Acessibilidade / Reportar erro

SOFRIMENTO E SOLIDÃO: NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DO SETOR DE ONCOLOGIA

SUFRIMIENTO Y SOLEDAD: NARRATIVAS DE PROFESIONALES DEL SECTOR ONCOLÓGICO

RESUMO.

No setor de oncologia das instituições hospitalares, visando o cuidado humanizado, tem sido desejável a atuação de profissionais de diferentes áreas. Esse estudo teve o objetivo de investigar a experiência subjetiva dos diferentes profissionais que atuam nesse setor. A pesquisa contou com a participação de 23 profissionais da área de oncologia de um hospital público situado no interior do Rio Grande do Sul. Nesse estudo qualitativo, os participantes foram entrevistados individualmente, sendo tais entrevistas mediadas pela apresentação de uma narrativa interativa, a qual eles eram convidados a inventarem um desfecho e a associarem livremente. Foram identificadas, após consideração psicanalítica, duas categorias intituladas ‘Aos outros eu devolvo a dor’ e ‘Dança da solidão’. A partir delas foi possível identificar, respectivamente, como os profissionais experienciam, em seu cotidiano de trabalho, suas relações com os pacientes e com os seus colegas de equipe. Observou-se que, para os participantes, o cotidiano de trabalho é atravessado por sofrimento por terem de lidar com o mal-estar de seus pacientes, bem como as perdas frequentes, sofrimento esse que fica acentuado por não terem condições de compartilhá-lo com os seus pares no trabalho. Conclui-se que se faz necessário o desenvolvimento de ações, em especial a constituição de um enquadre clínico em que os profissionais possam ter trocas afetivas entre si, o que poderia, num só tempo, tanto ajudá-los a lidar com o sofrimento despertado no setor de oncologia quanto ajudá-los a se sentirem pertencentes a essa equipe composta por diferentes áreas de especialidade.

Palavras-chave:
Ambiente hospitalar; cuidadores; sofrimento

RESUMEN.

En el sector de Oncología de las instituciones hospitalarias, con miras a la atención humanizada, ha sido deseable la actuación de profesionales de diferentes áreas. Este estudio tuvo como objetivo investigar la experiencia subjetiva de los diferentes profesionales que laboran en este sector. La investigación contó con la participación de 23 profesionales del área de Oncología de un hospital público ubicado en el interior de Rio Grande do Sul. En este estudio cualitativo, los participantes fueron entrevistados individualmente, siendo dichas entrevistas mediadas por la presentación de una narrativa interactiva, a la que fueron invitados a inventar un desenlace y asociarse libremente. Se identificaron dos categorías, después de una consideración psicoanalítica, tituladas ‘Devuelvo el dolor a los demás’ y ‘Danza de la soledad’. A partir de ellos, fue posible identificar, respectivamente, cómo los profesionales viven, en su trabajo diario, sus relaciones con los pacientes y con sus compañeros de equipo. Se observó que, para los participantes, el trabajo diario está atravesado por el sufrimiento porque tienen que convivir con el malestar de sus pacientes, así como con las frecuentes pérdidas, sufrimiento que se acentúa al no poder compartirlo con los demás compañeros de trabajo. Se concluye que es necesario desarrollar acciones, especialmente la constitución de un entorno clínico en el que los profesionales puedan tener intercambios afectivos entre sí, que puedan, en un solo tiempo, ayudarles a afrontar el sufrimiento suscitado en el sector de Oncología, además de ayudarles a sentirse parte de este equipo formado por diferentes áreas de especialidad.

Palabras clave:
Ambiente hospitalario; cuidadores; sufrimiento

ABSTRACT.

In the Oncology Ward of hospital institutions, aiming humanized care, the performance of professionals from different areas has been desirable. This study aimed to investigate the subjective experience of the different professionals who work in this sector. The research was developed with the participation of 23 professionals from the Oncology area of ​​a public hospital located in Rio Grande do Sul. In this qualitative study, they were interviewed individually. Those interviews were mediated by the presentation of an interactive narrative, with the participants being asked to create an outcome and to freely associate. Two categories were identified, after psychoanalytic consideration, entitled ‘I return the pain to others’ and ‘Dance of solitude’. From those categories, it was possible to identify, respectively, how professionals experience, in their daily work, their relations with patients and with their teammates. It was observed that, for the participants, the daily work is crossed by suffering because they have to deal with the discomfort of their patients, as well as the frequent losses, a suffering that is accentuated by not being able to share it with their peers at work. It is concluded that it is necessary to develop actions, especially the constitution of a clinical setting in which professionals can have affective exchanges with each other, which could, in just one time, help them to deal with the suffering aroused in the Oncology sector as well as help them to feel that they belong to this team made up of different areas of specialty.

Keywords:
Hospital environment; caregivers; suffering

Introdução

Apesar dos significativos avanços nas últimas décadas, em termos de diagnóstico e de tratamento do câncer, ele segue sendo uma das principais causas de morte antes dos 70 anos de idade, na maioria dos países, segundo o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva [INCA] (2019Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva[INCA]. (2019). Estimativa 2020: estimativa de câncer no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: INCA.). Para fazer frente a esse problema de saúde pública, os avanços diagnósticos e terapêuticos vêm sendo acompanhados de melhoria no atendimento prestado ao paciente, a quem vem sendo dedicada uma atenção mais integral. Assim, no Brasil, de maneira análoga ao que vem ocorrendo em outros países do mundo, o cuidado prestado ao paciente oncológico vem deixando de ser restrito ao saber médico, limitado a um tratamento centrado em remédios e cirurgias (Silva, Issi, Motta, & Botene, 2015Silva, A. F., Issi, H. B., Motta, N. G. C., & Botene, D. Z. A. (2015). Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: percepções, saberes e práticas na perspectiva da equipe multiprofissional. Revista Gaúcha de Enfermagem, 36(2), 56-62. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.02.46299
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.0...
; Tremblay, Roberge, Touati, Maunsell, & Berbiche, 2017Tremblay, D., Roberge, D., Touati, N., Maunsell, E., & Berbiche, D. (2017). Effects of interdisciplinary teamwork on patient-reported experience of cancer care. BMC Health Services Research, 17(218). https://doi.org/10.1186/s12913-017-2166-7
https://doi.org/10.1186/s12913-017-2166-...
), para ser sustentado por profissionais de diferentes áreas de especialidade, que, conjuntamente, têm condições de intervir de modo não reducionista, superando soluções monocausais (Craving, Campo, Boro, Chiarella, & Marco, 2016Craving, N. A., Campo, M. V., Boro, G. C., Chiarella, J. M., & Marco, J. (2016). Interdisciplina en salud pública: imaginario social del equipo interdisciplinario de salud sobre el paciente oncológico. Revista de Investigación en Psicologia Social, 2(2), 33-45. Recuperado de:https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/psicologiasocial/article/view/2137/1832
https://publicaciones.sociales.uba.ar/in...
; Reis, Farias, & Quintana, 2017Reis, C. G. C., Farias, C. P., & Quintana, A. M. (2017). O vazio de sentido: suporte da religiosidade para pacientes com câncer avançado. Psicologia, Ciência & Profissão, 37(1), 106-118. doi: https://doi.org/10.1590/1982-3703000072015
https://doi.org/10.1590/1982-37030000720...
).

Uma vez que é possível que as diferentes disciplinas transitem de variadas formas, a literatura especializada vem adotando terminologias distintas para se referir à equipe composta por profissionais de formações diversas. Tem sido adotado o termo ‘multiprofissional’ quando, a despeito da copresença de diferentes disciplinas, nota-se que os profissionais de cada área de conhecimento se organizam para responder individualmente ao tratamento do paciente. Assim, os diferentes profissionais tratam simultaneamente de uma mesma questão, sem que estejam implicados em trocas sistemáticas entre si. Já o termo ‘interdisciplinar’ detém o caráter ‘inter’ e tem sido empregado quando há efetiva reciprocidade entre os integrantes das distintas disciplinas, com as trocas de informações ampliando a formação geral de cada um dos especialistas, que intervêm, nesse caso, de modo não fracionado (Cliche-Galarza, 2019Cliche-Galarza, M. (2019). L’interdisciplinarité au pays des protocoles: ethnographie du travail d’équipe dans une unité d’hémato-oncologie pédiatrique (Dissertação de Mestrado). Département d’Anthropologie da Faculté des Arts et Sciences, Université de Montréal, Quebec.; Silva, Sant’Ana, Cardoso, & Alcântara, 2018Silva, R. C. V., Sant’Ana, R. S. E., Cardoso, M. B., R., & Alcântara, L. F. F. L. (2018). Tratado de enfermagem em oncologia. Lisboa, PT: Chiado Books.; Veloso & Silva, 2018Veloso, C. S., & Silva, D. S. (2018). Desafios e descobertas sobre o atendimento interdisciplinar em pacientes oncológicos: revisão integrativa. Destaques Acadêmicos, 10(3), 199-208. doi: http://dx.doi.org/10.22410/issn.2176-3070.v10i3a2018.1968
https://doi.org/10.22410/issn.2176-3070....
).

Parece haver consenso de que o ideal para a concretização da integralidade da atenção seria que os profissionais constituíssem uma equipe interdisciplinar, ao invés de intervirem de modo multiprofissional (Silva et al., 2018Silva, R. C. V., Sant’Ana, R. S. E., Cardoso, M. B., R., & Alcântara, L. F. F. L. (2018). Tratado de enfermagem em oncologia. Lisboa, PT: Chiado Books.). Segundo pesquisa realizada por Tremblay et al. (2017Tremblay, D., Roberge, D., Touati, N., Maunsell, E., & Berbiche, D. (2017). Effects of interdisciplinary teamwork on patient-reported experience of cancer care. BMC Health Services Research, 17(218). https://doi.org/10.1186/s12913-017-2166-7
https://doi.org/10.1186/s12913-017-2166-...
) com 1.379 pacientes canadenses, observou-se que, quando os pacientes notavam elevado nível de trocas entre os profissionais da oncologia, se sentiam melhor cuidados, a ponto de inclusive não verem necessidade de sempre serem atendidos pelo mesmo profissional, dada a constatação de que havia boa troca de informação dentro da equipe.

Entende-se que a atuação em equipe interdisciplinar pode não apenas beneficiar o paciente como, também, o profissional do setor de oncologia, uma vez que ela viabiliza a superação do modo particular de pensar e de intervir próprio de cada área de especialidade, dando a oportunidade de o profissional relativizar certezas e desenvolver autocrítica (Craving et al., 2016Craving, N. A., Campo, M. V., Boro, G. C., Chiarella, J. M., & Marco, J. (2016). Interdisciplina en salud pública: imaginario social del equipo interdisciplinario de salud sobre el paciente oncológico. Revista de Investigación en Psicologia Social, 2(2), 33-45. Recuperado de:https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/psicologiasocial/article/view/2137/1832
https://publicaciones.sociales.uba.ar/in...
). Ademais, é fato reconhecido que o esgotamento profissional, tão presente entre os profissionais cuidadores, tende a ser potencializado entre aqueles que atuam na oncologia (Colombat, Lejeune, Altmeyer, & Fouquereau, 2019Colombat, P., Lejeune, J., Altmeyer, A., & Fouquereau, E. (2019). Mieux manager pour mieux soigner. Bulletin du Cancer, 106(1), 55-63. Recuperado de:https://www.em-consulte.com/en/article/1272727
https://www.em-consulte.com/en/article/1...
). Nesse sentido, supõe-se que, como na interdisciplinaridade haja maior solidariedade entre os profissionais, cada integrante tem condições de contar com o apoio do outro, em meio ao cuidado compartilhado, sem precisar carregar os sofrimentos provocados pelo trabalho de forma individualizada (Cliche-Galarza, 2019Cliche-Galarza, M. (2019). L’interdisciplinarité au pays des protocoles: ethnographie du travail d’équipe dans une unité d’hémato-oncologie pédiatrique (Dissertação de Mestrado). Département d’Anthropologie da Faculté des Arts et Sciences, Université de Montréal, Quebec.).

Dada a percepção de que o trabalho interdisciplinar se revela duplamente benéfico, seja para os pacientes, seja para os profissionais, na literatura científica dedicada à oncologia, embora ainda predominem estudos voltados ao exercício profissional da enfermagem (Luz et al., 2016Luz, K. R., Vargas, M. A. O., Barlem, E. L. D., Schmitt, P. H., Ramos, F. R. S., & Meirelles, B. H. S. (2016). Estratégias de enfrentamento por enfermeiros da Oncologia na alta complexidade. Revista Brasileira de Enfermagem, 69(1), 67-71. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690109i
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201669...
), vêm sendo publicados cada vez mais trabalhos em que os diferentes profissionais que compõem a equipe oncológica estão sendo escutados (Bianchini, Romeiro, Peuker, & Castro, 2016Bianchini, D., Romeiro, F. B., Peuker, A. C., & Castro, E. K. (2016). A comunicação profissional paciente em oncologia: compreensão psicanalítica. Revista Brasileira de Psicoterapia, 18(2), 20-36. Recuperado de:https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-848305
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/reso...
; Dias, Mendonça, Diaz, Ribeiro, & Alvez, 2019Dias, I. M., Mendonça, E. T., Diaz, F. B. B. S., Ribeiro, L., & Alves, K. R. (2019). The process of care in oncology from the perspective of health professionals. Revista de Enfermagem da UFPI, 8(3), 4-11. doi: https://doi.org/10.26694/2238-7234.834-11
https://doi.org/10.26694/2238-7234.834-1...
; Dias, Pereira, & Finelli, 2020Dias, J. C., Pereira, W. R. L., & Finelli, L. A. C. (2020). A vivência da morte pela equipe de saúde que atua no setor de Oncologia. Bionorte, 9(1), 9-19. doi: http://dx.doi.org/10.47822/2526-6349.2020v9n1p9
https://doi.org/10.47822/2526-6349.2020v...
; Pacheco & Goldim, 2019Pacheco, C. L., & Goldim, J. R. (2019). Percepções da equipe interdisciplinar sobre cuidados paliativos em Oncologia pediátrica. Revista Bioética, 27(1), 67-75. doi: https://doi.org/10.1590/1983-80422019271288
https://doi.org/10.1590/1983-80422019271...
; Silva et al., 2015Silva, A. F., Issi, H. B., Motta, N. G. C., & Botene, D. Z. A. (2015). Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: percepções, saberes e práticas na perspectiva da equipe multiprofissional. Revista Gaúcha de Enfermagem, 36(2), 56-62. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.02.46299
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.0...
; Tremblay et al., 2017Tremblay, D., Roberge, D., Touati, N., Maunsell, E., & Berbiche, D. (2017). Effects of interdisciplinary teamwork on patient-reported experience of cancer care. BMC Health Services Research, 17(218). https://doi.org/10.1186/s12913-017-2166-7
https://doi.org/10.1186/s12913-017-2166-...
; Wanderbroocke, Baasch, Antunes, & Menezes, 2018Wanderbroocke, A. C. N. S., Baash, C., Antunes, M. C., & Menezes, M. (2018). O sentido de comunidade em uma equipe multiprofissional hospitalar: hierarquia, individualismo e conflito. Trabalho, Educação e Saúde, 16(3), 1157-1176. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00155
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol001...
).

Dentre essas investigações de número menos expressivo, a preocupação central tem sido a de pensar em estratégias operacionais para que os diferentes profissionais sejam efetivamente capazes de constituir uma unidade interdisciplinar, superando as experiências de competição, exclusão, dominação, intolerância, dentre outros (Veloso & Silva, 2018Veloso, C. S., & Silva, D. S. (2018). Desafios e descobertas sobre o atendimento interdisciplinar em pacientes oncológicos: revisão integrativa. Destaques Acadêmicos, 10(3), 199-208. doi: http://dx.doi.org/10.22410/issn.2176-3070.v10i3a2018.1968
https://doi.org/10.22410/issn.2176-3070....
). Para ilustrar é possível citar o estudo de Soukup, Gandamihardja, McInerney, Green e Seudalis (2019Soukup, T., Gandamihardja, T. A. K., McInerney, S., Green, J. A. S., & Sevdalis, N. (2019). Do multidisciplinary cancer rare trams suffer decision-making fatigue: an observational, longitudinal team improvement study. BMJ Open, 9(5). doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2018-027303
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2018-027...
), por meio do qual as reuniões dos profissionais de uma unidade oncológica inglesa foram observadas ao longo de dois anos, sofrendo intervenções pontuais por parte dos pesquisadores com o intuito de fortalecimento da equipe. Na investigação de Harshman et al. (2017Harshman, L. C., Tripathi, A., Kaag, M., Efstathiou, J. A., Apolo, A. B., Hoffman-Censits, J. H., … Sridhar, S. S. (2017). Contemporary patterns of multidisciplinary care in patients with muscle-invasive bladder cancer. Clinical Genitourinary Cancer, 16(3), 213-218. doi: https://doi.org/10.1016/j.clgc.2017.11.https://doi.org/10.1016/j.clgc.2017.11.004
https://doi.org/10.1016/j.clgc.2017.11...
), com profissionais canadenses pertencentes a diferentes equipes interdisciplinares, concluiu-se que os atendimentos prestados pelos profissionais deveriam acontecer em conjunto, ao invés de serem prestados separadamente, como comumente ocorre.

Embora consideremos tais estudos valiosos, uma vez afinadas à perspectiva psicanalítica, entendemos que se faz necessário também identificar a dimensão afetivo-emocional da experiência dos diferentes profissionais que atuam no setor de oncologia. Compreendendo que as dificuldades para a constituição de um trabalho interdisciplinar são de ordem multifatorial, em complementariedade a esses estudos que têm proposto diferentes formas de organização do trabalho, vemos a necessidade de uma investigação sobre a experiência subjetiva dos profissionais da oncologia, em relação ao ambiente hospitalar, constituído principalmente por seus colegas de trabalho e seus pacientes. Nesse sentido, como os profissionais de oncologia têm experienciado as trocas afetivas com os seus pares de trabalho? E como eles têm vivido as trocas afetivas com seus pacientes?

Método

O estudo caracteriza-se como uma investigação de caráter exploratório, que faz uso do método clínico-qualitativo. Turato (2013Turato, E. R. (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis, RJ: Vozes.) descreve que tal método se ocupa dos possíveis impactos que a investigação das ciências humanas em saúde pode causar nos participantes, além de reconhecer que os pesquisadores não são meros espectadores da pesquisa, entendendo-os como participantes ativos. Assim, o método clínico-qualitativo não difere do método qualitativo, configurando-se como parte desta abordagem metodológica, visto que consiste em um método derivado do refinamento de pesquisas qualitativas tradicionais que tem mostrado melhor adequação aos estudos em saúde. Dentre as várias possibilidades de referencial qualitativo, no presente estudo optamos pela psicanálise, entendendo que tanto nas pesquisas qualitativas quanto nas pesquisas psicanalíticas objetiva-se compreender os sentidos e as significações atribuídos pelos sujeitos acerca dos fenômenos investigados, sem ter por objetivo alcançar resultados universais e verificáveis, uma vez que se trabalha na construção de uma interpretação possível, entre tantas concebíveis, para as narrativas dos participantes (Aiello-Fernandes, Ambrosio, & Aiello-Vaisberg, 2012Aiello-Fernandes, R., Ambrosio, F. F., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2012). O método psicanalítico como método qualitativo: considerações preliminares. In 10ª Jornada Apoiar - O Laboratório de Saúde Mental e de Psicologia Social - 20 anos: o Percurso e o Futuro (p. 306-314). São Paulo, SP.).

Após a aprovação pelo Comitê de Ética de Pesquisa envolvendo seres humanos (CAAE:70641417.9.0000.531), foram convidados todos os profissionais do setor de oncologia de um hospital-escola do interior do Rio Grande do Sul. Trata-se de um hospital onde, mensalmente, são atendidos cerca de 3.000 pacientes, estejam eles internados na instituição ou sendo acompanhados em sessões de quimioterapia, internados em casa sob cuidados paliativos ou em consultas ambulatoriais. Ao final, participaram 23 profissionais, dentre eles um médico, cinco psicólogos, dois terapeutas ocupacionais, três fisioterapeutas e 12 profissionais da área de enfermagem. Dentre os 23 participantes, 19 eram mulheres e quatro eram homens, cujas idades variaram entre 23 e 51 anos e cujo tempo de atuação na área variou de alguns meses até dez anos. Outro dado que vale ressaltar é que 16 eram funcionários da instituição hospitalar e os demais eram integrantes do programa de residência multiprofissional do hospital.

As entrevistas individuais foram desenvolvidas no próprio hospital e conduzidas segundo o método psicanalítico. Assim, privilegiando a técnica da associação livre, os participantes não foram entrevistados segundo um roteiro estruturado de perguntas, que poderiam inclusive furtá-los de falar espontânea e aprofundadamente sobre suas vivências profissionais. Entretanto, como nas entrevistas havia um objetivo científico, diferentemente do que ocorre no contexto exclusivamente clínico em que os pacientes podem falar sobre o que desejarem, fazia-se necessário voltar a atenção dos participantes para o tema de interesse da pesquisa, sem que isso se desse de forma demasiadamente diretiva e antipsicanalítica. Assim, optamos por lançar mão de um recurso dialógico que pudesse facilitar a comunicação emocional significativa sobre o tema de interesse da pesquisa, alinhando-nos a pesquisadores que vem fazendo uso do legado winnicottiano para pensar criativamente em estratégias metodológicas de pesquisa (Aiello-Fernandes, Ambrosio, & Aiello-Vaisberg, 2012Aiello-Fernandes, R., Ambrosio, F. F., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2012). O método psicanalítico como método qualitativo: considerações preliminares. In 10ª Jornada Apoiar - O Laboratório de Saúde Mental e de Psicologia Social - 20 anos: o Percurso e o Futuro (p. 306-314). São Paulo, SP.).

Winnicott (1994Winnicott, D. W. (1994). O jogo do rabisco. In C. Winnicott, R. Sheperd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas (J. O. A. Abreu, trad., p. 230-243). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. Trabalho original publicado em 1968.) fazia uso de um brincar, que denominou Jogo do Rabisco, por meio do qual ele e seu paciente faziam aleatoriamente rabiscos, que poderiam favorecer a comunicação subjetiva profunda do paciente. Por meio deste brincar, Winnicott (1994Winnicot, D. W. (1975). Objetos e fenômenos transicionais. In D. W. Winnicott. O brincar e a realidade (J. O. A. Abreu & V. Nobre, trads., p. 121-132). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho original publicado em 1951.) acreditava que poderia ser criado um ambiente lúdico no qual seus pacientes pudessem entrar em contato com questões angustiantes, de forma relativamente relaxada. Dessa maneira, inspiradas nesse brincar winnicottiano, nas entrevistas lançamos mão de um recurso dialógico paradigmaticamente análogo ao Jogo do Rabisco. Mas, ao invés de usarmos o Jogo do Rabisco, propriamente dito, fizemos uso de uma narrativa interativa, recurso dialógico já utilizado em investigações psicanalíticas (Aching, Biffi, & Granato, 2016Aching, M. C., Biffi, M., & Granato, T. M. M. (2016). Mãe de primeira viagem: narrativas de mulheres em situação de vulnerabilidade social. Psicologia em Estudo, 21(2), 235-244. doi: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i2.27820
https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i...
; Moraes & Granato, 2014Moraes, C. J. A., & Granato, T. M. M. (2014). Narrativas de uma equipe de enfermagem diante da iminência da morte. Psico, 45(4), 475-484. Recuperado de: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6678122
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
).

A narrativa interativa consiste numa história ficcional, inventada pelos pesquisadores, em que é narrado um episódio, relativo ao que se pretende investigar, sem um desfecho. Embora todos os elementos da narrativa interativa sejam inventados, de forma paradoxal, todos eles evocam algo que concretamente atravessa a dinâmica do acontecer humano focalizado na investigação e que acaba favorecendo que os participantes se identifiquem com ela e associem livremente a partir dela (Granato & Aiello-Vaisberg, 2016Granato, T. M. M., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2016). Interactive narratives in the investigation of the collective imaginary about motherhood. Estudos de Psicologia, 33(1), 25-35. doi: https://doi.org/10.1590/1982-02752016000100004
https://doi.org/10.1590/1982-02752016000...
). A narrativa interativa elaborada para esse estudo, e que apresentamos aos participantes como nosso rabisco inicial, foi a seguinte:

O despertador tocou. Joana desligou-o, mal acreditando que já era hora novamente de se levantar e de ir ao hospital. Ficou pensando que o ano ainda nem estava na metade, mas que ela já parecia se sentir tão cansada como se já estivesse no fim do ano. Enquanto se dirigia ao hospital, fazendo automaticamente aquele caminho que já lhe era tão familiar, começou a se lembrar do último paciente que atendera, no dia anterior. Ele viera acompanhado da esposa. Na sala de espera, ela chorava muito, segurando o tempo todo um lencinho de papel em suas mãos e ignorando toda a movimentação que se desenrolava ao seu redor. Ele, sentado ao lado da esposa, já sustentava a postura bem ereta, quase colada contra a cadeira, olhando para frente, com o semblante um tanto quanto bravo. Joana ficou se lembrando desse casal porque, dentre os vários pacientes e familiares que ela acompanhava, diariamente, no hospital, aquele tinha ficado marcado para ela. Isso porque […]

Após a leitura da narrativa interativa, os participantes eram convidados a escrever um desfecho, completando o ‘rabisco’. Em seguida, por meio de associação livre, os entrevistados eram convidados a falar sobre o seu dia a dia de trabalho, bem como sobre a relação com profissionais e pacientes do setor de oncologia.

As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra. Analisou-se, desse modo, o material constituído pelas transcrições das entrevistas e pelos desfechos criados pelos participantes pela narrativa interativa apresentada. Essa análise se deu segundo o método psicanalítico, de modo que em reuniões científicas foi realizado um trabalho de leitura dirigida pela escuta psicanalítica, semelhante ao que ocorre no contexto da clínica, em que se busca identificar as nuances e os tropeços do discurso (Irribary, 2003Irribary, I. N. (2003). O que é pesquisa psicanalítica? Ágora, VI(1), 115-138. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982003000100007
https://doi.org/10.1590/S1516-1498200300...
). A partir dessa leitura psicanalítica, em que foram levados em consideração os movimentos transferenciais (que os participantes podem ter apresentado) e as reações contratransferenciais despertadas no grupo de pesquisadoras, foi possível organizar o material em duas categorias que atravessavam esse coletivo investigado.

Vale ressaltar que, nessa pesquisa, seguimos as determinações da resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510, de 07 de abril de 2016, que normatizam as condições das pesquisas que envolvem seres humanos. Foram consideradas a ética, a preservação da identidade dos participantes e a proteção dos mesmos quanto a riscos ou perdas. Os participantes foram informados sobre o tema da investigação e suas implicações, tendo esclarecidos seus direitos enquanto participantes de pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão

A partir da análise do material foram identificadas duas categorias, intituladas ‘Aos outros eu devolvo a dor’ e ‘Dança da solidão’, inspiradas em músicas da cantora Marisa Monte.

Categoria 1 - ‘Aos outros eu devolvo a dor’

A categoria ‘Aos outros eu devolvo a dor’ refere-se ao sofrimento dos profissionais, frente ao cotidiano de trabalho atravessado pela perda de pacientes, bem como às estratégias defensivas adotadas. Em relação ao sofrimento, ele fica evidente no trecho referente à entrevista com uma das participantes:

A participante 2, uma enfermeira, escreve o seguinte desfecho para a narrativa interativa: “[...] também havia marcado muito porque foi Joana quem buscou o suporte que a paciente precisava, psicólogos, assistente social, oxigênio medicinal em domicílio. A história ‘não’ termina porque a paciente segue reinternando para dar continuidade ao tratamento e a equipe a espera no setor” (grifo nosso). Mais adiante, a participante diz que é comum os integrantes da equipe comentarem sobre os pacientes: “[...] Às vezes, quando falamos de alguma paciente, é impossível não lembrar de outros que já foram à óbito, pois as histórias são parecidas. Algo sempre nos remete a um paciente. A nossa memória nos traz a vivência com outro paciente, pois já sabemos o final da história [...]”.

Selecionamos esse material porque, ao criar o desfecho da narrativa interativa, a participante comete um ato falho, primeiramente escrevendo que a história do casal fictício havia terminado (terminalidade essa que pode remeter à morte) para, depois, acrescentar um ‘não’ que daria o sentido oposto, vale dizer, o de continuidade da vida. Vemos, assim, como esse ambiente hospitalar marcado por tantos óbitos, a ponto da participante 2 comentar que já sabe como as histórias dos pacientes terminam, provoca grande sofrimento, sendo inclusive necessário negar a morte, acrescentando literalmente um ‘não’ no desfecho da narrativa interativa e criando, com isso, um final de história menos infeliz.

Outros estudos apontam, em consonância ao nosso, que os diferentes profissionais que compõem a equipe oncológica experienciam profundo sofrimento ao lidarem cotidianamente com a morte. No estudo de Silva et al. (2015Silva, A. F., Issi, H. B., Motta, N. G. C., & Botene, D. Z. A. (2015). Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: percepções, saberes e práticas na perspectiva da equipe multiprofissional. Revista Gaúcha de Enfermagem, 36(2), 56-62. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.02.46299
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.0...
), em que nove profissionais da oncologia foram entrevistados, fica evidenciado como o sofrimento pela morte do paciente relaciona-se intimamente com o fato de os profissionais assumirem o tratamento do câncer como uma luta contra a morte, de modo que a perda de um paciente desperta sentimentos de impotência. É justamente por conta disso que Dias et al. (2020Dias, J. C., Pereira, W. R. L., & Finelli, L. A. C. (2020). A vivência da morte pela equipe de saúde que atua no setor de Oncologia. Bionorte, 9(1), 9-19. doi: http://dx.doi.org/10.47822/2526-6349.2020v9n1p9
https://doi.org/10.47822/2526-6349.2020v...
), que realizaram uma pesquisa em que seis profissionais de especialidades distintas foram entrevistados, sugerem que se faz necessário repensar a formação dos profissionais da área de saúde, que, de maneira geral, não são preparados para lidar com a terminalidade. De acordo com Moraes e Granato (2014Moraes, C. J. A., & Granato, T. M. M. (2014). Narrativas de uma equipe de enfermagem diante da iminência da morte. Psico, 45(4), 475-484. Recuperado de: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6678122
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
), vivemos uma cultura tão incapaz de refletir sobre a finitude da vida que isso reverbera inclusive nos cursos de graduação da área da saúde, com os acadêmicos sendo preparados apenas segundo a lógica da cura.

Talvez, justamente por estarem atravessados por esse imaginário que recusa a terminalidade, quando os profissionais precisam conviver cotidianamente com pacientes acometidos por uma doença silenciosa e traiçoeira, que pode avançar sobre qualquer ser humano (Craving et al., 2016Craving, N. A., Campo, M. V., Boro, G. C., Chiarella, J. M., & Marco, J. (2016). Interdisciplina en salud pública: imaginario social del equipo interdisciplinario de salud sobre el paciente oncológico. Revista de Investigación en Psicologia Social, 2(2), 33-45. Recuperado de:https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/psicologiasocial/article/view/2137/1832
https://publicaciones.sociales.uba.ar/in...
), acabam sendo ‘atropelados’ por ela, com alguns deles apresentando produções imaginativas de que ela poderia despontar em seus familiares e inclusive em si mesmos, como num fenômeno de contágio psíquico. Assim, de maneira similar a outros estudos empíricos com profissionais da oncologia, dentre os quais o de Dias et al. (2020Dias, J. C., Pereira, W. R. L., & Finelli, L. A. C. (2020). A vivência da morte pela equipe de saúde que atua no setor de Oncologia. Bionorte, 9(1), 9-19. doi: http://dx.doi.org/10.47822/2526-6349.2020v9n1p9
https://doi.org/10.47822/2526-6349.2020v...
) e o de Pacheco e Goldim (2019Pacheco, C. L., & Goldim, J. R. (2019). Percepções da equipe interdisciplinar sobre cuidados paliativos em Oncologia pediátrica. Revista Bioética, 27(1), 67-75. doi: https://doi.org/10.1590/1983-80422019271288
https://doi.org/10.1590/1983-80422019271...
), deparamo-nos com profissionais que não apenas nos relataram o sofrimento de estarem tão próximos da morte, por meio de seus pacientes, mas também o sofrimento de imaginarem que essa morte poderia se fazer ainda mais próxima deles. Para ilustrar essa questão, elegemos o seguinte material:

A participante 5, auxiliar de enfermagem, escreve uma lista de perguntas como desfecho para a narrativa interativa: “Como agiríamos ao receber um diagnóstico de câncer? Como fica nossa vida, planos, família, filhos, etc...?”. Ela comenta, ao longo da entrevista, sobre um caso que lhe foi muito marcante:

Um dia teve um rapaz aqui no hospital que morreu com a idade do meu filho. Ele tinha 19 anos e passou a tarde toda em sofrimento, agonizando, definhando aos poucos. E aí ele morreu e eu chorei a tarde inteira. Mas agora eu não choro mais. Mas tem dias que eu saio daqui com uma dor no meu corpo, um cansaço, uma sobrecarga muito grande, que não é tanto pelo trabalho, entende? Mas é o emocional dessa carga que a gente pega deles.

Chorando muito, ela comenta:

Nos primeiros meses, eu não tinha vontade de me cuidar, não tinha vontade de me arrumar, não tinha vontade de fazer mais nada. Aí as pessoas ficavam perguntando o que estava acontecendo comigo. Mas agora eu nem penso muito aqui quando eu vou para casa. Eu não sei se eu não estou pensando, mas estou guardando, porque toda essa dor que eu estou sentindo pode estar vindo por causa disso, porque eu estou guardando muita coisa emocionalmente e ela está vindo de forma física, né? Hoje de manhã mesmo eu queria levantar cedo para ir caminhar. Eu até acordei, mas eu não consegui sair da cama, porque eu já acordei cansada demais.

Por essa vinheta, fica explícito o imaginário da participante de que a fatalidade que atravessa os pacientes oncológicos pode chegar na sua vida (seja através de seu filho, mencionado na entrevista, seja através de si mesma, conforme ela questiona na narrativa interativa). Fica nítido também que, mesmo não estando com câncer, há o sentimento de estar adoecida, tanto que a participante relata acordar sentindo-se desvitalizada e cheia de dores. Por meio desse material também é possível tecermos reflexões sobre como esse sofrimento dos profissionais pode ser tão intenso que pode surgir um movimento de indiferenciação, com alguns deles não conseguindo se discriminar adequadamente de seus pacientes; pelo contrário, ficam imaginando-se no lugar deles e confundindo aquilo o que seria deles próprios e aquilo o que pertenceria aos outros.

Percebemos que, em alguns casos, haveria ainda um complexo interjogo de introjeção e de projeção, com os profissionais identificando em si mesmos aspectos que seriam originalmente do outro (introjeção) e, ao mesmo tempo, expulsando defensivamente aquilo o que sentem (projeção), devolvendo ao outro o sofrimento sentido. Esse movimento de ‘devolver a dor’, para não sucumbir ao sofrimento despertado pelo paciente, pode ser observado na seguinte vinheta:

A participante 9, terapeuta ocupacional, escreveu o seguinte desfecho para a narrativa interativa apresentada: “[...] havia recebido o resultado da biópsia confirmando um CA de esôfago”. Em seguida, a participante questionou se a pesquisa era só concluir a narrativa interativa, dizendo: “Ah, é que eu não me identifico com isso daqui, porque eu não fico em casa pensando nos pacientes. O que acontece no hospital fica no hospital [...] Não que eu seja frígida, mas é só um momento, né?”.

Elegemos esse material porque fica nítido o movimento de distanciamento de cunho defensivo adotado pela profissional. Esse distanciamento pode ser observado de diferentes formas: 1) através da fala manifesta de que os pacientes e o hospital se configuram exclusivamente em preocupações momentâneas; 2) por meio da invenção de um desfecho, para a narrativa interativa, que mais lembra uma escrita técnica num prontuário; e 3) mediante do comentário de cunho depreciativo sobre a narrativa interativa apresentada, que transferencialmente mais distancia entrevistadora e entrevistada do que as aproxima.

Esse movimento de distanciamento afetivo foi igualmente notado em outros estudos. Na pesquisa de Craving et al. (2016Craving, N. A., Campo, M. V., Boro, G. C., Chiarella, J. M., & Marco, J. (2016). Interdisciplina en salud pública: imaginario social del equipo interdisciplinario de salud sobre el paciente oncológico. Revista de Investigación en Psicologia Social, 2(2), 33-45. Recuperado de:https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/psicologiasocial/article/view/2137/1832
https://publicaciones.sociales.uba.ar/in...
), em que foram entrevistados sete integrantes de diferentes áreas, que compunham a equipe oncológica de um hospital argentino, observou-se a necessidade, por parte deles, de impor uma barreira entre eles e seus pacientes, para que não viessem a sofrer em demasia junto com os pacientes. Moraes e Granato (2014Moraes, C. J. A., & Granato, T. M. M. (2014). Narrativas de uma equipe de enfermagem diante da iminência da morte. Psico, 45(4), 475-484. Recuperado de: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6678122
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
), por sua vez, realizaram entrevistas mediadas por narrativa interativa com dez profissionais da enfermagem de uma UTI brasileira, e notaram que, como estratégia defensiva, os profissionais tentavam cultivar uma postura de indiferença, restringindo o vínculo com os pacientes para que se desse do modo mais técnico possível.

Em consonância com Moraes e Granato (2014Moraes, C. J. A., & Granato, T. M. M. (2014). Narrativas de uma equipe de enfermagem diante da iminência da morte. Psico, 45(4), 475-484. Recuperado de: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6678122
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
), consideramos natural e até desejável que o profissional tenha condições de recorrer a uma distância ‘segura’ para lidar com pacientes que estão morrendo. Pois, caso o profissional se mantenha fusionado demais ao paciente, pode acabar experienciando uma confusão de papéis, sentindo-se literalmente como um familiar do paciente (Dias et al., 2019Dias, I. M., Mendonça, E. T., Diaz, F. B. B. S., Ribeiro, L., & Alves, K. R. (2019). The process of care in oncology from the perspective of health professionals. Revista de Enfermagem da UFPI, 8(3), 4-11. doi: https://doi.org/10.26694/2238-7234.834-11
https://doi.org/10.26694/2238-7234.834-1...
) ou, ainda, tal como ocorria com a participante 5, sendo atravessado pela fantasia de que o câncer pode irromper em sua vida ou na de um familiar, tendo inclusive o próprio corpo acometido por dores físicas e outros sintomas.

Por outro lado, estamos de pleno acordo com Bianchini et al. (2016Bianchini, D., Romeiro, F. B., Peuker, A. C., & Castro, E. K. (2016). A comunicação profissional paciente em oncologia: compreensão psicanalítica. Revista Brasileira de Psicoterapia, 18(2), 20-36. Recuperado de:https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-848305
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/reso...
), para quem o cuidador precisa ser capaz de entrar minimamente em contato com os estados afetivos do paciente, caso contrário, o vínculo ‘frígido’ estabelecido entre profissional e paciente pode furtar o primeiro de identificar-se sensivelmente com as necessidades do segundo, produzindo um cuidado automático e protocolar. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o trabalho na oncologia não apenas exige uma multiplicidade de especialidades, como, também, demanda que cada profissional tenha a capacidade de ofertar um cuidado multidimensional, que conjugue habilidades técnicas e sensibilidade.

Essa reflexão sobre a distância ‘acertada’ entre o profissional e o paciente é passível de ser discutida à luz do conceito de falso self de Winnicott (1983Winnicott, D. W. (1983). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In D. W. Winnicott. O ambiente e os processos de maturação (I. C. S. Ortiz, trad., p. 128-139). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. Trabalho original publicado em 1960.), conceito esse que ele desenvolveu para se referir a uma camada protetora que encobriria o verdadeiro self, isto é, a constituição subjetiva do indivíduo. Winnicott (1983Winnicot, D. W. (1975). Objetos e fenômenos transicionais. In D. W. Winnicott. O brincar e a realidade (J. O. A. Abreu & V. Nobre, trads., p. 121-132). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho original publicado em 1951.) postulava a existência de um falso self saudável, que permitiria que o indivíduo renunciasse à ilusão de onipotência e desse conta de conviver socialmente. Mas ele também compreendia que poderia haver um nível de falso self em que o verdadeiro self seria completamente ocultado pelo falso self, havendo perda da espontaneidade, total submissão, sentimento de que a vida não vale a pena de ser vivida. Nesse sentido, podemos pensar que, dentre os profissionais entrevistados, encontramos aqueles que pareciam carecer de um falso self protetor, mergulhando intimamente na dor do outro, assim como outros que pareciam comunicar um distanciamento afetivo mais ligado a uma defesa do tipo dissociativa, com o falso self mais encobrindo do que protegendo o verdadeiro self. Seria necessária, entretanto, a adoção de uma terceira posição existencial, por parte do profissional, que não fosse nem de distanciamento total do paciente e nem de prejuízo emocional pessoal do profissional (Moraes & Granato, 2014Moraes, C. J. A., & Granato, T. M. M. (2014). Narrativas de uma equipe de enfermagem diante da iminência da morte. Psico, 45(4), 475-484. Recuperado de: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6678122
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
).

É justamente por conta dessa reflexão que compreendemos que a solução de melhor capacitar o profissional de oncologia para lidar com o fenômeno, conforme apontado nos estudos de Pacheco e Goldim (2019Pacheco, C. L., & Goldim, J. R. (2019). Percepções da equipe interdisciplinar sobre cuidados paliativos em Oncologia pediátrica. Revista Bioética, 27(1), 67-75. doi: https://doi.org/10.1590/1983-80422019271288
https://doi.org/10.1590/1983-80422019271...
) e de Silva et al. (2020Silva, R. C. V., Sant’Ana, R. S. E., Cardoso, M. B., R., & Alcântara, L. F. F. L. (2018). Tratado de enfermagem em oncologia. Lisboa, PT: Chiado Books.), deve ser relativizada. Concordamos com tais autores quanto à necessidade de desmistificar o tema da morte, entendendo que, para que o profissional consiga lidar melhor com a terminalidade, o ambiente hospitalar deve propor estratégias; caso contrário, é como se coubesse ao profissional desenvolver a capacidade de tolerar a frustração frente às perdas, numa perspectiva individual. Entendemos, entretanto, que, num extremo, os cursos técnicos podem potencializar o mecanismo defensivo da racionalização, com os profissionais assumindo uma postura mais intelectualizada e distanciada ainda. Seguindo o raciocínio winnicottiano, pensamos que os cursos podem tanto equivaler genuinamente a uma estratégia que venha a qualificar ainda mais o profissional ou, no avesso, a uma tentativa do tipo falso self de recorrer a mais intelectualizações que culminariam num cuidado mais mecânico e distanciado. Nesse sentido, vê-se a importância de que os cursos de capacitação levem em consideração não apenas aspectos informativos, apelando apenas para o lado racional do profissional, mas, também, estratégias que viabilizem a expressão do sofrimento, a sensibilidade e a criatividade, favorecendo de fato um cuidado humanizado.

Categoria 2 - ‘Dança da solidão’

Essa categoria refere-se ao sentimento de solidão dos profissionais em seu dia a dia de trabalho na oncologia. Assim, se na categoria ‘Aos outros eu devolvo a dor’ o que esteve em pauta foi o sofrimento dos profissionais por testemunharem a dor de seus pacientes e dela precisarem se distanciar defensivamente, na categoria ‘Dança da solidão’ o que se destaca é o sofrimento dos profissionais por sentirem que não há, na equipe composta por profissionais de diferentes especialidades, quem testemunhe o seu próprio sofrimento. Em outras palavras, essa categoria refere-se a uma experiência subjetiva marcada pela solidão, o que fica evidente a partir do seguinte material:

Ao ser apresentada a narrativa interativa, a participante 2, enfermeira, comenta sobre um caso que realmente a havia marcado muito, em que uma paciente, que ficara oito meses internada no hospital, fora a óbito. Conta:

A irmã dela, que acompanhou tudo, veio pedir um socorro para nós ali, e aí a gente a levou para dentro da unidade, onde ela chorou muito. Mas e depois disso, como o trabalhador ficou? Ninguém quer saber! Eu acho que precisa de um profissional que cuide do profissional. Eu vejo que a gente tem uma estruturação de preocupação da área da Psicologia e da Terapia Ocupacional com os pacientes, mas não com os próprios profissionais.

A participante então conta que até já havia pedido ao setor de saúde do trabalhador para que providenciasse um psicólogo aos profissionais, entendendo que, de outro forma, “[...] todos os profissionais vão adoecer”. Mas, diante da ausência de respostas, ela entendia que ela mesma deveria buscar por alternativas, como curtir seus cachorros tão logo chegasse em casa do trabalho.

A participante 2 destaca que, embora existam diferentes profissionais dedicados ao sofrimento dos pacientes, no que diz respeito ao cuidado dos profissionais entre si, ele se revela inexistente. É inclusive possível pensar que, a partir de sua fala de que “[...] todos os profissionais vão adoecer [...]”, a participante 2 estaria comunicando que, como não há relação de cuidado entre os próprios profissionais, o adoecimento de um profissional, transformando-o em um paciente, seria a única possibilidade de ele vir a ser cuidado por outro profissional.

Assim, de posse desse material, fica evidente que, apesar de o hospital estar conseguindo comprometer-se com as necessidades dos pacientes, o profissional não tem o seu protagonismo reconhecido enquanto alguém que também tem necessidades a serem atendidas. Segundo Silva et al. (2015Silva, A. F., Issi, H. B., Motta, N. G. C., & Botene, D. Z. A. (2015). Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: percepções, saberes e práticas na perspectiva da equipe multiprofissional. Revista Gaúcha de Enfermagem, 36(2), 56-62. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.02.46299
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.0...
), isso ocorre porque se espera que o profissional atenda a uma imagem idealizada de alguém que não é acometido por mal-estar emocional, de modo que os hospitais acabam constituindo-se em um verdadeiro esconderijo de sofrimento da parte dos profissionais.

Cabe destacar que, embora a participante 2 tenha discorrido sobre a importância de um trabalho psicológico dedicado aos profissionais, numa tentativa de deixar de dançar solitariamente com o seu sofrimento laboral, outros participantes, contrariamente, não vislumbravam a possibilidade de compartilharem sua experiência subjetiva do trabalho com seus pares. Um exemplo que ilustra bem essa questão é observado a seguir:

A participante 7, técnica de enfermagem, inventa, como desfecho para a narrativa interativa, que aquele casal de personagens da narrativa havia marcado a protagonista Joana porque o homem ficava “[...] ostentando estar forte, firme, enquanto sua esposa se desvaía a chorar, pois já ciente que poderia ser o fim para seu ente querido, talvez seu alicerce em sua casa”. Em seguida, ao longo da entrevista, a participante relata que acreditava que os profissionais deveriam ter mais dias de folga, para que tivessem mais tempo para si mesmos. Ao ser indagada se ela acreditava que um espaço de trocas, entre os profissionais, seria válido como estratégia de cuidado dedicado aos profissionais, ela diz:

Podia ter alguma coisa como uma roda de conversa ou até um profissional que pudesse nos atender individualmente, mas às vezes eu acho que se tivesse não teria muita procura, porque a gente não tem tempo para isso. Às vezes a gente mal tem tempo para tomar café. Imagina para ir ter uma conversa?

Selecionamos esse material porque a participante 7 manifesta a indisponibilidade em fazer parte de um dispositivo de cuidado emocional à equipe, caso ele existisse, dada a falta de tempo. De fato, sabemos que o profissional que atua em ambiente hospitalar tem, de maneira geral, uma rotina acelerada e atravessada por múltiplas demandas de cuidado, de modo que, para que ele tenha condições de efetivamente voltar-se para si, seria necessária uma mudança da cultura institucional (Silva et al., 2015Silva, A. F., Issi, H. B., Motta, N. G. C., & Botene, D. Z. A. (2015). Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: percepções, saberes e práticas na perspectiva da equipe multiprofissional. Revista Gaúcha de Enfermagem, 36(2), 56-62. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.02.46299
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.0...
). Mas, ao analisarmos mais detidamente o material relativo à entrevista com a participante 7, algo que chama a atenção foi o fato dela ser indagada sobre a possibilidade de contar com um espaço de trocas afetivas com os demais colegas de trabalho e, por associação livre, transformar esse espaço grupal em conversas individuais dos diferentes integrantes da equipe com um profissional especializado. Em cima dessa fala, seria possível nos questionarmos se, para além dos impeditivos de ordem institucional, a participante não teria comunicado, também, o sentimento de não poder contar com a equipe de profissionais para trocas afetivas. A dança da solidão, nesse sentido, teria a ver também com certa indisponibilidade emocional da equipe em compartilhar de modo solidário os sofrimentos vividos? Trata-se de algo que fica bem evidente a partir do trecho de outra entrevista:

A participante 17, fisioterapeuta, completa a narrativa interativa escrevendo que aquele casal havia marcado a protagonista Joana “[...] pela diferença de comportamento entre as duas pessoas [...]. Como as pessoas reagem diferente frente ao diagnóstico de uma doença tão devastadora”. Ao longo da entrevista, ela comenta que, apesar de todos os diferentes profissionais terem dificuldade para lidar com a morte do paciente, sentia que a reação dos médicos era a mais difícil. Explica: “Eles querem curar a doença. Mas, quando não tem mais o que fazer pela doença, eles desistem da pessoa, tanto que, em muitos casos, vemos que a Fisioterapia ainda poderia fazer muito pelo paciente, melhorar a qualidade de vida dele, mas, como não vai curar, isso é deixado de lado”. Quando questionada se havia a possibilidade de expor esses sentimentos aos demais colegas, a entrevistada relata que apenas junto àqueles da equipe da fisioterapia. Ela diz: “A gente acaba guardando nossa dor no bolso para cuidar da dor do outro. A gente reprime os sentimentos até sair dali. Mas, quando sai, a gente conversa sobre isso com a equipe (da fisioterapia)”.

Selecionamos esse material porque, embora, no desfecho da narrativa interativa, a participante 17 tenha versado sobre a diferença de postura dos integrantes do casal fictício, ao longo da entrevista, ela discorreu sobretudo sobre as diferenças que atravessam a equipe da oncologia, composta por profissionais de áreas distintas. Num primeiro momento, chama a atenção o fato de a participante sentir tensões na condução de certos casos com os profissionais de outras áreas de especialidade, o que tem sido amplamente discutido na literatura científica, em especial em relação à figura do médico, que, dada a predominância da cultura hierárquica, tende a ser aquele que centraliza as tomadas de decisão, despertando sentimentos de injustiça nos demais (Craving et al., 2016Craving, N. A., Campo, M. V., Boro, G. C., Chiarella, J. M., & Marco, J. (2016). Interdisciplina en salud pública: imaginario social del equipo interdisciplinario de salud sobre el paciente oncológico. Revista de Investigación en Psicologia Social, 2(2), 33-45. Recuperado de:https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/psicologiasocial/article/view/2137/1832
https://publicaciones.sociales.uba.ar/in...
; Horlait, Baes, Dhaene, Belle, & Leys, 2019Horlait, M., Baes, S., Dhaene, S., Belle, S. V., & Leys, M. (2019). How multidisciplinary are multidisciplinary team meetings in cancer care? An observational study in oncology departments in Flander, Belgium. Journal of Multidisciplinary Healthcare, 12, 159-167. doi: https://doi.org/10.2147/JMDH.S196660
https://doi.org/10.2147/JMDH.S196660...
; Veloso & Silva, 2018Veloso, C. S., & Silva, D. S. (2018). Desafios e descobertas sobre o atendimento interdisciplinar em pacientes oncológicos: revisão integrativa. Destaques Acadêmicos, 10(3), 199-208. doi: http://dx.doi.org/10.22410/issn.2176-3070.v10i3a2018.1968
https://doi.org/10.22410/issn.2176-3070....
; Wanderbroocke et al., 2018Wanderbroocke, A. C. N. S., Baash, C., Antunes, M. C., & Menezes, M. (2018). O sentido de comunidade em uma equipe multiprofissional hospitalar: hierarquia, individualismo e conflito. Trabalho, Educação e Saúde, 16(3), 1157-1176. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00155
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol001...
).

Num segundo momento, entretanto, notamos que a participante 17 descortina outro tipo de sofrimento, em relação aos seus colegas de trabalho, que já não se relacionaria com a incapacidade de tratar coletivamente os pacientes oncológicos: o sofrimento de não poder compartilhar com os colegas de outras áreas de especialidade o mal-estar despertado no cotidiano de trabalho. Trata-se assim de uma dificuldade, de natureza diversa daquela que comumente a literatura especializada tem se atentado, uma vez que não se refere à falta de troca de informações sobre os casos, impedindo o cuidado compartilhado do paciente, mas, sim, à falta de solidariedade que os integrantes sentem em relação às outras categorias profissionais, com as trocas afetivas ficando restritas ao contexto intradisciplinar (Cliche-Galarza, 2019Cliche-Galarza, M. (2019). L’interdisciplinarité au pays des protocoles: ethnographie du travail d’équipe dans une unité d’hémato-oncologie pédiatrique (Dissertação de Mestrado). Département d’Anthropologie da Faculté des Arts et Sciences, Université de Montréal, Quebec.).

Embora consideremos valioso que os profissionais da mesma área de especialidade tenham condições de contar uns com os outros para fazerem frente à dança solitária no setor de oncologia, entendemos como problemática essa dinâmica da equipe em que os diferentes profissionais são convocados a discutir conjuntamente questões públicas (relativas ao manejo dos casos atendidos) por meio de rounds, sentindo-se incapazes de compartilhar entre si questões de ordem privada (relativas ao sofrimento emocional do dia a dia na oncologia).

Aqui seria possível novamente fazermos alusão à obra de Winnicott, que tanto entendia que o indivíduo saudável é aquele que consegue habitar um espaço potencial, isto é um espaço intermediário entre a realidade externa e a realidade interna, que se configuraria como um local de refúgio (Winnicott, 1975). Embora ele tenha associado o espaço potencial principalmente ao brincar, é possível ampliarmos esse conceito, tal como faz Lopes (2016Lopes, M. T. S. (2016). Espaço potencial: o lugar do grupo de imaginação e de suas narratividades. Alter - Revista de Estudos Psicanalíticos, 34(1/2), 141-152. Recuperado de:http://www.bivipsi.org/wp-content/uploads/Espaco_potencial.pdf
http://www.bivipsi.org/wp-content/upload...
), entendendo que o espaço potencial pode ser vivido, por exemplo, ao se fazer parte de uma grupalidade em que cada um dos indivíduos pode ‘repousar’ nessa zona grupal. Nesse sentido, podemos pensar que, embora as instituições hospitalares estejam apostando na constituição de equipes interdisciplinares visando uma atenção mais integral aos pacientes, a grupalidade que tem sido experienciada tem tido o seu potencial desperdiçado, com os diferentes profissionais apenas compartilhando os espaços para discutir conjuntamente como manejar os casos comuns (quando o fazem), sem realizarem trocas afetivas entre si.

Desde essa perspectiva, seria possível pensarmos que uma das condições para que de fato esses diferentes profissionais possam vir a constituir efetivamente uma equipe interdisciplinar seja a de que consigam realizar trocas afetivas (e não apenas discussões técnicas sobre os casos) entre si. Concordamos com os demais pesquisadores que têm proposto soluções de natureza diversa para favorecer o maior sentimento de pertencimento dos diferentes profissionais de uma equipe. Tratam-se de soluções que envolvem desde a inclusão de cursos, na graduação, para que os profissionais de saúde aprendam a ter uma postura colaborativa em equipe interdisciplinar (Head et al., 2015Head, B. A., Schapmire, T., Earnshaw, L., Faul, A., Hermann, C., Jones, C., … Pfeiffer, M. (2015). Evaluation of an Interdisciplinary Curriculum Teaching Team-Based Palliative Care Integration in Oncology. Journal cancer Education, 31(2), 358-365. doi: https://doi.org/10.1007/s13187-015-0799-y
https://doi.org/10.1007/s13187-015-0799-...
), passando pela discussão sobre a possibilidade de as salas das diferentes categorias profissionais não serem separadas, o que cria mundos diversos dentro do hospital (Cliche-Calarza, 2019), até a instituição de rounds para que os diferentes profissionais troquem informações e façam deliberações interdisciplinares (Horlait et al., 2019Horlait, M., Baes, S., Dhaene, S., Belle, S. V., & Leys, M. (2019). How multidisciplinary are multidisciplinary team meetings in cancer care? An observational study in oncology departments in Flander, Belgium. Journal of Multidisciplinary Healthcare, 12, 159-167. doi: https://doi.org/10.2147/JMDH.S196660
https://doi.org/10.2147/JMDH.S196660...
). Entendemos, entretanto, que a interdisciplinaridade nos desafia a reconhecer que, para a construção de possibilidades inéditas de cuidado para os pacientes, faz-se necessário que os diferentes profissionais tenham também a possibilidade igualmente criativa de estarem vinculados, entre si, também em função de trocas afetivas.

Considerações finais

A partir dessa pesquisa, observamos que, embora o hospital seja o lugar de referência para lidar com as doenças do corpo, lidar com o sofrimento emocional ainda é grande desafio, tanto que os profissionais manifestaram: 1) sofrimento para lidar com o mal-estar de seus pacientes e com as perdas frequentes e 2) sofrimento por não ter condições de compartilhar seu mal-estar com os seus pares. O primeiro aspecto está em consonância, como vimos, com os estudos especializados sobre a temática. Já o segundo evidencia uma dimensão que não é muito abordada na literatura especializada, cabe dizer, a dificuldade de interação na equipe não apenas no sentido da divisão do trabalho, da troca de informações e decisões conjuntas sobre os pacientes, mas também no sentido de senso de pertencimento, havendo a possibilidade de trocas afetivas uns com os outros.

Apesar do número de participantes do estudo ser limitado, suas narrativas permitiram acessar a complexidade de suas experiências, especialmente no que se refere à dimensão afetivo-emocional. Evidentemente, como a pesquisa foi realizada somente em um hospital, é possível que essa seja uma limitação do presente estudo. Assim, apesar de termos ouvido profissionais de diversas áreas, como todos eles pertenciam a uma única equipe, pode ser que o sofrimento frente à impossibilidade de trocas afetivas com a equipe possa estar, em maior ou menor grau, atravessado por alguns fatores específicos desse contexto hospitalar abordado.

Entendemos, a despeito dessa limitação, que os achados dessa pesquisa nos permitem pensar que um dos alicerces fundamentais para a construção de um trabalho interdisciplinar seja a constituição de uma equipe que experiencie, para além de uma discussão compartilhada dos casos e da construção conjunta de intervenções, trocas afetivas, em que os sentimentos possam ser partilhados, acolhidos e cuidados. Em outras palavras, parece ser necessária a constituição de uma equipe em que a fragilidade emocional de cada profissional possa ter espaço e a crença na necessidade de manutenção de uma imagem idealizada possa ser desconstruída. Esse nos parece ser, inclusive, um horizonte importante para que o processo de humanização de nosso sistema de saúde possa ocorrer de forma efetiva.

Portanto, nosso estudo indica aspectos importantes que podem auxiliar no desenvolvimento de ações que tenham como foco tanto a saúde mental dos profissionais do setor de oncologia quanto o processo de humanização dos serviços nesse setor, que parecem ser dimensões indissociáveis. Dentre essas ações, apostamos, tal como alguns participantes mais esperançosos que foram entrevistados, na criação de um enquadre clínico, dentro da instituição hospitalar, em que os profissionais possam compartilhar suas experiências subjetivas, espaço esse fundamental não apenas para que eles se sintam emocionalmente amparados, mas, também, para que desenvolvam o senso de pertencimento à equipe, o que seguramente sustentaria intervenções mais integradas e humanizadas junto aos pacientes. Talvez somente assim seja possível, ao profissional, experienciar a atuação na área de oncologia sem precisar devolver aos pacientes seu sofrimento e sem dançar solitariamente.

Referências

  • Aching, M. C., Biffi, M., & Granato, T. M. M. (2016). Mãe de primeira viagem: narrativas de mulheres em situação de vulnerabilidade social. Psicologia em Estudo, 21(2), 235-244. doi: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i2.27820
    » https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i2.27820
  • Aiello-Fernandes, R., Ambrosio, F. F., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2012). O método psicanalítico como método qualitativo: considerações preliminares. In 10ª Jornada Apoiar - O Laboratório de Saúde Mental e de Psicologia Social - 20 anos: o Percurso e o Futuro (p. 306-314). São Paulo, SP.
  • Bianchini, D., Romeiro, F. B., Peuker, A. C., & Castro, E. K. (2016). A comunicação profissional paciente em oncologia: compreensão psicanalítica. Revista Brasileira de Psicoterapia, 18(2), 20-36. Recuperado de:https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-848305
    » https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-848305
  • Cliche-Galarza, M. (2019). L’interdisciplinarité au pays des protocoles: ethnographie du travail d’équipe dans une unité d’hémato-oncologie pédiatrique (Dissertação de Mestrado). Département d’Anthropologie da Faculté des Arts et Sciences, Université de Montréal, Quebec.
  • Colombat, P., Lejeune, J., Altmeyer, A., & Fouquereau, E. (2019). Mieux manager pour mieux soigner. Bulletin du Cancer, 106(1), 55-63. Recuperado de:https://www.em-consulte.com/en/article/1272727
    » https://www.em-consulte.com/en/article/1272727
  • Craving, N. A., Campo, M. V., Boro, G. C., Chiarella, J. M., & Marco, J. (2016). Interdisciplina en salud pública: imaginario social del equipo interdisciplinario de salud sobre el paciente oncológico. Revista de Investigación en Psicologia Social, 2(2), 33-45. Recuperado de:https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/psicologiasocial/article/view/2137/1832
    » https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/psicologiasocial/article/view/2137/1832
  • Dias, I. M., Mendonça, E. T., Diaz, F. B. B. S., Ribeiro, L., & Alves, K. R. (2019). The process of care in oncology from the perspective of health professionals. Revista de Enfermagem da UFPI, 8(3), 4-11. doi: https://doi.org/10.26694/2238-7234.834-11
    » https://doi.org/10.26694/2238-7234.834-11
  • Dias, J. C., Pereira, W. R. L., & Finelli, L. A. C. (2020). A vivência da morte pela equipe de saúde que atua no setor de Oncologia. Bionorte, 9(1), 9-19. doi: http://dx.doi.org/10.47822/2526-6349.2020v9n1p9
    » https://doi.org/10.47822/2526-6349.2020v9n1p9
  • Granato, T. M. M., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2016). Interactive narratives in the investigation of the collective imaginary about motherhood. Estudos de Psicologia, 33(1), 25-35. doi: https://doi.org/10.1590/1982-02752016000100004
    » https://doi.org/10.1590/1982-02752016000100004
  • Harshman, L. C., Tripathi, A., Kaag, M., Efstathiou, J. A., Apolo, A. B., Hoffman-Censits, J. H., … Sridhar, S. S. (2017). Contemporary patterns of multidisciplinary care in patients with muscle-invasive bladder cancer. Clinical Genitourinary Cancer, 16(3), 213-218. doi: https://doi.org/10.1016/j.clgc.2017.11.https://doi.org/10.1016/j.clgc.2017.11.004
    » https://doi.org/10.1016/j.clgc.2017.11
  • Head, B. A., Schapmire, T., Earnshaw, L., Faul, A., Hermann, C., Jones, C., … Pfeiffer, M. (2015). Evaluation of an Interdisciplinary Curriculum Teaching Team-Based Palliative Care Integration in Oncology. Journal cancer Education, 31(2), 358-365. doi: https://doi.org/10.1007/s13187-015-0799-y
    » https://doi.org/10.1007/s13187-015-0799-y
  • Horlait, M., Baes, S., Dhaene, S., Belle, S. V., & Leys, M. (2019). How multidisciplinary are multidisciplinary team meetings in cancer care? An observational study in oncology departments in Flander, Belgium. Journal of Multidisciplinary Healthcare, 12, 159-167. doi: https://doi.org/10.2147/JMDH.S196660
    » https://doi.org/10.2147/JMDH.S196660
  • Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva[INCA]. (2019). Estimativa 2020: estimativa de câncer no Brasil Rio de Janeiro, RJ: INCA.
  • Irribary, I. N. (2003). O que é pesquisa psicanalítica? Ágora, VI(1), 115-138. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982003000100007
    » https://doi.org/10.1590/S1516-14982003000100007
  • Lopes, M. T. S. (2016). Espaço potencial: o lugar do grupo de imaginação e de suas narratividades. Alter - Revista de Estudos Psicanalíticos, 34(1/2), 141-152. Recuperado de:http://www.bivipsi.org/wp-content/uploads/Espaco_potencial.pdf
    » http://www.bivipsi.org/wp-content/uploads/Espaco_potencial.pdf
  • Luz, K. R., Vargas, M. A. O., Barlem, E. L. D., Schmitt, P. H., Ramos, F. R. S., & Meirelles, B. H. S. (2016). Estratégias de enfrentamento por enfermeiros da Oncologia na alta complexidade. Revista Brasileira de Enfermagem, 69(1), 67-71. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690109i
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167.2016690109i
  • Moraes, C. J. A., & Granato, T. M. M. (2014). Narrativas de uma equipe de enfermagem diante da iminência da morte. Psico, 45(4), 475-484. Recuperado de: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6678122
    » https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6678122
  • Pacheco, C. L., & Goldim, J. R. (2019). Percepções da equipe interdisciplinar sobre cuidados paliativos em Oncologia pediátrica. Revista Bioética, 27(1), 67-75. doi: https://doi.org/10.1590/1983-80422019271288
    » https://doi.org/10.1590/1983-80422019271288
  • Reis, C. G. C., Farias, C. P., & Quintana, A. M. (2017). O vazio de sentido: suporte da religiosidade para pacientes com câncer avançado. Psicologia, Ciência & Profissão, 37(1), 106-118. doi: https://doi.org/10.1590/1982-3703000072015
    » https://doi.org/10.1590/1982-3703000072015
  • Silva, A. F., Issi, H. B., Motta, N. G. C., & Botene, D. Z. A. (2015). Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: percepções, saberes e práticas na perspectiva da equipe multiprofissional. Revista Gaúcha de Enfermagem, 36(2), 56-62. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.02.46299
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.02.46299
  • Silva, R. C. V., Sant’Ana, R. S. E., Cardoso, M. B., R., & Alcântara, L. F. F. L. (2018). Tratado de enfermagem em oncologia Lisboa, PT: Chiado Books.
  • Soukup, T., Gandamihardja, T. A. K., McInerney, S., Green, J. A. S., & Sevdalis, N. (2019). Do multidisciplinary cancer rare trams suffer decision-making fatigue: an observational, longitudinal team improvement study. BMJ Open, 9(5). doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2018-027303
    » https://doi.org/10.1136/bmjopen-2018-027303
  • Tremblay, D., Roberge, D., Touati, N., Maunsell, E., & Berbiche, D. (2017). Effects of interdisciplinary teamwork on patient-reported experience of cancer care. BMC Health Services Research, 17(218). https://doi.org/10.1186/s12913-017-2166-7
    » https://doi.org/10.1186/s12913-017-2166-7
  • Turato, E. R. (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Veloso, C. S., & Silva, D. S. (2018). Desafios e descobertas sobre o atendimento interdisciplinar em pacientes oncológicos: revisão integrativa. Destaques Acadêmicos, 10(3), 199-208. doi: http://dx.doi.org/10.22410/issn.2176-3070.v10i3a2018.1968
    » https://doi.org/10.22410/issn.2176-3070.v10i3a2018.1968
  • Wanderbroocke, A. C. N. S., Baash, C., Antunes, M. C., & Menezes, M. (2018). O sentido de comunidade em uma equipe multiprofissional hospitalar: hierarquia, individualismo e conflito. Trabalho, Educação e Saúde, 16(3), 1157-1176. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00155
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00155
  • Winnicot, D. W. (1975). Objetos e fenômenos transicionais. In D. W. Winnicott. O brincar e a realidade (J. O. A. Abreu & V. Nobre, trads., p. 121-132). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho original publicado em 1951.
  • Winnicott, D. W. (1983). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self In D. W. Winnicott. O ambiente e os processos de maturação (I. C. S. Ortiz, trad., p. 128-139). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. Trabalho original publicado em 1960.
  • Winnicott, D. W. (1994). O jogo do rabisco In C. Winnicott, R. Sheperd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas (J. O. A. Abreu, trad., p. 230-243). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. Trabalho original publicado em 1968.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2020
  • Aceito
    12 Ago 2021
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br