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Narrativas míticas como patrimônio da cultura imaterial do Ibitipoca 1 1 Editor responsável: Chantal Victória Medaets https://orcid.org/0000-0002-7834-3834 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Piero Kanaan (Tikinet) revisao@tikinet.com.br 3 3 Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), entidade do Governo brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.

Mythical narratives as Intangible Cultural Heritage from Ibitipoca

Discussões sobre a necessidade de valorização do patrimônio histórico e cultural brasileiro têm ganhado fôlego nas últimas décadas, principalmente diante de conflitos entre interesses neoliberais e a conservação de práticas e conhecimentos tradicionais. Nessa perspectiva, cabe ressaltar que o conceito de patrimônio cultural amplia a própria noção de patrimônio e considera que este inclui bens culturais científicos, históricos, ecológicos e artísticos, não se limitando a objetos físicos, incluindo, portanto, o patrimônio cultural imaterial que está “contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações” (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco], 2021Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2023). Patrimônio Mundial no Brasil. https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia/expertise/world-heritage-brazil
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) da cultura.

Dentre as inúmeras abordagens para estudo do patrimônio cultural imaterial, os estudos ligados ao imaginário, que levam em consideração conhecimentos da história, da linguística, da literatura, da etnologia e das mitologias (Durand, 2012Durand, G. (2012). As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral (H. Godinho, trad., 4a ed.). Martins Fontes.) são particularmente profícuos, uma vez que se dedicam a compreender como os significados são criados em diferentes culturas (Pitta, 2005Pitta, D. P. R. (2005). Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Atlântica.).

É nesse cenário que se insere a obra Memórias e narrativas míticas do homem do campo do Ibitipoca: uma leitura bachelardiana, de autoria de Alexander de FreitasFreitas, A. (2022). Memórias e narrativas míticas do homem do campo do Ibitipoca: uma leitura bachelardiana. Lisbon International Press., professor adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC), no Centro de Ciências Humanas e Naturais, com percurso institucional prévio no Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Os projetos de pesquisa desenvolvidos pelo autor, bem como suas publicações, envolvem aspectos didático-pedagógicos e suas articulações com linguagens artísticas4 4 Os dados foram extraídos da Plataforma Lattes (CNPq). http://lattes.cnpq.br/4900385869354259 . O livro foi desenvolvido a partir da dissertação de mestrado em ensino de ciências, defendida na Universidade de São Paulo (USP) no ano de 2003, intitulada A matéria diurna e a matéria noturna: ‘o homem das 24 horas’ de Gaston Bachelard”.

Em sua dissertação, a partir da análise de narrativas recolhidas em Conceição do Ibitipoca, distrito do município Lima Duarte, localizado no estado de Minas Gerais, Freitas apresenta o imaginário dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar) e integra as duas vertentes da filosofia bachelardiana: metafísica da imaginação poética e epistemologia da ciência. As narrativas foram obtidas entre os anos de 2002 e 2003, no entanto, a escrita do livro, 17 anos após a defesa de sua dissertação, foi estimulada por uma visita feita pelo autor ao local em janeiro de 2020, na qual constatou mudanças drásticas na paisagem cultural e, consequentemente, o risco iminente de perda de patrimônio histórico e cultural. Isso foi percebido não somente em projetos de urbanização, mas também em mudanças de práticas cotidianas, com apagamento das especificidades do modo de narrar do homem do campo pela sobreposição de valores e temporalidades características de populações acostumadas a viverem em grandes cidades. Com o propósito de contribuir com a preservação de parte do patrimônio da cultura imaterial de Ibitipoca, no livro é ressaltada a capacidade de fabulação expressa na oralidade do homem do campo.

A obra é organizada em quatro capítulos, sendo os dois primeiros de caráter mais teórico e metodológico, nos quais o autor introduz o pensamento do filósofo, químico e poeta Gaston Bachelard (1884-1962), definindo em linhas gerais diferenças entre os perfis do pensamento bachelardiano, denominados de Bachelard diurno, que trata primordialmente da epistemologia das ciências; e de Bachelard noturno, que se refere à metafísica da imaginação poética.

No livro, a corrente de pensamento mais abordada é a noturna. Freitas apresenta conceitos-chave utilizados em sua pesquisa, como os de imaginação material, imaginação dinâmica e a importância da natureza como fonte de inspiração desse imaginário. Nesse sentido, com base nos apontamentos de Bachelard, o autor cita a importância da vida no campo para estudar narrativas míticas e afirma que essa é uma das apostas de seu livro.

No primeiro capítulo, Freitas apresenta sua metodologia de pesquisa, inserida no âmbito dos estudos do imaginário, em que adota o método de convergência simbólica, criado pelo filósofo e antropólogo Gilbert Durand (1921-2012), que, em vez de classificações rígidas para análise de matrizes simbólicas, propõe que a decifração dos signos seja feita por meio da confrontação, o que é evidenciado por repetições e redundâncias dos símbolos.

Para dar sustentação à essa análise, no segundo capítulo o autor apresenta o projeto de imaginação material de Bachelard. À luz de uma síntese da extensa obra de Bachelard sobre o imaginário dos quatro elementos5 5 Essa revisão de literatura inclui obras de Bachelard como Psicanálise do fogo (1938) A água e os sonhos (1942), O ar e os sonhos (1943), A terra e os devaneios do repouso (1948), entre outras. , Freitas expõe as principais características do pensamento alquímico do filósofo, que parte de arquétipos da água, terra, fogo e ar. De acordo com Bachelard, esses arquétipos apresentam uma função organizadora das imagens, pois, com base no substancialismo, considera que as raízes do imaginário estão na matéria.

Ainda no segundo capítulo, o autor detalha um pouco mais a estruturação de sua obra, construída a partir de uma pesquisa etnográfica, na qual analisa narrativas de moradores idosos que nasceram e cresceram em Ibitipoca. Contudo, Freitas analisa primordialmente discursos masculinos, o que é uma fragilidade da obra, uma vez que é provável que perspectivas femininas enriquecessem as narrativas. Embora o autor justifique a perspectiva masculino-centrada adotada como resultado das dificuldades que encontrou ao longo da pesquisa para acessar mulheres, por causa da divisão do trabalho no campo, em que a elas geralmente é reservado o trabalho mais caseiro e recluso; nota-se que a questão de gênero não é foco de preocupação no livro, sobretudo, pelo fato da narrativa de apenas uma mulher ter sido incluída. Vale considerar também que a moralidade imperante da região mineira em questão atrapalhou minimamente a coleta de relatos das mulheres, pois não era considerado adequado que elas conversassem sozinhas com o pesquisador.

Para dar voz aos entrevistados, o autor faz uso do referencial fenomenológico-compreensivo, enfatizando que a aceitação incondicional das imagens cujo “enthusiasmós” na narração das imagens, e não a plausibilidade destas – de acordo com os padrões determinados pela racionalidade científica –, é o que dirige sua investigação. Com isso, a obra presenteia o leitor com uma narrativa que revela relações respeitosas e afetuosas entre pesquisador e entrevistados, que não se limitam ao caráter acadêmico, e que nos convida a um reencontro com cosmovisões e modos de vida de populações rurais desvalorizados pelo modus operandi urbano.

No terceiro capítulo, são integrados os aspectos teóricos e conceituais na descrição e análise das narrativas de moradores de Conceição do Ibitipoca, que se centram nos seguintes temas: mitologia de serpentes, tesouros ocultos e relatos de aparições da Mãe do ouro.

Sobre as serpentes, Freitas relaciona as narrativas recolhidas com outras mitologias de origens diversas, como indígena e indiana, em que as serpentes são relacionadas à Terra-Mãe, ao elemento terra, em oposição ao elemento ar. Nesse sentido, são destacadas narrativas em que o elemento ar, quando colocado em oposição ao elemento terra, neutraliza o veneno de serpentes. Também são descritas serpentes voadoras que purificariam o ar, semelhante a Quetzalcóatl, deus da mitologia indígena asteca. Nessas narrativas, observa-se a justaposição entre os imaginários materiais e os dinâmicos. As serpentes também são relacionadas com o mistério da renovação e apresentam isomorfismo com metais, uma vez que a ação de seu veneno se relaciona com a primeira etapa da operação alquímica, dissolutio, na qual a terra é digerida e, por isso, é transmutada, tornando-se apta para gerar os metais, os tesouros áureos.

A mitologia do tesouro oculto descrita no livro se relaciona com a identidade cultural da Serra do Ibitipoca, que desde o final do século XVII é reconhecida como região de mineração e como rota de contrabando de ouro, dada a facilidade de escoamento do metal para o litoral de São Paulo por conta de sua localização geográfica. É intrínseca dessa mitologia a cosmovisão alquímica dos metais como embriões gerados no útero da Terra-Mãe, em que a tendência de todos os metais é transmutar-se em ouro, o metal mais nobre e perfeito. Dessa forma, a atividade de mineração é vista como profanação à Terra-Mãe para acessar um tesouro oculto. Nessa imaginação materialista, a busca do ouro é infrutífera e ocorrem desastres, principalmente soterramentos, compreendidos como forma de defesa da Terra-Mãe para proteger seu tesouro. Na obra, diversas narrativas se relacionam com essa visão, por exemplo as que descrevem antigos locais de mineração assombrados por escravizados que morreram soterrados.

Ainda em relação aos elementos ligados à maternidade, nas narrativas analisadas são descritas aparições da Mãe do ouro. Embasando-se nos apontamentos de Câmara Cascudo (2002)Cascudo, L. C. (2002). Geografia dos mitos brasileiros (2a ed.). Global., Freitas descreve algumas variações dessa lenda conforme a região do Brasil. Por exemplo, no Rio Grande Sul, a Mãe do ouro é descrita como um ser petrificado que defende jazidas de ouro com raios e trovões. Em Conceição do Ibitipoca, a função protetora dessa lenda é sublimada para a purificação, uma vez que os relatos se referem a ela como uma luz cegante, cuja aparição corresponde a uma experiência transcendental.

À guisa de conclusão, no quarto capítulo, o autor retoma conceitos apresentados previamente como forma de fortalecer a sua argumentação sobre a importância da preservação do patrimônio cultural imaterial na região, e o imperativo do fomento às políticas públicas que promovam estudos sobre esse patrimônio, que está em processo de apagamento. Para isso, Freitas destaca a necessidade de estudos de diversas áreas do conhecimento, como antropologia e estudos culturais, uma vez que as políticas de conservação do patrimônio aplicadas comumente focam apenas na conservação dos ecossistemas.

No âmbito da educação, obras dessa natureza apresentam diversas possibilidades de uso para a educação patrimonial, principalmente porque ocorre um deslocamento do conceito de patrimônio, como monumentos e sítios, para a esfera de paisagens culturais (Oosterbeek, 2015Oosterbeek, L. (2015). Revisitando Antígona: o patrimônio cultural na fronteira da globalização. In J. B. Campos, D. P. Preve, & I. F. Souza (Orgs.), Patrimônio cultural, direito e meio ambiente: um debate sobre a globalização, cidadania e sustentabilidade. Multideia.), o que, por sua vez, pode contribuir para ampliar o conhecimento histórico e estabelecer relações com questões sociais atuais, rumo a uma educação patrimonial pautada no pluralismo cultural, associada à pluralidade de matrizes étnicas em nosso país, valorizando o que apresenta significado para as diversas comunidades (Bittencourt, 2009Bittencourt, C. M. F. (2009). Ensino de história: fundamentos e métodos (3a ed.). Cortez.).

Para compreensão desses significados, estudos sobre o imaginário, como o desenvolvido pelo autor, que inclui aspectos linguísticos, míticos, históricos e outros (Pitta, 2005Pitta, D. P. R. (2005). Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Atlântica.), apresentam muitas contribuições, uma vez que as mais diversas mídias exploram para o bem ou para o mal diferentes crenças, mitos e símbolos criados pela cultura (Wunenburger & Araújo, 2006Wunenburger, J., & Araújo, A. F. (2006). Educação e imaginário: introdução a uma filosofia do imaginário educacional. Cortez.).

Por esses motivos, e dado o poder de síntese demonstrado pelo autor ao apresentar diversos conceitos da teoria do imaginário, o livro é instigante para pesquisadores engajados em diversas áreas de estudo, como estudos culturais, antropologia, história e educação.

Nesse sentido, cabe ressaltar o caráter inédito da obra devido às contribuições que traz para elucidar a imaginação material do ouro que, ao valorizar as narrativas apresentadas pelos moradores de Conceição do Ibitipoca, apoiando-se na hermenêutica bachelardiana, evita uma abordagem cientificista. No que concerne à educação, estudos dessa natureza são escassos e contribuem para uma concepção mais crítica sobre ciências, compreendendo-a como parte da cultura. Assim, vale ressaltar que não se trata de considerar que os pensamentos científico e mítico operam sobre a mesma lógica, mas sim, conforme as reflexões de Durand (2012)Durand, G. (2012). As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral (H. Godinho, trad., 4a ed.). Martins Fontes., que operam por meio da antecedência do imaginário sobre o sentido e suas sintaxes.

Além disso, é inescapável notar que a obra nos instiga a pensar o que significa ser brasileiro, cujo sonho de uma pátria repleta de riquezas naturais, como jazidas de ouro, inspirou ao longo de sua história; e, conforme a lógica de interesses neoliberais que impera em nossa sociedade, ainda inspira a busca por tesouros ocultos que pode resultar em tragédias decorrentes da defesa da Terra-Mãe da profanação e violação a qual tem sido submetida.

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Referências

  • Bittencourt, C. M. F. (2009). Ensino de história: fundamentos e métodos (3a ed.). Cortez.
  • Cascudo, L. C. (2002). Geografia dos mitos brasileiros (2a ed.). Global.
  • Durand, G. (2012). As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral (H. Godinho, trad., 4a ed.). Martins Fontes.
  • Freitas, A. (2022). Memórias e narrativas míticas do homem do campo do Ibitipoca: uma leitura bachelardiana Lisbon International Press.
  • Oosterbeek, L. (2015). Revisitando Antígona: o patrimônio cultural na fronteira da globalização. In J. B. Campos, D. P. Preve, & I. F. Souza (Orgs.), Patrimônio cultural, direito e meio ambiente: um debate sobre a globalização, cidadania e sustentabilidade Multideia.
  • Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2023). Patrimônio Mundial no Brasil https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia/expertise/world-heritage-brazil
    » https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia/expertise/world-heritage-brazil
  • Pitta, D. P. R. (2005). Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand Atlântica.
  • Wunenburger, J., & Araújo, A. F. (2006). Educação e imaginário: introdução a uma filosofia do imaginário educacional Cortez.
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Editor responsável: Chantal Victória Medaets https://orcid.org/0000-0002-7834-3834

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2023
  • Revisado
    30 Mar 2023
  • Aceito
    20 Jul 2023
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