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Ciclo paz e amor

FICÇÃO

Ciclo paz e amor

Airton Paschoa

FUNDO MONETÁRIO NACIONAL

A Donizete Galvão

Assombra o desperdício de capital humano no Brasil. Este mesmo moço que desce o morro num carrinho de pedreiro improvisado de esquife, conduzido pelo fiel agente da Lei, 16 anos, A. P., pardo claro, não teria sido um grande monetarista? não estaria ajudando o País a sair da crise? Impaciente com a reencarnação em cenário mais promissor, queria tudo aqui e agora, rio de dinheiro correndo-lhe debaixo dos olhos. Não assim debruçado sobre si mesmo, mas de cabeça erguida, peito estufado, à altura dos flashes. Pegou em armas, uma fatalidade, para defender seu ponto de coca, como teria pegado em dados para defender seu ponto de vista. Grande, sim, porque são os melhores. Os outros, sem demérito, formam com o povo ordeiro e cordato, o corpo da Nação. De que serve, porém, o corpo decapitado? A evasão de cérebros não será mal menor que a evasão de divisas. Tenho dito.

Cumpre oficiar ao ministro da Fazenda.

ESTADO DE SÍTIO

A Paulo Arantes

Refocilamo-nos, obrigado. As crias engordam, a patroa engorda, engordamos todos, com a graça de Deus. A terra afofada, os olhinhos fuzilam de alegria e rimos de estourar. Vermelhos, apertadinhos, chegam às lágrimas quase. Que são abundantes, mas não chegam a engasgar, obrigado. Refocilemo-nos.

MARINHA

In memoriam

O vento, as ondas, o esquife, nada balança.

Só as cabeças, sim, sim, um grande homem...

Ressaca forte, e nada no globo balança, nem o quadro.

Estômago delicado, tapa a boca, os olhos, o nariz.

Foto, flores, jornal, tudo embrulha.

GOVERNABILIDADE

Não acendi ainda a lareira, por falta de treino, ou de clima, nem comprei um cachimbo, mas adquiri uma cadelinha. Ela e eu nos damos como ninguém e adoramos, ela no meu colo, eu no colo do gozo, transportados em Sua infinita fuga, ouvir o divino Ludovico. O diabo é que a diabinha me rói as pantufas! Poderia agilmente esganá-la com o outro pé... Ela abana a cauda, eu a cabeça. Penso na banheira.

FÓRUM ÍNTIMO MUNICIPAL

Companheiros e companheiras, a questão é a seguinte: é preciso caminhar pela cidade. Para tanto, convém dar um mínimo de coerência a nossos movimentos. Não é mais possível os braços quererem abraçar tudo e as pernas correrem de tudo! Já pensaram em como fica a cabeça? São torcicolos e mais torcicolos na tentativa de evitar o destroncamento público. Isto para não falar do tronco, coitado, que, sem escolha, amarrado aos membros dissidentes, ameaça, em legítima defesa, aumentar a divisão interna com balões de ensaio venenosos. Há quanto estamos reunidos? há quase meio século, e que fizemos? Que figura ridícula! O reto de ponta-cabeça! A ponta do nariz entre os restos! O decúbito dorsal de frente! O dito cúbito abdominal de costas! A cara de pau a pique! O pau... presume-se. Não vivêssemos tempos (para sorte nossa) de absoluta modernidade, teríamos de explicar a cada transeunte a cada passo como logramos dá-lo... Mas os anos passam, as capacidades estremecem, as juntas endurecem, e impõe-se a decisão: ou chegamos a um acordo, em definitivo, para sem medo descer (feliz, não digo, mas pelo menos normalmente, como todo mundo) e passear com o Pet, ou, então, como outro corpo não é possível, — é o fim do FIM!

A ORIGEM DAS PESSIMICES

(anedota brasileira)

Não é que esta grande amiga minha, velha militante política, veio ficando desencantada com a idade? Até aí, nada de sobrenatural, quem não ficaria, vivendo no Brasil? Se alma pura e imaculada, então... Natural. Dentro do próprio Partido a que tanto amava, a quantas lutas intestinas, sem torcer muito o nariz, não terá sido obrigada a assistir a gentil moça! Há algum tempo, porém, pareceu recobrar ânimo e vinha visivelmente encantada com a divulgação no país das recentes descobertas pré-históricas da sociobiologia norte-americana. Em síntese precária, que a palafita sobe a alturas cipoais, o homem é um animal cujo comportamento, em sua luta feroz pela sobrevivência, obedece a razões geneticamente determinadas há — sabe Darwin! milhões, milhares, muares de anos. Moral da pré-história: que utopia humana poderia resistir a tal natureza animal? Ou versa-vice: com tal natureza humana, que utopia estúpida...

Confesso que, calando embora, urrava em masmorra meu marxismo vulgar. Quantas vezes não fiquei pasmo ao ouvi-la naturalmente trocando a luta de classes pela luta de genes! Que a direita ulula com tanta ciência, é óbvio. Que isso espumasse contudo da boca de uma ativista autêntica (em que pese a extinção), causava espécie. Da última vez que nos vimos, fraudadas minhas esperanças no governo Lula & Cardume, tive todavia que dar a pata à palmatória:

— Você tem razão, Davina. O homem é mesmo um animal!

FOME ZERO

Ando sem saber se ando meio sem apetite ou inteiramente saciado. Se tudo trai ou não trai o mesmo desgosto, se torna ou trava no gogó, se volta ou revolta do bucho...

Mas urge decidir, que aguarda a mesa posta: sentar, deitar, virar.

FLEXIBILIZAÇÃO

Pode pegar ônibus sozinha, estudar de noite, não precisa ser virgem (mas dá-se preferência), ter covinhas, sardinhas, dentinho quebrado... Precisa ser tímida, pia, passiva, suave até a loucura, para consolar, com seu só soslaio, seu só risinho de enganar todos os santos, viúvo maduro vivamente desenganado. Politicamente, literariamente, sexualmente.

CREDIBILIDADE

(estudo de escada rolante)

O horizonte sorri ao longe, arreganha os dentes de perto. Qual! é simplesmente denteado. Já ouvi falar em correia, não saímos do lugar, que é impressão a correria. Muitos acabam deitando, dificultando a jornada. Chega uma hora que não sabemos se se trata de corpos, degraus ou ex-votos. Pode ser catarata, vista cansada, ilusão ou desilusão de ótica. Fecho os olhos e deixo passar a tonteira. Bem ou mal, caio de pé, acho, mas continuo sem saber se estamos subindo ou descendo... O negócio é não dar ouvido a conversa. O que faz mesmo falta é o corrimão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2006
  • Data do Fascículo
    Nov 2005
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