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ENVELHECIMENTO, SENTIDO DE LUGAR E PLANEJAMENTO URBANO: FACILITADORES E BARREIRAS

ENVEJECIMIENTO, SENTIDO DE LUGAR Y PLANIFICACIÓN URBANA: FACILITADORES Y BARRERAS

RESUMO

O planejamento urbano é um processo que compreende sucessivas melhorias voltadas para a qualidade de vida das populações e o envelhecimento populacional pressiona para que instâncias sociais assumam novas posturas sobre os modos de se planejar a cidade. Para compreender a ligação do idoso com o ambiente, é necessário entender os recursos disponíveis no local e as experiências vividas naquele contexto. A partir do sentido de lugar, as pessoas transformam os espaços e são por eles transformados. Assim, esse estudo questionou como moradores idosos de três localidades da cidade de Brasília constroem seu sentido de lugar, a partir da identificação de facilitadores e barreiras enfrentadas diariamente e das demandas para a construção de um ambiente amigável ao envelhecimento. Os dados qualitativos apresentados decorrem do uso de três técnicas de pesquisa: entrevistas face a face, entrevistas caminhadas e diários fotográficos. Fizeram parte do estudo 63 participantes com idade entre 60 e 90 anos. A análise realizada por meio do software Iramuteq permitiu a elaboração de quatro classes relacionadas aos vínculos sociais e comunitários, às atividades das rotinas diárias, aos aspectos simbólicos que refletem o sentido de lugar e a relação com elementos rurais e urbanos percebidos em cada cenário. Estar atento às mudanças resultantes dessa inversão da pirâmide demográfica incide sobre algumas das questões identificadas nesse estudo, mas também confirma o quanto ainda se faz necessário avançar para incluir de modo mais realista a dinâmica relação idoso-ambiente em estudos que abordam o processo de envelhecimento.

Palavras-chave:
Envelhecimento; planejamento urbano; sentido de lugar

RESUMEN

El urbanismo es un proceso que comprende sucesivas mejoras encaminadas a la calidad de vida de las poblaciones y el envejecimiento de la población presiona a las instancias sociales para que asuman nuevas posturas sobre las formas de planificar este entorno. Para comprender la percepción del ambiente por parte de los adultos mayores, es necesario comprender los recursos disponibles en el lugar y también las experiencias vividas en ese contexto. Desde el sentido del lugar, las personas transforman espacios y son transformados por ellos. Por lo tanto, este estudio cuestionó cómo los residentes mayores de tres localidades de la ciudad de Brasilia construyen su sentido de lugar, en función de sus identificaciones de los facilitadores y las barreras que se enfrentan a diario y las demandas para construir un ambiente amigable con el envejecimiento. Los datos cualitativos presentados derivan del uso de tres técnicas de investigación: entrevistas personales, entrevistas complementarias y diarios fotográficos. 63 personas mayores entre 60 y 90 años participaron en el estudio. El análisis realizado con el software Iramuteq permitió el desarrollo de cuatro clases relacionadas con los vínculos sociales y comunitarios, actividades de la rutina diaria, aspectos simbólicos que reflejan el sentido del lugar y la relación con los elementos rurales y urbanos percibidos en cada escenario. Conocer los cambios resultantes de esta inversión de la pirámide demográfica se centra en algunos de los problemas identificados en este estudio, pero también confirma cuánto progreso aún se necesita para incluir de manera más dinámica la relación entre el anciano y el ambiente en los estudios que abordan el envejecimiento.

Palabras clave:
Envejecimiento; planificación urbana; sentido de lugar

ABSTRACT.

The urban planning is a process that comprises successive improvements aimed at the quality of life of populations and the aging of the population puts pressure on social instances to assume new postures about the ways of planning this environment. To understand the elderly's attachment with the environment, it is necessary to understand the resources available in the place and the experiences lived in that context. From the sense of place, people transform spaces and are transformed by them. Thus, this study questioned how elderly residents of three locations in the city of Brasília build their sense of place, based on their identification of facilitators and barriers faced daily and the demands for building an aging-friendly environment. The qualitative data presented derives from the use of three research techniques: face-to-face interviews, go-along interviews, and photographic diaries. Sixty-three elderly persons between 60 and 90 years participated in the study. The analysis carried out using the Iramuteq software allowed the development of four classes related to social and community bonds, activities of daily routines, symbolic aspects that reflect the sense of place and the relationship with rural and urban elements perceived in each scenario. Being aware of the changes resulting from the demographic pyramid’s inversion incur on some of the issues identified in this study. However, the results confirm how much further progress is still needed to include more dynamically the elderly-environment relationship in studies that address the aging process.

Keywords:
Aging; urban planning; sense of place

Pioneiros da modernidade: da poeira vermelha à ligação afetiva com o lugar

Construída no vazio do cerrado, Brasília, diferentemente de outras cidades brasileiras, não foi colonizada. O primeiro fluxo migratório foi formado por pioneiros vindos de todas as regiões do país, que adentraram o cerrado e, após mais de meio século, aqui envelheceram.

O Plano Piloto foi projetado pelo arquiteto Lúcio Costa em uma malha setorizada e ortogonal, constituída por quatro escalas urbanas: monumental, residencial, gregária e bucólica. Seu formato é popularmente comparado a um avião (Botelho, 2009Botelho, L. A. (2009). O princípio das escalas no plano urbanístico de Brasília: sentido e valor além de proporção. In: F. Leitão (Org.), Brasília 1960/2010: passado, presente e futuro(p. 87-98). Brasília, DF: GDF.). Entretanto, seu idealizador rejeitou essa comparação e defendeu que a cidade deveria ser associada a uma borboleta (Carpintero, 2006Carpintero, A. C. (2006). Os primeiros passos da capital. Recuperado de:https://web.archive.org/web/20090227012535/http://www.secom.unb.br/releases/rl0906-15.htm
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). Quando de sua criação, a cidade projetada acolheu jovens famílias de distintos estratos sociais que aqui buscavam restabelecer suas vidas, ocupando áreas residenciais planejadas, mas também acampamentos informais de construtoras. Ao longo de seis décadas, a cidade vicejou graças ao trabalho de todos que aqui se fixaram, cultivaram suas amizades e conduziram suas vidas.

A cidade continua a deslumbrar com o ineditismo de suas formas arquitetônicas e a amplitude de seu horizonte, tendo espalhado entre os que aqui chegaram a síndrome dos três D: do desespero manifestado nos primeiros tempos de permanência na cidade, associado à falta de estrutura, à indomável poeira vermelha e a falta de raízes; do deslumbramento pela monumentalidade e proximidade com o poder; da demência, pela maneira insana como a cidade se agarra ao corpo e à alma dos que nela habitam (Garcia, 2012Garcia, P. (2012). Básicos de Brasília. Revista Transportes Aéreos Portugueses (TAP ), 62-71.).

Cidades amigáveis ao envelhecimento

O planejamento urbano é um processo que compreende sucessivas melhorias voltadas para a qualidade de vida das populações. Em uma cidade modernista como Brasília, as discussões acerca da qualidade ambiental envolvem especificidades como a preservação de seu patrimônio arquitetônico, e a segregação socioespacial que ocorre mesmo dentro de seu conjunto urbanístico. O projeto original da cidade previa uma distribuição equânime de serviços públicos e equipamentos urbanos nos espaços das quadras e superquadras, onde a gradação social se daria por localização, tamanho e nível de acabamento das unidades habitacionais (Holanda, 2016Holanda, F. (2016). Brasília: utopia ou segregação à brasileira? Le Monde Diplomatique Brasil. Recuperado de: https://diplomatique.org.br/brasilia-utopia-ou-segregacao-a-brasileira/
https://diplomatique.org.br/brasilia-uto...
).

Contudo, a realidade se impôs e assentamentos informais foram se formando nas proximidades da capital, fundados por estratos mais vulneráveis da população, atrelada à necessidade de residir em áreas mais próximas aos seus locais de trabalho. Estes assentamentos surgem de forma orgânica e se estabelecem a partir de sua regularização. Porém, ainda que reconhecidos pelo governo, permanecem carentes na provisão de serviços públicos e infraestrutura urbana. Entre tais nuances, que escancaram a desigualdade socioespacial em Brasília, o envelhecimento populacional se evidencia e pressiona para que diferentes instâncias sociais assumam novas posturas sobre os modos de se planejar esse entorno urbano para a população idosa.

Tendo em vista tal demanda não somente no cenário local, mas em muitas cidades ao redor do mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu, ao longo das últimas décadas, as seguintes diretrizes para a caracterização de cidades amigáveis ao envelhecimento (age-friendly cities): presença de habitações adequadas, áreas verdes, oferta de transporte público de qualidade, ampliação de serviços de saúde e de suporte comunitário, promoção de oportunidades de trabalho e de voluntariado, inclusão social, participação social e cívica, respeito e disseminação de informação (World Health Organization [WHO], 2008World Health Organization [WHO]. (2008). Global age-friendly cities: a guide. Geneva, CH: WHO Press.). A relevância de tais diretrizes decorre da importância dos benefícios advindos das potencialidades em termos de satisfação com o local de moradia e da vizinhança (Iecovich, 2014Iecovich, E. (2014). Aging in place: from theory to practice. Antropological Notebooks, 20(1), 21-33.).

Nesse contexto, faz-se oportuno apresentar o conceito aging-in-place (AIP) que indica a capacidade da pessoa viver no local de sua escolha, pelo tempo que lhe for possível para manter as atividades significativas e a qualidade de vida. Envolve a habilidade de viver segura, autônoma e confortavelmente na sua própria casa ou comunidade, independentemente da idade, renda ou status de saúde (Center for Disease Control and Prevention, 2013Center for Disease Control and Prevention. (2013). Healthy places terminology: aging in place. Recuperado de:http://www.cdc.gov/healthyplaces/terminology.htm. doi: 10.2307/3090233
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). A busca pelo fortalecimento de vínculos e o suporte proporcionado por aspectos ambientais direcionados à acessibilidade, mobilidade e independência são complementares a essa concepção (Wiles, Leibing, Guberman, Reeve, & Allen, 2011Wiles, J. L., Leibing, A., Guberman, N., Reeve, J., & Allen, R. E. S. (2011). The meaning of “Ageing in Place” to older people. The Gerontologist, 1-10. doi: 10.1093/geront/gnr098
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). Optou-se por manter a denominação em sua língua original, uma vez que seu significado vai além da tradução literal ‘envelhecer no lugar’.

À medida que o corpo envelhece, a pessoa adquire limitações motoras e cognitivas que dificultam a realização de certas atividades com a mesma desenvoltura de antes, tal qual manusear instrumentos, se locomover ou se comunicar. Ao construir espaços públicos acessíveis, permite-se a manutenção de vínculos, por meio de relações significativas com familiares, pares, membros do comércio local, serviços de saúde e espaços de socialização e lazer, proporcionando uma vizinhança amigável (Brett et al., 2019Brett, L., Georgiou, A., Jorgensen, M., Siette, J., Scott, G., Gow, E., … Westbrook, J. (2019). Aging well: evaluation of social participation and quality of life tools to enhance community aged care (study protocol). BMC Geriatrics, 19(78), 1-8. doi: 10.1186/s12877-019-1094-2
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).

Logo, é possível, com o desenho urbano e com a oferta de serviços, criar um ambiente que reconheça as capacidades e limitações dos idosos, antecipando e respondendo às preferências associadas à idade. A pessoa idosa comumente se encontra em situação de vulnerabilidade, que pode ainda ser potencializada por pressões ambientais, geradoras de estresse (Günther & Elali, 2018Günther, I. A., & Elali, G. A. (2018). Docilidade ambiental. In S. Cavalcante & G. A. Elali(Orgs.), Psicologia ambiental: conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (p. 47-59). Petrópolis, RJ: Vozes.).

Dessa maneira, o impacto do espaço urbano sobre o bem-estar físico e social do idoso se dá a partir da adaptação entre as suas capacidades funcionais e as características ambientais (Lawton, 1986Lawton, M. P. (1986). Environment and aging. Albany, NY: Center for Study of Aging.). Para tornar possível o envelhecimento ativo nas cidades, é necessário que as políticas públicas em processos de planejamento urbano antecipem as necessidades e preferências das pessoas mais velhas, otimizando as oportunidades de mobilidade e convívio social (Aroogh & Shahboulaghi, 2020Aroogh, M. D., & Shahboulaghi, F. M. (2020). Social participation of older adults: a concept analysis. IJCBNM, 8(1), 55-72.; World Health Organization [WHO], 2005World Health Organization [WHO]. (2005). Envelhecimento ativo: uma política de saúde (Suzana Gontijo, trad.). Brasília, DF.).

A mobilidade também se torna central nesse contexto por possibilitar o encontro da pessoa idosa com suas necessidades diárias. Uma vez que a pessoa tem sua mobilidade reduzida, sua capacidade de controle sobre o ambiente também é minimizada. A ausência de dispositivos que facilitem a mobilidade aumenta a ocorrência de quedas que, por sua vez, restringem o desempenho funcional dos idosos, reduzindo sua autoconfiança. O contato com vizinhos é frequentemente prejudicado por obstáculos e barreiras de acessibilidade, como meio fios muito altos, ausência de bancos, guarda corpos e corrimãos, presença de bicicletas nas calçadas e tráfego pesado. Dado que idosos com limitações sentem-se inseguros ao sair, permanecendo mais tempo em casa e isolando-se do convívio comunitário, as melhorias na acessibilidade urbana levam ao maior bem-estar social (Van der Pas et al., 2016Van der Pas, S., Schaap, L. A., Castell, M. V., Cooper, C., Denkinger, M., Edwards, M. H., … Deeg, D. J. H. (2016). Availability and use of neighborhood resources by older people with osteoarthritis: results from the European Project on OSteoArthritis. Health & Place, 37, 1-7. doi: 10.1016/j.healthplace.2015.10.006
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).

Uma vez superadas as limitações de mobilidade e acessibilidade, a pessoa idosa precisa ter ao seu alcance comodidades necessárias para a manutenção do bem-estar social, o que engloba fatores como a possibilidade de participar de atividades comunitárias, o sentimento de segurança e de proteção e o acesso a comércios e serviços públicos de saúde e de transporte (Buffel & Phillipson, 2016Buffel, T., & Phillipson, C. (2016). Can global cities be ‘age-friendly cities’? Urban development and ageing populations. Cities, 55, 94-100. doi: 10.1016/j.cities.2016.03.016
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). De todos os aspectos mencionados, a segurança é o mais influente na decisão de um idoso em utilizar o espaço público e, assim como a mobilidade, a insegurança pode ser um fator que leva ao isolamento (Woolrych et al., 2019Woolrych, R., Sixsmith, J., Fisher, J., Makita, M., Lawthon, R., & Murray, M. (2019). Constructing and negotiating social participation in old age: experiences of older adults living in urban environments in the United Kingdom. Aging and Society, 1-23. doi: 10.1017/S0144686X19001569
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).

O estímulo à participação e envolvimento comunitário entrelaçam-se aos modos de disseminação de informações locais. O suporte emocional de familiares, amigos e membros da comunidade dão ao idoso a segurança necessária para utilização de recursos da vizinhança, e ao usar estes locais para se inteirar das novidades da comunidade reforçam, ainda mais, seus vínculos sociais (Ahn, Kang, & Kwon, 2020Ahn, M., Kang, J., & Kwon, H. J. (2020). The concept of aging in place as intention. Gerontologist, 60, 50-59. doi: 10.1093/geront/gny167
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). Assim, é legítimo explorar o vínculo afetivo construído pelos moradores em relação à cidade que ajudaram a construir.

Para compreender a percepção do idoso sobre o ambiente onde mora, é necessário entender não somente quais os recursos disponíveis no local, mas também quais foram as experiências vividas naquele contexto e os significados atribuídos a esses aspectos. Dessa maneira, a dimensão afetiva, que inclui o sentido de lugar é importante para a compreensão dos vínculos que se estabelecem entre o idoso e seu local de moradia.

Sentido de lugar e envelhecimento

A relação afetiva que se constrói com distintos ambientes ao longo da vida e as qualidades subjetivas atribuídas a eles, como o significado pessoal do local de moradia, os vínculos sociais formados ali, assim como a história e as conexões ancestrais resultantes da relação pessoa-ambiente compõem o que se denomina sentido de lugar (sense of place). Abrange ainda as emoções, relações sociais, crenças, valores, construções sociais, apego, e satisfação ambiental (Hay, 1998Hay, R. (1998). Sense of place on a developmental context. Journal of Environmental Psychology, 18, 5-29. doi: 10.1006/jevp.1997.0060
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; Stedman, 2016Stedman, R. C. (2016). Subjectivity and social-ecological systems: a rigidity trap (and sense of place as a way out).Sustainability Science,11(6), 891-901. doi:10.1007/s11625-016-0388-y
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).

O sentido de lugar pode ser obtido e mantido pelos indivíduos por meio da construção de uma história com determinado espaço, caracterizado por memórias e afetos (Tuan, 1980Tuan, Y.-F. (1980). Rootedness versus sense of place. Landscape, 24, 3-8.). Pode ser definido pelos laços afetivos que o compõem, representado por um apego emocional, pelos significados simbólicos atribuídos ao lugar e pelas percepções, sentimentos e ações que caracterizam o apego funcional que impulsionam a permanência no local, por meio de níveis de maior ou menor enraizamento (Fang et al., 2016Fang, M. L., Woolrych, R., Sixsmith, J., Canham, S., Battersby, L., & Sixsmith, A. (2016). Place-making with older persons: establishing sense-of-place through participatory community mapping workshops. Social Science & Medicine, 168, 223-229. doi: 10.1016/j.socscimed.2016.07.007
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). O reconhecimento da multidimensionalidade desse conceito reflete seu aprimoramento teórico desde 1968, quando foi citado pela primeira vez, e sua articulação com constructos mais recentemente discutidos na literatura como identidade de lugar e apego ao lugar, definidos a partir das dimensões de apego emocional e funcional, ou dependência de lugar (Nelson, Ahn, & Corley, 2020Nelson, J., Ahn, J. J., & Corley, E. A. (2020). Sense of place: trends from the literature. Journal of Urbanism: International Research on Placemaking and Urban Sustentability, 13(2), 236-261. doi: 10.1080/17549175.2020.1726799
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).

Esse vínculo pessoa-ambiente agrega elementos físicos, emocionais e vivenciais em uma relação de interdependência individual ou coletiva com o lugar, o que auxilia em termos de formação identitária e de pertencimento que se produz por meio de constante adaptação e uso dos lugares pelas pessoas (Agyekum & Newbold, 2019Agyekum, B., & Newbold, K. B. (2019). Sense of place and mental wellness amongst african immigrants in Canada. Journal of Urbanism: International Research on Placemaking and Urban Sustainability, 12(2), 188-202. doi: 10.1080/17549175.2018.1552885
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; Ghoomi, Yazdanfar, Hosseini, & Maleki, 2015Ghoomi, H. A., Yazdanfar, S-A., Hosseini, S. B., & Maleki, S. N. (2015). Comparing the components of sense of place in the traditional and modern residential neighbourhoods. Procedia - Social and Behavioral Sciences, 201, 275-285. doi: 10.1016/j.sbspro.2015.08.176
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). O sentimento de pertencimento, gerado por essa relação, é capaz de promover bem-estar e reduzir o isolamento social, o que sinaliza articulações entre psicologia e gerontologia ambiental, por exemplo, para sustentar preceitos das cidades amigáveis ao envelhecimento.

Alguns dos fatores que contribuem para a formação de sentido de lugar também contribuem para o envelhecimento saudável, como a participação em atividades na comunidade local, as relações intergeracionais, o passado compartilhado com o local onde se mora, incluindo acontecimentos, estruturas e objetos, o contato com as tradições e os ensinamentos transmitidos entre gerações, a familiaridade com o bairro e o suporte social local (Chapin III & Knapp, 2015Chapin III, F. S., & Knapp, C. N. (2015). Sense of place: a process for identifying and negotiating potentially contested visions of sustainability. Environmental Science and Policy, 53, 38-46. doi: 10.1016/j.envsci.2015.04.012
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). Ao longo dos anos onde se reside em um mesmo local, desenvolve-se com ele relações de afeto e de dependência, que passam a carregar significados pessoais para o indivíduo, de maneira que uma eventual partida deste lugar pode ser fonte de sofrimento para o idoso que já possuía suporte afetivo e social estabelecidos no local (WHO, 2008World Health Organization [WHO]. (2008). Global age-friendly cities: a guide. Geneva, CH: WHO Press.).

A partir desse sentido de lugar, as pessoas transformam os espaços onde se inserem e são por eles transformados. Daí a importância de se respeitar as preferências dessa população, sobretudo no que diz respeito ao local onde desejam morar ao longo do processo de envelhecimento. Sob essas considerações, esse estudo teve como objetivo explorar como moradores idosos de três localidades constroem seu sentido de lugar, pela identificação das oportunidades disponíveis em seu local de moradia, dos facilitadores e das barreiras enfrentadas diariamente e das demandas para a construção de um ambiente que favoreça o envelhecimento ativo.

Método

Caracterização e contextos da pesquisa

Os dados qualitativos apresentados decorrem do uso de três técnicas: entrevistas face a face, entrevistas caminhadas e diários fotográficos. Constitui uma colaboração entre universidades do Brasil e do Reino Unido entre os anos de 2016 e 2019.

Esse estudo foi realizado em três áreas residenciais com configuração urbanística, estratos de renda (alto, médio e baixo) e contextos histórico-culturais específicos. Além da distância em relação ao centro da cidade (3,5 km, 6,2 km e 9,1 km), são regiões com tecido urbano formal e regularizadas, mas que se diferenciam pelo tipo de moradia (casas e apartamentos), oferta de serviços, arborização local e relações de vizinhança. Nesse sentido, o objetivo traçado para esse estudo vai ao encontro de sentidos de lugares que se associam a essas particularidades locais, dando contorno às relações e oportunizando em diferentes níveis a construção de afetos que aproximam e/ou distanciam os moradores de seus entornos.

A localidade sul foi a primeira área residencial construída da cidade e recebeu todos os equipamentos públicos idealizados por Lúcio Costa. A área tem o total de 2.051 habitantes, abrigados em 766 domicílios, que apresentam um perfil de classe alta e média. Entre os idosos, 67% são do sexo feminino. A localidade norte é constituída por moradias econômicas. Foram reduzidos o número de pavimentos, o tamanho dos apartamentos, excluídas facilidades como os elevadores e os estacionamentos cobertos. A área tem o total de 2.183 moradores em 830 domicílios (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. (2010). Censo demográfico - 2010. Rio de Janeiro, RJ. Recuperado de: https://www.ibge.gov.br
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). A pirâmide etária mostra distribuição similar à população da cidade, com predominância de adultos jovens (25-30 anos) e 10,95% de moradores idosos, dentre esses 59,58% do sexo feminino.

A localidade oeste surgiu pela criação de um núcleo urbano destinado aos funcionários públicos dos segmentos federal e distrital. A área foi instituída na década de 90 por meio da distribuição de 370 lotes, com metragem média de 150 metros quadrados. Consiste em 13 quadras residenciais unifamiliares com casas de um a três pavimentos, qualificada como área de sensibilidade pela proximidade com uma unidade de conservação ambiental. Agrega aproximadamente 2.000 moradores, sendo 50,6% do sexo feminino, alocados em 558 domicílios, dos quais 65,27% têm idade entre 18 e 59 anos e 7,13% com mais de 60 anos (IBGE, 2010Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. (2010). Censo demográfico - 2010. Rio de Janeiro, RJ. Recuperado de: https://www.ibge.gov.br
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).

Participantes

Fizeram parte do estudo 63 participantes (M = 26; F = 37) com idade entre 60 e 90 anos. Em cada uma das três localidades, foram entrevistados dez participantes na modalidade face a face (N=30), sete no procedimento de entrevista caminhada (N=21), no qual o respondente ao caminhar e fotografar o ambiente por ele escolhido, é entrevistado (Evans & Jones, 2011Evans, J., & Jones, P. (2011). The walking interview: methodology, mobility and place. Applied Geography, 31(2), 849-859.). Quatro participantes de cada vizinhança documentaram suas experiências rotineiras por meio dos diários fotográficos (N=12). Após o registro fotográfico, outra entrevista foi realizada a fim de acessar os significados atribuídos às imagens.

A participação se deu de forma voluntária com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), seguindo os parâmetros da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob parecer de aprovação n. 4.033.823 (CAAE: 70931517.1.1001.5317).

Procedimentos de coleta e análise dos dados

Os procedimentos de coleta de dados ocorreram entre os meses de abril e setembro de 2017. Os moradores participaram de três momentos do estudo voltados para o levantamento de informações que pudessem responder às três perguntas centrais do projeto: (1) como o local de moradia é percebido pelos idosos, (2) quais os principais serviços necessários para tornar o local mais amigável para essa população e, (3) como o local pode ser projetado para integrar o sentido de lugar e as necessidades dos moradores.

A partir de um roteiro com 12 questões, as entrevistas face a face foram realizadas em local definido pelos idosos e foram audiogravadas para posterior transcrição. As perguntas versavam sobre as vivências diárias no bairro, acessibilidade, lazer e uso dos espaços públicos, apoio comunitário, sentido de lugar, pertencimento e participação social. No que se refere às entrevistas caminhadas, os idosos eram convidados a conduzir um trajeto no entorno de suas residências a fim de mostrar às pesquisadoras aspectos positivos e negativos percebidos, principais serviços utilizados rotineiramente e suas experiências relacionadas às dificuldades e facilidades de uso dos serviços. Durante a caminhada, o idoso era orientado a permanecer com o gravador de áudio para registro das falas e as pesquisadoras fotografavam elementos citados pelo participante ao longo do trajeto.

Quanto aos diários fotográficos, os idosos registraram até 12 cenários ou situações que considerassem relevantes no bairro. Posteriormente, a pesquisadora dirigia-se à residência do participante para resgatar as imagens e coletar informações acerca das escolhas dos cenários por meio de entrevista audiogravada.

Os áudios dos três momentos foram transcritos integralmente e organizados para análise com auxílio do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). O conteúdo transcrito foi formatado e importado como corpus textual para direcionamento das análises requeridas. Foram solicitadas as estatísticas descritivas e a classificação hierárquica descendente (CHD), que gera uma análise fatorial simplificada dos dados (Camargo & Justo, 2013Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2013). IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais.Temas em Psicologia,21(2), 513-518. doi: 10.9788/TP2013.2-16
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), dos 63 textos correspondentes ao conteúdo de cada entrevista. A análise quantitativa fornecida pelo software organiza os dados em um dendograma que apresenta as relações entre as categorias e as palavras associadas a cada uma delas. Inicialmente, cada momento da pesquisa foi analisado separadamente, mas em razão das similaridades categoriais percebidas, concluiu-se por usar o conteúdo dos três momentos para a análise global, o que permitiu maior retenção dos segmentos de texto pelo software e, consequentemente, maior precisão dos resultados.

Resultados

As estatísticas descritivas informaram textos com 5.502 segmentos, 10.805 formas e 4.820 hapax (formas que têm apenas uma ocorrência ao longo do texto). O número de hapax representa 44,61% das formas e 2,45% das ocorrências, o que viabilizou as análises.

No método de Reinert (CHD), o software apresentou uma retenção de 99,11% dos segmentos de texto importados do corpus. A partir da CHD foi possível visualizar a quantidade de classes/categorias obtidas e as palavras associadas a elas. Foram obtidas quatro classes de segmentos de textos nesse estudo. Todas as classes mostraram estar inter-relacionadas de acordo com o dendograma (Figura 1), contudo, a classe 2 é apresentada hierarquicamente como a mais significativa, representando 18,4% dos segmentos de texto. As classes 1 (30,5%) e 2 dão indícios de maiores níveis de similaridade pela proximidade no gráfico da análise fatorial simplificada (Figura 2) e as classes 3 (29,4%) e 4 (21,6%) apresentam maior independência. Na Figura 3, é possível observar o detalhamento das classes de acordo com o vocabulário associado a cada uma delas.

Figura 1
Dendograma das classes obtidas após Classificação Hierárquica Descendente (CHD). Fonte: Análise de dados no software Iramuteq.

Figura 2
. Representaçãográfica do dendograma em plano cartesiano - Análise Fatorial Simplificada. Fonte: Análise de dados no software Iramuteq.

Figura 3.
Dendograma com segmentos de texto resultantes da CHD. Fonte: Análise de dados no software Iramuteq.

O gráfico da análise fatorial simplificada evidencia a sobreposição das classes 1 e 2 (quadrantes superiores) e a independência das classes 3 (quadrante inferior esquerdo) e 4 (quadrante inferior direito). Para auxiliar na definição das classes e esclarecer pontos em comum e divergências no conteúdo dos discursos dos participantes, destacaram-se alguns trechos elucidativos de cada questão de pesquisa de maneira a nomear e definir as categorias em um processo qualitativo de análise.

As falas associadas à Classe 1 refletem memórias ligadas ao período de vivência no local de moradia, englobando comparações relacionadas a períodos anteriores e à percepção das diferenças surgidas ao longo dos anos no que se refere às pessoas e ao espaço físico. Além disso, incorpora o apoio dos vizinhos, síndicos e prefeituras comunitárias que constituem o auxílio para cuidado e manutenção do local de moradia e para compartilhamento de informações e solicitações de ajuda no dia a dia. Assim, alguns excertos elucidativos da classe denominada Vínculos Sociais e Comunitários são:

“Eu sou do tempo de Juscelino. Juscelino morreu e eu fiquei aqui. Só que não tinha esse bando de casa não. Aqui era mais deserto, era. Aqui tudo a gente achava longe” (F, 74 anos, localidade oeste).

“[...] os vizinhos têm alguns que eu chamo se precisar eu posso contar com eles, mas o restante é só com a família mesmo” (M, 82 anos, localidade norte).

A Classe 2 inclui as capacidades individuais dos idosos no âmbito do local de moradia para realização de atividades diárias de maneira autônoma e independente. Tais atividades abrangem o cuidado pessoal e com a habitação, bem como atividades de lazer e interação social. Trata ainda da construção de relações de vizinhança baseadas na cordialidade entre os moradores na busca pela manutenção de uma boa convivência e cooperação mútua. Seguem trechos que exemplificam as atividades oferecidas pela vizinhança:

“Aí meio dia eu almoço, durmo um soninho, depois eu fico na máquina um pouquinho. Aí chega a hora de andar, aí nós vai caminhar, caminho à tarde, de manhã é a casa, as plantas, os bichos. Costuro até 11 horas da noite, aí vou dormir” (F, 74 anos, localidade oeste).

“[...] não tem vizinho que me aborrece, somos amigos, eles lá na casa deles, e eu na minha. Eu não sou de tá na casa dos outros, mas é bom dia e boa tarde, como vai, essa amizade [...]” (M, 81 anos, localidade oeste).

No que diz respeito à Classe 3, o conteúdo das falas versa sobre o desejo de permanência no local de moradia (ageing-in-place), refletindo o sentido de lugar. Tais processos fortalecem a percepção do lugar como ideal para vivenciar o envelhecimento e se inter-relaciona a fatores como o acesso a serviços, acessibilidade, mobilidade e infraestrutura local. Por seu caráter simbólico, a classe Pertencimento ao Lugar apresenta nuances subjetivas e objetivas da relação pessoa-ambiente demonstradas em falas como:

“Eu não pretendo nem mudar daqui, nem eu nem minha esposa. Se você falar de mudar daqui ela não quer. Eu também não pretendo me mudar não” (M, 75 anos, localidade oeste).

“[...] eu percebi que toda essa vizinhança aqui e todo esse lugar aqui eu percebi que era o lugar que eu queria ficar para morar” (F, 64 anos, localidade norte).

“[...] tem tudo aqui, tudo pertinho, banco tudo eu ando [...] e tem todas as lojas aqui [...], eu posso a pé circular por aqui e acessar todas as lojas [...]” (F, 64 anos, localidade sul).

Por fim, a Classe 4 enfatiza o paisagismo e a arborização das áreas urbanas que colaboram para a contemplação de uma beleza estética que traz satisfação e agradabilidade. Os elementos naturais mostram-se incluídos em processos reflexivos sobre as relações conflituosas no uso dos recursos naturais, tendo em vista o crescimento urbano e a consequente redução de bens inicialmente tidos como inesgotáveis. Para representar essa classe, resgatamos o termo (R)urbanização, concebido por Gilberto Freyre (Duqueviz, 2006Duqueviz, B. C. (2006). A rubarnização como política social em Gilberto Freyre (Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica.) como um modelo voltado para a incorporação de elementos rurais no contexto urbano, de modo a expressar as especificidades locais e suas potencialidades na relação pessoa-ambiente, o que se evidencia nas seguintes falas:

“Ainda mais com essas árvores lindas! Brasília é um jardim, né? Aqui é um jardim” (F, 61 anos, localidade sul).

“Eu fico com vergonha quando eu lavo aqui, que agora não está podendo jogar água né, [houve racionamento na cidade] então não corre muita água não, porque eu lavo a roupa e já carrego a água para lá, para jogar uma aguinha ali e passar o rodo [...]” (F, 70 anos, localidade oeste).

“Os pés da parede do povo, não tem um jardim, não tem nada. Aqui teve uma época que, acabaram até com os jardins que o povo tinha” (F, 74 anos, localidade norte).

A descrição de cada classe incorpora componentes distintos da relação idoso-ambiente nos locais estudados. Esse panorama pode nos dar pistas de como promover ageing-in-place para essa população no diálogo com a literatura sobre o tema e com as diretrizes elencadas pela OMS no que diz respeito às cidades amigáveis ao envelhecimento. Tais aspectos auxiliaram na construção dos instrumentos utilizados e no direcionamento do estudo.

Discussão

Os resultados apresentados revelam percepções e demandas da população idosa de Brasília nas três localidades estudadas, permitindo o cruzamento de informações pertinentes que dialogam com outros estudos já realizados na área, mas que também exibem especificidades locais de acordo com as características da cidade e de seus moradores. Nesse sentido, problemáticas urbanas ligadas à segregação e desigualdade socioespacial se fazem presentes assim como em outras regiões do país; nesse caso, desde o planejamento da cidade, e que foram se evidenciando com o seu crescimento.

As Classes 1 e 3 (Vínculos Sociais e Comunitários/Pertencimento ao Lugar) enfatizam elementos relacionais, pautados na historicidade local, e que refletem a construção do sentido de lugar. A Classe 2 (Atividades) foca nas possibilidades de uso social dos espaços, esclarecendo percepções dos moradores na relação com o entorno, e a Classe 4 ((R)urbanização) ressalta os componentes físicos e visuais observados diariamente nesse contato com os elementos naturais e construídos do ambiente.

Nesse sentido, os moradores demonstram que aquilo que por eles é percebido, está pautado em observações cotidianas que se observa cotidianamente, mesclando a estética local com suas memórias das mudanças que foram ocorrendo ao longo dos anos, em termos de redução de aspectos rurais sobrepostos por uma perspectiva mais urbana. Há, assim, um sentimento de nostalgia que reforça o cuidado e enfatiza a necessidade de preservação do patrimônio representado por essa estética modernista. Nas localidades norte e sul, essa relação se evidencia pela valorização do ambiente físico e dos elementos que o compõem, com maior variedade de oferta de serviços destinados a pessoas com maior poder aquisitivo por estarem localizadas mais próximas ao centro da cidade. Na localidade oeste, as atividades e relacionamentos sociais mantiveram um contorno mais vívido nas falas dos entrevistados que apresentam uma história compartilhada de resistência pela conquista da moradia. Essa diferenciação pode ser esclarecida pelas características de cada localidade, assim como no estudo de Ghoomi et al. (2015Ghoomi, H. A., Yazdanfar, S-A., Hosseini, S. B., & Maleki, S. N. (2015). Comparing the components of sense of place in the traditional and modern residential neighbourhoods. Procedia - Social and Behavioral Sciences, 201, 275-285. doi: 10.1016/j.sbspro.2015.08.176
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), no qual os residentes de um bairro considerado mais moderno destacaram componentes visuais como mais relevantes para construção de afetos positivos com o lugar e aqueles que residiam em um bairro mais tradicional, valorizaram os componentes relacionais como mais significativos.

Apesar das diferenças entre as localidades, o conteúdo atribuído às Classes 1 e 3 são os mais recorrentes, demonstrando a potência do pertencimento ao lugar desses moradores. Portanto, esse sentimento se caracteriza como principal facilitador para a relação idoso-ambiente nos cenários pesquisados. O sentido de lugar, ao impulsionar a coleção de significados simbólicos que vão se constituindo a partir da história de vida de cada sujeito com o seu local de moradia, reforça essa conexão e permite o enraizamento (Fang et al., 2016Fang, M. L., Woolrych, R., Sixsmith, J., Canham, S., Battersby, L., & Sixsmith, A. (2016). Place-making with older persons: establishing sense-of-place through participatory community mapping workshops. Social Science & Medicine, 168, 223-229. doi: 10.1016/j.socscimed.2016.07.007
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; Nelson et al., 2020Nelson, J., Ahn, J. J., & Corley, E. A. (2020). Sense of place: trends from the literature. Journal of Urbanism: International Research on Placemaking and Urban Sustentability, 13(2), 236-261. doi: 10.1080/17549175.2020.1726799
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; Tuan, 1980Tuan, Y.-F. (1980). Rootedness versus sense of place. Landscape, 24, 3-8.). Essa interdependência idoso-ambiente se traduz no desejo de aging-in-place, encorajado por fatores objetivos e subjetivos que tornam o local mais amigável à pessoa idosa dentro das suas necessidades (Ahn et al., 2020Ahn, M., Kang, J., & Kwon, H. J. (2020). The concept of aging in place as intention. Gerontologist, 60, 50-59. doi: 10.1093/geront/gny167
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).

Nesse percurso, surgem barreiras, caracterizadas nesse estudo pela pouca disponibilidade de atividades voltadas para o público idoso e pela dificuldade em acessar aquelas que são ofertadas. Assim, as atividades restringem-se bastante à área interna das residências, o que limita o contato social com os demais moradores. Esse convívio comunitário é essencial para promoção de saúde e pode afetar diretamente o desejo de permanecer no local (Van der Pas et al., 2016Van der Pas, S., Schaap, L. A., Castell, M. V., Cooper, C., Denkinger, M., Edwards, M. H., … Deeg, D. J. H. (2016). Availability and use of neighborhood resources by older people with osteoarthritis: results from the European Project on OSteoArthritis. Health & Place, 37, 1-7. doi: 10.1016/j.healthplace.2015.10.006
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). Além disso, como enfatizado na estratégia de cidades amigáveis ao envelhecimento, o estabelecimento de uma rede de apoio entre moradores aumenta a percepção de controle, fazendo com que a pessoa idosa se sinta mais autônoma e independente para se integrar à comunidade (WHO, 2005World Health Organization [WHO]. (2005). Envelhecimento ativo: uma política de saúde (Suzana Gontijo, trad.). Brasília, DF., 2008World Health Organization [WHO]. (2008). Global age-friendly cities: a guide. Geneva, CH: WHO Press.).

O aspecto socioeconômico incide sobre a participação nessas atividades, pois os entrevistados das localidades norte e sul buscam serviços privados para realização de atividades físicas e de lazer, em espaços próximos de suas residências. Condições econômicas favoráveis auxiliam o acesso, apesar de os moradores afirmarem o interesse em atividades gratuitas. Na localidade oeste, há pouca oferta nos âmbitos público e privado nesse setor e os moradores possuem condições menos favoráveis para custear sua inserção. Esse tipo de relação bancária/monetária impossibilita que as pessoas idosas usufruam do espaço urbano de maneira efetiva.

A eliminação de barreiras voltadas para superar esse distanciamento perpassa características do ambiente físico que facilitem a acessibilidade e, consequentemente, a mobilidade da pessoa idosa (Aroogh & Shahboulaghi, 2020Aroogh, M. D., & Shahboulaghi, F. M. (2020). Social participation of older adults: a concept analysis. IJCBNM, 8(1), 55-72.). A garantia de locomoção no bairro permite perceber o ambiente como menos opressor e reduzir o estresse ocasionado pelo isolamento social. Dentre as principais razões para realocação na velhice estão a dependência, em razão das debilidades de saúde física e mental, associadas à percepção de maiores níveis de pressão ambiental. Desse modo, ao planejar ambientes se faz necessário focar nas necessidades daqueles que utilizarão o espaço (Günther & Elali, 2018Günther, I. A., & Elali, G. A. (2018). Docilidade ambiental. In S. Cavalcante & G. A. Elali(Orgs.), Psicologia ambiental: conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (p. 47-59). Petrópolis, RJ: Vozes.). No caso da população idosa, é primordial ter em mente de que modo aquele ambiente pode promover envelhecimento ativo.

A identificação de facilitadores e barreiras oferece subsídios para projetar ambientes que integrem de maneira mais eficiente as necessidades dos moradores e gere o fortalecimento de um sentido de lugar. Para tanto, processos de pesquisa e planejamento participativo podem ser uma alternativa bastante promissora, que além de promover engajamento e participação social (Chapin III & Knapp, 2015Chapin III, F. S., & Knapp, C. N. (2015). Sense of place: a process for identifying and negotiating potentially contested visions of sustainability. Environmental Science and Policy, 53, 38-46. doi: 10.1016/j.envsci.2015.04.012
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), levam à aproximação com o conhecimento local, fazendo com que planejadores, pesquisadores e moradores dialoguem em um processo de constante troca para estruturar uma cidade mais amigável.

Com os dados apresentados, o passo seguinte foi buscar esse diálogo por meio de estratégias de pesquisa que envolvessem os idosos e demais residentes de cada localidade, de modo a concatenar os resultados desse estudo com possibilidades interventivas. Envolver a população idosa em processos de tomada de decisão também surge como fator preponderante para estimular o envelhecimento ativo nas cidades e consolidar o respeito às preferências desse grupo que se mostra, até o momento, cada vez mais numeroso em nossa sociedade.

Estar atento às mudanças resultantes dessa inversão da pirâmide demográfica incide sobre algumas das questões identificadas nesse estudo, mas também confirma o quanto ainda se faz necessário avançar para incluir de modo mais realista a dinâmica relação idoso-ambiente em estudos que abordam o processo de envelhecimento e suas nuances. O papel social da pessoa idosa e sua constituição identitária impõem o reconhecimento de limitações no âmbito da pesquisa em psicologia, ainda mais quando se pontuam questões ligadas ao papel do ambiente físico nessa relação. Com o propósito de reduzir essa lacuna, esse estudo foi ao encontro de um olhar mais amplo sobre esse contexto e o aprofundamento da compreensão de fatores que dificultam e facilitam o dia a dia de idosos, de maneira a oferecer contribuições para pesquisas futuras voltadas à temática.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2020
  • Aceito
    22 Dez 2021
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