologías del yo; Educación Fisica; Formación; Proceso de subjetivación.

Abstract

This article seeks support in Foucault’s conceptions of ethics and aesthetics of existence to compose reflections on academic training in Physical Education. As a way to mobilize this intent, the notion of “technologies of the self”, found in the last stage of Michel Foucault’s work, is contextualized. Next, heterogeneous and differential approximations are outlined between the ethical problem posed to the constitution of the subject and academic training. Although these approximations must be seen with caution - in order not to take the constitution practices of ancient subjects as a distant origin to forge and explain a formative model for modern subjects - such approximations point to other non-hegemonic rationalities that oppose the enabling logics commonly attributed to academic training, which tend to be reduced to its instrumental aspects only. In this way, the reflections ahead here do not affirm general theories, nor good or bad truths about training, but give visibility to the composition of alternative discursive and non-discursive practices of elaboration and shaping of the self, established in the power dynamics that support them throughout the formative journey.

Keywords:
Technologies of the self; Physical Education; Training; Process of Subjectivation.

1 INTRODUÇÃO

Em que se considerem outras abordagens que também o façam, este artigo discute, através das contribuições foucaultianas ligadas às tecnologias de si, outra abordagem à formação na Educação Física. Para tanto, ele parte da seguinte delimitação problemática: os discursos e práticas acerca da formação acadêmica, não raras vezes, se concentram na afirmação de aspectos instrumentais que preparem os alunos dentro de certo sistema de produção e atuação profissional. Dentro dessa ótica, a formação é entendida como processo de capacitação, preparação e habilitação, que assegura a conquista de certo “saber fazer”, sem o qual o percurso acadêmico parece não ter sentido. No entanto, não se pode reduzir a formação a dita figura instrumental.

Na leitura de Imbernón (2010)IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. São Paulo: Cortez, 2010., essa disposição formativa capacitativa está a serviço de uma política acadêmica mercantil que, no esforço de transformar a formação em mercadoria, resume drasticamente o processo formativo, pautando-se em sistemas de ensino excessivamente conteudistas que demarcam o protagonismo dos conhecimentos teóricos, objetivos e disciplinares na aquisição e habilitação das competências profissionais.

Tendo em vista esse cenário acerca da formação, interessa-nos apresentar algumas reflexões que oportunizem a visualização de outras perspectivas não puramente capacitativas mas sensíveis à dinâmica visceral e intensiva que se estende ao longo de um percurso formativo e que, por demandar pelo labor criativo operado pelo sujeito sobre si mesmo, alcança o nível de certa estilística da existência em processo de composição ao longo da vida.

Antes, porém, para que a afirmação desta proposta reflexiva não tome o lugar de uma verdade última acerca da problemática da formação acadêmica - reiterando dicotomias que se assentem no jogo entre o verdadeiro e o falso, ou ainda, na discussão sobre a formação boa ou ruim - cabe ressaltar que o percurso que aqui se faz aponta para outras racionalidades não-hegemônicas, que se colocam no jogo de contraposição com as lógicas capacitativas comumente atribuídas à formação acadêmica, de modo a visibilizar a composição de práticas discursivas e não-discursivas alternativas de elaboração e lapidação de si ao longo do percurso formativo.

Para balizar essas discussões, partimos da noção de “tecnologias de si”, encontrada na última etapa da obra de Michel Foucault, o que permitiu a delimitação do seguinte questionamento: quais movimentos a problemática ética colocada à constituição do sujeito por Michel Foucault nos convida a pensar acerca da formação acadêmica em Educação Física?

Frente à afirmação dessa problemática, o que vai interessar, doravante, é a composição de leituras mais amplas acerca da formação, que não digam respeito unicamente à mera aquisição de habilidades e capacidades específicas mas que coloquem o sujeito em processo de intensificação de si, ou seja, em relação estética, ética e existencial com aquilo que quer tomar para si.

2 TECNOLOGIAS DE SI

Tecnologias de si referem-se às ações “exercidas de si para consigo mesmo [...]. Daí uma série de práticas que são, na sua maioria, exercícios” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 14-15). Assim, enquanto práticas, as tecnologias de si entram na composição de “certos modos de treinamento e modificação dos indivíduos, não apenas no sentido óbvio de aquisição de certas habilidades, mas também de aquisição de certas atitudes” (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Tecnologias de Si, 1982. Verve, n. 6, p 321-360, 2004. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5017/3559. Acesso em: 17 jul. 2023.
https://revistas.pucsp.br/index.php/verv...
, p. 324).

Com o tema das “tecnologias de si”, Foucault (2004)FOUCAULT, Michel. Tecnologias de Si, 1982. Verve, n. 6, p 321-360, 2004. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5017/3559. Acesso em: 17 jul. 2023.
https://revistas.pucsp.br/index.php/verv...
começa a se interessar pela relação do sujeito com sua própria constituição de si. Para chegar neste “si”, que não se confunde com os contornos do “Eu” moderno, Foucault parte de uma análise histórica acerca da sexualidade, pois percebeu que essa temática era particularmente potente para se refletir sobre a obrigação do sujeito de dizer a verdade sobre si mesmo.

Neste sentido, essa categoria tecnológica se desvia da ideia de tecnologias entendida como ferramentas de operacionalização de certo sistema de símbolos, de poder, ou de produção, com fins estritamente funcionais, pois as tecnologias de si implicam a vida e, portanto, dizem respeito à elaboração dos modos de ser e existir.

Antes de prosseguir, nessa leitura acerca das tecnologias de si, convém observar que para ultrapassar a finalidade funcionalista e estritamente operacional da tecnologia e melhor situar seus interesses de estudo acerca desse tema, Foucault distingue quatro categorias tecnológicas: (1) relacionada à produção, que “nos permite produzir, transformar ou manipular coisas”; (2) relacionada aos sistemas de signos, que “nos permite usar signos, sentidos, símbolos ou significação”; (3) as relacionadas ao poder, que “determinam a conduta dos indivíduos e os submetem a certos fins ou dominação” e, por fim, (4) as tecnologias de si, que remetem às práticas, por meio das quais um sujeito se coloca como artista de seu próprio modo de viver (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Tecnologias de Si, 1982. Verve, n. 6, p 321-360, 2004. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5017/3559. Acesso em: 17 jul. 2023.
https://revistas.pucsp.br/index.php/verv...
, p. 323-324). É no bojo dessa última categoria tecnológica que apoiamos nosso olhar acerca da formação.

3 CUIDADO DE SI MESMO

No âmbito das tecnologias de si, pulsa o princípio do cuidado de si mesmo. Esse princípio de ação será particularmente importante para o desenvolvimento da noção de formação que queremos aqui elucidar.

De uma maneira geral, o cuidado de si refere-se ao movimento de partida na direção do autoaperfeiçoamento, “que busca a coerência ética do seu agir” (VINTGES, 2018VINTGES, Karen. Liberdade e espiritualidade. In: TAYLOR, Dianna (ed.) Michel Foucault: conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 130-144., p. 134). Neste sentido, o cuidado de si revela o trabalho do autoconhecimento, considerando-o não nas profundezas do pensamento, mas principalmente expresso na superfície singular de certo modo de agir plenamente visível nas relações do sujeito com o mundo.

A noção de cuidado de si mesmo amplificou-se de tal maneira no curso da história que suas significações foram multiplicadas e deslocadas, de forma que, suas expressões extravasam seu quadro de origem, “se desligando de suas significações filosóficas primeiras”, para adquirir, “progressivamente, as dimensões e as formas de uma verdadeira cultura de si” (FOUCAULT, 2002FOUCAULT Michel. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 2002., p. 50).

Segundo Foucault, a cultura de si se encontra dominada pelo princípio do cuidado de si: “é esse princípio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu desenvolvimento e organiza a sua prática” (FOUCAULT, 2002FOUCAULT Michel. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 2002., p. 49). Pensar o princípio do cuidado de si a partir da cultura de si greco-latina antiga é importante para evitar leituras anacrônicas acerca do cuidado.

Assim, nos domínios de uma cultura de si, pode-se considerar, de modo bem geral, que o cuidado de si “é uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. O cuidado de si mesmo é uma atitude para consigo, para com os outros, para com o mundo” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 14).

Tem-se cuidado consigo quando se converte o olhar do exterior, dos outros, do mundo, para si mesmo. Todavia essa conversão do olhar não se fecha sobre si mesma; a vigilância necessária sobre si mesmo nada opera se não promover um movimento global da existência. Visto dessa forma, o cuidado de si ancora a percepção, movendo o sujeito a se relacionar, consigo mesmo e com o mundo, sem se perder de vista.

O deslocamento do sujeito em direção a ele mesmo não é um movimento gratuito para todo aquele que deseja, simplesmente, se cuidar, pois desenha uma trajetória que envolve riscos para o sujeito e, consequentemente, reclama por um labor, isto é, por um exercício de si sobre si mesmo. Para tanto, o sujeito deve estar preparado para enfrentar esse caminho, investindo toda sua atenção e disposição no processo. Assim, essa trajetória de conversão de si sobre si implica na elaboração de um saber prático, sem o qual o sujeito não conduz a si mesmo.

A condução de si mesmo exige que o sujeito se envolva intensamente naquilo que quer tomar para si e consequentemente exige que o sujeito disponibilize sua atenção e suas energias para aquilo que o instiga, moldando-o de certo modo. Essa disponibilidade não se faz sem coragem! A atitude corajosa, própria do cuidado, é o movimento de partida, motor de todas as outras realizações do sujeito no exercício da condução de si. É por meio da coragem que o sujeito demarca certa tomada de posição ética sobre si, que orienta suas relações consigo mesmo, com o espaço e com os outros.

Visto dessa forma, nota-se que o cuidado de si coloca o indivíduo como objeto central de seu próprio percurso formativo. Neste sentido, o cuidado inaugura outro olhar sobre a formação, que não se deixa reduzir pela dimensão pedagógica justamente porque atravessa a vida, de ponta a ponta, mobilizando e elaborando a existência.

Enquanto exercício de formação, que não se resume à sua dimensão pedagógica, mas que implica a vida, na multiplicidade da existência, o cuidado de si resgata a importância do experimentar antes do conhecer, o que nos move a pensá-lo nas entrelinhas do conhecimento.

4 O CUIDADO DE SI NAS ENTRELINHAS DO CONHECIMENTO

Há algo de perturbador no cuidado de si, que impede de enquadrá-lo sob os termos do conhecimento. Mediante esta injunção, pensar o princípio do cuidado de si implica, necessariamente, na observação de uma forma de pensamento diferenciada daquela circunscrita pelo pensamento objetivo e formal. Desta forma, para uma compreensão mais ampla acerca do cuidado, uma estratégia interessante é analisar o princípio ao qual se desassemelha: o conhecimento, tal como é compreendido pelo momento cartesiano.

Foucault é muito cuidadoso ao pontuar historicamente o cartesianismo, pois, segundo ele, as rupturas e os deslocamentos das formas de pensamento não são tão claramente demarcados em uma concepção linear da história. Ao pontuar com precisão a figura de Descartes como marco a partir do qual o pensamento moderno se edificou, se assume uma catalogação da história e, consequentemente, a reflexão sobre a história torna-se uma tarefa secundária. Assim, para evitar esta redução, Foucault prefere lidar com a expressão “momento cartesiano”, até mesmo para resgatar a noção de temporalidade, como espaço de acomodação e ajuste que diz respeito não só a um esquadrinhamento cronológico mas também à dispersão desse enquadre - que escapa ao registro cabal da história oficial. A noção de ”momento” cria um meio propício à reflexão dos processos e das transformações aí constituídas (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.).

Para Foucault, o momento cartesiano encontra seu lugar e seu sentido na Idade Moderna, quando foi se consolidando outra era da história das relações entre subjetividade e verdade. Uma era em que o sujeito busca a verdade esgueirando-se nas possibilidades de tratamento dessa verdade sob os limites impostos pelo conhecimento. Neste ponto, o pensamento moderno estrutura sua pergunta fundadora: o que é possível saber? Dito questionamento interroga “não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do falso” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 19).

A noção de saber assentada no conhecimento baseia-se em uma estrutura lógica e racional, que permite ao sujeito do saber certo domínio sobre o objeto (o elemento sobre o qual o pesquisador se dobra na investigação). Assim, para alcançar a verdade a partir do conhecimento do objeto, diz Foucault: “basta raciocinar com sanidade, de maneira correta e, mantendo constantemente a linha da evidência sem jamais afrouxá-la, e seremos capazes de verdade” (2006, p. 234).

Tempos depois, Kant suplementa essa perspectiva ao considerar que “na própria estrutura do conhecimento se constitui os limites do conhecer, de modo que parece quimérico e paradoxal pensar num saber que não pode ser reduzido sob os termos do conhecimento” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 235).

Nesses termos, o pensamento moderno foi sendo edificado, na mobilização de um saber que se limita a conhecer. Descartes sabe que não é possível compreender tudo que é da ordem do infinito - e que dá testemunho de Deus - mas, mesmo assim, ainda é possível engendrar conhecimentos, para tanto:

basta que eu conceba bem isto, e que julgue que todas as coisas que concebo claramente, e nas quais sei que há alguma perfeição, e talvez também uma infinidade de outras que ignoro, estão em Deus formal ou eminentemente, para que a ideia que dele tenho seja a mais verdadeira, a mais clara e a mais distinta dentre todas as que se acham em meu espírito (DESCARTES, 1962DESCARTES, René. Meditações. In: DESCARTES, René. Obra escolhida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962., p. 151).

Assim, firma-se a verificação de toda experiência à luz da evidência, isto é, do elemento que possibilita a determinação do saber. Dessa forma, o campo da consciência invade o espaço do saber e barra a possibilidade da dúvida, permitindo a definição do procedimento filosófico-científico.

Aquilo que escapa à evidência não produz conhecimento, pois a consciência, enquanto faculdade do entendimento, não alcança aquilo que a ela não se mostra evidente. É nesta suposta inabilidade que transita o cuidado de si mesmo em sua irredutibilidade. Por conseguinte, estamos diante de dois regimes de veridicção bastante distintos.

Ora, se o cuidado de si mesmo escapa a apreensão da consciência moderna, que nos define enquanto sujeitos do saber, como tangenciar o cuidado? Para responder essa questão, Foucault irá apostar em uma leitura acerca dos exercícios espirituais, a partir da filosofia antiga.

5 ECOS DO CUIDADO DE SI NA FILOSOFIA ANTIGA

No curso intitulado “Hermenêutica do Sujeito” (2006), Foucault dá pistas para pensar acerca do cuidado de si mesmo, a partir da filosofia antiga, datada do período helenístico.1 1 O referido curso foi ministrado em 1982, no Collège de France, transcrito e só posteriormente editado em livro, que acabou recebendo o mesmo título do curso que lhe deu origem. Segundo o autor, falar em cuidado de si na atualidade implica, pelo menos em parte, em ter de revisitar esse período peculiar da filosofia, onde se constituíram esquemas de existência atentos ao cuidado de si através da proposta de exercícios espirituais.

Uma dificuldade, no entanto, se instala: o modelo cristão utilizou e repatriou as expressões do cuidado constituídas no modelo helenístico, aclimatando-as e elaborando-as para fazer delas “alguma coisa que hoje equivocadamente chamamos de moral cristã” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 314). Tal injunção impede que se olhe para a cultura helenística sem se contaminar com a visão que a tradição cristã tão firmemente assentou na modernidade.

Para pensar a filosofia helenística, Foucault toma como referência, pelo menos em parte, os estudos de P. Hadot. Na leitura de Gros, o que interessa para Foucault, em sua leitura de P. Hadot, é a compreensão da filosofia antiga como “elaboração de modos de vida, de esquemas de existência através da proposta de exercícios espirituais, arte de viver” (2008, p. 128-129).

Nesses termos, Foucault chama de espiritualidade o “conjunto de buscas, práticas e experiências [...] que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, [...] o preço a pagar para ter acesso à verdade (2006, p. 19).

A espiritualidade, pelo menos como aparece no ocidente, tem três características. Primeiramente, postula que um simples ato de conhecimento não dá pleno direito à verdade para o sujeito, pois a verdade não é simplesmente o que é dado ao sujeito a fim de preencher sua vontade por conhecimento. Isso significa dizer que a vontade por conhecimento, na espiritualidade, é mais do que uma simples contingência - é uma prática. Portanto, para se ter acesso à verdade é preciso - e isso nos leva à segunda característica da espiritualidade - que “o sujeito se modifique [...] torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito ao acesso à verdade. A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 20).

A esse movimento de se colocar em jogo, Foucault dá o nome de eros. Por meio dele, o sujeito é arrancado de sua condição consciente atual, colocando-o em relação. Todavia, esse processo não é gratuito - e isso nos leva à terceira característica da espiritualidade: um esforço progressivo é necessário para que dito “colocar-se em jogo” tenha intensidade. O sujeito é o próprio responsável por um longo labor concentrado na escuta e na modificação de si mesmo que, progressivamente, transforma-o sob o auscultar de um cuidado anterior ao movimento do conhecimento. Trata-se da askesis.

Eros e askesis: eis as duas grandes formas através das quais a espiritualidade ocidental concebeu a possibilidade de transformação do sujeito e expressão do cuidado de si mesmo.

5.1 A DURA ELABORAÇÃO DE SI - A ÁSKESIS

Quando se fala em askesis trata-se de um saber prático, que prepara o indivíduo para os acontecimentos da vida. A askesis requer uma preparação (paraskeue), que se incrusta nos músculos do indivíduo, de modo a elaborar seus modos de ser e agir.

A partir de um texto de Demétrio acerca da preparação do atleta, Foucault irá verificar a importância da repetição no movimento ascético do atleta. É a repetição, entendida como exercício de rememoração, que garante domínio do logos. Dito logos é o equipamento material do atleta, sua armadura, e como tal é uma proposição que prescreve o que é preciso fazer. O logos precisa estar sempre ao alcance da mão. É preciso tê-lo, de certo modo, quase que nos músculos e de tal maneira que se possa reatualizá-lo imediatamente e prontamente, de forma automática. É preciso que seja realmente uma memória de atividade (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 393). Para tanto, essa preparação precisa ser não somente adquirida, mas também dotada “de uma presença permanente, ao mesmo tempo virtual e eficaz, que permita que [a ela] se recorra sempre que necessário” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 391).

Firma-se nesta presença permanente, segundo Demétrio, a relação indissociável entre preparação e modos de ser. Para que essa presença permanente seja possível, além da repetição é preciso seguir, também, um regime de abstinências. Tal regime em Platão tem por objetivo formar a coragem física do indivíduo, para que ele possa suportar os acontecimentos exteriores sem sucumbir a eles e formar sua moderação, isto é, o seu domínio de si. Já no período do Império Romano, a preparação atlética desaparece por completo.

Sêneca chega a “zombar das pessoas que passam o tempo a exercitar os braços, a modelar os músculos, a avolumar o pescoço, a fortalecer o dorso.” A preparação para Sêneca deve abrir condições para “a atividade intelectual, a leitura, a escrita, etc” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 519).

Em Musônio Rufo, pensador do período imperial, a preparação virá a partir de um regime de resistência em relação à fome, ao frio, ao calor, ao sono: está em jogo, portanto, um corpo de abstinências. Além da repetição e do regime de abstinências há também a prática das provas. Segundo Foucault, em sua leitura sobre a prática das provas na época imperial, “a prova comporta sempre uma certa interrogação: interrogação de si sobre si”. Em uma prova trata-se “de medir o ponto de progresso em que se está, e de saber no fundo o que se é” (2006, p. 521). A prova é, portanto, um exercício formador, e como tal, se aproxima do próprio exercício do viver. Assim salienta: “a vida deve ser reconhecida, pensada, vivida, praticada como uma perpétua prova” (2006, p. 531).

Na medida em que esses diferentes modos de preparação se ampliam e afetam a vida do indivíduo como um todo, se elabora progressivamente um discurso verdadeiro. Tal discurso se dá sempre à conquista, no curso de um labor, e exige que o indivíduo invista seu tempo, suas forças e sua vontade, para tomar para si certa técnica de viver e deslocá-la ao sabor de seus desejos.

No que se refere à conquista do discurso verdadeiro, outros movimentos são fundamentais, tais como o trabalho da escuta. Segundo Sêneca, o ato de ouvir planta sementes na alma daquele que se abre à escuta, portanto é uma atividade que requer atenção. Citando Epiteto, diz Foucault que “na escuta, começamos a ter contato com a verdade” (2006, p. 409).Assim, a escuta requer certa habilidade para se acolher o que é dito. A prática assídua ajuda a desenvolver essa habilidade de escuta, mas a escuta só pode ser purificada através do silêncio.

Para Plutarco, a aprendizagem do silêncio é um dos elementos essenciais da boa educação. A vida precisa ser pautada por “uma espécie de economia estrita da palavra. É preciso calar-se tanto quanto possível [...] não se deve falar quando um outro fala”. É preciso cercar a escuta com o silêncio e “não reconverter de imediato aquilo que se ouviu em discurso” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 410-411).

Todavia, o silêncio não é suficiente, como demarca Foucault (2006)FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., a partir da leitura de Plutarco. É preciso também certa atitude ativa que recruta o físico durante a escuta, como recurso para fazer brotar no corpo aquilo que foi plantado pela escuta. É preciso também ter atenção, sem a qual não se apreende o que é dito. No pitagorismo, Foucault encontra as regras do silêncio pedagógico - o silêncio em relação à palavra do mestre. Nesse silêncio se engendra uma arte da escuta, na qual a palavra só é permitida aos alunos mais avançados e ao próprio mestre. Nas tramas dessa arte, o silêncio é compreendido como um exercício de memória, que mantém o ouvinte na escuta e no registro da palavra dita pelo mestre. Todos os exercícios de aprendizagem partem deste exercício primeiro, onde se aprende as duas coisas mais difíceis entre todas: “calar-se e escutar” (2006, p. 502).

O trabalho duro de um olhar que se volta sobre si, através do silencio e da escuta, abre a possibilidade de conquista do discurso verdadeiro, oportunizando a composição de uma “atitude ascética”, ou seja, uma “atitude corajosa de modificação”, que mobiliza a constituição, sempre em deslocamento, do sujeito (CANDIOTTO, 2010CANDIOTTO, César Foucault e a crítica da verdade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010., p. 133-141).

5.2 O CUIDADO DE SI NAS RELAÇÕES COM O OUTRO - O ÉROS

Além da askesis, outra forma de expressão do cuidado na filosofia antiga se constituiu através do eros. Tal meio de expressão dá testemunhos de um cuidado que não se fecha sobre si mesmo, mas que se orienta para o mundo, sem perder a si mesmo de vista. Inscreve-se aí o movimento do eros, isto é, a expressão do cuidado constituída na relação de um “si mesmo” com o outro.

Assim demarca Foucault:

O outro ou outrem é indispensável na prática de si a fim de que a forma que define esta prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja por ele efetivamente preenchida. Para que a prática de si alcance o eu por ela visado, o outro é indispensável (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 158).

Nessa relação com o outro encontra-se a figura do mestre: o mediador na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito; o diretor da constituição do sujeito enquanto tal.

Em Platão - citado por Foucault - a relação de direção se inscreve na relação amorosa. Nesta medida, o mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio. Amando o rapaz de forma desinteressada, ele é assim o princípio e o modelo do cuidado que o rapaz deve ter de si enquanto sujeito (2006, p. 73-74). Já nos autores da época imperial, particularmente em Sêneca, a relação de direção “inscreve-se no interior da amizade, da estima, de relações sociais já bem estabelecidas.” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 483).

O mestre, como aquele que não só transmite um saber, mas que intervém sobre o sujeito, estendendo-lhe a mão para ajudá-lo a se apropriar de um modo de ser, precisa pautar sua intervenção à luz de uma ética. Surge dessa necessidade a noção de parrhesia, que pode ser traduzida como atitude corajosa e franca. Segundo Foucault, trata-se de “uma regra de jogo, um princípio de comportamento verbal que devemos ter para com o outro na prática da direção de consciência” (2006, p. 202). Foucault irá se ocupar em pensar a parrhesia a partir da filosofia epicurista, de onde encontra argumentos potentes para pensar acerca da dimensão paradoxal e perigosa que essa dimensão comporta, principalmente quando estão em jogo imperativos que pretendem controlar e corrigir as condutas individuais.

As regras da parrhesia são definidas pela ocasião, ou seja, é no ato e na relação que se estabelece com o outro que a forma do discurso verdadeiro é modalizada (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.).

Uma relação mediada à luz da parrhesia não recusa os conhecimentos. Aquele que pratica a parrhesia ousa suspender o status que mantém o sujeito como objeto de um discurso verdadeiro para requisitar àquela verdade que o afeta, isto é, que o coloca em movimento: que o transforma. Tal verdade não é outra senão aquela que é mobilizada pela physiologia. Segundo a leitura de Foucault sobre Epicuro, a physiologia é o conhecimento da natureza - physis. Tal conhecimento é:

suscetível de servir de princípio para a conduta humana e critério para fazer atuar nossa liberdade [...], é também suscetível de transformar o sujeito [...] em um sujeito livre, um sujeito que encontrará em si mesmo a possibilidade e o recurso de seu deleite inalterável e perfeitamente tranquilo (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 294).

Todavia, Foucault coloca-nos em alerta quanto às condições dessa relação com o mestre, ao demarcar que, em meio ao encontro franco se instalam também mecanismos de controle que reduzem a voz do cuidado, moldando-a como convém.

Foi na tradição estoica que Foucault observa com maior intensidade dita injunção. Segundo o autor, foi nos séculos I e II que a prática de si se vinculou mais intensamente à prática social, permitindo a regulamentação do cuidado segundo uma ordem devida. Doravante, o sujeito não volta o olhar para si sem a mediação de um outro. Ao constituir essa relação entre os indivíduos, a prática de si se tornou uma espécie de “princípio de controle do indivíduo pelos outros” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 191-192). Nesses termos, a direção do mestre opera a função de corrigir o sujeito, retificá-lo e reformá-lo da corrosão imputada pelo vício. A função do mestre, na tradição estoica, é fazer o aprendiz dominar a si mesmo sendo virtuoso, firme, sereno na adversidade e forte contra os prazeres passageiros. Para tanto, é necessário cultivar uma série de prescrições extremamente rígidas que constituem um ascetismo estoico, pautado em práticas de renúncia, abstinência e interdição. Mede-se nestes termos - na tradição estoica - o preço a ser pago pelo sujeito no domínio de si (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 161).

Há, no entanto, outra face desta história que move as apostas de Foucault sobre a prática da parrhesia. Nessa outra face, ao invés de inscrever a condução do mestre na ordem da retificação moral, se instala a possibilidade, sempre em devir, de composição de uma nova ética das relações sociais: uma ordem que ata teoria e prática, verdade e ato, dizer e fazer, verdade e vida. Para tanto, é preciso dar vez e voz a uma modalidade de saber que coloque o sujeito em movimento, transformando-o, segundo as demandas situacionais instaladas nas relações em que se envolve.

6 REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO - ENTRE ASKESIS E EROS

Antes de situar nosso enfoque, é preciso, primeiramente, problematizar essa aproximação entre uma demanda atual - concernente à formação em Educação Física - e um recorte histórico, à luz de Foucault, acerca do cuidado de si mesmo, para evitar que se constitua uma reflexão anacrônica acerca de nossos propósitos de estudo.

Convém, portanto, indagar: de que interessa essa leitura sobre o cuidado de si para a formação acadêmica em Educação Física? O que essa leitura instiga a pensar?

Para responder essas questões, buscamos respaldo em Gros (2008)GROS, Frédéric. O cuidado de si em Michel Foucault. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 127-138.. Segundo o autor, o que Foucault busca, em seu recorte histórico acerca da noção de cuidado de si mesmo, é capturar o elemento pré-doutrinal que atravessa esse princípio de ação, diagonalizando-se na história, para irromper na atualidade. Nesse sentido, a aposta na leitura de outrora, acerca do cuidado, escapa à visão proselitista para colocar em pauta questões sobre a estruturação da relação do sujeito consigo mesmo e com os outros.

Dito de outro modo, o cuidado de si mesmo instiga a pensar acerca da formação acadêmica na sua indissociabilidade com os processos de subjetivação, focando principalmente nas práticas de elaboração de si (a askesis) e nas relações (o eros), que deslocam a compreensão sobre a formação dos termos do conhecimento para os domínios de uma ação ética e estética. É essa atitude - ou, se preferir, esse elemento pré-doutrinal - que ecoa da leitura do cuidado de si e nos convoca a pensar.

Como desdobramento dessa atitude ética e estética, a leitura acerca da formação acadêmica alcança uma função mais sensível e visceral, que por demandar por um labor criativo, operado pelo sujeito sobre si mesmo, não é meramente capacitativa, haja vista que é constituída no tempo, em movimento ético e estético de composição da existência - como exercício, enfim, de si sobre si mesmo.

Convém ressaltar que as aproximações aqui sugeridas (entre a problemática ética colocada à constituição do sujeito, por Michel Foucault e a formação acadêmica) devem ser vistas com muita cautela. Isso porque, quando Foucault se vale da genealogia em um recuo de longa duração à antiguidade greco-romana, tal recuo é empreendido não para tomar as práticas de constituição dos sujeitos antigos como uma origem longínqua para forjar um modelo para os sujeitos modernos. Antes, o filósofo busca remontar, em nossa própria tradição ocidental, uma temática que dá conta de um conjunto de práticas voluntárias e facultativas que a cultura greco-romana clássica produziu no sentido de conceber sujeitos, ética, política e esteticamente autônomos.

Tal traço distintivo parecia-lhe produzir ressonâncias fecundas para pensar os impasses por demais normativos e analiticamente vinculantes ao conhecimento científico da constituição dos sujeitos modernos. Podemos encontrar a síntese emblemática deste problema em uma famosa entrevista concedida em 1983 intitulada Sobre a genealogia da ética.

Acho que não é totalmente necessário ligar problemas éticos ao conhecimento científico. […] Não temos que escolher entre o nosso mundo e o mundo grego. Porém, desde que podemos ver muito bem que alguns dos princípios mais importantes da nossa ética têm sido relacionados num certo momento a uma estética da existência, eu penso que este tipo de análise histórica pode ser útil. Durante séculos temos nos convencido de que entre a nossa ética, nossa ética pessoal, nossa vida diária e as grandes estruturas políticas, sociais e econômicas, há relações analíticas, e que não podemos mudar nada […] Eu acho que temos que nos livrar desta ideia de uma ligação analítica ou necessária entre ética e outras estruturas sociais, econômicas ou políticas.

O que me impressiona é o fato de que, em nossa sociedade, a arte se tenha tornado algo relacionado somente a objetos e não a indivíduos, ou à vida. Esta arte é algo especializado ou fornecido por “experts” que são os artistas. Porém a vida de cada pessoa não poderia se tornar uma obra de arte? Por que a lâmpada ou a casa pode ser uma obra de arte e a nossa vida não? […] A partir da ideia de que o indivíduo não nos é dado, acho que há apenas uma consequência prática: temos que criar a nós mesmos como uma obra de arte. (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Deux essais sur le sujet et le pouvoir: I. Pourquoi étudier le pouvoir: La question du sujet; II. Le pouvoir, comment s’exerce-t-il? (1982). In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: un parcours philosophique. Trad. do inglês por Fabienne Durand-Bogaert. Paris: Gallimard, 1984., p. 50)

Pode-se depreender, a partir destas citações, que o sentido de ética empregado implica num processo de subjetivação, compreendido como processo de constituição de si mesmo. É desse cruzamento entre a problemática ética e os processos de subjetivação em Foucault que ousamos aproximar questões concernentes à formação acadêmica, tomando o devido cuidado para não confundir esses diferentes processos, tomando-os como coincidentes, tampouco como origem e destino um do outro.

Feita essa ressalva, retomamos nossa questão de partida, remodelando-a nos seguintes termos: em que este conjunto de práticas oriundas do mundo greco-romano antigo pode interessar à temática da formação em Educação Física nos dias de hoje?

Nossa hipótese é a seguinte - de forma análoga àquela que Foucault procurou construir para encontrar uma alternativa para os impasses normativos da constituição de si moderna, fazendo recurso genealógico aos antigos, consideramos que também podemos encontrar neste conjunto de reflexões, em especial, no estatuto singular que os gregos deram às práticas de exercício de si para a sua formação, uma abertura fecunda para recolocar a questão da formação em Educação Física sob nova perspectiva.

Na eminência dessa abertura fecunda, somos provocados a pensar acerca da formação acadêmica a partir de outro princípio de ação, para além dos termos do conhecimento objetivo e racional: o cuidado de si mesmo. E o que interessa desse outro princípio de ação - e que pode contribuir para ampliação das discussões acerca da formação acadêmica aqui em questão - é que ele aponta para uma descontinuidade: uma prática de constituição dos sujeitos que se faz não pelo conhecimento de si, mas pelo cuidado de si, o que nos provoca a pensar acerca da formação compreendendo-a não apenas como processo de capacitação, mas antes, e primordialmente, como movimento de intensificação de si.

Esse movimento de intensificação abre caminhos para a mobilização de outras modalidades de saberes mais sensíveis à dinâmica visceral e intensiva que se estende ao longo de um percurso formativo. Essas outras modalidades de saberes, tais como aqueles concernentes à askesis e ao eros, apontam para outras racionalidades não-hegemônicas que, ao invés de visibilizar os aspectos instrumentais atribuídos à formação, ousam dar vez e voz para um movimento laborioso e progressivo de tomada de posição ética do futuro profissional, sem a qual não se vai além da lógica da capacitação no contexto da formação acadêmica.

Em última análise, essa tomada de posição ética só se avizinha quando o futuro profissional ousa converter a atenção de si sobre si mesmo, para revisitar suas relações com seu corpo e com o movimento ético estético e existencial que daí se expande, traçando os sulcos de uma trajetória de encontro, transformação e mobilização constante, tanto de si mesmo, quanto da Educação Física enquanto área formativa. Nessa trajetória afirma-se a centralidade de um outro domínio de composição de saberes, mais dinâmico e pulsante, que reclama pelo corpo e suas relações para intensificar continuamente a formação, integrando-a ao curso da própria vida.

Na esteira dessa ideia, convém lembrar que a formação acadêmica em Educação Física é amplamente atravessada pelo corpo e suas relações, na medida em que reclama pelo movimento, isto é, pelos “saberes da experiência”, como diria Larrosa-Bondía (2002LARROSA-BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002., p. 22), sem os quais os estudos e as práticas de educação física não são mobilizados amplamente na subjetividade daqueles que a querem tomar para si.

Poderíamos dizer, inclusive, que através da educação física (assim como no campo mais amplo da formação em educação) o movimento nos torna eternamente apaixonados! Uma paixão (lembrando aqui das reflexões de Larrosa-Bondía (2002)LARROSA-BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. acerca deste termo) que intensifica nossas relações de sentido com a educação física.2 2 Para Larrosa-Bondía “na paixão, o sujeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso o sujeito apaixonado não está em si próprio, na pose de si mesmo, no autodomínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado. [...]. O sujeito apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa que não a paixão.” (2002, p. 26). Mesmo aquelas disciplinas mais teóricas e conceituais distribuídas na grade curricular da formação básica em Educação Física demandam dos futuros professores certa atitude apaixonada, sem a qual os estudantes não aprendem efetivamente. Tal paixão, muito mais que capacitar, aponta para um processo de intensificação.

Essa característica apaixonada abre caminhos para a composição de práticas discursivas e não discursivas alternativas, em meio às quais transita eros e askesis. No entanto, nem sempre estamos atentos a essa abertura que, não raras vezes, permanece ocultada por racionalidades dominantes que pretendem delimitar a priori a formação docente.

Não obstante, os estudos foucaultianos, particularmente aqueles inspirados pela concepção desse autor acerca da ética e da estética da existência - e que remontam o contexto das tecnologias de si delineado neste manuscrito - têm ajudado a trilhar campos de pesquisas no âmbito da educação mais afeito à visualização de outros movimentos, sempre alternativos às vias formativas já consolidadas e universalizadas. O limite formal de construção deste manuscrito em formato de artigo impede que façamos, ainda que de maneira preliminar, uma discussão nessa direção, que aponte certo estado da arte deste campo de pesquisas educacionais supracitado.3 3 A título de referenciação e direcionamento preliminar do campo de pesquisas educacionais supracitado, vale lembrar, por exemplo, dos estudos do educador espanhol Jorge Larrosa-Bondía (2002), que buscam em Foucault referências importantes para visibilizar outras racionalidades educativas, mais preocupadas com os saberes da experiência e com sua relação de tensão e contraposição com as forças que sustentam esses saberes ao longo do percurso formativo, do que com um debate educacional focado na ótica instrumental, reflexiva e capacitativa.

Assim, como guisa à conclusão deste manuscrito, cabe pontuar ainda que pensar a formação em Educação Física a partir da dimensão da intensificação de si abre alternativas interessantes para afirmar as potências que correm sob os conhecimentos e as habilidades treinadas e automatizadas, forçando suas mobilizações, sempre e a cada vez em que se dão como evento na relação de si sobre si mesmo, como também na relação de si com o espaço e com os outros.

É no campo relacional onde essas mobilizações são forjadas, que a formação acadêmica aparece, sempre e a cada vez, como força de criação, isto é, como exercício de si sobre si mesmo, instigando-nos a pensar nas entrelinhas da lógica do adestramento e da capacitação, de modo a territorializar e reterritorializar continuamente o percurso formativo em terrenos mais moventes, compostos por intensidades, linhas de força, relação e movimento.

  • 1
    O referido curso foi ministrado em 1982, no Collège de France, transcrito e só posteriormente editado em livro, que acabou recebendo o mesmo título do curso que lhe deu origem.
  • 2
    Para Larrosa-Bondía “na paixão, o sujeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso o sujeito apaixonado não está em si próprio, na pose de si mesmo, no autodomínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado. [...]. O sujeito apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa que não a paixão.” (2002, p. 26).
  • 3
    A título de referenciação e direcionamento preliminar do campo de pesquisas educacionais supracitado, vale lembrar, por exemplo, dos estudos do educador espanhol Jorge Larrosa-Bondía (2002)LARROSA-BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002., que buscam em Foucault referências importantes para visibilizar outras racionalidades educativas, mais preocupadas com os saberes da experiência e com sua relação de tensão e contraposição com as forças que sustentam esses saberes ao longo do percurso formativo, do que com um debate educacional focado na ótica instrumental, reflexiva e capacitativa.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • COMO REFERENCIAR

    ALVES, Flávio Soares; MARTINS, Carlos José. Reflexões sobre a formação acadêmica na Educação Física à luz das tecnologias de si em Foucault. Movimento, v. 29, p. e29043. jan./dez. 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.122484

REFERÊNCIAS

  • CANDIOTTO, César Foucault e a crítica da verdade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
  • DESCARTES, René. Meditações. In: DESCARTES, René. Obra escolhida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962.
  • FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • FOUCAULT, Michel. Deux essais sur le sujet et le pouvoir: I. Pourquoi étudier le pouvoir: La question du sujet; II. Le pouvoir, comment s’exerce-t-il? (1982). In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: un parcours philosophique. Trad. do inglês por Fabienne Durand-Bogaert. Paris: Gallimard, 1984.
  • FOUCAULT Michel. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 2002.
  • FOUCAULT, Michel. Tecnologias de Si, 1982. Verve, n. 6, p 321-360, 2004. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5017/3559 Acesso em: 17 jul. 2023.
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5017/3559
  • GROS, Frédéric. O cuidado de si em Michel Foucault. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 127-138.
  • IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. São Paulo: Cortez, 2010.
  • LARROSA-BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002.
  • VINTGES, Karen. Liberdade e espiritualidade. In: TAYLOR, Dianna (ed.) Michel Foucault: conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 130-144.

Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    09 Jun 2023
  • Publicado
    12 Out 2023
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: movimento@ufrgs.br