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RELAÇÕES DE GÊNERO NA REDE MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE: FORMAÇÃO DOCENTE CONTINUADA

RELACIONES DE GÉNERO EN LA RED MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE: FORMACIÓN CONTINUADA

RESUMO.

Este texto apresenta o relato reflexivo do projeto de formação continuada docente na rede municipal de educação de Belo Horizonte, entre 2015 e 2018, no campo das relações de gênero. A parceria entre a Secretaria Municipal de Educação e a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais promoveu as condições necessárias para a realização e integração das atividades acadêmicas de extensão, ensino e pesquisa nos níveis da graduação e pós-graduação. Apesar do contexto político nacional das ofensivas antigênero no campo educacional, a demanda por ações formativas partiu de docentes e gestores/as da educação ao se depararem com os impactos das assimetrias na aprendizagem entre meninas e meninos, bem como situações de violência de gênero na escola. À luz dos pressupostos teóricos pós- estruturalistas de gênero, a formação utiliza metodologias diversificadas como grupos de estudo, seminários, oficinas pedagógicas e estudos de caso em diferentes espaços da cidade como escolas, universidade e museus. A análise dos quatro anos do projeto revela a importância de uma abordagem interdisciplinar das relações de gênero e de caráter permanente, pois ações formativas isoladas têm se mostrado ineficazes.

Palavras-chave:
Escola; formação docente; gênero

RESUMEN.

En este texto se presenta el informe de reflexión del proyecto de formación continua de profesores y profesoras de la Red Municipal de Educación de Belo Horizonte, entre 2015 y 2018, en el ámbito de las relaciones de género. La asociación entre el Departamento Municipal de Educación y la Pontificia Universidad Católica de Minas Gerais promovió las condiciones necesarias a la realización e integración de las actividades académicas de extensión, enseñanza e investigación en los niveles de licenciatura y posgrado. A pesar del contexto político nacional de las ofensivas de género en el ámbito educativo, la demanda de acciones de capacitación provino de los maestros y administradores de la educación cuando se enfrentaron a los impactos de las asimetrías en el aprendizaje entre niñas y niños, así como a situaciones de violencia de género en la escuela. A la luz de los supuestos teóricos postestructuralistas de género, la capacitación utiliza diversas metodologías como grupos de estudio, seminarios, talleres pedagógicos y estudios de caso en diferentes espacios de la ciudad como escuelas, universidades y museos. El análisis de los cuatro años del proyecto muestra la importancia de un enfoque interdisciplinario de las relaciones de género de carácter permanente, ya que las acciones formativas aisladas han demostrado ser ineficaces.

Palabras clave:
Escuela; formación docente; género

ABSTRACT.

This text presents the reflective report of the project of continuous teacher training in the Municipal Education Network of Belo Horizonte, between 2015 and 2018, in the field of gender relations. Partnership between the Municipal Department of Education and the Pontifical Catholic University of Minas Gerais promoted the necessary conditions for the implementation and integration of academic activities of extension, education and research at undergraduate and graduate levels. Despite the national political context of gender offensives in the educational field, the demand for training actions came from teachers and education managers when they faced the impacts of asymmetries in learning between girls and boys, as well as situations of gender violence at school. In the light of the post-structuralist theoretical assumptions of gender, training uses diverse methodologies such as study groups, seminars, pedagogical workshops and case studies in different spaces of the city, such as schools, universities and museums. The analysis of the four years of the project revealed the importance of an interdisciplinary approach to gender relations of a permanent nature, since isolated training actions have proved ineffective.

Keywords:
School; teacher training; gender

Introdução

Este artigo consiste num relato da experiência de formação docente no campo das relações de gênero com professoras/es da rede municipal de educação de Belo Horizonte entre os anos de 2015 e 2018. A experiência é fruto da parceria entre a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, por meio do Núcleo de Educação, Cultura e Cidadania, e os Programas de Pós-graduação em Psicologia e Ciências Sociais e a Pró-Reitoria de Extensão da PUC Minas.

Os docentes da rede foram consultados sobre suas demandas de formação e apresentaram questões iniciais, que foram tomadas como guia: a expectativa docente sobre discentes é diferenciada por gênero? Como ocorre a ocupação dos espaços coletivos da escola por meninas e meninos? Quais são as representações de gênero nos livros didáticos? O que fazer com aquele estudante que não se enquadra nas normas ditas masculinas ou femininas?

Tendo como perspectiva epistemológica o campo de estudos pós-estruturalista de gênero e sexualidade (Louro, 2003Louro, G. L. (2003) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, MG: Autêntica.; Miskolci, 2012Miskolci, R. (2012) Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte, MG: Autêntica .; Butler, 2018Butler, J. (2018). Corpos em alianças e apolíticas das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), as ações de formação docente têm utilizado diferentes estratégias metodológicas em diversos espaços da capital mineira para discutir assimetrias no ensino/aprendizagem, a violência de gênero e as relações entre meninas e meninos no cotidiano escolar.

Breve histórico da rede municipal de educação no campo das políticas públicas de gênero

Desde o final do século XX, a rede municipal de educação de Belo Horizonte tem investido numa política pública de formação docente continuada no campo dos estudos de gênero e sexualidade. Segundo Alves e Souza (2017Alves, C. E. R., & Souza, M. M. (2017). Educação para as relações de gênero: eventos de letramento na escola. Curitiba, PR: CRV.), há registros de ações de formação docente há cerca de três décadas, seja por meio de projetos ou atividades desenvolvidas no contexto cotidiano das próprias escolas municipais, seja por meio de cursos de formação e de aperfeiçoamento, organizados pela Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, dirigidos às/aos professoras/es de toda a rede municipal.

Nos anos de 1990, a abordagem dessa formação docente se ampliou, passando de uma perspectiva unicamente biologicista para a multidisciplinar incorporando as áreas de português, história, artes, geografia entre outras (D’Andrea, 2014D’Andrea, A. C. E. B. (2014). Movimentos e articulações: uma análise das iniciativas de formação de educadoras/es em sexualidade na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte de 1989 a 2009 (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.). Esse caráter multidisciplinar, possibilitou a inclusão dos estudos de gênero, contribuindo para a superação dos essencialismos biológico e cultural para a compreensão sobre as diferenças entre os sexos.

A formação continuada de professoras/es do ensino fundamental tem sido objeto de inúmeras políticas públicas educacionais no Brasil, como, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996aBrasil. Ministério da Educação. (1996a). LDBEN - Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF.), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e da Valorização do Magistério (Brasil, 1996bBrasil. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais [INEP]. (1996b). Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e da Valorização do Magistério. Brasília, DF: MEC.) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. (1997). Parâmetros curriculares nacionais: orientação sexual. Brasília, DF.).

No início dos anos 2000, as formações docentes em gênero e sexualidade se proliferaram em todo o Brasil, incentivando a discussão qualificada dessa temática no campo da educação. No entanto, desde 2016, a inclusão da temática das relações de gênero no currículo escolar tem sido objeto de inúmeros debates e controvérsias, e as ações do movimento escola sem partido e a defesa da falaciosa ideologia de gênero, resultaram na supressão dessa temática nos planos nacional, estaduais e municipais de educação. Há atualmente um descompasso entre as prescrições dos textos legais quanto ao tratamento das relações de gênero no contexto escolar, e as demandas de enfrentamento das desigualdades de gênero no ensino fundamental, o que justifica os esforços pela formação continuada do corpo docente.

Na contramão desse retrocesso político, em agosto de 2017, a prefeitura de Belo Horizonte aderiu ao Programa Plataforma 50/50 (ONU Mulheres, 2017ONU Mulheres. (2017). Plataforma 50/50: igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas(Documentos temáticos - Nações Unidas no Brasil). Recuperado de: http://www.onumulheres.org.br/onu-mulheres/documentos-de-referencia/
http://www.onumulheres.org.br/onu-mulher...
) “Igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. O Núcleo de Educação, Cultura e Cidadania da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte é responsável pelo eixo da educação inclusiva no comitê de elaboração do plano municipal de equidade de gênero que se articula com a proposta da ONU. Uma das recomendações do documento da ONU é a formação continuada docente, bem como o monitoramento e avaliação das práticas que visam à promoção de equidade de gênero nos equipamentos públicos, entre os quais, as escolas.

As assimetrias nas relações de gênero no ambiente escolar têm produzido uma série de desafios para a prática cotidiana de professoras/es, entre eles a naturalização da desigualdade de gênero e na aprendizagem das crianças e das/dos adolescentes. Os dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Brasil, 2016Brasil. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais [INEP]. (2016). Brasil no PISA 2015: análises e reflexões sobre o desempenho dos estudantes brasileiros. São Paulo, SP: Fundação Santillana.) revelam que meninos têm resultados superiores na aprendizagem de matemática em relação às meninas, enquanto estas apresentam resultados superiores na aprendizagem de conteúdos de linguagem. Os conteúdos são hierarquizados, desse modo, a habilidade matemática, decorrente do raciocínio lógico, característica atribuída aos homens, é mais valorizada do que a habilidade de linguagem e comunicação, associada à sensibilidade que é vista como própria das mulheres. A análise desses dados revela a reprodução da desigualdade de gênero na escola: meninos e meninas não aprendem de forma igualitária porque o ensino não é realizado igualitariamente.

Nesse contexto, a Secretaria Municipal de Educação estabeleceu, em 2015, uma parceria com os programas de pós-graduação em psicologia e em ciências sociais e a Pró-reitoria de Extensão da PUC Minas, no intuito de desenvolver metodologias de pesquisa e intervenção no campo das questões de gênero nas escolas municipais e no enfrentamento das assimetrias de aprendizagem e das violências decorrentes da desigualdade no âmbito dessas relações.

A trajetória do projeto entre 2015 e 2018

A primeira ação, em 2015, foi a elaboração do caderno das Diretrizes da educação para as relações de gênero na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte (Belo Horizonte, 2015Belo Horizonte. Secretaria Municipal de Educação [SMED]. (2015). Diretrizes da educação para as relações de gênero na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG. Recuperado de:https://www.pucminas.br/pos/psicologia/DocumentosGerais/Publicacoes/cadernos-das-diretrizes-de-genero.pdf
https://www.pucminas.br/pos/psicologia/D...
) que visava contribuir na construção de políticas públicas educacionais de enfrentamento às práticas sexistas.

Em 2016, a segunda ação foi intitulada Meninas e meninos aprendem a mesma coisa? Desigualdades no processo de ensino e aprendizagem. No intuito de facilitar o deslocamento docente; as formações foram ofertadas em quatro regiões da cidade (Centro-Sul; Barreiro; Venda Nova e Nordeste), essa estratégia permitiu maior participação docente nos encontros mensais que tiveram como foco ações práticas de promoção da equidade de gênero na sala de aula (Moreira et al., 2017Moreira, M. I. C. et al. (2017). Meninas e meninos aprendem a mesma coisa? Desigualdades no processo de ensino e aprendizagem. In C. E. R. Alves & M. M. Souza, (Orgs.), Educação para as relações de gênero: eventos de letramento na escola (p. 95-108). Curitiba, PR: CRV .).

Em 2017, a ação Gênero, educação e cultura: estratégias de intervenção objetivava a instrumentalização docente no campo teórico-metodológico de gênero. Os encontros mensais, dessa vez, foram realizados no Museu de Artes e Ofícios objetivando promover uma reflexão crítica do acervo museológico sob a ótica das relações de gênero no cotidiano do trabalho desenvolvido por homens e mulheres, nos espaços públicos e doméstico.

Em 2018 foi realizada, em quatro escolas, localizadas em diferentes regionais administrativas de Belo Horizonte, a ação Educação e equidade: assimetrias entre meninas e meninos na escola. Essa atividade constituiu-se como um projeto-piloto de intervenção direta nas escolas, para tanto, contamos com estudantes graduandos extensionistas da PUC Minas para acompanhar as escolas por meio de estratégias qualitativas como observação participante, registros fotográficos e conversas informais, no intuito de produzir olhares de estranhamento na rotina escolar. Ao final desse ano, foi realizada uma devolutiva para as escolas participantes por meio de um seminário interativo na PUC Minas, quando os docentes dessas escolas apresentaram as atividades realizadas em suas práticas pedagógicas para o enfrentamento às assimetrias de gênero na aprendizagem.

Nesses quatro anos, cerca de 2.700 docentes da rede municipal participaram das ações de formação continuada acima descritas. As atividades eram previamente divulgadas para as escolas da rede, a participação docente sempre se deu por adesão, a partir de uma inscrição prévia, na qual algumas informações eram coletadas. A sistematização desses dados revelou que esse público é composto de 14% homens e 86% mulheres; com média de idade de 30 anos; com média de dez anos de exercício docente; a maioria com especialização e/ou mestrado.

O projeto continua em andamento e no biênio 2019-2020 pretende avaliar os resultados da formação continuada do corpo docente municipal, bem como produzir um material paradidático com metodologias inovadoras para a abordagem das questões presentes nas relações de gênero no contexto escolar.

Relações de gênero e escola: algumas aprendizagens e muitas possibilidades

Gênero é entendido aqui como uma categoria analítica que possibilita compreender as disputas narrativas e de prestígio para as posições de homens e mulheres no contexto social, o que nos leva a compreender como as diferenças são transformadas em desigualdades, criando polos de dominação e de submissão que se tornam naturalizados (Scott, 1990Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, 16(2), 5-22.), e produzindo condições precárias de existência (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. São Paulo, SP: Civilização Brasileira., 2018). Os estudos de gênero levaram à desconstrução da explicação naturalizada das diferenças atribuídas aos sexos por razões biológicas. Recusou-se a explicação essencialista de que as diferenças de posição de meninos e meninas nas relações sociais ou nos modos de conduzir a vida fossem derivadas das diferenças hormonais. Também se buscou evidenciar os riscos de que as explicações que associam as diferenças aos processos de socialização fossem igualmente tomadas de modo naturalizado e convertidas em comportamentos imutáveis (Butler, 2003, 2018).

A compreensão naturalizada dos processos de socialização nos leva a acreditar que homens e mulheres aprendem desde a infância os modos considerados socialmente próprios para conduzirem a vida e que não será possível, quando jovens e adultos, modificarem tais hábitos. No entanto, sabemos que a aprendizagem é um processo contínuo e não linear, portanto passível de transformação ao longo da vida.

O conceito de gênero de Scott (1990Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, 16(2), 5-22.) busca romper a dicotomia entre o coletivo e o singular, posto que os processos de subjetivação só podem ser compreendidos como processos vividos por sujeitos situados e ativos socialmente. Tais processos são dinâmicos, contínuos e não lineares e, sendo assim, os sentidos produzidos para as posições de gênero de homens e mulheres podem ser transformados ao longo da vida.

A discussão de gênero na escola precisa ser realizada com estratégias metodológicas dialógicas e participativas, posto que o diálogo é o sinal que deve marcar a produção do conhecimento na escola, como um espaço democrático onde todas/os têm de expressar suas ideias, de serem ouvidas/os e respeitadas/os (Rena, 2006Rena, L. C. C. B. (2006). Sexualidade e adolescência: as oficinas como prática pedagógica. Belo Horizonte, MG: Autêntica .). O viés crítico e dialético dessa escolha metodológica questiona uma visão estática da realidade, manifestando interesse transformador das situações ou fenômenos estudados, resgatando sua dimensão histórica e desvendando suas possibilidades de mudança.

Uma queixa recorrente entre docentes participantes das formações é a dificuldade de abordagem da temática em sala de aula, demandando certa instrumentalização para o trabalho discente. Nesse sentido, uma metodologia diversificada pode atender a essa demanda como, por exemplo, a realização de dinâmicas em grupo que funcionam como pontos de partida para a discussão, sendo necessária a devida adaptação do/a profissional, conforme a idade, maturidade, interesse e especificidade do público e de cada espaço educativo. Partindo do pressuposto que não existe fórmula ou manual explicativo que oriente o trabalho pedagógico com as relações de gênero, torna-se imprescindível a denominada lucidez profissional (Perrenoud, 2000Perrenoud, P. (2000). 10 novas competências para ensinar. São Paulo, SP: Artmed.), a partir da qual a/o profissional de educação experiencia os dilemas, as surpresas e a permanente busca mútua por soluções para os conflitos oriundos do cotidiano escolar no campo de gênero.

A escola demarca, enquadra e reitera os lugares de meninas e meninos, estabelecendo regras e penalidades para a transgressão de gênero (Louro, 2003Louro, G. L. (2003) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, MG: Autêntica.). Tal enquadramento é materializado na organização de estudantes em filas de meninas e meninos, nos livros da biblioteca indicados para meninas (romances e poesias) e meninos (ação e aventura), nas brincadeiras de meninas (boneca) e meninos (bola) e nas relações interpessoais. Esses marcadores de gênero na escola podem gerar conflitos, resistências e, principalmente, processos desiguais de aprendizagem. Nesse cenário, cabe à equipe de gestão da escola - direção, funcionários/as da administração, professores/as, monitores/as e parceiros/as - a importante tarefa de promover ações dialogadas de equidade de gênero na educação.

Outro exemplo de naturalização das hierarquias de gênero revela-se no próprio uso e domínio do espaço físico escolar. É comum que as quadras sejam majoritariamente ocupadas pelos meninos para as práticas esportivas, consideradas próprias dos homens. Às meninas, em geral, estão reservados ‘os cantinhos’ onde elas podem estabelecer as conversas, o compartilhamento de produtos de beleza, a brincadeira com bonecas, enfim, atividades que denotam estereótipos femininos. Promover o intercâmbio entre gêneros é uma inciativa que pode contribuir na ruptura dos lugares hegemônicos, como atividades realizadas em conjunto, garantindo tempos equânimes no uso dos espaços coletivos da escola.

A desigualdade de gênero na escola é refletida também na prática de violência entre meninos e meninas, e entre meninos e outros meninos que se apresentam, de algum modo, fora dos padrões da denominada masculinidade hegemônica, seja porque não gostam de determinadas brincadeiras, seja porque são franzinos e/ou considerados ‘afeminados’ (Junqueira, 2009Junqueira, R. D. (2009). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília, DF: UNESCO.). Já as disputas entre meninas também reproduzem os estereótipos de gênero, por exemplo, nas brigas por ciúme.

A violência significa uma grave violação dos direitos humanos, e aquela praticada na instituição escolar é um dos atravessamentos que produzem as dificuldades de aprendizagem. Um clima escolar acolhedor que garanta a integridade física e psicológica de discentes e docentes em suas diferenças é o primeiro passo no enfrentamento da violência. Os problemas de aprendizagem e a violência de gênero têm alta complexidade, mas são explicados de modo reducionista e essencialista, seja quando se atribui as desigualdades à condição biológica, seja aos modos distintos de socialização de meninos e meninas. Esse diagnóstico realizado nas escolas municipais de Belo Horizonte revela um quadro comum a outros contextos (Wenetz & Stigger, 2006Wenetz, I., Stigger, M. P. (2006) A construção do gênero no espaço escolar. Movimento, 12(01), 59-80. ; Miskolci, 2012Miskolci, R. (2012) Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte, MG: Autêntica .). Assim, um desafio fundamental nas ações de formação é promover a quebra dos modelos universais, uma vez existem diferentes formas de ser mulher e de ser homem, sendo necessário o reconhecimento da diferença, não como desigualdade, mas como uma potente estratégia pedagógica de discussão da diversidade humana.

Considerações finais

Como foi apontado no decorrer deste relato de experiência, a desigualdade de gênero impacta negativamente os processos de aprendizagem em uma etapa significativa da vida, afetando a vida pessoal e as relações sociais e laborais de forma longitudinal, como consideram Louro (2003Louro, G. L. (2003) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, MG: Autêntica.), Junqueira (2009Junqueira, R. D. (2009). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília, DF: UNESCO.) e Miskolci (2012Miskolci, R. (2012) Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte, MG: Autêntica .) entre outros/as, em suas pesquisas sobre gênero nos contextos educacionais.

A promoção de práticas pedagógicas de equidade é uma estratégia de enfrentamento da violência de gênero. O desenho de políticas públicas educacionais com garantia de direitos contrapõe-se a uma cultura escolar marcada por práticas discriminatórias de estigmatização discente e docente (Junqueira, 2009Junqueira, R. D. (2009). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília, DF: UNESCO.).

As dimensões da extensão, do ensino e da pesquisa na prática universitária têm sido vividas em nossos projetos de modo orgânico. A ida ao campo é oportunidade de estabelecimento de relações de ensino/aprendizagem, que têm sido sistematizadas, registradas e comunicadas em eventos acadêmicos. Por outro lado, a prática extensionista é estabelecida em uma relação dinâmica com a pesquisa, pois a um só tempo nasce da própria pesquisa e produz indagações e questões. Do ponto de vista do público-alvo, a análise das informações produzidas até o momento indica que já há uma sensibilidade para a observação das consequências das desigualdades naturalizadas de gênero no contexto escolar, bem como a manifestação docente pela continuidade das formações.

A contínua sistematização e avaliação das ações revelam também algumas dificuldades no processo que podem, algumas vezes, ser derivadas da própria estrutura de funcionamento das escolas municipais, por exemplo, a inclusão da formação docente continuada no planejamento do calendário escolar e da carga horária dos professores. Além disso, especialmente a partir de 2016, outra dificuldade pode ser reconhecida na resistência aos estudos de gênero por parte de alguns/mas docentes e gestores/as educacionais que se identificam com a postura de grupos políticos e religiosos conservadores.

A formação continuada sobre as relações de gênero do corpo docente municipal se desenvolve no cenário das contradições e disputas entre as narrativas, pois se de um lado encontramos os adeptos ao slogan ‘ideologia de gênero’, de outro a Prefeitura de Belo Horizonte se engaja na elaboração do plano municipal de equidade de gênero sinalizando positivamente para o investimento político na discussão de gênero em equipamentos públicos da cidade, como as escolas.

Por fim, almejamos que as relações assimétricas de gênero sejam percebidas não só nos episódios ‘problemáticos’, por exemplo, nos atos de violência, nas discrepâncias no desempenho nas avaliações de aprendizagem entre meninos e meninas ou na utilização desigual do espaço físico da escola, mas que sejam consideradas como um aspecto fundamental do processo de socialização de meninos e meninas, bem como na própria aprendizagem escolar. Buscamos a um só tempo, investigar como as relações de gênero são vividas na escola, e contribuir para que essa discussão entre definitivamente na agenda da formação docente e nos projetos pedagógicos, de modo que docentes e discentes reflitam e incorporem a dimensão de gênero no cotidiano escolar.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2019
  • Aceito
    23 Jun 2020
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