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APRESENTAÇÃO: INCLUSÃO RACIAL NO ENSINO SUPERIOR Impactos, consequências e desafios

O advento das cotas raciais deu início a uma enorme transformação nas universidades brasileiras, inaugurando uma grande controvérsia pública e modificando o modo como nossas desigualdades eram pensadas. Tendo sido primeiramente adotadas em 2001 pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro (UERJ e UENF), as cotas em seguida se espraiaram para quase todas as universidades públicas do país. Esse processo conferiu à questão racial um protagonismo incomum, quebrando - como diria Oracy Nogueira - a então vigente etiqueta das relações raciais segundo a qual “não é de bom-tom puxar o assunto da cor”. Toda uma ideia de nação foi posta em xeque e passamos a falar como nunca em preconceito, racismo, discriminação e desigualdades. E essa mudança veio para ficar.

Embora tenha tido uma origem estadual, essa iniciativa afetou Instituições de Ensino Superior (IES) de todo o país. Cabe ressaltar, porém, que esse não foi o primeiro projeto de inclusão dos negros no Ensino Superior. Em 1983, Abdias do Nascimento, um dos líderes mais importantes do movimento negro brasileiro, apresentou um projeto de lei que assegurava 20% das vagas do Ensino Superior aos estudantes negros. Mas a proposta nem sequer foi apreciada, o que é um sinal da mudança entre esses dois períodos.1 1 Para uma discussão sobre o histórico dos projetos de leis sobre o tema, ver: N. Neris, “Cotas raciais no ensino superior: projetos de lei nas últimas três décadas”.Nexo, 29/06/2020. Disponível em: <https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2020/Cotas-raciais-no-ensino-superior-projetos-de-lei-nas-%C3%BAltimas-tr%C3%AAs-d%C3%A9cadas>. Acesso em: 29/06/2020.

Em abril de 2012, onze anos depois da lei fluminense, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou e aprovou, por unanimidade, a constitucionalidade do uso do critério racial na adoção de políticas de ações afirmativas. Essa decisão pôs fim à polêmica jurídica e, na ocasião, mais uma vez trouxe à tona o debate sobre as cotas raciais. Na sequência, em agosto do mesmo ano, foi aprovada a lei n. 12.711/2012, que instituiu as cotas raciais nas instituições federais de ensino superior.

De lá para cá, o tema recebeu atenção especial no mundo jurídico, por causa da relação direta entre ação afirmativa e direitos constitucionais; nas ciências sociais, o mais tradicional campo de reflexão sobre relações raciais no Brasil; na educação, área diretamente envolvida no debate; e na grande mídia. Esse intenso debate deve-se ao fato de que tais políticas aludem aos elementos constitutivos das relações raciais brasileiras: a identidade racial, o dilema “raça e classe” e o lugar do racismo e da discriminação na configuração das desigualdades sociais brasileiras. Não é exagero dizer que o advento das cotas colocou em crise aberta toda uma concepção arraigada de nossa identidade nacional, historicamente calcada no elogio da mestiçagem e na recusa de que o racismo fosse uma marca de nossa estrutura racial.

Passados quase vinte anos das primeiras experiências com cotas, o tema das ações afirmativas no Brasil ganhou amplo destaque na produção acadêmica nacional (Campos; Lima; Gomes, 2018______; Lima, Márcia; Gomes, Ingrid. “Os estudos sobre relações raciais no Brasil: uma análise da produção recente (1994-2013)”. In: Miceli, Sergio; Martins, Carlos Benedito (orgs.). Sociologia brasileira hoje II. Cotia: Ateliê Editorial, 2018.) e grande interesse internacional. O acúmulo produzido no campo foi considerável. Há uma enorme produção - teses, livros e artigos - não apenas sobre ações afirmativas e Ensino Superior, como também a respeito de desigualdades raciais em geral, assim como sobre expansão do sistema de Ensino Superior e outros desdobramentos (Feres Júnior et al., 2018Feres Júnior, João; Campos, Luiz Augusto; Daflon, Verônica; Venturini, Anna. Ação afirmativa: conceito, história e debates. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.; Beltrão; Teixeira, 2004Beltrão, Kaizô; Teixeira, Moema de Poli. “O vermelho e o negro: raça e gênero na universidade brasileira: uma análise da seletividade das carreiras a partir dos censos demográficos de 1960 a 2000”. Texto para discussão, v. 1.052, Ipea, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1893/1/TD_1052.pdf >. Acesso em: 31/07/2020.
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; Guimarães, 2016Guimarães, Antônio Sérgio. “As cotas nas universidades públicas 20 anos depois”. In: Artes, Amélia; Unbehaum, Sandra; Silvério, Valter. Ações afirmativas no Brasil: reflexões e desafios para a pós-graduação. São Paulo: Cortez, 2016, v.2, pp. 93-124.; Artes; Mena-Chalco, 2017Artes, Amélia; Mena-Chalco, Jesus. “Expansão da temática relações raciais no banco de dados de teses e dissertações da Capes”. Educação e Pesquisa, v. 43, n. 4, 2017, pp. 1.221-38. doi 10.1590/s1517-9702201702152528.
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). A ação governamental, assim como a produção de estudos sobre o tema, expandiu-se para outras políticas - como o Programa Brasil Quilombola, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, a lei n. 10.639/2003, que estabeleceu o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana -, todas impulsionadas pela institucionalização da agenda da igualdade racial no governo federal, em especial com a criação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - Seppir (Lima, 2010______. “Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula”. Novos Estudos Cebrap, 2010, n. 87, pp. 77-95. doi 10.1590/S0101-33002010000200005.
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).

Nessas duas décadas, quais as consequências das ações afirmativas raciais no Ensino Superior? Já é possível perceber alguns de seus efeitos nas nossas desigualdades sociais? Como tais políticas modificaram as relações internas à universidade e sua imagem pública? Este dossiê busca contribuir para responder a algumas dessas perguntas, com base em abordagens diversas sobre objetos igualmente variados.

O que se segue está dividido em três seções. A primeira discute a primeira década das ações afirmativas raciais no Ensino Superior brasileiro - período que vai da lei do estado do Rio de Janeiro em 2001 à aprovação da lei federal em 2012. A segunda seção engloba os últimos anos e alguns dos desafios. A terceira e última seção resume o argumento e delineia algumas conclusões.

A PRIMEIRA FASE DA EXPANSÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS RACIAIS (2001-2012)

No que concerne ao processo de institucionalização das ações afirmativas no Ensino Superior brasileiro, é importante identificar dois momentos distintos que organizaram o debate e a implantação das políticas. O primeiro, de 2001 a 2012, iniciou-se com a implantação das cotas na Uerj e seguiu com adesões de inúmeras Instituições de Ensino Superior (doravante IES), estaduais e federais, públicas e privadas (incluindo aqui a criação do Programa Universidade para Todos, o Prouni), além da expansão do sistema de Ensino Superior de modo geral. O segundo período iniciou-se com a decisão de constitucionalidade das cotas por parte do STF e a consequente aprovação da lei n. 12.711/2012, que criou a reserva de vagas em todas as IES federais do país, incluindo os institutos técnicos. Esse momento foi marcado por mudanças em instituições que já tinham ações afirmativas com recortes social e racial estabelecidos, pela inclusão do recorte racial naquelas que tinham optado por adotar apenas o critério socioeconômico e pelo início das políticas naquelas que ainda não adotavam ações afirmativas. Porém, em paralelo, ocorriam mudanças socioeconômicas e políticas que reordenaram o debate político e a prioridade da agenda da inclusão racial.

O período inicial foi marcado por um forte experimentalismo no desenho das políticas de inclusão e na multiplicação dos modelos e critérios empregados. Na ausência de uma lei federal, as instituições de ensino superior se inspiraram inicialmente no exemplo fluminense, mas buscaram desenhar, quase sempre de forma autônoma, modelos particulares (Paiva; Almeida, 2010Paiva, Ângela; Almeida, Lady. “Mudança no campus: falam os gestores das universidades com ação afirmativa”. In: Paiva, A. (org.). Entre dados e fatos: ação afirmativa nas universidades públicas brasileiras. Rio de Janeiro: PUC-Rio/Pallas, 2010, pp. 75-115.). Vale destacar que as cotas para estudantes oriundos de escolas públicas foram as mais disseminadas e seguidas pelas cotas raciais (Daflon; Feres Júnior; Campos, 2013Daflon, Verônica Toste; Feres Júnior, João; Campos, Luiz Augusto. “Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148, 2013, pp. 302-27. doi 10.1590/S0100-15742013000100015.
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). Apesar disso, uma miríade de outros públicos foram considerados estudantes de baixa renda: indígenas, pessoas com deficiência etc.

O maior impacto, contudo, ocorreu no sistema privado, com a criação do Prouni em âmbito federal, instituído como lei em janeiro de 2005. A finalidade do programa é conceder bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação, presenciais ou a distância, em instituições privadas de educação superior, oferecendo, em contrapartida, isenções de tributos. Porém, regras específicas à adesão ao Prouni foram diferenciadas de acordo com o modelo institucional. O programa contempla beneficiários segundo critérios socioeconômicos e étnico-raciais, além de portadores de deficiência e professores da rede pública de ensino. A manutenção da bolsa exige uma aprovação mínima nas disciplinas cursadas no semestre/ano. O Prouni destacou-se em sua primeira década de existência pela abrangência e pelo impacto: desde sua criação até o ano de 2012, foram concedidas 1.043.351 bolsas de estudos. Entretanto, o Prouni sempre enfrentou problemas relacionados à qualidade das instituições que aderiram ao programa, além do forte viés dos cursos ofertados pelo sistema privado (Lima, 2013______. “As novas políticas de inclusão escolar e as famílias: o caso dos beneficiários do Prouni na Região Metropolitana de São Paulo”. In: Romanelli, Geraldo; Nogueira, Maria Alice; Zago, Nadir (orgs.). Família & escola: novas perspectivas de análise. Petrópolis: Vozes, 2013.).

No caso das IES públicas, a principal iniciativa foi a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Todas as universidades federais que aderiram a ele apresentaram ao Ministério da Educação (MEC) planos de rees­truturação que previam, além do aumento de vagas, medidas como ampliação ou abertura de cursos noturnos, aumento do número de alunos por professor, redução do custo por aluno, flexibilização de currículos e combate à evasão - em troca, elas receberiam investimentos do governo federal em estrutura e reposição do quadro docente. Como o Prouni, o Reuni também incentivava universidades que adotam políticas de inclusão étnico-racial, atuando, assim, como principal incentivador da difusão das cotas no país, sobretudo a partir de 2008 (Feres Júnior; Daflon; Campos, 2011______; Daflon, Verônica; Campos, Luiz Augusto. “Lula’s Approach to Affirmative Action and Race”. NACLA Report on the Americas (1993), 2011, v. 44, pp. 34-7.).

Em 2010, foi criado o Sistema de Seleção Unificada (SiSU), com o objetivo de unificar o processo de acesso às vagas oferecidas nas instituições federais. A adesão de grande parte das instituições públicas e privadas ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e a criação do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) e do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) completam o rol das iniciativas mais importantes do governo federal para o sistema de Ensino Superior. Esses processos foram cruciais para as dinâmicas de inclusão e acesso.

Apesar disso tudo, essa primeira década foi marcada por uma enorme polêmica pública em torno das cotas raciais. Diferentes setores da sociedade, mas sobretudo a academia, os movimentos sociais, os gestores públicos e os universitários manifestaram-se sobre o tema em diversos veículos de comunicação (Campos, 2019Campos, Luiz Augusto. Em busca do público: a controvérsia das cotas raciais na imprensa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2019.). Apesar de a princípio simpático a tais políticas, o governo Lula recuou nominalmente em seu apoio aos projetos de lei sobre o tema que tramitavam no Congresso Nacional, optando por um suporte velado a eles via Reuni (Feres Júnior; Daflon; Campos, 2011______; Daflon, Verônica; Campos, Luiz Augusto. “Lula’s Approach to Affirmative Action and Race”. NACLA Report on the Americas (1993), 2011, v. 44, pp. 34-7.). O assunto frequentou as páginas de, literalmente, milhares de textos nos grandes jornais nacionais - de jovens estudantes negros autoacorrentados nas portas de universidades em protesto a favor das cotas ao caso de estudantes gêmeos avaliados de forma diferente no processo de confirmação da identidade racial (Campos, 2019Campos, Luiz Augusto. Em busca do público: a controvérsia das cotas raciais na imprensa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2019.). Tudo isso culminou, em 2012, com o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186, impetrada no STF pelo partido Democratas (dem) três anos antes e contrária ao modelo de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília (unb) em 2004.

Em 2012, após quatro manifestos nacionais - dois favoráveis e dois contrários às cotas - e uma audiência pública de dois dias, os ministros do STF aprovaram por unanimidade a constitucionalidade das cotas raciais e das demais ações afirmativas. A decisão contribuía para mitigar a multiplicação de liminares judiciais contra a política de ações afirmativas e abria caminho para a votação do que viria a se tornar, ainda no mesmo ano, a lei n. 12.711/2012, que uniformizou as políticas de cotas em todas as universidades e institutos técnicos federais do país.

A SEGUNDA FASE DA EXPANSÃO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS (2012 EM DIANTE)

A lei n. 12.711/2012 estabeleceu um sistema de cotas sobrepostas baseado a princípio em três critérios. No mínimo metade das vagas de todos os cursos do Ensino Superior federal fica reservada a estudantes oriundos de escolas públicas (estatisticamente menos competitivas que as privadas) e, dessas vagas, metade (25% do total) é destinada para estudantes que recebam renda familiar per capita menor que 1,5 salário mínimo. As cotas raciais incidem sobre as vagas para oriundos de escola pública na proporção da população preta, parda e indígena do estado em que se localiza a instituição de ensino. Posteriormente, somaram-se aos possíveis beneficiários as pessoas com deficiência. O desenho da política refletiu uma solução de compromisso própria dos debates feitos nas décadas anteriores.

Embora as cotas baseadas em critérios socioeconômicos tenham sido mais comuns que as raciais entre 2001 e 2011 (Daflon; Feres Júnior; Campos, 2013Daflon, Verônica Toste; Feres Júnior, João; Campos, Luiz Augusto. “Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148, 2013, pp. 302-27. doi 10.1590/S0100-15742013000100015.
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), foram estas últimas que provocaram maior reação de determinados setores da sociedade - daí a adoção pela lei federal de cotas raciais subsumidas às socioeconômicas. Mas os efeitos da lei não ficaram restritos às instituições federais de ensino superior. Ela tanto serviu de padrão para inúmeras instituições estaduais, que adaptaram suas políticas aos critérios nacionais (Freitas et al., 2020Freitas, Jefferson; Portela, Poema; Feres Júnior, João; Bessa, Águida; Nascimento, Vivian. Políticas de ação afirmativa nas universidades federais e estaduais (2013-2018). Levantamento das políticas de ação afirmativa. Rio de Janeiro: Gemaa (UERJ), 2020.), como foi a base para a criação de políticas de ação afirmativa em outras esferas da administração pública. Entre elas, a mais importante foi a lei n. 12.990/2014, que reservou 20% das vagas efetivas dos concursos da administração pública federal a candidatos pretos e pardos.

Entender as mudanças no padrão das desigualdades raciais no acesso ao Ensino Superior envolve não apenas observar como esses grupos ingressam no sistema, mas também como ele se modificou. Quando a lei n. 12.711/2012 foi aprovada, já estávamos diante de um sistema com um número maior de ies e de matriculados. De acordo com os dados do Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em uma década dobrou o número de ies no país. E, embora essa expansão tenha sido fortemente marcada pela participação do setor privado, houve também um crescimento do número das instituições públicas. Nesse mesmo período, o número de estudantes de graduação passou de 1.534.000 para 6.148.000.

A participação dos estudantes negros no Ensino Superior cresceu de forma expressiva. Quando a lei foi aprovada, os brancos ainda representavam a maciça maioria dos estudantes de Ensino Superior no país. As mudanças nos padrões das desigualdades de acesso também não foram suficientes para reduzir o efeito da origem social, que continuou a ter grande influência nas transições educacionais nos níveis de ensino mais altos (Ribeiro; Ceneviva; Brito, 2015Ribeiro, Carlos Antonio Costa; Ceneviva, Ricardo; Brito, Murillo M. A. “Estratificação educacional entre jovens no Brasil: 1960 a 2010”. In: Arretche, Marta (org.). Trajetória das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp/Centro de Estudos da Metrópole, 2015, pp. 79-108.). Além disso, a estratificação horizontal (escolha da carreira universitária) revela fortes desigualdades raciais e de gênero, assim como diferenças expressivas na renda dos ocupados com nível superior (Ribeiro; Schlegel, 2015Ribeiro, Carlos Antonio Costa; Schlegel, Rogério. “Estratificação horizontal da educação superior no Brasil (1960 a 2010)”. In: Arretche, Marta. Trajetória das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp/Centro de Estudos da Metrópole, 2015, pp. 133-62.; Lima; Prates, 2015______; Prates, Ian. “Desigualdades raciais no Brasil: um desafio persistente”. In: Arretche, Marta (org.). Trajetória das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp/Centro de Estudos da Metrópole, 2015, pp.163-89.).

As ações afirmativas raciais não se justificam apenas pelo fato de os negros brasileiros tenderem a condições piores de vida, mas sobretudo por terem menos chances de ascender socialmente. Essas desigualdades de oportunidades, contudo, parecem ter passado por transformações recentes, como indica o texto de Carlos Antonio Costa Ribeiro neste dossiê. Considerando de forma pioneira a ocupação profissional das mães, ele compara as taxas de mobilidade social entre gerações de uma mesma família identificando continuidades e mudanças. Grosso modo, pretos e pardos costumam ter menos chances de melhorar de vida em relação às condições ocupacionais de seus pais, mas parece haver importantes diferenças quando se considera o gênero. Houve uma diminuição das desigualdades raciais nas chances de mobilidade entre os homens cujos pais e mães tinham ocupação, o que também aconteceu, em menor intensidade, para as mulheres que cresceram em famílias nas quais apenas a mãe tinha status ocupacional. Já para os homens que cresceram em famílias nas quais só o pai tinha ocupação, permanece a desigualdade racial intergeracional. Portanto, há uma redução das desigualdades raciais na mobilidade social, mas ela atinge de modo diferente homens e mulheres, bem como indivíduos oriundos de distintas estruturas familiares.

O período iniciado em 2012 também é marcado por uma depuração do debate sobre determinados elementos das cotas e sobre a ênfase em outros. Diversos estudos dedicaram-se a comparar o desempenho acadêmico das primeiras gerações de cotistas e não cotistas, em sua maioria destacando a proximidade das notas nos exames de seleção (Golgher; Amaral; Neves, 2015Golgher, André; Amaral, Ernesto; Neves, Alan. “Desempenho acadêmico dos estudantes da UFMG: uma análise da política de bônus sociorracial”. Ciências Sociais em Perspectiva, v. 14, n. 26, 2015, pp. 120-45.) e nos índices de rendimento internos às universidades (Queiroz et al., 2015Queiroz, Zandra; Miranda, Gilberto; Tavares, Marcela; Freitas, Sheizi. “A lei de cotas na perspectiva do desempenho acadêmico na Universidade Federal de Uberlândia”. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 96, n. 243, 2015, pp. 299-320. doi 10.1590/S2176-6681/339112863.
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; Wainer; Melguizo, 2018Wainer, Jacques; Melguizo, Tatiana. “Políticas de inclusão no ensino superior: avaliação do desempenho dos alunos baseado no Enade de 2012 a 2014”. Educação e Pesquisa, v. 44, e162807, 2018. doi 10.1590/s1517-9702201612162807.
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; Velloso, 2009Velloso, Jacques. “Cotistas e não cotistas: rendimento de alunos na Universidade de Brasília”. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 137, 2009, pp. 621-44. doi 10.1590/S0100-15742009000200014.
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). Ao que parece, os tradicionais vestibulares brasileiros já eram excessivamente seletivos, o que fazia com que enormes contingentes sociais - como pobres e negros - fossem excluídos da universidade por diferenças mínimas de desempenho. E os dados sobre evasão serviram para dirimir o argumento de que cotistas não conseguiriam acompanhar as exigências dos cursos universitários.

Tratando do caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o artigo de Andréa Lopes da Costa e Felícia Picanço indica tendências que parecem expressar essas mudanças mais amplas do sistema universitário. Segundo as autoras, a UFRJ mudou sensivelmente desde a adesão à Lei de Cotas em 2012, com uma diversificação de seu alunado, no que tange à incorporação tanto de oriundos de escolas públicas quanto de pretos e pardos. Ao mesmo tempo, as condições culturais dos negros e brancos da universidade são bastante similares, o mesmo valendo para as taxas de evasão e conclusão. As desigualdades fundamentais estão nas diferentes condições socioeconômicas de origem desses grupos e de sua distribuição desigual por cursos, sobretudo nos que exigem habilidades específicas, como engenharia, matemática, arquitetura etc.

Um dos efeitos indiretos das ações afirmativas raciais foi a emergência de inúmeros coletivos de universitários negros em todo o país, objeto da atenção do artigo de Antonio Sérgio A. Guimarães, Flavia Rios e Edilza Sotero. Forma de militância consolidada sobretudo após as manifestações de junho de 2013, os coletivos têm uma organização burocrática mais fluida e adaptada aos instrumentos digitais e virtuais. A exploração dos autores sugere que o funcionamento das ações afirmativas, com seus potenciais e limites, está no centro das atenções dessa novíssima militância, focada em diferentes agendas como a demanda por concursos voltados a professores negros, a organização de cursos preparatórios para os processos seletivos dos cursos de pós-graduação, a inclusão de temáticas raciais e de autores negros nas disciplinas correntes e a pressão por políticas de permanência. Mas é a fiscalização das chamadas “fraudes raciais” que mobiliza prioritariamente tais coletivos, mostrando que eles operam não apenas para expandir essas políticas, como também para avaliar e fazer eventuais críticas.

Ao que parece, as cotas tiveram um efeito geral positivo, embora algumas questões permaneçam fruto de polêmicas. A principal delas, talvez, seja aquela relativa às comissões de heteroidentificação racial - tema abordado no artigo de Ana Claudia Cruz da Silva, Diogo Marçal Cirqueira, Flavia Rios e Ana Luiza Monteiro Alves. Embora provisões contrárias às chamadas “fraudes” constem em praticamente todas as leis de cotas citadas até aqui, há um vazio legal de orientações e protocolos claros que regulamentem a atuação e a composição de tais comissões. Isso deu margem não só para que os comitês existentes sejam heterogêneos em seu funcionamento e em suas definições, como também para que alguns incorram ocasionalmente em processos essencializantes na definição dos grupos raciais - algo que contradiz a definição de raça como construção social, corrente nas ciências humanas e subjacente às leis vigentes. Ademais, a ausência de normativas cria dificuldades para a própria investigação sociológica do funcionamento dessas comissões. A pesquisa contorna tal obstáculo com a análise de uma comissão específica, implantada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Apesar de a UFF adotar critérios classificatórios múltiplos e procedimentos abertos, ainda assim há uma quantidade expressiva de candidaturas às cotas raciais negadas, sobretudo em cursos de grande concorrência, como medicina, direito e engenharia. Ao que parece, a definição de quem é considerado pardo aparece como principal obstáculo, na medida em que o termo está marcado por um significado vago e pouco associado a identidades políticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os artigos que compõem este dossiê demonstram a importância da agenda das ações afirmativas no campo das ciências sociais no país e dos desafios analíticos para se compreender as interfaces de raça e classe no acesso ao Ensino Superior. As mudanças propiciadas por tais políticas são fruto de um processo que tem transformado de forma marcante o ambiente universitário brasileiro, para a docência e também para a pesquisa. Essa diversidade étnico-racial, social, de gênero e de orientação sexual não ocupa apenas os bancos, mas também a cena política das universidades, tendo reflexos nas agendas de pesquisa, nos debates em salas de aula, bem como na formação dos alunos e pesquisadores que trazem outras experiências e olhares para o espaço acadêmico (Lima, 2018Lima, Márcia. “A produção de conhecimento em tempos de conflito: o lugar das ciências sociais”. Revista de Antropologia, v. 61, n. 1, 2018, pp. 95-102.).

Há, entretanto, muitos desafios que a pesquisa especializada ainda deve enfrentar. Dedicamo-nos muito mais a entender o acesso do que a conclusão do Ensino Superior; é preciso investigar mais o tema da estratificação horizontal para compreender as dinâmicas de raça e gênero nas carreiras. A expansão do sistema público, ocorrida na primeira década deste século, levou muitos campi para o interior do país e mais universidades para o Norte e o Nordeste. Precisamos analisar o impacto dessas políticas nas desigualdades regionais na educação, que sempre foram muito marcantes. E, por fim, o tema da qualidade do Ensino Superior, em especial do sistema privado, onde há uma política pública de inclusão social de peso, deve permanecer na agenda de pesquisa como prioridade. Os procedimentos de identificação racial dos beneficiários como aptos ou não aptos, bem como as polêmicas aí envolvidas, também têm escapado de nosso foco analítico. Apesar das contribuições dos artigos deste dossiê, ainda sabemos muito pouco do funcionamento das comissões e, em especial, de suas consequências na formação das identidades raciais da juventude brasileira.

Está prevista para 2022, quando se completam dez anos de sua publicação, a revisão da lei federal. As mudanças realizadas por tais políticas são visíveis, e o acúmulo de pesquisas realizadas até o momento sinaliza que a suspensão da lei é prematura. O peso da origem social nas transições educacionais, as barreiras de raça e gênero mapeadas nos estudos sobre carreiras universitárias e sobre seus efeitos desiguais no mercado de trabalho, somados à situação socioe­conômica que o país enfrenta neste momento e que enfrentará na próxima década, demonstram que não existe uma estrutura social de igualdade de oportunidades que nos permita prescindir de uma política de ação afirmativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    » https://doi.org/10.1590/s1517-9702201702152528
  • Beltrão, Kaizô; Teixeira, Moema de Poli. “O vermelho e o negro: raça e gênero na universidade brasileira: uma análise da seletividade das carreiras a partir dos censos demográficos de 1960 a 2000”. Texto para discussão, v. 1.052, Ipea, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1893/1/TD_1052.pdf >. Acesso em: 31/07/2020.
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  • Campos, Luiz Augusto. Em busca do público: a controvérsia das cotas raciais na imprensa Rio de Janeiro: EdUERJ, 2019.
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  • Daflon, Verônica Toste; Feres Júnior, João; Campos, Luiz Augusto. “Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148, 2013, pp. 302-27. doi 10.1590/S0100-15742013000100015.
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  • Feres Júnior, João; Campos, Luiz Augusto; Daflon, Verônica; Venturini, Anna. Ação afirmativa: conceito, história e debates Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020
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