Acessibilidade / Reportar erro

O PERIGO DO EXCESSO DE RACIONALIZAÇÃO NA PRÁXIS CLÍNICA: UM OLHAR FENOMENOLÓGICO-HERMENÊUTICO

EL PELIGRO DEL EXCESO DE RACIONALIZACIÓN EN LA PRAXIS CLÍNICA: UNA MIRADA FENOMENOLÓGICO-HERMENÉUTICA

O objetivo deste trabalho é discutir o predomínio vigente do excesso de racionalização e debater o seu impacto na prática da psicologia clínica. Por meio de uma aproximação com o pensamento de Martin Heidegger - chamado aqui de fenomenologia hermenêutica -, pretende-se explicitar como estamos expostos, enquanto profissionais da área da psicologia, à infiltração do predomínio da racionalidade em nossa prática e, a partir desta visão, pensar em caminhos alternativos.

O predomínio da racionalização, que cresce vertiginosamente em tempos técnicos, tem implicações graves para a atuação clínica. O modo predominante de dispor o mundo a partir do cálculo impacta o modo como nos compreendemos e nos colocamos frente aos acontecimentos da vida. Heidegger nomeia nossa época como a “Era da Técnica” (HeideggerHeidegger, M. (2008b). A questão da técnica. In M. Heidegger, Ensaios e Conferências (E. C. Leão, G. Fogel, M. S. C. Schuback, trads., pp. 11-38). Petrópolis, RJ: Vozes . Trabalho original publicado em 1954., 1954/2008b, p. 24) e a caracteriza como unidade de tempo em que predominam os gestos de dominação e de controle por parte do ser humano em relação às coisas e à natureza, em uma tentativa de eliminação de tudo o que é retração ou mistério. Há uma busca desenfreada por controle, bem como pela capacidade de previsão e manipulação de tudo o que está ao redor. A exploração daquilo que nos cerca - seja extraindo, transformando, estocando, distribuindo ou reprocessando - é a tônica fundamental da Era da Técnica (HeideggerHeidegger, M. (2008b). A questão da técnica. In M. Heidegger, Ensaios e Conferências (E. C. Leão, G. Fogel, M. S. C. Schuback, trads., pp. 11-38). Petrópolis, RJ: Vozes . Trabalho original publicado em 1954., 1954/2008b). Os seres humanos, nessa tônica, passam a ser os senhores do universo. Entretanto, o que não se percebe imediatamente é que, ao se forjar como o controlador, ele passa instantaneamente a ser controlado pela mesma técnica. Assim, ele participa sem ter condições de decidir o seu início ou fim.

A clínica está permeada pela atmosfera da técnica, e nosso desafio é sustentar, por meio da ação clínica, um espaço dissonante. Palavras com aura técnica, como produtividade, assertividade, performance, desempenho e comprobabilidade, deveriam estar ressalvadas ao âmbito clínico. Contudo, como podemos fazer isso, uma vez que também somos filhos e filhas da técnica e estamos imersos no mesmo horizonte histórico?

É muito comum, na clínica, os profissionais receberem pacientes que chegam montados em seus raciocínios, armados até os dentes de argumentos lógicos sobre si mesmos e sobre as situações que vivem. Como desarmá-los? Como compreendê-los para além daquilo que é possível acessar em um primeiro momento ou do que vou nomear provisoriamente de autorracionalização? Muitos pacientes chegam contando histórias complexas sobre si, já cheias de explicações e justificativas, teorizações e elucubrações; são tomados por um conhecimento estritamente intelectual. Nesse sentido, a leitura atenta do pensamento de Heidegger nos inspira a pensar um jeito de conceber o conhecer que não seja pautado estritamente na lógica, na abstração, na generalização e no intelecto.

Vamos pensar em um caso hipotético: Carlos chega na clínica falando com muita clareza e com muita certeza sobre si mesmo. Ele é uma junção de vários pacientes que todos e todas nós podemos eventualmente atender - se já não atendemos - e nos ajudará a pensar como lidar tanto com ele quanto com nós mesmos nessa conjuntura de racionalização exacerbada.

Carlos chega à terapia relatando problemas de relacionamento no trabalho. Ele se queixa de ser injustiçado pelo chefe, que não dá tanta visibilidade às coisas que ele faz, priorizando as entregas de outros colegas. Carlos sabe justificar detalhadamente, em argumentos exaustivamente fundamentados, por que o chefe está errado e por que Carlos tem todos os requisitos - concretos - para ser o melhor funcionário da sua equipe. Ele passa os primeiros minutos da terapia reclamando ؘ- com fundamentação argumentativa - do chefe, dos colegas de trabalho e da instituição em que trabalha. Há uma colega de trabalho de Carlos que se sobressai na equipe, o que parece lhe provocar sentimentos tumultuados. Ele os identifica, mas os justifica imediatamente em termos lógicos. Carlos parece desmerecer o trabalho da colega e argumenta que, por ser mulher, ela não só não é tão competente assim, mas também seduz o chefe, sendo esta a única razão para ela conseguir reconhecimento e ele não. Carlos argumenta que nunca seria machista, mas que nesse caso em específico é visível que a colega só tem sucesso no trabalho devido aos seus atributos sedutores. Carlos parece muito convicto de que tudo que o cerca está inadequado e errado, além de não ter razão nem lógica. O seu ponto de vista, defendido por ele como a única visão válida, acaba tendo caráter de verdade absoluta e intransponível. Carlos aponta com muita facilidade os defeitos e as falhas dos outros, justificando logicamente o quanto aqueles comportamentos são inapropriados. Quando ocorre a Carlos falar de si, reconhece com facilidade sentimentos de raiva e de irritabilidade, que, em sua perspectiva, ele tem toda razão de sentir. Carlos está sempre terrivelmente convicto e se expressa usando formas conceituais e explicativas, além da lógica, para convencer a mim, mas também a ele próprio, que ele sempre está certo.

Para continuar pensando sobre o atendimento de Carlos, precisamos lembrar, recorrendo a Heidegger e ao seu livro Ser e tempo (Heidegger, 2012Heidegger, M. (2012). Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora Unicamp.), que compreender as coisas, originalmente, nunca é colocá-las conceitualmente à distância. A compreensão (verstehen), para Heidegger, é uma conexão fundamental com tudo o que nos cerca: é a movimentação no mundo a partir de uma familiaridade de base. A disposição (befindlichkeit) é estar afinado com o que há ao redor, é a abertura constante de atmosferas afetivas. A nossa presença no mundo nunca se dá de forma neutra; sempre estamos dispostos de uma ou outra forma. Essa abertura prévia é o que permite que dada maneira de estar se dê a cada vez. Para tais modos de se estar no mundo, que se fazem presentes conforme cada situação, Heidegger cunhou a expressão stimmung, traduzida tanto por afinação quanto por tonalidades afetivas. Vivencial e pré-reflexivamente, o dasein3 3 Dasein é um termo utilizado por Heidegger para designar o ser humano, que significa ser-aí. O termo marca uma crítica aos modos vigentes de nomear o ser humano oriundos da tradição do pensamento ocidental, pois são marcados por dicotomias. Assim, ao lançar mão de um termo diferente, Heidegger pretende questionar o modo como concebemos a nós mesmos, ao mundo e ao conhecimento. vive em seu mundo disposto em tonalidades afetivas, afinado dessa ou daquela maneira.

Como nos lembra Borges-Duarte (2015Borges-Duarte, I. (2015). A afectividade no caminho ontológico heideggeriano. Phainomenon: Revista de Fenomenologia, (Vol. 24, p. 43-62). Recuperado dehttp://www.phainomenon-journal.pt/index.php/phainomenon/article/view/308 .
http://www.phainomenon-journal.pt/index....
), o âmbito dos afetos alcança uma dimensão central em Heidegger. A tonalidade afetiva, porém, não é algo que se encontra dentro do dasein, como reza a tradição em relação aos sentimentos; ela sempre diz respeito, originariamente, ao “ser-com-os-outros”4 4 Heidegger, em sua obra Ser e tempo, refere-se ao ser humano como ser-no-mundo. O fato de as palavras do termo estarem ligadas entre si por hífen designa a sua total relação e interdependência. Assim, nos referimos a uma só palavra, a um fenômeno unitário. (Heidegger, 2012Heidegger, M. (2012). Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora Unicamp.). Afetamos e somos afetados, incessantemente, e, assim, as tonalidades afetivas tingem a atmosfera e são também impregnadas por ela. Não há mais o conceito de “interioridade” em Heidegger. Entretanto, continuamente tentamos ignorar o modo como estamos dispostos a mantermos os nossos pensamentos no hipotético domínio da interioridade privada.

No suposto mundo privativo, também vivem os assim chamados sentimentos e emoções. Inscritos nestes termos, eles seriam a outra face da mesma moeda da racionalização. O sentir interiorizado de emoções também é uma maneira do indivíduo tentar estabelecer algum controle sobre o modo como está disposto. Se ser afetado lhe explicita a vulnerabilidade de estar sempre “fora” no mundo, ao transformar essa afetação em sentimento privado o ser humano tenta circunscrever tal vulnerabilidade em algo que vem de “dentro” e que, desta forma, se torna passível de controle. As tentativas de controlar imprevisibilidades são oriundas do modo impessoal do ser humano de existir, conforme elucidarei adiante. O excesso de racionalização pode ser uma ferramenta aguçada nesse sentido: ao invadir o âmbito dos afetos, a razão nomeia, enquadra, explica e teoriza, tentando, assim, amenizar o impacto de sermos irremediavelmente afetáveis. Assim fez Carlos para se sentir seguro sobre o seu domínio sobre si mesmo. No mundo especulativo das ideias de Carlos, tudo é tal como ele deseja. Ele impõe ao mundo aquilo que elucubra dentro da sua cabeça e acaba por virar, assim, um impostor5 5 Termo inspirado por Borges-Duarte (2014, p. 219). .

Vamos então refletir sobre algumas figuras conceituais que habitam a mente convicta de Carlos. Estaria Carlos agarrado e permeado por argumentos implícitos e explícitos que sustentam o seu machismo? Quando ele fala da colega de trabalho, ele discorre longamente sobre teorias que explicam o quanto os chefes tendem a proteger as suas funcionárias mulheres, o quanto é “natural” que os homens queiram tratar bem as mulheres para se aproximar sexualmente delas e o quanto isso atrapalha o andamento do trabalho. Assim, ele chega a defender, apoiado em “estudos científicos”, que as equipes de trabalho deveriam ser compostas apenas por homens. Conceitos geradores de opressão podem ser reproduzidos e sustentados por meio de convicções justificadas intelectualmente. Seria Carlos membro de uma elite intelectual que foi ensinada a se sentir poderosa a partir do tamanho da sua massa cinzenta? É notável o quanto Carlos recorre a argumentos lógicos e estudos consagrados sempre que se sente ameaçado. A arbitrariedade dos seus argumentos faz com que Carlos se descole da vida que vive e, assim, possa se sentir fortalecido e protegido em um lugar mental de suposto poder e controle. Nesse lugar muitas violências se tornam possíveis, pois nele não há nenhum tipo de compromisso com o que o cerca. Logo, conceituar é cindir, apartar e focar apenas naquilo que já está previamente conjecturado.

O modo, porém, como estamos de fato dispostos sempre se dá no mundo, com os outros. “A tonalidade afetiva não é um ente, que advém da alma como uma vivência, mas o como de nosso ser-aí-comum” (Heidegger, 1929-1939/2006Heidegger, M. (2006). Os conceitos fundamentais da metafísica: Mundo - Finitude - Solidão (M. A. Casanova, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária . Trabalho original publicado em 1929-1939., p. 80). Nesse sentido, as tonalidades afetivas não são estritamente particulares, pois envolvem o dasein e tudo que o cerca em matizes que evidenciam a imersão do dasein no seu e a inseparabilidade deles. O modo como essas afinações acontecem não depende da vontade de cada dasein, pois há um apelo de base que já está aberto como um pano de fundo e uma medida vinculadora histórica. Carlos vive essa conexão conjuntural, chamemos assim, de forma distanciada e esgarçada; por ora, ele está aprisionado aos seus esquemas conceituais.

O modo como o dasein está disposto e compreende é sempre articulado pelo discurso. O discurso (rede) é tão originário quanto a compreensão e a disposição, porém acontece articulando ambos. Na tradição metafísica em que estamos imersos, a palavra discurso pode remeter estritamente à argumentação lógica e formal, bem como ao convencimento e à explanação de ideias racionalmente encadeadas. Todavia, o discurso, para Heidegger, não se refere apenas ao plano verbal ou exclusivamente linguístico, pois o modo como sentimos, agimos e pensamos é constantemente permeado pelo discurso. O filósoo pensa o discurso não só como um grande articulador de comunicações em diversos planos, mas também um modo de alinhavar, organizar e elaborar o que experienciamos. Assim, esses três existenciais - compreensão, disposição e discurso - são cooriginários, ou seja, um não existe sem, antes ou depois do outro.

Vinculados com estes três existenciais, estão outros três de igual importância, a saber: existência, facticidade e queda. Apresentando-os resumidamente, a existência aponta para o modo como o dasein é lançado no mundo, ek-sistindo, isto é, para fora, pois ele é o seu mundo. Facticidade é o mundo que existe de fato, que acolhe, orienta, contorna e oferece uma rede de significações das quais o dasein pode lançar mão e, assim, criar algum estofo de familiaridade. Já o terceiro existencial, a queda, é justamente a imersão nos significados do mundo; é misturar-se com as referências sedimentadas e ser a partir delas (Clini, 2018Clini, M. M. (2018). Contemplações fenomenológicas entre arte e clínica. Rio de Janeiro, RJ: Via Verita.).

O dasein é, fundamentalmente, poder-ser, mas se entrega, no cotidiano, ao solo firme e aparentemente seguro do impessoal para que possa “simplesmente” ser, sem ter que lidar diretamente com a sua indeterminação. Com Carlos não seria diferente. O solo da racionalidade, uma das diversas figuras do impessoal, oferece-se para ele como um chão firme para pisar, o que, aparentemente, afasta-o do risco de poder ser tocado a qualquer instante pelo que o cerca e pela sua própria condição. Recorrer à excessiva racionalização de modo abstrato, no âmbito clínico, parece diminuir o sofrimento em um primeiro momento, pois faz uma assepsia da vida e torna tudo refratário. Mas, na verdade, acaba por aumentar o sofrimento, pois afasta o paciente daquilo que lhe diz respeito e faz com que ele viva em uma espécie de voo panorâmico sobre a sua própria vida, sem nunca pousar e entrar em contato com uma situação mobilizada afetivamente. Se a indeterminação, do fundo da sua nadidade, nos ameaça, há também ameaças que recebemos de dentro do preenchimento incessante do impessoal. O indeterminado exala o obscuro, o estranho, o imponderável. Não há nada garantido para nós. Já o impessoal nos submete aos seus excessos de determinação - o que nos cerca, nos cerceia, nos restringe, nos contorna, nos constrange, nos envergonha e nos avilta. Não podemos ser tudo, e fugir para a abstração pode parecer um tentador antídoto para ambos. Segundo Toso (2017Toso, A. (2017). Angústia, cuidado e rearticulação de sentido na psicoterapia fenomenológico-hermenêutica. In B. Sylla & I. Borges-Duarte (Orgs.), Intencionalidade e cuidado. Herança e repercussão da fenomenologia (pp. 339-352). Braga, Portugal: Edições Húmus., p.351): “O paciente da clínica contemporânea, que vive em um mundo em que o sentido metafísico se esgotou, pressente afetivamente a falta de referências que vislumbram um novo pensar ainda sem rosto”.

Tal fato nos leva a pensar que o impessoal que se vive atualmente não é um impessoal qualquer. As cores que o tingem compõem a paleta da Era da Técnica, o que acentua a dramaticidade da imersão e traz consequências condensadas. Se o impessoal, como existencial, sempre convida à distração e oferece a sensação constante de comodidade e previsibilidade - fios que tecem, em seu conjunto, a familiaridade que precisamos para existir -, o impessoal da Era da Técnica chega ainda mais carregado de previsibilidade e controle. O cálculo se alastra pelos modos de ser cotidianos e contar com os outros passa a ser, peremptoriamente, contar os outros e dispor de suas utilidades. Os outros passam a ser um conjunto de utilitários à mão que o sujeito pode dispor. O que o ser humano não percebe, em um primeiro momento, mas que vai acontecer inevitavelmente ao instituir tal comportamento, é que ele passa a ser mais um item de serventia em meio a tantos outros serviçais da técnica. O predomínio da racionalização contribui para que ocupemos esse pretenso lugar de controle, pois, mentalmente, é possível viver situações forjadas pelos nossos próprios pensamentos. Por mais que tais situações sempre partam do mundo em que estamos, elas podem acabar se descolando e pairar etéreas no nosso raciocínio, afastadas do que sentimos, percebemos e das situações em que somos, a cada vez, lançados. Assim, desconjuntado, o ser humano acaba por se perceber como um sujeito de raciocínio, algo que a tradição do pensamento ocidental reitera com veemência. Como, então, nos posicionamos no mundo se temos essa percepção de nós mesmos?

Há de se fazer uma ressalva importante aqui, que nos aponta uma inevitável marca epocal e, ao mesmo tempo, uma sutileza. Falar em posicionamento já é um indício da nossa inevitável imersão na Era da Técnica. Duarte (2010Duarte, A. (2010). Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p.29) destaca: “Na modernidade, pela primeira vez o homem assume uma posição e toma tal posição como o ponto seguro para o desenvolvimento da humanidade”. Apenas quando o homem se torna sujeito que passa a ser possível falar de posicionamento, mas com consequências apresentadas de forma resumida: “A partir do momento em que o homem assume uma posição determinada em relação ao ser, por ele mesmo instituída, ele também se assume como senhor de todos os entes e passa a exercer controle científico calculado sobre tudo” (Duarte, 2010Duarte, A. (2010). Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p.29). Porém, desde sempre estamos engajados no mundo e implicados em modos de ser. Experimentamos, a cada vez, modos de estarmos-junto-a, de nos direcionarmos e de tomarmos rumo, mesmo que de forma irrefletida e “automática” (Clini, 2018Clini, M. M. (2018). Contemplações fenomenológicas entre arte e clínica. Rio de Janeiro, RJ: Via Verita., p.98).

Ainda que os nossos modos possíveis sejam versáteis, performáticos e mutáveis, estamos sempre e cada vez mais situados em uma conjuntura. Taylor (1993Taylor, C. (1993). Engaged agency and background. In C. B. Guignon (Ed.), The Cambridge Companion to Heidegger (pp. 317-336). Cambridge, MA: Cambridge University Press.) cunha o termo ator engajado para fazer referência à concepção de um ser humano encarnado que não pode se resumir a um conceito abstrato ou teórico, mas que existe de fato, vinculado, corporificado e edificado junto ao que o rodeia. Taylor recorre ao engajamento em contraposição ao que ele chama de “ontologização do procedimento racional”, um processo levado a cabo ao longo de toda a tradição filosófica ocidental. Segundo o autor, “o que se considerava como os procedimentos adequados do pensamento racional foi entendido como componente da própria constituição da mente, feito parte de sua estrutura mesma. Disso resultou um quadro do ator humano pensante como ator desprendido” (Taylor, 1993Taylor, C. (1993). Engaged agency and background. In C. B. Guignon (Ed.), The Cambridge Companion to Heidegger (pp. 317-336). Cambridge, MA: Cambridge University Press., p.317-318, tradução nossa), que não paira em nenhum lugar; individualizado, encapsulado em si mesmo, alheio ao seu mundo.

Assim chega Carlos em sua terapia. Ele paira sobre sua própria vida, desprendido daquilo que lhe acontece, alheio a si mesmo e ao que o cerca. Ele fala com muita facilidade de tudo, por não se sentir implicado com nada. Ao ignorar o quanto é afetado por fatores externos a ele, Carlos tenta se desvencilhar da sua vulnerabilidade fundamental, bem como dos contornos que a facticidade lhe impõe. Ele se protege dos acontecimentos da vida recorrendo a esquemas mentais abstratos. Podemos dizer, assim, que Carlos está desengajado do seu próprio existir. Dizer que é sempre no modo do engajamento significa afirmar que “o mundo do ator é moldado por sua forma de vida, por sua história ou por sua existência corporal. […] Trata-se de uma relação distinta do vínculo causal corriqueiro, com o qual é por vezes confundido” (Taylor, 1993Taylor, C. (1993). Engaged agency and background. In C. B. Guignon (Ed.), The Cambridge Companion to Heidegger (pp. 317-336). Cambridge, MA: Cambridge University Press., p.318, tradução nossa). Falta corpo no foco existencial de Carlos, pois é o corpo que nos enraíza, fragiliza, contorna, torna afetantes, afetáveis e mortais e que nos coloca em relação com o outro.

Engajamento significa, portanto, “sermos nossa própria facticidade e historicidade, estarmos situados afetivamente no mundo e nos responsabilizarmos pelo nosso trânsito e pelos nossos pontos de vista” (Clini, 2018Clini, M. M. (2018). Contemplações fenomenológicas entre arte e clínica. Rio de Janeiro, RJ: Via Verita., p.99). Porém, na maioria das vezes, aquilo que nos é mais próximo se mostra como o mais distante. No mais das vezes, o raciocínio se entrelaça com a noção de representação. O cogito ergo sum de Descartes deslocou para “dentro” do sujeito a capacidade deste de postular sobre o que é e o que não é real. Carlos faz isso. Discorre sobre assuntos variados e justifica, em termos teóricos e argumentativos, a razão pela qual ele sempre está certo e sempre tem razão. A partir da sua capacidade de cogitar, Carlos busca se assegurar da real capacidade de apreender tudo que o rodeia, inclusive os seus próprios sentimentos, mas de modo controlado.

Representar quer aqui dizer pôr diante de si algo a partir de si, e assegurar aquilo que é posto enquanto tal. Este assegurar tem que ser um calcular, porque só a calculabilidade garante, à partida e constantemente, estar certo do que se está a representar. (Heidegger, 1969/2007, p.133)

Como isto afeta o trabalho clínico? Quando o paciente conta algo sobre si, com muita convicção e estruturação lógica, os profissionais podem se sentir facilmente tentados a ser por ele convencidos. Carlos é muito eloquente. É muito fácil entrar na lógica do paciente e passar a construir, junto com ele, elucubrações teóricas sobre ele e sobre sua vida. Mas qual o perigo disto? Se olharmos com um pouco mais de pudor e cautela, perceberemos que, muitas vezes, a existência do paciente se esconde atrás do discurso que ele tão bem constrói sobre si e que, em um primeiro momento, chega até a nos impressionar: “Como ele sabe de si mesmo!”, “Como estrutura bem as ideias sobre o que viveu!”, “Como consegue articular conclusões interessantes sobre seus medos e traumas”. Enfim, é preciso dar um passo atrás para que algum estranhamento diante de um discurso tão bem arquitetado seja percebido. O silêncio pode ser um bom fio condutor para que nós não simplesmente adiramos ao discurso que nos é apresentado e para que possamos descolar um pouco do discurso impessoal, que, neste e em muitos casos, tem muito de racional, como foi explicitado com a abordagem do cálculo.

Para nos colocarmos a caminho de uma outra possibilidade de linguagem, como a rememoração e a resistência, precisamos estar abertos a um outro jeito de pensar, que não seja nem ciência nem filosofia. Para que nós, profissionais da área da psicologia, possamos alcançar esse contato com o que sempre fomos e para que isso contagie a nossa presença clínica e tinja a atmosfera junto ao paciente, é preciso reaprender a pensar. Precisamos nos desalojar do conforto que habitamos no nosso ambiente racional e convidar Carlos a fazer o mesmo. Nesse sentido, para reaprender a pensar, precisamos recuperar aquilo que Taylor (1993Taylor, C. (1993). Engaged agency and background. In C. B. Guignon (Ed.), The Cambridge Companion to Heidegger (pp. 317-336). Cambridge, MA: Cambridge University Press.) chamou de engajamento no nosso mundo. Só conseguiremos pensar para além do racional se estivermos situados e implicados em nossa existência, uma vez que, como somos seres do mundo, precisamos reaprender a pensar a partir dessa integração de base, de forma menos solipsista e encapsulada. Heidegger nomeia este pensamento especial, que se opõe ao pensamento calculador, de “pensamento do sentido” ou “meditação”. O termo meditação, em Heidegger, é utilizado para designar o pensamento que se volta para o sentido.

Contudo, o pensamento direcionado para o sentido não se relaciona com o que poderíamos chamar de tomada de consciência. “Ainda não pensamos o sentido quando estamos apenas na consciência. Pensar o sentido é muito mais. É a serenidade em face do que é digno de ser questionado.” (Heidegger, 1954/2008aHeidegger, M. (2008a). Ciência e pensamento do sentido. In M. Heidegger, Ensaios e Conferências (E. C. Leão, G. Fogel, M. S. C. Schuback, trads., pp. 39-60). Petrópolis, RJ: Vozes. Trabalho original publicado em 1954., p.58). Pensar o sentido é se demorar junto àquilo que proclama o nosso questionamento, é questionar a ação clínica e as certezas absolutas de pacientes como Carlos. Assim, pensar o sentido é mais do que qualquer tentativa de racionalização ou de representação metafísica; é uma compreensão do conhecimento como um envolvimento que respeita e acolhe o mistério. Pensar desta forma é raro, pois o caminho para o que está próximo é, muitas vezes, o mais difícil.

Qual seria o solo de um futuro enraizamento? Talvez aquilo que procuramos com esta pergunta se encontre muito próximo; tão próximo que muito facilmente não vemos por que o caminho para o que está próximo é para nós, homens [e mulheres], sempre mais longo e, por isso, o mais difícil. Este caminho é um caminho de reflexão. O pensamento que medita exige de nós que não fiquemos unilateralmente presos a uma representação, que não continuemos a correr em sentido único na direção de uma representação. O pensamento que medita exige que nos ocupemos daquilo que, à primeira vista, parece inconciliável. (Heidegger, 1969/2007Heidegger, M. (2007). Serenidade (M. M. Andrade, O. Santos, trads.). Lisboa, Portugal: Instituto Piaget. Trabalho original publicado em 1969., p. 23)

Aquilo que parece inconciliável também precisa encontrar espaço na clínica, e a única maneira do inconciliável ser acolhido é nos tornando disponíveis para esse outro tipo de pensamento. Se embarcarmos no voo racional de Carlos, certamente perderemos a oportunidade de entrar em contato com ele. Ficaremos falando sobre diversas coisas sem deixar espaço para que coisas aconteçam conosco. O pensamento do sentido é um acontecimento que nos coloca a caminho da nossa morada, que, por sua vez, é sempre histórica, quer queiramos ou não. O pensamento do sentido se dá na Era da Técnica, mas está sempre aquém e além dela.

Há uma crítica comum sobre o pensamento do sentido que alega que ele nada teria a oferecer à práxis, pois a vida concreta nada teria a receber do pensamento do sentido. Percebemos que tal crítica se enraíza no solo da dicotomia que opõe ação e reflexão. “A distinção entre teoria e práxis, de proveniência metafísica, e a representação de uma transmissão entre ambas destroçam o caminho que conduz àquilo que eu entendo como pensar” (Heidegger, 2009Heidegger, M. (2009). Já só um Deus pode ainda nos salvar (I. Borges-Duarte, trad.). Covilhã, Portugal: LusoSofia: press. Recuperado dehttp://www.lusosofia.net/textos/heideggger_ja_so_um_deus_nos_pode_ainda_salvar_der_spiegel.pdf.
http://www.lusosofia.net/textos/heideggg...
, p.37). Para Heidegger, esta distinção opositora deixa de existir quando se fala em pensamento do sentido. Além disso, essa dicotomia, entre outras, é uma das facetas do predomínio do pensamento calculador que nos aprisiona em uma clausura. No gesto de meditação, não há como tornar estanques a teoria e a prática. Heidegger alerta que nunca nos detivemos no que é a essência do agir, visto que agir não é apenas produzir um efeito, que é avaliado segundo a utilidade que oferece. “A essência do agir é o consumar. Consumar significa desdobrar alguma coisa até à plenitude de sua essência; levá-la à plenitude, producere” (Heidegger, 1967/1991Heidegger, M. (1991). Carta sobre o humanismo (R. E. Frias, trad.). São Paulo, SP: Moraes. Trabalho original publicado em 1967., p.1). Dessa forma, poderíamos até mesmo considerar que qualquer ação que não esteja fundamentada no pensamento do sentido se torna vazia e maquinal, bem como entificada, esvaziada de sua densidade ontológica e um mero espectro de ação. O pragmatismo é uma faceta da técnica e, assim como qualquer raciocinar que se afasta do enraizamento afetivo, vira mera abstração etérea. Logo, a especulação é outra faceta da técnica.

A clínica é composta de ações, gestos, palavras, pensamentos e afetos, bem como de silêncios. O pensamento do sentido está sempre presente, aguardando uma oportunidade, uma brecha para que possa interromper a racionalização excessiva. Cabe a nós, psicoterapeutas, sustentarmos um espaço aberto para que ele aconteça e envolva não só nós, profissionais, mas também Carlos. Finalizo este texto sem formular respostas, mas buscando inspiração para continuar meditando com essas palavras de Heidegger:

É no pensamento do ser que a libertação do homem para a ek-sistencia, libertação que funda a história, alcança a sua palavra. A palavra não é, em primeiro lugar, a “expressão” de uma opinião, mas é constantemente já a articulação protetora da verdade do ente em sua totalidade. O número daqueles que entendem esta palavra pouco importa. A qualidade dos que podem prestar atenção a ela decide da posição do homem [e da mulher] na história. (Heidegger, 1970/1999Heidegger, M. (1999). Sobre a essência da verdade. In M. M. Heidegger, Os pensadores (E. Stein, trad., pp. 149-170). São Paulo, SP: Ed. Nova Cultural. Trabalho original publicado em 1970., p.168)

Referências

  • Borges-Duarte, I. (2014). Arte e técnica em Heidegger Lisboa, Portugal: Documenta.
  • Borges-Duarte, I. (2015). A afectividade no caminho ontológico heideggeriano. Phainomenon: Revista de Fenomenologia, (Vol. 24, p. 43-62). Recuperado dehttp://www.phainomenon-journal.pt/index.php/phainomenon/article/view/308 .
    » http://www.phainomenon-journal.pt/index.php/phainomenon/article/view/308
  • Clini, M. M. (2018). Contemplações fenomenológicas entre arte e clínica Rio de Janeiro, RJ: Via Verita.
  • Duarte, A. (2010). Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.
  • Heidegger, M. (1991). Carta sobre o humanismo (R. E. Frias, trad.). São Paulo, SP: Moraes. Trabalho original publicado em 1967.
  • Heidegger, M. (1999). Sobre a essência da verdade. In M. M. Heidegger, Os pensadores (E. Stein, trad., pp. 149-170). São Paulo, SP: Ed. Nova Cultural. Trabalho original publicado em 1970.
  • Heidegger, M. (2006). Os conceitos fundamentais da metafísica: Mundo - Finitude - Solidão (M. A. Casanova, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária . Trabalho original publicado em 1929-1939.
  • Heidegger, M. (2007). Serenidade (M. M. Andrade, O. Santos, trads.). Lisboa, Portugal: Instituto Piaget. Trabalho original publicado em 1969.
  • Heidegger, M. (2008a). Ciência e pensamento do sentido. In M. Heidegger, Ensaios e Conferências (E. C. Leão, G. Fogel, M. S. C. Schuback, trads., pp. 39-60). Petrópolis, RJ: Vozes. Trabalho original publicado em 1954.
  • Heidegger, M. (2008b). A questão da técnica. In M. Heidegger, Ensaios e Conferências (E. C. Leão, G. Fogel, M. S. C. Schuback, trads., pp. 11-38). Petrópolis, RJ: Vozes . Trabalho original publicado em 1954.
  • Heidegger, M. (2009). Já só um Deus pode ainda nos salvar (I. Borges-Duarte, trad.). Covilhã, Portugal: LusoSofia: press. Recuperado dehttp://www.lusosofia.net/textos/heideggger_ja_so_um_deus_nos_pode_ainda_salvar_der_spiegel.pdf
    » http://www.lusosofia.net/textos/heideggger_ja_so_um_deus_nos_pode_ainda_salvar_der_spiegel.pdf
  • Heidegger, M. (2012). Ser e tempo Trad. Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora Unicamp.
  • Taylor, C. (1993). Engaged agency and background. In C. B. Guignon (Ed.), The Cambridge Companion to Heidegger (pp. 317-336). Cambridge, MA: Cambridge University Press.
  • Toso, A. (2017). Angústia, cuidado e rearticulação de sentido na psicoterapia fenomenológico-hermenêutica. In B. Sylla & I. Borges-Duarte (Orgs.), Intencionalidade e cuidado. Herança e repercussão da fenomenologia (pp. 339-352). Braga, Portugal: Edições Húmus.
  • 3
    Dasein é um termo utilizado por Heidegger para designar o ser humano, que significa ser-aí. O termo marca uma crítica aos modos vigentes de nomear o ser humano oriundos da tradição do pensamento ocidental, pois são marcados por dicotomias. Assim, ao lançar mão de um termo diferente, Heidegger pretende questionar o modo como concebemos a nós mesmos, ao mundo e ao conhecimento.
  • 4
    Heidegger, em sua obra Ser e tempo, refere-se ao ser humano como ser-no-mundo. O fato de as palavras do termo estarem ligadas entre si por hífen designa a sua total relação e interdependência. Assim, nos referimos a uma só palavra, a um fenômeno unitário.
  • 5
    Termo inspirado por Borges-Duarte (2014Borges-Duarte, I. (2014). Arte e técnica em Heidegger. Lisboa, Portugal: Documenta., p. 219).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2019
  • Aceito
    28 Jan 2021
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br