Acessibilidade / Reportar erro

Cartório de Freud

Freud's notary public's office

Resumos

O abandono do atendimento psicológico é uma constante, e este fato constitui uma das mais preocupantes incógnitas do profissional psi. É exatamente desta "estranheza clínica" que Di Loreto trata neste artigo. Com a experiência profissional de algumas décadas e a argúcia que lhe é peculiar, o autor revisita alguns dos inúmeros e complexos atendimentos que realizou na área da psicoterapia infantil. E neste percurso nos oferece instigantes avaliações. Mais que isso: traz uma alento ao jovem profissional que se culpabiliza pelas desistências de seus clientes. Parafraseando Francis Bacon (1561-1626), é possível afirmar que com estas reflexões Di Loreto "abrevia as dores do parto".

psicoterapia infantil; clínica psicológica; saúde mental


The discontinuance of the psychological attendance is a constant, and this fact constitutes one of the most preoccupying unpredictabilities of the professional that works in the psychological field. It is exactly about this "clinical strangeness" that Di Loreto deals with in this article. With the professional experience of some decades and the subtleness that is peculiar to him, the author revisits some of the countless and complex attendance he accomplished in the area of child psychotherapy. And along this journey he offers us instigating evaluations. More than that: he brings encouragement to the young professional that blames himself for the desistance of his patients. Paraphrasing Francis Bacon (1561-1626), it is possible to affirm that with these reflections Di Loret "abbreviates the pain of childbirth".

child psychotherapy; psychological clinic; mental health


ARTIGOS

Oswaldo Dante Milton di Loreto

Médico Psiquiatra. Fundador da Comunidade Terapeutica "ENFANCE". Notório Saber, outorgado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Princesa Isabel, 1360 CEP 04601-003 Campo Belo - São Paulo - SP Tel. (011) 241.4245

RESUMO

O abandono do atendimento psicológico é uma constante, e este fato constitui uma das mais preocupantes incógnitas do profissional psi. É exatamente desta "estranheza clínica" que Di Loreto trata neste artigo. Com a experiência profissional de algumas décadas e a argúcia que lhe é peculiar, o autor revisita alguns dos inúmeros e complexos atendimentos que realizou na área da psicoterapia infantil. E neste percurso nos oferece instigantes avaliações. Mais que isso: traz uma alento ao jovem profissional que se culpabiliza pelas desistências de seus clientes. Parafraseando Francis Bacon (1561-1626), é possível afirmar que com estas reflexões Di Loreto "abrevia as dores do parto".

Palavras-chave: psicoterapia infantil, clínica psicológica, saúde mental.

ABSTRACT

The discontinuance of the psychological attendance is a constant, and this fact constitutes one of the most preoccupying unpredictabilities of the professional that works in the psychological field. It is exactly about this "clinical strangeness" that Di Loreto deals with in this article. With the professional experience of some decades and the subtleness that is peculiar to him, the author revisits some of the countless and complex attendance he accomplished in the area of child psychotherapy. And along this journey he offers us instigating evaluations. More than that: he brings encouragement to the young professional that blames himself for the desistance of his patients. Paraphrasing Francis Bacon (1561-1626), it is possible to affirm that with these reflections Di Loret "abbreviates the pain of childbirth".

Key words: child psychotherapy, psychological clinic, mental health.

Tudo começou com o minúsculo detalhe clínico a desafiar a argúcia do jovem médico: alguns pais não comparecem à entrevista final para receber os resultados do estudo psicológico do filho.

O fenômeno é completamente non sense e o fato de não ser muito raro só o torna mais sem sentido ainda.

Vejam os leitores se há algum cabimento: os pais tomam a iniciativa da consulta, comparecem eles mesmos a uma ou mais entrevistas anamnésticas, trazem o filho a duas ou três sessões de exame, mais algumas vindas para a realização de testes psicológicos e... desaparecem. Não querem mais saber se o filho tem, ou não tem, distúrbios psíquicos!!! Não querem saber se são graves, se exigem tratamento...

As primeiras vezes que estas estranhezas clínicas aconteceram comigo, eu apenas me iniciava na Psiquiatria Infantil. Lá pelos idos de 1956, no Hospital das Clínicas. E serem justamente pacientes do Hospital das Clínicas acrescenta mais "non sense" ainda, pois eram pessoas muito pobres e que residiam nas mais longínqüas periferias de São Paulo. Haviam feito os maiores sacrifícios pessoais e econômicos para comparecerem a todas aquelas consultas.

Mas o que me pôs intrigado, "mesmo", foi a impressão de que esses fenômenos só ocorriam nos atendimentos psicológicos.

Fazia apenas dois anos que eu concluíra o curso médico. Tinha, portanto, a memória inteiramente disponível para os contrastes entre os fatos da prática clínica que eu recém vivera na Pediatria somática e o que me acontecia agora na Pediatria psíquica. E nunca-jamais eu vira acontecer algo semelhante na outra Pediatria. Aliás, nos atendimentos somáticos estas coisas não só eram diferentes mas eram também diametralmente opostas. Se eu, por qualquer motivo, demorasse para fechar um diagnóstico, as mães "não largavam do meu pé": "Já chegou o exame de sangue?" "Ainda estão altas as bilirrubinas?" "O Sr. pediu o Raio X ?"

Não é que eu não conhecesse a perda e o abandono de pacientes. Conhecia. Na Pediatria, mesmo, eu vivera muitos episódios de ser abandonado. Mas eram sempre abandonos que continham uma certa lógica e permitiam, ao menos, suspeita de compreensibilidade. Por exemplo, quando eu mostrava muita insegurança nos procedimentos. Ou quando me irritava com alguma mãe e destilava sutil veneno agressivo. Ou quando a minha extrema juventude (a horrível "cara de menino") abalava a indispensável confiança básica. E não só na Pediatria. Quando passei pelas Clínicas Cirúrgicas, vivi até duas situações marcantes de perda de pacientes, uma traumática e outra bizarra. A experiência traumática foi trágica e me pegou fundo.

Havia um jovem amigo da família Di Loreto. Tinha cinco ou seis anos mais do que eu e era especialmente chegado a meu irmão mais velho. Ambos eram exímios patinadores, viviam para a patinação. Quando eu cursava o 5° ano médico, o amigo da família me procurou queixando-se de dores nas pernas. Estava tenso e deprimido; não conseguia mais patinar. Pedi a um de meus professores que o atendesse e os exames revelaram grave moléstia obstrutiva das artérias dos membros inferiores. Consegui que fosse internado na Clínica Cirúrgica onde eu fazia estágio, o que me permitia estar próximo a ele. O quadro obstrutivo evoluiu rapidamente para o pior e a amputação de uma das pernas tornou-se conduta inexorável. Desesperado, pedia e pedia-me que não permitisse que o amputassem. O que eu poderia fazer? Apenas reiterei o que ele já sabia: a alternativa era a morte. Respondeu-me que a morte era um preço menor. O grande preço era a amputação. Ainda assim, foi marcada a cirurgia. Naquela manhã cheguei bem cedinho ao Hospital, para estar junto com ele nos procedimentos pré-cirúrgicos. Quando me aproximo do Hospital, vejo um grande e ruidoso aglomerado de pessoas junto à ala do Pronto Socorro e, naturalmente, fui saber do que se tratava. Alguém disse: um paciente se jogou do 9° andar. Tive certeza que era ele e veio o coice no estômago. Jamais antes houvera imaginado que a contração das vísceras pudesse transformar um homem numa vírgula. Restaram-me ilógicas culpas. Sou terráqueo e, como tal, tenho mente perversa. Cheia de canais subterrâneos que desembocam, mesmo ilogicamente, em punições.

O outro caso de abandono foi muito diferente. Como disse, bizarro. Ficou conhecido pelo Hospital das Clínicas de ponta a ponta e tornou-se objeto de chistes os mais maldosos.

Eu estava agora no 6° ano e estagiava em outra Clínica Cirúrgica, esta especializada em moléstias do aparelho digestivo. Logo no início do estágio, internou-se num leito que eu ajudava a cuidar uma mulher, mais ou menos 40 anos, muito simplória, "da roça". Vinha para a retirada de um tumor no intestino grosso.

Estas cirurgias se fazem em dois tempos. No primeiro retira-se a parte do intestino que contém o tumor, mas não se refaz o caminho para o trânsito intestinal. A "boca" do intestino é implantada numa abertura feita no abdômen, e com isso as fezes são derivadas para uma bolsa coletora externa. Este anus "diferente daquele da natureza" é chamado de colostomia (do grego; colon = intestino; estoma = boca). O paciente com a colostomia vai para casa e é reinternado após algumas semanas para realizar o segundo tempo, em que são ligadas as duas partes do intestino. É fechada a colostomia e restaurado o trânsito "conforme a natureza".

Ocorre que esta mulher fez o primeiro tempo e implantou a colostomia, mas, incompreensivelmente, negava-se agora a fazer o segundo tempo. Inicialmente com desculpas, depois com desculpas esfarrapadas. Por fim, empacou em obstinado mutismo. Obedecendo ordens do cirurgião, intimei-a duramente. Foi pior. Abandonou os tratamentos e sumiu-se. Trazida ao Hospital "meio na marra" pelo Serviço Social, e super-pressionada pelos médicos, acabou "entregando": o marido apaixonara-se pela colostomia. Sexualmente.

Tão logo chegara em casa após a internação e retomara saudosas intimidades matrimoniais, o marido contemplou a colostomia e tomou-se de amores de perdição por ela. Só de ver a boca da colostomia tinha ereções de intensidade dantes nunca suspeitadas. E a vida conjugal jamais havia sido tão prazerosa e satisfatória para o marido e, por tabela, para si mesma!

O que tornava a situação imanejável era que o desejo de manter a colostomia a serviço do marido era dela. Defendia até a morte que isto fazia parte de seus deveres conjugais. O marido não pressionara, sequer pedira. Ele contribuía para o "imbróglio" apenas com o desejo sexual.

Os leitores, por certo, imaginam o quanto esta mulher foi pressionada, orientada e "terapeutizada". Em vão. Abandonou os tratamentos e até o fim do meu estágio, meses após, mantinha-se inexpugnável. E até onde pude acompanhar continuavam, ela, o marido e a colostomia em tardia mas idílica lua-de-mel.

Duvido que qualquer leitor tenha exemplo prático tão espetacular do mecanismo mental descrito por Anna Freud, a identificação com o agressor. Ou, melhorando um pouco, identificação com o desejo do agressor.

Os leitores vêem que eu tinha, se não larga, ao menos variada experiência pregressa com o abandono e com a perda. Mas, elas aconteceram sempre dentro de algum contexto. Nada comparável àquele absurdo: sumir, desaparecer, volatilizar. Volatilização de pais.

Não me ocorrendo nenhuma explicação para o fenômeno, apenas registrei-o na mente. Naquele departamento da memória que todo jovem de qualquer idade possui debaixo da etiqueta: "Quando eu crescer..." Mas mantive, evidentemente, um olho esperto nos acontecimentos dessa natureza.

Passaram-se os tempos, tanto o cronológico quanto o dinâmico, acrescento algumas centenas de atendimentos a crianças e pais, e o olho esperto já "mostra serviço". Revela-me que a volatilização de pais se apresenta também sob outras formas. Até mais freqüentes do que aquela inicial. Esta primeira servira apenas para espertar o olho.

Passei a notar que um número bastante freqüente de pais (geralmente mães) marcava consulta, comparecia à entrevista inicial, contava sua his(es)tória, relatava sintomas do filho (por vezes preocupantes), marcava a segunda entrevista, para si ou para o filho e ... volatilizava-se. Nunca mais apareciam. Não davam notícias, desculpas ou pretextos. Sumiam. Atendimentos de uma única consulta, em que eu não dissera sequer uma palavra.

Os leitores que não atendem a crianças talvez não tenham idéia da freqüência destes atendimentos de uma só entrevista seguida de volatilização. Acontece muito. Se hoje, ano 2000, algumas décadas após aqueles começos, fosse contar o número de crianças cujas histórias conheço, mas que nunca vi, chegaria facilmente à casa das centenas.

Mais algum tempo e mais um bom serviço prestado pelo "olho esperto". Ele, agora, me levou a estranhar o que acontecia com o telefone. Mais especificamente com o telefonema para marcação da primeira consulta.

A dinâmica que cerca o telefonema para a marcação da primeira consulta na Pediatria somática é curiosa e útil. Uma certa tensão ansiosa, natural em quem tem filho doente, leva as mães a não só marcarem um horário como a despejar toda a sintomatologia, o que é útil para o clínico avaliar o grau de urgência que o quadro merece. Jovem, eu me encantava com a finura de sensibilidade dos pediatras experientes. Um certo "quê" na sintomatologia, ou variações naquela "tensão ansiosa" , permitia-lhes descriminar: "Traga a criança já!" ou marcar a consulta para dali a dois dias. Nunca erravam.

Mas, começei a notar que na clínica psicológica, o telefonema para marcação da primeira consulta é, freqüentemente, apenas curioso.

Os leitores, que não trabalham com crianças não fazem idéia do número de telefonemas para marcar a primeira consulta psicológica em que um dos pais, apenas um nome será posto, às vezes nem isso, se põe a contar, não só a sintomatologia mas toda a história da vida. Incluindo aí detalhes sórdidos e escabrosos, sobre a vida pessoal e familiar. Os leitores, por certo, conhecem a dinâmica dos telefonemas in-desligáveis. É deles que estou falando.

Pois bem, estas mães contam suas histórias com todos os detalhes, marcam consulta para a criança e... volatilizam. Somem-se.

Até há nove–dez anos, antes de entender certas coisas, eu me perguntava: - "Onde foi parar a ansiedade demonstrada ao telefone? A preocupação?"

Quem ficava preocupado era eu. É que muitas destas mães relatavam sintomas cabeludíssimos e preocupantes . E eu até arriscava dar um toque confirmando a importância da consulta. Mas, qual nada! Evaporavam-se.

Se hoje, ano 2000, fosse somar àquelas histórias de crianças que nunca vi estas que só conheço pelo telefone, chegaria a um algarismo seguido de três zeros.

Voltando a meus inícios. Todos esses tipos de atendimentos abortados eram tão freqüentes e intrigantes que venci o constrangimento, criei coragem e resolvi contar sobre eles a todos os psiquiatras de crianças do Estado de São Paulo (ou seja, os três que existiam, além de mim mesmo). Eles me confirmaram que estes fenômenos ocorriam também com eles. Felizmente. E me ofereceram uma explicação que, de início, considerei satisfatória e me sossegou. Mas só até o momento em que percebi que havia um "furo" na lógica explicativa. Os colegas disseram-me que pais (ou pacientes) muito "carregados", quando fazem contato com um clínico, "descarregam" a ansiedade, sentem-se melhor e por isso não necessitam comparecer às entrevistas seguintes. Seria uma argumentação irrepreensível se não fosse "furada" no seguinte ponto: se alguém só descarregou um sentimento ou um conflito e, portanto, ele permanece imodificado, evidentemente ele volta a "recarregar". O paciente tende a retornar, mesmo que só para novas descargas. Esta hipótese não explica a volatilização. O cliente da "descarga" é o paciente recorrente, irregular, meteórico. Aquele que vive nos pedindo pronto socorro psicológico. Não o volatilizado.

E, assim, essas esquisitices que eu constatava serem peculiares ao atendimento psi foram ficando sem compreensão. Só fizeram engrossar a fila de espera do crescimento profissional.

Decorrido mais um bom tempo, consegui um passo à frente. Petit à petit fui constatando que estes vários tipos de desaparecimentos de pais não obedeciam a nenhuma lógica clínica. Não eram os pais de pacientes menos graves (ou mais) que sumiam. Não eram também os menos ou mais ansiosos, os deprimidos, histriônicos, paranóides, hipocondríacos, inseguros etc ... etc... Esta constatação fez desabar até a vaga hipótese, que eu mantinha secretamente, de que os volatilizados fossem os pais paranóicos que fantasiavam resultados graves. Ficou visível: não seria por correlações clínicas que eu iria matar a charada.

Também não encontrei nenhum outro tipo de lógica. Aparentemente os pais volatilizavam por combustão espontânea.

Descartada a possibilidade de explicar esses fenômenos pela lógica clínica (ou por combustão espontânea), restaria apenas a suposição de que nossos pacientes sejam tolos, fazem coisas sem sentido. Mas eu sabia que esta hipótese também não era verdadeira.

Apesar de, nesta época, eu fazer uma psiquiatria clássica e ter uma concepção da mente rigorosamente descritiva (só tive acesso às teorias psicodinâmicas exatos dez anos após meus inícios), eu não era tão clássico e tão descritivo assim, a ponto de confundir estranhas lógicas com tolice. Mais tarde tive tanta certeza disso que até fabriquei um slogan, para espertar o olho também dos meus alunos: "NOSSOS PACIENTES SÃO APENAS LOUCOS. NÃO SÃO BOBOS".

Portanto, esses comportamentos estranhos deviam obedecer a alguma outra lógica. Mas, qual? Frente à impossibilidade de compreendê-la, resolvi aproveitar o fato de eu estar apenas iniciando a vida profissional e ter toda ela ainda por desdobrar e coloquei os temas relacionados à volatilização sob a forma de pesquisa. Pesquisa informal, para uso e prazer próprio. Sem estatísticas, gráficos ou tabelas. Nem mereceria o pomposo nome de pesquisa. Seria mais uma "pesquisa". Trata-se de utilizar cada atendimento para manter atenção seletiva e investigação especial para algum item. Venho fazendo isso nos últimos quarenta anos com alguns temas que achei intrigantes. Cito um de amostra: as crianças, quando grandes, acima de 7 anos, são psicologicamente semelhantes ao que eram no primeiro ano de vida? Ou são diferentes?

Mais alguns anos e mais alguma experiência. Agora com amostras diversificadas, pois já não atendo apenas no Hospital das Clínicas, mas também em outros ambulatórios e até num acarpetado consultório particular. Acrescente-se ainda o fato de eu já ser um psicoterapeuta de crianças. Nos primeiros seis anos não me arriscara ser um psicoterapeuta, mas agora conseguia superar-negar-racionalizar minhas inseguranças e tinha vários pequenos pacientes em psicoterapia. Até aqui, o único recurso de tratamento que eu manejara era a orientação de pais. Que, na prática, resultava ser de mães. Individuais e em grupos.

Esses aumentos quantitativos e qualitativos foram preciosos.

Os atendimentos no acarpetado consultório eliminaram uma razoável dúvida que eu vinha trazendo dos tempos de trabalho exclusivo no Hospital das Clínicas. Agora eu podia me dizer: dinheiro e cultura não vacinam contra a volatilização. A incidência era idêntica àquela que ocorria no pobre e rude proletariado.

E as psicoterapias me mantinham muito mais tempo em contato com os pacientes e com as famílias do que quando eu realizava apenas orientações. E foi justamente das psicoterapias que vieram as próximas descobertas sobre as irracionalidades que habitam a profissão que eu escolhera.

Na mesma linha das ilógicas "descargas sem recargas", dos resultados não buscados e das enigmáticas mas inócuas "consultas" pelo telefone, eu me espantava agora com a quantidade de irracionalidades que cercavam as psicoterapias de crianças!

Aliás, em matéria de psicoterapia de crianças, logo vi que as ilogicidades clínicas começavam cedo. Começam já com a indicação.

Como disse, eu saíra da Pediatria somática há pouco tempo. E o tempo que passara nela fora suficiente para intuir qual era a dinâmica natural e desejável da reação dos pais à comunicação de um diagnóstico e à indicação de um tratamento. A devolutiva, como se convencionou chamar (E apenas intuir. A compreensão e tradução em palavras vieram muito depois. Por isso estou relatando "muito depois").

Quando, na Pediatria, eu dava aos pais um diagnóstico e indicava um tratamento, a reação deles era, quase sempre, desejavelmente dissociada. Não unificada. De um lado eles ficavam tensos, preocupados e hostis-agressivos comigo. Reação compreensível. Afinal, eu fora portador de uma má notícia, a confirmação da existência de um distúrbio. Mas, por outro lado, ficavam aliviados, pois a afirmação de um diagnóstico significava o fim das dúvidas, incertezas e ansiedades trazidas pelo desconhecido. ("Diagnóstico", até etmologicamente, significa "obtenção de um conhecimento"). Além de aliviados, os pais ficavam gratos, pois eu fora portador também de uma boa notícia: existe o distúrbio, mas existe tratamento. As proporções relativas entre hostilidade e gratidão variavam conforme fatores compreensíveis: a gravidade da moléstia, a eficiência presumida dos tratamentos, os medos particulares de cada um, os custos emocionais e financeiros do tratamento etc... etc.

Quando a comunicação que eu devia fazer era unificada - a moléstia era grave e não se conheciam tratamentos - (certos tipos de leucemias, por exemplo), a reação dos pais também se unificava. Não havendo pelo que ter alívio e gratidão, só restava a hostilidade. E ela era tão integral que eu, jovem, com horrível cara de menino, não tinha coragem de enfrentá-la. Sempre pedia para colegas "com muitos mais quilômetros rodados" que fossem os portadores da péssima notícia. Mas nos casos corriqueiros, mais "feijão-com-arroz", as reações normais e desejáveis eram aquelas dissociações.

Este aprendizado eu trazia da Clínica Médica e da Pediatria.

Chegando à Psiquiatria infantil encontrei tudo diferente. Pelo avesso. Só um número baixo de pais reagia por padrões semelhantes àqueles habituais na clínica somática.

Por motivos e razões que não quero especular, só descrever fatos, dizer a um pai que ele tem um filho com algum distúrbio psíquico não traz alívio. Traz um misto de hostilidade e vergonha. Geralmente, na ordem inversa. Já disse que não quero especular sobre os porquês, mas não posso deixar de afirmar que o traço mais característico que encontrei quando me "bandeei" para os lados da mente é a vergonha que acompanha toda referência a distúrbios da mente. Verdadeira marca registrada, carimbo das profissões psicológicas. Lidar com esses dois pesados sentimentos, a hostilidade e a vergonha, no relacionamento com pessoas, no caso os pais, que conhecemos pouco e recentemente, exigiu-me o aprendizado de um certo malabarismo contorcionista, não só técnica.

Não havendo alívio, não há gratidão. Não me lembro de ter recebido, de tão raro que é, algum "muito obrigado" numa devolutiva psicológica, mesmo em casos em que eu "dera o sangue", até a última hemácia, para realizar trabalhosíssimos diagnósticos. A gratidão só virá mais tarde, se e quando a criança apresentar melhoras visíveis com o tratamento.

Sendo a reação dos pais unificada, portanto hostil, dar devolutivas psicológicas fica muito pesado. Trabalhando, como eu trabalhava, num movimentado ambulatório, eu me sentia como quem deve comunicar, no mínimo uma vez por dia, que o filho tem, leucemia. Todos os dias.

Retrospectivamente compreendo porque "a devolutiva" é o momento clínico mais assustador da psicologia infantil. E aceito gostosamente que os trabalhadores jovens, hoje, me procurem para discutir os casos, exatamente quando têm que dar uma devolutiva.

Também retrospectivamente entendo porque só tive coragem de abrir consultório particular após nove anos de trabalho, protegido pelo escudo de uma grande e respeitada instituição como o Hospital das Clínicas. E me dou beijos por isso. Não tive que me haver, antes do tempo possível, sozinho com esses medos e essas ansiedades profissionais insuportáveis. A devolutiva em psicologia clínica da infância só pode ser descrita com superlativos. É importantíssima, curiosíssima e delicadíssima. É lá que se jogam os destinos psíquicos da criança. Mereceria um Tratado. (Talvez um dia eu o escreva). Por enquanto, estou interessado neste "tratado sobre irracionalidades" que habitam a profissão que mais contém irracionalidades. (Devem desenvolver sobre a correspondente racionalidade para lidar com tamanhas irracionalidades).

Vou apenas descrever uma, entre muitas reações curiosas e notáveis dos pais à devolutiva.

Uma que gosto de chamar reação maquiavélica, pelo preciosismo dos mecanismos utilizados. Certos pais invertem o sentido das coisas clínicas. Ou seja: aceitam que o filho tem distúrbio, não porque tenha, mas porque eu disse que tem. O criador e responsável sou eu. E, portanto, aceitam o tratamento para satisfazer uma necessidade minha, não deles. Além do preciosismo, acresce que é um péssimo pressuposto para iniciar um tratamento. Não resistirá ao primeiro entrevero.

Estou destacando esta reação que gera tratamentos não compartilhados, que ficam sob nossa inteira responsabilidade, entre "miles e miles" de outras, por deferência ao leitor jovem. Talvez o ajude a entender porque estas psicoterapias ficam pesadas, duras de carregar e provocam medo. Apesar de não serem, necessariamente, de difícil feitura técnica com a própria criança.

Assim é a indicação dos tratamentos.

Depois de contratada e iniciada a psicoterapia da criança, as lógicas clínicas não melhoram muito. É que vem o tempo das ameaças. Os tratamentos psicológicos de crianças vivem permanentemente ameaçados. De redução da freqüência, de não pagamento, de substituição por Ritalina etc...etc.

A não ser nos casos em que consigo sólida parceria com os pais e eles fazem boa parceria entre si, vivo num estado que não é difícil descrever: apreensão profissional constante em face do risco de perder meus pacientezinhos. E todas as manhãs rezo contritas preces leigas para que não piore o tempo, para que os árabes não reduzam a produção de petróleo, para que não suba ou baixe o dólar, e todos os outros bons motivos que os pais têm para solicitar redução na freqüência das psicoterapias.

Mas, a descoberta da irracionalidade verdadeiramente dolorosa, o nervo, aquela que me dispara todos os "furores" anti-maternos e anti-paternos, eu ainda estava por descobrir. Levou algum tempo até eu entender que, se quisesse ser um psicoterapeuta de crianças, teria que aprender a suportar, bonzinho! bonzinho!, a dor de ver as crianças serem arrancadas das psicoterapias. (Os leitores que não trabalham com crianças estão estranhando a brutalidade do verbo que escolhi. Os que trabalham com elas, não. Elas são verdadeiramente arrancadas.).

Os arrancamentos derivam-se da velha questão da dependência das crianças. Porém, como não gosto nem do conceito nem da palavra dependência, usada nestes contextos, vou usar a de que gosto: submetidas. As crianças são submetidas a seus adultos e por isso podem ser retiradas arbitrariamente das terapias. (No genérico terapias, porque a mesma coisa acontece com as terapias fonoaudiológicas, ocupacionais etc... e até na mais nova das novas profissões clínicas, a psicopedagogia clínica.

Por certo, os leitores estão entendendo que não falo dos casos em que a retirada da criança guarda alguma correlação com fatos clínicos. Por exemplo, os pacientes com poucas possibilidades de melhoras (distúrbios psíquicos que acompanham as lesões orgânicas, é um desses casos). Mais freqüente ainda é a retirada por desaparecimento do sintoma que motivou a consulta. A lógica clínica do leigo lhe diz que o sintoma é igual à moléstia. Portanto, se deixou de urinar na cama, sarou. Também não estou falando dos casos em que o desejo de abandonar a terapia é da criança mas, muito espertamente, ela age através dos pais. "Muito espertamente", porque acionam justinho o ponto sensível de cada pai. Aos pais que têm fortes preocupações disciplinares, dizem, modificando habilmente os contextos: "O Di Loreto falou que eu posso fazer o que eu quiser." Àqueles pais que não "sacaram" nada do contexto lúdico das psicoterapias infantis, os filhos insinuam: "vou lá só para brincar..."

Todas essas situações são "santas" e não me provocavam, nem provocam quase nada de "furor" anti-materno. Nem anti-paterno. Não é delas que estou falando.

Estou falando dos casos nos quais a motivação para o arrancamento está na cabeça dos pais, ou melhor, na dinâmica das relações familiares. Atendi a muitos casos (e podem os leitores colocar muitos muitos nisso) em que o circuito familiar que gerou o arrancamento foi o seguinte, ou variações do seguinte: mãe e pai eram inimigos íntimos e se alimentavam de ódios mútuos. Um deles, digamos a mãe, prestigiava a terapia, mostrava apreço por ela e era grata ao terapeuta. Enfim, a psicoterapia do filho era um bom valor para ela. Num período de agudização dos ódios, o pai, que é o dono da "grana", apenas e simplesmente para agredir a mãe, proíbe a continuação do tratamento. Várias dessas terapias andavam bem, ou razoavelmente bem. Éramos, a criança e eu, muito apegados, com boa aliança e com nossos segredinhos de cumplicidade, como ocorre nas boas terapias infantis. Era também a única ferramenta à mão que talvez pudesse impedir a evolução da criança para a loucura. Nada disso demovia o pai responsável pelo arrancamento. Nem mesmo meus apelos dramáticos, que os fiz. Algumas crianças, infelizmente poucas, conseguiram salvar a terapia por elas. Reagiram apresentando tantos e tais distúrbios de comportamento que obrigaram os pais a reverterem a decisão. Hoje acredito que só a criança consegue proteger a terapia desses ataques. Eu, terapeuta, não consegui salvar nenhuma.

Terminando o relato dos aprendizados sobre "a facilidade com que crianças são retiradas das terapias", acrescento um detalhe pouco importante, apenas irritante: quase ninguém diz a verdade sobre os motivos da retirada.

Com o tempo, descobri que só há três variáveis objetivas e concretas nas relações psicoterápicas: espaço, tempo e dinheiro. Tudo o mais é subjetivo: confiança-desconfiança, apego, sentido de melhora ou de piora etc... Mas, usando a tática de subjetivar as variáveis objetivas, consegue-se bons motivos-pretextos para despachar o terapeuta: o dinheiro encurtou, o consultório ficou looooonge, o reforço de matemática caiu justamente nos horários da terapia... Quase todos usam estes subterfúgios. Outros volatilizam.

(Tive alguns casos no consultório em que o motivo–pretexto utilizado para retirar a criança da terapia foi a escolinha de futebol. Perdendo para o futebol, iria empatar com quem?)

Há até uma irracionalidade que, tenho certeza, só ocorre nos atendimentos psicológicos. Quando o paciente em psicoterapia não melhora, ou mesmo piora, os pais pedem redução na intensidade do tratamento, e não aumento. Nunca ouvi dizer que quando sobe a febre, os pacientes diminuam os antibióticos. Este comportamento é tão freqüente que nós mesmos, os terapeutas, perdemos a crítica sobre ele.

Olhando, hoje, para trás, ao longo dos anos de psicoterapeuta de crianças, a memória afetiva me aponta que mais psicoterapias foram levadas adiante por meu empenho do que por empenho dos pais.

Escrevi "empenho". Poderia ter escrito concessões. Devidas e indevidas. Concessões econômicas, nos horários de atendimento estapafúrdios, na freqüência de sessões muito inferior ao que seria exigido pela gravidade e estabilidade dos distúrbios etc...etc

Quando tinha uns quinze anos de profissão, comecei a me perguntar: "Que raio de especialidade fui escolher?! Quase tudo acontece pelo avesso! Os pacientes vão embora quando ameaçam melhorar!!! Procuram-me para tratamento e, no entanto, quando indico um tratamento, recebem minha indicação como se eu os estivesse condenando a trabalhos forçados nas pedreiras! Tudo se passa como se eles mobilizassem poderosas forças para manter a criança alterada! Há mais ações familiares a favor da manutenção dos distúrbios do que contra!".

Foi a partir daí que sujei a minha cabeça e comecei a suspeitar que, em boa parte dos casos, a criança era arrancada do tratamento porque começava a melhorar.

O próximo passo na descoberta do "raio" de especialidade que eu havia escolhido foi a descoberta da hostilidade anti-terapeuta. Não falo agora da hostilidade despertada pela revelação do diagnóstico e pela indicação de tratamentos. Falo, sim, da hostilidade que se desenvolverá entre pais e terapeuta durante os longos tempos da psicoterapia. Uma hostilidade difusa, não ligada a nenhum acontecimento específico, difícil de ser entendida.

Nos primeiros tempos, a insegurança fazia-me auto-referir e me sentir sempre responsável pela hostilidade. Sem discriminação de um caso para outro. Eu "merecia" a hostilidade. Alguma coisa eu fizera para merecê-la. Mas, a insegurança é como uma sopa bem quente. Logo depois não está tanto. E, recuperando a capacidade de discriminação, ajudei-me muito, pois vi que a hostilidade não tinha quase nada a ver comigo. Inverti a fórmula da sensibilidade: "não fiz nada para merecê-la!" E quando adquiri alguma cultura psicodinâmica, entendi que era uma hostilidade transferida.

Fiquei muito feliz e aliviado quando compreendi que estes sentimentos, não sendo a mim dirigidos primariamente, eu não tinha nada que tomá-los para mim. Não havia pelo que reagir a eles. Não reagir, não reagir, não reagir! passou a ser o primeiro item da "disciplina partidária". Ou, dito em linguajar mais profissional, minha profissão exigia o desenvolvimento de capacidades de contenção. Aceitar as hostilidades por compreendê-las, e procurar outra saída. No entanto, metade da felicidade foi embora quando vi que o "não reagir", "não reagir", era fácil de entender mas difícil de levar à prática.

Gostaria de fazer aos leitores uma pergunta teórica sobre a prática da contenção, do "não reagir".

"Contenção tem limite? Limites humanos. Se teoricamente não tiver, e o nosso ideal é o de "contermos" toda e qualquer agressão, na nossa profissão não existe o caráter humano e fica sendo, na prática, coisa de santos e anjos?"

Narrarei em seguida, um exemplo prático, acontecido com uma colega e amiga, onde a hostilidade grosseira e desabrida, aparecem sob a forma de desprezo. O que os leitores pensam?

Deve, ou não, ser "contida"? E mantido o relacionamento profissional nessas bases agressivas?

Esta colega tratava um paciente de sete ou oito anos, não me lembro bem, pois o episódio ocorreu há muitos anos. Há tantos anos que o dinheiro brasileiro era ainda o Cruzeiro. A família do paciente pertencia à alta aristocracia econômica brasileira, mas, apesar disso (ou talvez por isso mesmo) respeitava pouco o dinheiro dos outros. Pagava irregularmente. Quando "dava na telha". Numa certa época, o atraso ganhou tamanho inaceitável e a terapeuta resolveu dar um toque telefônico solicitando o pagamento. A mãe atendeu, ouviu e não disse nada. Na sessão seguinte, o pequeno paciente entra na sala terapêutica carregando um imenso e debochado embrulho feito de jornal e barbante e diz: "Minha mãe mandou para a senhora". Aberto o pacote, ele continha o pagamento da terapeuta sob a forma de centenas e centenas de notas de um cruzeiro. As mais velhas, rotas e ensebadas que havia em circulação no país.

Passados alguns anos, encontrei um outro elo da corrente de que é constituído o peculiar, único, estranho e fascinante aprendizado que leva à formação de um profissional para trabalhar com a mente de crianças.

Não sei bem como chamar este elo, mas, para dar uma idéia geral aos leitores, vou chamar de "falta de compromisso" de pais para com a mente dos filhos, principalmente com a mente patológica.

Vou pedir aos leitores que aceitem mais uma comparação entre o que se passa no campo psicológico e o que se passa no somático. Não só porque sou médico. Também porque talvez os leitores vejam, como eu, algum interesse em analisar e descrever semelhanças e diferenças práticas entre as duas grandes áreas da clínica. Se aceitarem, terei mais facilidade para transmitir aquilo de que necessito.

Há certas moléstias somáticas que, quando ocorrem na infância, são, em geral, pouco graves para as crianças, mas terríveis para os pais. Dos meus tempos de Pediatria lembro-me de duas, as mais freqüentes e representativas, a Glomérulo Nefrite Difusa Aguda e a Hepatite viral. Não são graves, mas trazem consigo o fantasma de um pequeno percentual de má evolução, 2 a 3 %, dizia-se. Além disso, não se conhecia nenhum tratamento para qualquer das duas. A saída era carregar pesado nas medidas gerais de proteção às funções renais e hepáticas. Em particular duas, justamente as duas mais inaceitáveis para crianças: repouso completo no leito e rigorosa dieta.

Os leitores sabem do pesadelo que é manter no leito, 24 horas sobre 24, uma criança que se sente perfeitamente bem. Missão: impossível. E quanto às dietas, bem, é só lembrar o que diz a sabedoria popular: "Tudo o que é gostoso, ou faz mal ou engorda". Conseguir que crianças engulam, almoço e jantar, quarenta a sessenta dias, papas que "fazem bem", mas com gosto de isopor, quem há de?

Pois bem, as mães (e até vários pais) mostravam-se tão dedicados e tão dispostos a abdicar de seus interesses em favor do filho, que eu ficava verdadeiramente emocionado. Quase todas pediam licença de seus empregos, esmeravam-se em descobrir preciosos temperos sem sal ou sem gordura e passavam horas e horas à beira do leito lendo para os filhos excitantes contos de aventuras. Ou, dito de modo mais sintético, aceitavam recuperar o contrato com características universitárias que os recém-nascidos exigem das mães nos primeiros meses de vida: "tempo integral, dedicação exclusiva".

(A televisão apenas acabara de chegar aos brasis e não havia mordomias, como os vídeos, por exemplo. Computador e jogos eletrônicos, então, nem pensar. A coisa tinha que ser enfrentada, mesmo, no corpo-a-corpo.)

Para meu espanto, nada dessa abnegação acontecia quando se tratava de distúrbios psíquicos.

Atendi, por exemplo, a inúmeros casos de crianças com depressão em último grau. Depressão de origem carencial. Falta de mãe e pai "no organismo". Quadros um milhão de vezes mais graves, mais preocupantes e mais inutilizantes do que uma Glomérulo Nefrite.

Eram crianças que tinham pelo que serem carentes e deprimidas. Algumas haviam sido colocadas em creches, período integral, desde os quatro meses, e para todos os efeitos eram filhos da creche. Mal e mal conheciam os pais. Que tinham dois empregos e à noite faziam pós-graduação. E não sofriam com o afastamento dos seus filhos. Outras haviam passado toda a primeira infância cuidadas por avós idosos, irritados, ranzinzas e que descobriram logo logo a fórmula de se livrarem da trabalheira que é educar uma criança, a gratificação indiscriminada.

Com perfeita paciência e sem terrorismos, eu explicava aos pais a seriedade do quadro psíquico do filho. Não escutavam. Ou melhor, escutavam, mas com ouvidos defendidos. Tinham trincheiras no lugar dos tímpanos. Respondiam-me coisas como "É a professora deste ano que não gosta dele. Vamos mudá-lo de escola". Não abrindo brechas na trincheira, não abdicavam nem mesmo da pós-graduação. Desesperado, chegava a fazer coisas que nunca faço. Por exemplo, prever o futuro. (Cedo aprendi com a prática que, no campo psicológico, devia me restringir ao quadro atual. O número de variáveis que influencia o psicológico é tal que qualquer previsão "científica" sobre o futuro tem tanta probabilidade de acerto quanto o jogo de búzios. No que se refere à mente, desconheço o conceito de prognóstico.) Mas, desesperado, ameaçava-os com desgraças futuras. Pura perda. Dava Freud contra. Atacados, reforçavam ainda mais as defesas e me executavam com o cutelo que sempre possuem: não aceitar a indicação, ou retirar a criança do tratamento.

Outros usavam argumentos filosóficos: compensavam em qualidade a pouquíssima quantidade. Com paciência didática, eu recitava toda a 2° lei da dialética, aquela que trata das relações entre qualidade e quantidade. Só conseguia irritá-los. E defendiam com maior ardor ainda a pós-graduação, o terceiro emprego ou os plantões.

Por vezes, ligava-se automática e involuntariamente minha suja cabeça - que eu agora já a tinha - e surgia a fantasia de que os plantões ou o terceiro emprego serviam exatamente para fugir dos filhos. E, em alguns, a defesa do abandono era tão inexpugnável que eu ficava tentado a acreditar que minha cabeça não fosse tão suja.

Eu tinha pelo que não acreditar nos meus olhos. "Mas são as mesmas pessoas que deixariam, fácil e espontaneamente, o segundo emprego e a pós-graduação se o filho estivesse com Gromérulo Nefrite !!! E jogariam tudo para o ar no caso de uma Meningite!"

Juro aos leitores que, em alguns casos dramáticos, desejei que as crianças deprimidas adquirissem uma boa hepatite ou qualquer outra preocupante doença somática. Seriam salvas, por esse esdrúxulo caminho, da depressão.

Meus desejos seguiam caminhos esdrúxulos, mas não ineficientes. Vejam os leitores uma pequena amostra das práticas que me ensinaram a ter esses desejos.

Eu havia trabalhado numa Secretaria do Governo do Estado que cuidava de crianças abandonadas. Minhas funções incluíam, entre outras, averiguar denúncias de maus tratos à crianças internadas em instituições particulares conveniadas com a Secretaria. Um dia fui dar uma "incerta" num orfanato que recebia crianças abandonadas pelos pais desde muito pequenas, de recém-nascidas a um ano. Ficava numa periferia horrível, fria, feia e mal-encarada. Foi a pior instituição para crianças pequenas que conheci. As instalações materiais eram até razoáveis. Se as crianças tivessem ficado com os pais, não teriam favores materiais melhores. Um grande galpão corrido, sem divisórias, com cento e tantos berços. Mas, as condições de cuidados humanos eram de abandono igual à anistia brasileira: amplo, geral e irrestrito. Cada uma coitada-abnegada-estafada crecheira trabalhava 8 horas, ganhava salário-mínimo e cuidava(?) de 15 a 20 bebês. Várias delas, na tentativa infrutífera de tornar o salário menos mínimo, dobravam a jornada ou davam plantões noturnos. E assim, abandonavam os próprios filhos. "Para cuidar dos filhos dos outros!", me diziam nos grupos que, posteriormente, fiz com elas. Vício circular dos mais perversos.

Nunca pensei que veria, mas vi, com estes olhos "que a terra ainda vai demorar para comer", as crianças das figuras do livro do Spitz: marasmo, depressão anaclítica etc. Ao vivo e a cores.

Percorri um por um os berços. Debruçava-me, olhava de frente (como quer o manual) para as crianças e ... nada ocorria. Em mais de 20 berços não ganhei nem um único "sorriso social". Eis senão quando, no próximo berço, debruço-me sobre o bebê deitado e recebo o mais social dos sorrisos. Evidentemente raciocinei: "trata-se de criança que acaba de chegar e teve bons objetos de relação antes de vir para cá." Mas, a ficha de identificação amarrada na cabeceira não confirmava isso. Estava no orfanato há seis meses, abandonada que fora ao nascer.

Procurei a crecheira e perguntei-lhe porque aquela criança era diferente. Arregalou uns olhões e devolveu-me a pergunta:

- "Então o senhor não viu???"

- "Não viu o quê?"

Não espichou a conversa de surdos. Pegou meu braço, levou-me de volta ao berço e descobriu os lençóis. Aí vi. Ao vivo e a cores. A criança era portadora de defeito genético e não tinha pernas.

Como disse logo acima, várias vezes desejei que algo parecido acontecesse aos meus deprimidos. A desgraça somática salvando do desgraçamento psíquico. E como a dar-me razão e confirmar meus desejos, a crecheira tomou a criança carinhosamente nos braços cantando algo que me pareceu: "queridinho da mamãe..". ou talvez, "coitadinho da mamãe..."

Exemplifiquei com o abandono (um nome melhor seria desinteresse. Ou desapego. Há muito abandono de corpo presente), mas os leitores compreendem que a mesma coisa ocorria com todos os tipos de relações patogênicas existentes entre pais e filhos.

É uma coisa curiosa, não sei compreender (só "chutar"), mas constato, com regularidade monótona, que as preocupações dos pais com a mente dos filhos perdem de longe para as preocupações com o corpo. O biológico supera o psicológico.

Os leitores entendem que não estou falando de preocupações abstratas e em tese geral. Numa discussão impessoal, genérica e abstrata, 101% dos pais defenderiam a tese de que a coisa mais importante do mundo é a mente, o psicológico, "a personalidade". Mas eu, que sou homem da prática, constato, várias vezes ao dia, que quase todos os pais correm "adoidado" para cuidar do filho que tem um sopro no coração. Mas, poucos correm para socorrer o filho que tem um sopro no ego. Nem sequer acreditam que exista.

Contribui também para esse descaso prático o fato de os distúrbios da mente não doerem e não jorrarem sangue. A mente só se deforma ... se defor ... se def ... E o que chamamos "dor psíquica" não tem, infelizmente, a mesma natureza de uma boa dor de dente. Ou de ouvido. Se tivesse ...

Resumindo a questão do compromisso dos pais com a mente patológica dos filhos quero contar aos leitores que encontrei o seguinte:

Na minha amostra, a metade dos pais a quem atendi, pouco mais, pouco menos, estava ligada aos filhos através de vínculos que continham forte sentido de compromisso com sua mente. Reconheciam e admitiam a existência da patologia; faziam perguntas sobre elas; "insaitizavam" as respostas; procuravam, encontravam e reconheciam suas parcelas relativas de participação na origem dos distúrbios (quase sempre com o bom sentido de responsabilidade e não com as péssimas culpas, que são mais defesas do que qualquer outra coisa, apesar de não parecer); pediam sugestões sobre os melhores modos de corrigi-las e levavam à prática as que eram possíveis sempre que a postura dos pais eram assim tão boa, as evoluções também eram quase sempre boas. Com ou sem psicoterapia. A indicação de tratamentos, ou não, dependia da idade da criança, da gravidade e estabilidade dos distúrbios e das variáveis concretas e objetivas: espaço, tempo e dinheiro. Mas, isto ocorre, na minha amostra, com menos da metade dos casos.

Nos outros 50% dos pais que me trouxeram o filho para atendimento psicológico, não encontrei nenhum compromisso válido. Por muitos anos não entendi sequer porque vinham à consulta, dado que não tinham nenhuma disposição, nenhuma mesmo, para aceitar perdas em seus projetos de realização pessoal, se elas, perdas, fossem indispensáveis para favorecer a mente do filho.

Sem, porém, disposição para mudanças nas relações familiares. Ou, dizendo de modo mais desabrido, não por isso menos verdadeiro: interessavam-se pela mente patológica do filho, mas desde que "a mão de obra" para sua recuperação fosse apenas minha. Eles entravam só com o pagamento.

No entanto, essa "colher de chá" estatística que estou dando não favorece em coisa nenhuma aos pais que "apenas pagam o tratamento do filho, e não querem saber de mais nada".

Os leitores que atendem a crianças sabem de quem estou falando. Mas, na hipótese de que eu possa ter algum leitor que não tenha seu dia–a–dia dado por entrevistas com pais, vou relatar a versão mais frequente nos consultórios, ou seja, a versão pais executivos da classe média. O leitor deduz as outras, por experiência ou imaginação.

Marcam, desmarcam e remarcam a primeira consulta n vezes. Enfim, ela acontece num sábado. Ou sexta-feira às 8h30min da noite. Chegam às 9h. Sentam-se na beirada da cadeira. Olham para o relógio com mais freqüência do que os que estão no corredor da morte. Atendem a três chamadas de celular. Fazem outras tantas. Levantam-se a intervalos, inspecionam e elogiam as gravuras da sala. Aos 20 minutos de entrevista puxam a caneta e o talão de cheques e os mantêm em posição estratégica e comunicativa. São simpáticos. Quase sempre nos enganamos e dizemos que são afetivos. Aceitam a indicação da psicoterapia do filho com a maior facilidade. Nunca mais aparecem. Ao fim de cada mês, voltam a puxar caneta e o talão de cheques, mas agora olhando para o filho com aquele ar de: "Você e o Di Loreto ainda vão conseguir me levar à ruína!"

A "colher de chá" estatística não favorece os pais que só pagam, porque vão engrossar uma outra estatística: a das psicoterapias fracassadas. É baixo o número de crianças que tive em psicoterapia e que apresentaram melhoras importantes quando não acompanhadas de nenhuma mudança nas relações familiares. "Psicoterapia da criança e mais nada; bom caminho para o fracasso da psicoterapia", tenho hoje gravado a ferro e fogo nos neurônios da córtex.

Os leitores devem estar imaginando que a essa altura eu já tinha vivido todos os aspectos depressivos inerentes à profissão que escolhera. Eu já estava com 50 anos e 20 e tantos de Psiquiatria Infantil. Tempo mais do que suficiente para "ralar" as idealizações que foram tão necessárias para iniciá-la. (Função "motor-de-arranco" da mente).

"Doce e ledo engano", não é assim que diz o poeta? Havia ainda mais o que "ralar". Faltava deprimir quanto às limitações da minha profissão.

Não estou falando de limitações técnicas que, num plano pessoal, são superadas por evolução das habilidades individuais e, no plano universal, serão superadas por evolução das ciências. Não falo também das insuficiências ocasionais do gênero "errar é humano... ... etc e tal".

Falo das limitações primárias, geradas por forças inerentes à natureza do homem e, portanto, inerentes às relações humanas. Falo do atendimento de crianças que são apanhadas, desde cedo, em circuitos de vínculos inexoravelmente enlouquecedores. Circuitos tão poderosos que tornam insignificante o poder das ciências e que nos reduzem a subnitrato de pó de traque. Só nos deixam o inconformismo, o ódio e o gosto de sabão na boca. Falo do que nós, humanos, podemos realizar e do que deve ser encaminhado ao departamento dos deuses.

Como sempre faço, exemplificarei com um caso bem representativo, portanto extremado. Os leitores conhecem (ou deduzem) o amplo leque de intensidades variáveis, inclusive os casos mais "feijão-com-arroz", de todos os dias.

Há anos tratei um garotinho, seis anos, neto de um potentado. Neste caso, só econômico. Culturalmente, o avô não havia ainda saído das cavernas e afetivamente tinha três anos. Se tanto. Mas, nos negócios era um avião. Imigrante do médio oriente, construíra imensa fortuna com as próprias mãos. Não posso dizer que era um self made man porque estava mais para "eu me fiz por si mesmo".

Tinha uma única filha, que tinha um único filho, meu paciente. Considerava a filha, mulher, um ser de quinta categoria, que tinha como única missão nobre sobre a Terra dar-lhe um neto HOMEM. O que acabou acontecendo. Com mil artimanhas (e milhões de dólares) conseguira desfazer-se do pai da criança. Literalmente despachou-o para o Oriente Médio. Expandir os negócios. A mãe, submissa, não foi difícil de ser isolada numa gaiola de ouro. Sinteticamente, inutilizou mãe e pai e tomou a criança para si. Desde o nascimento viviam um para o outro e um era o ídolo do outro. Ou, como se diz hoje, relacionavam-se - e a criança construía sua mente - por identificação adesiva. Evidentemente, resultara o que era obrigatório resultar: o neto era a versão miniaturizada e caricatural do avô.

Tenho memória "pra lá de boa" e lembro-me de cada detalhe de cada paciente a que atendi (e de cada supervisionando e de cada supervisão que fiz). Mas, neste caso, nem precisaria ter. Produziam lances indeléveis. Um deles: durante o ano e pouco que consegui fazer durar o tratamento, o avô, e tão somente ele, trouxe o paciente ao consultório. Em pleno horário comercial, três vezes por semana, durante toda a estranha hora de 50 minutos, um importante homem de negócios ficava sentado na sala de espera somente para impedir que eu me tornasse importante para seu neto. Foi também ele que havia marcado a consulta inicial. Ele, e só ele, comparecera à entrevista anamnéstica. Manobrava grosseiramente para impedir o comparecimento da mãe. Nem se preocupava em ser oblíquo. Aliás, só consegui ver a mãe uma única vez, numa entrevista antes de iniciar o tratamento, por imposição peremptória minha: "Não começo a terapia sem, no mínimo, autorização da mãe!." Mas não consegui trazer o pai do Oriente, Médio. Os leitores desculpem a falha técnica.

Também não poderia esquecer este pacientezinho por um outro traço de comportamento só seu. Nunca tive outro parecido.

As minhas crianças traziam dinheiro para a sala lúdica. Mas dinheiro de mentirinha. Desse do Banco Imobiliário. Este garoto de seis anos trazia dólares. De verdade! Dessas notas com a cara simpática do Benjamin Franklin. E queria fazer apostas comigo. De verdade! Pobre de mim.

Começou a psicoterapia apavorado. Encurralou-se num canto da sala e nenhuma força humana o retiraria de lá. Só fazia olhar. Com duas semanas convenceu-se que eu era "de confiança" e começou a "aprontar". Todas. Só eu sei o que passei com esse garoto.

Cada vez que saia da sessão, queixava-se ao avô que eu não tinha me comportado bem. Só fazia contrariá-lo. Uma tarde, cochicharam mais alto e ouvi o que o avô respondia.

- "Não liga, não. O vô vai comprar a clínica e despedir o Dr. Di Loreto."

Depois de algum tempo, o avô passou a proibir-me de "fazer coisas que irritassem o coitado do menino". Na sala lúdica, o coitado do menino jogava objetos na minha cabeça e respondia a qualquer palavra que eu dissesse que não fosse SIM: "Cala a boca, se não meu avô compra a clínica e te manda embora!"

(Os texanos que compram o restaurante para despedir o garçom são meros aprendizes, não são, amigos leitores?)

Ao fim de um ano e tanto de tentativas desesperadas de tratamento, continuava com a mesma cabeça onipotente.

(Usei o nome "onipotente" por puro hábito. Na verdade, é um esquizo-maníaco, como chamei numa Contribuição ao estudo do segundo ano de vida. Tem a mente dissociada e nela convivem, ao mesmo tempo, níveis bárbaros de onipotência e de impotência. A relação com o avô impediu-o de desenvolver potências. Quando conseguia manter a identificação com o avô, exibia toda essa onipotência. Mas, quando estava colocado em situações nas quais tinha que se sustentar dos próprios recursos psíquicos, toda essa pseudo-onipotência-impotente desabava e a impotência surgia avassaladora. Aliás, foi ela, a impotência, que o trouxe ao consultório. Não conseguia ficar na escola. Entrava em crises de ansiedade.

Em casa dizia - e honestamente, pois estava no campo social que favorecia a identificação adesiva com o avô - que queria ir para a escola. Arrumava-se entusiasmado. No carro, fantasiava mil coisas que iria fazer e acontecer. Mas ao chegar à escola e ter de atravessar o fatídico portão, além do qual teria que usar só suas mingüadas potências, entrava em pânico. A orientadora confundiu esquizo-mania com birra (confusão muito comum) e forçou-o a ficar na escola "na marra". Teve uma crise de ansiedade pavorosa (na verdade, de "depressão forçada"). Foi parar no consultório. Um profissional que havia sido consultado anteriormente diagnosticara Fobia escolar. Enganosamente. Só pela aparência sintomatológica. Os leitores vêem que não havia estrutura de personalidade e, muito menos, o uso de mecanismos mentais que caracterizam e produzem as fobias . E entender esses casos como Fobia escolar, portanto uma mais benigna neurose, é um engano mais freqüente ainda.)

Ao cabo de um ano, eu também tinha sido reduzido à impotência total e concluí que querer continuar o tratamento psicoterápico naquelas condições me levaria a reproduzir em mim a mente do paciente. Eu teria que dissociá-la e fabricar um enganoso nível onipotente, que conviveria com a impotência real. O "enganoso nível onipotente" teria como núcleo central a fantasia de que minha ação terapêutica fosse superior à ação patogênica do avô. Evidentemente delirante. O avô leu o meu pensamento e interrompeu a terapia.

Foi para o consultório de um novo terapeuta. Como este era meu conhecido, tive notícias periódicas do paciente por um certo tempo. Infeliz, mas compreensivelmente, evoluía mal.

Atualmente, final do ano 2000, mantenho a convicção formada há duas décadas: para fazer algo eficiente nestes casos, eu necessitaria gozar de generosa intimidade com Zeus, Júpiter, Tupã, Ibis, Osíris, todos os Orixás e, principalmente, Ariadne. Não sendo esse o caso, tenho que pensar duas, três, mil vezes, se aceito o caso ou não. Pesar os prós e os contras. Há muitos "contras" (Psicoterapia não é método sem contra-indicações, por mais que pareça). Estes pacientes estão entre aqueles que mais fazem a via-sacra dos consultórios. E a cada "estação", não se queimam só terapeutas. O paciente paga seu preço: ele também se queima. Alguns carregam um duro carimbo. "Nem psiquiatra deu jeito nele". Cada vez que este fato é admitido, o paciente se convence mais disso.

Quando se trata de casos extremados, como este da incrível e triste história do neto que apostava dólares com o terapeuta, e seu avô desalmado (com a devida licença de G. Garcia Márquez), estou convencido de que os pacientes terão mais chances terapêuticas quando forem adultos. Se não estiver completamente ensandecido, poderá utilizar suas autonomias, geográfica, psicológica, social e financeira, e "peitar" figuras como o "todopoderoso" avô e reconstruir sua vida por si. Antes disso, sem autonomias, a expectativa de êxito psicoterápico é irrealística.

Bem, chego ao fim do relato que, por prazer puro de relatar, relatei aos amigos.

São saudades do passado. Tive que contá-las já agora, eis que, aos 72 anos, diminuem sempre mais as chances de relatar "saudades do futuro", como as dizia meu querido Manuel Bandeira.

E sendo saudades do passado, só poderia relatá-las ao estilo puramente descritivo, que era o estilo que eu usava no meu primeiro e mais longínquo passado. Os bons tempos simples em que eu só estava autorizado, (e só me autorizava) a perguntar "o que está acontecendo?", jamais "por que está acontecendo". Os leitores viram, não tive nenhuma preocupação quanto às motivações profundas de ninguém, nem crianças, nem pais, nem minhas. Só descrições.

São descrições da prática, tal como ela acontece. Desculpe, tal como me aconteceu. Desculpe, tal como me parece hoje que aconteceu. Prática clínica com crianças. Mas não apenas com crianças.

Tudo, rigorosamente tudo o que escrevi nesta Contribuição à prática clínica, é igualmente verdadeiro para adultos psicóticos e para os profissionais que trabalham com eles. (Só não é verdadeiro, lógico, a parte em que digo que crianças submetidas a relações familiares insuperavelmente patogênicas terão mais chances terapêuticas quando atingirem a idade adulta. Evidentemente, os psicóticos perderam a oportunidade e chegaram à idade cronológica que deveria ser a idade das autonomias "completamente ensandecidos"). Tenho certeza de que os que cuidam de psicóticos adultos sentiram o seu trabalho representado neste relato. Não é difícil compreender o porquê. Os psicóticos também pertencem ao grupo dos "sem-autonomia" (Os leitores conhecem os sem-terra, os sem-casa e os sem-praia. Estes são os sem-autonomia). Portanto, o nosso trabalho com eles acaba sofrendo interferência de mães, pais, tios e avós e não sei mais quantos outros "atravessadores".

Como os leitores viram, aprendi muito com as irracionalidades. Um desses aprendizados foi, no entanto, surpreendente. Nunca podia imaginar que "metade de todos os pais que levam filhos à consulta psicológica" não o fazem "para valer". E que são atendimentos natimortos. Volatilizarão mais cedo ou mais tarde.

(Os leitores que atendem em condições favorecidas, nas quais as crianças lhes são encaminhadas após criteriosa triagem, têm, seguramente, número menor de casos que não são "para valer". Devem estar achando exagerado o número que dei. Os leitores que atendem nas linhas de frente, em Serviços em que o encaminhamento feito por escolas e Postos de Saúde é livre e fácil, têm, seguramente, número maior de volatilizados de todos os gêneros. Devem estar achando baixo o número que dei.)

Esta constatação fez mudar muito minha prática de atendimento.

Antes desse aprendizado, quando os pais me procuravam e traziam a criança, eu já a considerava minha paciente. E logo todos os neurônios da minha córtex ficavam a serviço de compreender o quadro clínico, a psicodinâmica, a gravidade, a estabilidade, as melhores indicações terapêuticas etc. Depois que constatei, acima de uma dúvida razoável, que metade dessas procuras não levarão a nada, passei a destinar só metade dos neurônios às tarefas clínicas. A outra metade da córtex (e parece-me justa a proporção) fica alerta colhendo indicadores para a avaliação: "O que, afinal, eles vieram fazer aqui ?" "O que, de verdade, eles querem de mim ?" Se percebo sinais de que não há verdadeiro investimento, que não é "pra valer", vou pensar muito se indico ou não tratamentos longos, sofridos e caros, que exigem grande investimento, como as psicoterapias. Antes indicava quase que automaticamente; só porque a criança precisava.

Eu e as crianças agradecemos as mudanças. Elas se livram de mais uma mentira na vida. Eu, com diminuição notável dos volatilizados, dos arrancados e de muitas das "psicoterapia e mais nada", tenho um trabalho mais conseqüente. Não me sinto tão "perfumaria" e tão descartável como nos inícios.

Posso dizer a mesma coisa de outro modo: como psicoterapeuta, antes eu era oferecido; hoje me faço de rogado. Creio que não basta a criança necessitar e ter boa indicação para já ser colocada em tratamento. É necessário também que o conjunto criança-relações familiares suportem e mereçam a indicação.

No trabalho particular, do meu consultório, o alcance deste aprendizado é restrito. Limitado ao âmbito de algumas crianças e um profissional. Mas, nos Serviços de grande procura, como por exemplo os ambulatórios do Serviço Público, onde cada horário dos profissionais é precioso, usar peneiras que levem em consideração o fato de que 50% da procura é "furada" de nascença pode tornar o trabalho mais conseqüente. E tornar mais conseqüente o trabalho psicológico no Serviço Público é ganho que os que trabalham, ou trabalharam nele, sabemos não ser nada desprezível.

No entanto, apesar de tantos aprendizados obtidos a partir dos "minúsculos detalhes clínicos", os próprios "minúsculos" continuavam como mistérios. "Por que alguns pais não vêm buscar resultados"? "E as entrevistas de uma única descarga?"... e todos os demais itens do cortejo?

Os leitores, por certo, imaginam o tamanho da mão-de-obra que investi em cada atendimento, na ânsia de encontrar respostas. Mas qual ! A ignorância resistiu bravamente por três décadas e meia. Só há nove – dez anos consegui matar a charada. E por caminhos insuspeitados.

De início, foi necessário "des-psicologizar" a questão.

Explicando mais comprido. Eu vinha raciocinando sempre, única e rigidamente, na linha psicodinâmica. "Onde estão os medos que os fazem fugir de mim?"; "Quais as defesas?"; "O que eles estão deslocando?"; "Reprimindo?", e assim por diante. Só quando cheguei ao esgotamento total dessa rica forma de raciocínio, mas que, por rigidez, ganha a pobreza de "chave", foi-me possível mudar o rumo do pensamento. Aí inverti a direção, melhor, o sentido das perguntas: "E se eles não estiverem defendendo nada?" "E se eles vieram fazer exatamente o que fizeram?" "E se eles vieram aqui dar um recado, deram e foram embora?" "E se os pais tinham em mente, consciente ou inconsciente não importa, uma tarefa, cumpriram a tarefa e sumiram porque não havia mais nada a fazer?!"

Acertei na mosca.

Ai ficou fácil. Corrigido o desvio do raciocínio (ou o "erro do pensa"r, como chamei numa Contribuição ao estudo da Adoção) ficou fácil, tanto aqui como na adoção. Só foi necessário procurar resposta a uma única pergunta final: "Qual o recado que eles vêm dar?" "Qual a tarefa que vêm cumprir?"

Aqui neste ponto, para tornar as coisas compreensíveis, tenho que fazer algumas confidências ao estilo "dialética popular", a dialética que o povo usa sem se preocupar e sem se dar conta de que dialética se trata: "há males que vêm para bem".

Quando, há nove – dez anos, ficou claro que a metade dos pais que me trouxeram filhos à consulta "foram dar um recado e mais nada", tive grande desejo de contar esta descoberta por escrito. Alguns rascunhos que fiz terminavam respondendo à pergunta "Qual o recado?" da seguinte forma: "Eles vêm afirmar que não são culpados pelo enlouquecimento do filho." Meu entendimento era de que a coisa toda girava em torno da dinâmica das culpas e eles vinham porque necessitavam de absolvição. Purgavam as culpas e volatilizavam. Chegara a esta conclusão por análise retrospectiva. Usando as lembranças dos atendimentos pregressos eu concluíra que os pais eram "movidos" a culpas. E teria escrito exatamente isso.

Ocorre que nessa época eu amargava um paralisante bloqueio escrevinhatório. Não conseguindo escrever e publicar uma única linha, apenas continuei trabalhando, trabalhando e procurando respostas àquelas perguntas, mas agora com Metodologia correta, não retrospectiva. Estudando muitos casos com a metodologia corrigida, vi que incidira em erro e corrigi as conclusões. Infelizmente.

Os leitores, por certo, não estão entendendo o "Infelizmente". É que ele pertence a outro contexto. Pertence ao contexto de Darwin. Da espécie.

"Deu Darwin contra!" As conclusões corrigidas não resultaram nada abonadoras para a espécie.

Não se trata, como eu pensara, de culpas. Trata-se de ódio. Ódio puro. 100% de pureza. A metade dos que entraram em meu consultório vieram dizer que um outro é culpado pelo enlouquecimento do filho. E atribuir culpa a um outro por algo grave e que traz sofrimento e dor = ódio puro.

Há as mães que vêm culpar os pais. E há os pais que vêm culpar as mães. Ou se culparem mutuamente. Todos culpam as avós. Raramente escapam a empregada e o pediatra. Há os que escapam sempre: Deus, e o pai que está no consultório acusando. E há os que não escapam nunca: a escola, o pai que está ausente e o psicólogo anterior. E não escapo eu que, ingênuo, penso em defender o filho. E que um dia me tornarei "anterior".

Não são as conclusões que eu desejava. Os leitores estão aí de prova que meu inconsciente ainda tentou salvar a cara da espécie. Mas, não deu. Temos que nos haver com esta realidade. A espécie é movida a ódio. Ou ao que desemboca no ódio: inveja, ciúme, idealizações "furadas" etc... etc... etc... e muitos outros etcéteras.

Os leitores podem submeter minhas afirmações à prova dos nove. É fácil. Se os amigos forem ao arquivo, retirarem amostras representativas de casos de crianças ou de adultos psicóticos, tomarem as entrevistas com os pais, assoprarem a fumaça que eles jogaram em seus olhos, deixarem assentar a poeira emocional, desbastarem o imenso e dificultador entulho que toda anamnese infantil produz e analisarem a "essência resultante", verão com os próprios olhos se resulta ou não, em metade dos casos, ódio puro dirigido a alguém. E apenas isso.

Não fosse o longo tempo de espera para que se diluíssem as "neuras e nóias" que sustentavam o bloqueio à escrita, eu teria terminado o relato com o convite à prova dos nove. Mas, com tantos dias e, principalmente, tantas noites disponíveis para introspecção, não poderia continuar passando despercebido o fato de que eu captara mal a conotação do "recado". Não havia nenhuma conotação singela de dizer, falar, informar, comunicar que o culpado era "o outro". O tom era peremptório, fanático, convicto, definitivo, de quem veio fazer uma declaração inquestionável. Prestar testemunho juramentado. "Registrar oficialmente o ódio junto à autoridade psíquica constituída".

Registrar oficialmente que "o outro" é o culpado era a única coisa que importava. Era a "tarefa". Cumprida a tarefa, nada mais havia a fazer. Portanto, volatilizavam-se.

De repente, tudo se encaixou. Terminaram as perplexidades. Eu encontrava a resposta ao minúsculo detalhe clínico que, há quase quatro décadas, desafiara a pouca argúcia do jovem médico!

"Prestar depoimento... fazer declaração... registrar oficialmente..."

Ficou fácil, não ficou, caro leitor?

Os pais vieram ao consultório exatamente como quem vai a um Cartório.

Recebido em 16/04/2001

Revisado em 16/05/2001

Aceito em 20/06/2001

  • Cartório de Freud

    Freud's notary public's office
  • Endereço para correspondência:

    Rua Princesa Isabel, 1360
    CEP 04601-003
    Campo Belo - São Paulo - SP
    Tel. (011) 241.4245
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2001

    Histórico

    • Aceito
      20 Jun 2001
    • Revisado
      16 Maio 2001
    • Recebido
      16 Abr 2001
    Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
    E-mail: revpsi@uem.br