Acessibilidade / Reportar erro

Homogeneidade, heterogeneidade e práticas corporais. Esporte, Lazer, Direitos Humanos e Corpos Diversos 1 1 Editor responsável: Carmen Lúcia Soares <https://orcid.org/0000-0002-4347-1924> 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Carneiro da Silva Junior (Tikinet) <revisao@tikinet.com.br>

Homogeneidad, heterogeneidad y prácticas corporales. Deporte, Ocio, Derechos Humanos y Cuerpos Diversos

Resumo

O escopo destas reflexões é interpelar a possibilidade de pensar o esporte e o lazer potencialmente como direitos humanos e considerar que estamos assistindo a uma época na qual é possível reconhecer os corpos como diversos. Dessa forma, a intenção é apresentar uma crítica a essa ideia humanista e romântica de conceber os esportes e o lazer per se, universalmente, como direitos humanos, não porque não seja importante defender as práticas corporais como centrais nas nossas culturas ou porque não seja significativo sustentar as possibilidades e desejos sobre o tempo livre, mas porque afirmar os esportes e o lazer como direitos humanos acaba por universalizar a diversidade de práticas corporais e, com isso, homogeneizar a diversidade dos corpos.

Palavras-chave
Corpos; Esporte; Diversidade; Homogeneidade

Resumen

La intención de estas reflexiones es cuestionar la posibilidad de pensar el deporte y el ocio como potencialmente derechos humanos y la consideración de que estemos ante un momento en el que es posible reconocer los cuerpos como diversos. Con ello, se pretende argumentar una crítica a esta idea humanista y romántica de concebir el deporte y el ocio per se, universalmente, como derechos humanos, no porque no sea importante defender las prácticas corporales como centrales de nuestras culturas, ni porque no es significativo sustentar las posibilidades y deseos sobre el tiempo libre, sino porque afirmar como derechos humanos el deporte y el ocio acaba por universalizar la diversidad de prácticas corporales y, por tanto, homogeneizar la diversidad de cuerpos.

Palabras clave
Cuerpos; Deporte; Diversidad; Homogeneidad

Abstract

This paper examines the possibilities of interpreting sport and leisure as potential human rights, considering the openness of contemporary times to recognizing bodies as diverse. Against this humanistic and romantic idea of conceiving sports and leisure as human rights, albeit recognizing the importance of defending body practices as central to our cultures and safeguarding the possibilities and desires regarding “free” time, I argue that sports and leisure viewed as human rights end up universalizing the diversity of bodily practices, and thereby homogenizing the diversity of bodies.

Keywords
Bodies; Sport; Diversity; Homogeneity

Corpos diversos

Samoa Americana, 2004. É maio, e é tempo de jogos para a classificação para a Copa do Mundo de futebol de 2006 na Alemanha. Além de ser considerada uma das piores seleções, ocupando o lugar 203 no ranking mundial da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), ou seja, antepenúltima equipe ranqueada, apenas acima do time de Montserrat, o conjunto de Samoa Americana ainda leva o peso de ter sofrido a maior goleada da história da competição, quando perdeu de 31x0 contra a Austrália, apenas 3 anos antes. Mas a seleção da Samoa Americana de futebol se destaca na mídia internacional não tanto pelo seu jogo amador, mas por um jogador: Johnny Saelua. Aos 30 minutos de jogo no dia 15 de maio contra Fiji, quando o placar mostrava que os samoanos já perdiam por 4 gols numa partida que acabaria 11x0, ingressou na partida o defensor central Saelua, uma pessoa que para as sociedades polinésias é chamada de fa’afafine, o que pode ser traduzido como “jeito de mulher”. Este tipo de terceiro gênero se produz porque o primogênito homem é educado como chefe da casa, no entanto, o seguinte filhx é formado para satisfaze-lo – claro, não no sentido sexual –, cumprindo com todas as tarefas domésticas, como lavar a louça, limpar a casa ou a roupa, passar o ferro e cuidar as crianças.

Divisão social de castas intrafamiliares que não leva em consideração a genitália dx segundx filhx: seja menino ou menina, quem nasce depois do primogênito ocupa essa função sócio-familiar. Inclusive muitos delxs utilizam os mesmos estilos de vestimenta das suas mães, imagem de referência dessa função sócio-familiar. Além de que muito tempo depois Johnny passou por um processo em que decidiu ser Jaiyah Saelua, e com isso ser reconhecida pela FIFA como a primeira jogadora transexual a disputar oficialmente jogos por uma seleção masculina3 3 É interessante ver neste sentido o documentário britânico “Next Goal Wins” (2014), dirigido por Mike Brett e Steve Jamison, no qual relata a campanha da seleção de Samoa Americana durante as eliminatórias para a Copa do Mundo FIFA de 2014, no Brasil, na qual ganhou por primeira vez um jogo, 2x1 contra Tonga em 2011. O filme aborda a questão dos fa’afafine e da Jaiyah Saelua. , a mídia internacional esportiva se assombra com o caso, na sua tarefa de encher de conteúdo horas e horas televisivas.

A questão a colocar aqui é o caso do defensor samoano que nasceu após seu irmão e foi formado desse jeito, e as enormes dificuldades dos tão formados periodistas para quem, para dizê-lo foucaultianamente, não conseguem achar a palavra para a coisa: “transexuais”? “Travestis”? “Afeminados”? Ou o que em alguns países asiáticos é chamado de “Lady-boys”? Nenhuma dessas palavras consegue denominar a coisa: essa função social e inclusive a sua vestimenta feminina nada dizem da sua orientação sexual. Mas quando a biologia não se condiz com o universalmente esperado, com o universalmente correto, a diversidade dos corpos se dissolve no individualismo do que não consegue ser chamado, do vazio do que não pode ser reproduzido.

Alemanha, 2009. Caster Semenya ganha o ouro na prova dos 800 metros no Campeonato Mundial de Atletismo. A partir daí a atleta sul-africana começa um calvário acerca de sua biologia: seu corpo produz demasiada testosterona. Para o mundo simplificador, fisicalista e cientificista isso significa que seu corpo feminino é demasiado masculino para competir com mulheres. Catalogada pela International Association of Athletics Federations (IAAF) com “disfunção em seu desenvolvimento sexual”4 4 DSD: “Differences of Sexual Development”. , sua biologia a impede de competir, seja com mulheres, seja com homens. Tem até quem questionou se ela deve correr com os homens, num gesto que romperia a clássica dicotomia de competições masculinas e femininas, introduzindo aos esportes numa nova dimensão: separar segundo graus de hormônios, segundo as biologias não necessariamente anatômicas5 5 Pode-se ler uma reflexão a respeito em “Corpo feminino no esporte: entre heterossexualidade compulsória e lesbofobia” (Silveira & Vaz, 2014a), “Doping e controle de feminilidade no esporte” (Silveira & Vaz, 2014b), “As políticas de verificação de sexo/gênero no esporte: Intersexualidade, doping, protocolos e resoluções” (Gomes Pires, 2016) e Zoboli, Maske & Galak (2021). .

Inclusive emerge a pergunta: o problema são seus hormônios naturais não-normais ou o fato de que seja exitosa? Ao não serem públicos os critérios de medição dos hormônios, não é transparente quais são as características utilizadas para definir quem é mulher. Mas, se sabe, essa característica está subordinada a parâmetros biológicos: ergo, naturais.

Uma década de debates, com interdições para competir por sua condição de “Disfunção em seu desenvolvimento sexual”, êxitos esportivos intermitentes e uma carreira de atleta interrompida, o Tribunal de Arbitragem Esportivo – em francês, Tribunal Arbitral du Sport (TAS) – considerou em 2019 que ela podia correr sempre que fosse feita a análise hormonal e que os resultados estivessem nos limites estipulados. Limites, claro está, que são arbitrários, e que conformam uma ideologia de gênero6 6 Claramente aqui esboço uma ironia baseada no uso do conceito que os normativismos corporais estabelecem sobre qualquer discussão que proponha romper com o binarismo e com a sinonímia entre masculino/feminino e pênis/vagina. : o hiper-adrogenismo.

Dessa maneira se inaugura um novo paradigma filosófico dentro dos esportes: já não mais apenas controles anti-dopagem-artificial para melhorar o organicamente ruim ou para regular as condições biológicas positivas, mas dopagens para controlar o que naturalmente, sem ajuda exógena, poderia dar vantagem.

No dia 6 de setembro de 2019 Semenya decidiu não abandonar as corridas, mas sim começar a treinar para jogar futebol no JVW FC, time sul-africano de futebol feminino. Todavia, partindo de reconhecer que o TAS é um tribunal que legisla sobre todos os esportes, a pergunta é se o problema da sua biologia é “universal”, e então vale também para o futebol o requisito da prévia análise hormonal, ou isso depende de cada prática esportiva, e então podemos inaugurar novas dimensões filosóficas esportivas, como que cada esporte tem a sua biologia tolerável.

Inglaterra, 2012. O corredor de 400 metros Oscar Pistorius se transforma no primeiro atleta paraolímpico com dupla amputação das pernas que compete nos Jogos Olímpicos “normais”7 7 Embora o estadunidense George Eyser seja considerado o primeiro atleta olímpico deficiente a competir e a ganhar 6 medalhas nos Jogos Olímpicos de Saint-Louis em 1904, é importante destacar que somente em 1960 são criados os Jogos Paraolímpicos de Verão, e com isso se materializa a separação entre “normais” e “deficientes”. . O atleta sul-africano que surpreendia com marcas absolutas – o que é um eufemismo para dizer “dos normais” –, consegue após anos de batalha judicial, ser tratado apenas como esportista, e não como esportista deficiente. Além da particularidade deste caso, o interessante é o sentido de universalidade da afirmação de não poucos atletas adversários, que sustentavam a hipótese de que a ausência de pernas e sua substituição por próteses podiam de algum modo significar uma vantagem8 8 A IAAF tomou a decisão baseados nos estudos fisiológicos feitos na Universität zu Köln, na Universidade Colônia, Alemanha pelo professor Gert-Peter Brüggemann, que afirmava as vantagens enquanto ao tempo de apoio no solo e as perdas de energia no processo de rebote (Norman & Moola, 2011). .

Como no caso de Semenya, uma vez mais o sentido do universal é colocado em tela de juízo: a anormalidade antigamente interpretada como desvantagem, se transforma em capital simbólico e econômico valorizado. Ausência de pernas físicas substituídas pela ortopedia ou volumes hormonais superiores aos padrões estabelecidos pela média estatística, viram o limite da relação entre política e corpo. Em todo caso, fica claro que anormalidade e deficiência são sinônimos apenas por convenções sociais, cujo pior risco é a sua manipulação discriminatória biopolítica.

Argentina, 2014. A jogadora de hóquei de grama Jessica Millamán é impedida de participar dos torneios femininos na sua cidade. O motivo? A sua genitália: Jessica nasceu com pênis. Vale lembrar que na Argentina qualquer pessoa maior de idade ou menor de idade acompanhado pelos seus progenitores ou tutores pode escolher a sua identidade de gênero automaticamente, graças à lei 26.743, conhecida como a Lei de “Identidade de Gênero”. E Jessica, já na maioridade, optou pela identidade feminina, e a partir daí queria competir como tal.

O caso chegou até à justiça civil e inclusive ao Comitê Olímpico Internacional (COI), determinando que ela, sendo juridicamente mulher, podia jogar no time feminino de hóquei, e aí colocou-se precedente internacional de que a divisão esportiva, pelo menos em alguns esportes, não é genital ou sexual, mas de gênero9 9 Sobre este caso e as suas derivas epistémicas, pode se ler “‘Cuéntame tus testosteronas’: Un análisis sobre las regulaciones para jugadorxs transgénero e hiperandrógenas” (Ibarra, 2020) e “Género y deporte: con la sexualidad ‘al palo’” (Scarnatto, 2017). Especialmente vale a pena revisar o livro “Transformar el deporte: relatos de deportistas trans” de Melina Maraschio (2020), onde a autora desenvolve uma série de crónicas jornalísticas sobre a temática do esporte e o género a partir de entrevistas realizadas a esportistas trans, onde Jessica Millamán participa. .

Muito se critica hoje em dia à frase de Sigmund Freud de que a “anatomia é o destino”, mas quanta razão tinha ele se tiramos todo sentido prognosticador da frase: somos nossa anatomia… Ninguém é perguntado por seu gênero, só “se transforma” ou “muda de gênero” quem escolhe o contrário do seu destino anatômico.

Homogeneização e direitos humanos

Sem pretender fazer uma historiografia do que atualmente é chamado de direitos humanos, é importante marcar como início do sentido moderno de direitos humanos o que se conhece como a “Déclaration des droits de l’homme et du citoyen”, a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, que foi a afirmação de princípios manifestada como resultado da Revolução Francesa, em 1789. Sobre a base das considerações do que nesse momento eram chamados como os “direitos naturais”, se formulam uma série de direitos humanos cuja principal característica é seu critério de que são universais, que são constitutivos universalmente para todos os humanos.

Desta forma, é possível entender que desde o início da ideia de direitos do homem e do cidadão forma parte dos critérios constitutivos do regime político moderno, o que significa que esses direitos reproduzem duas questões fundamentais: primeiramente, não se referem a qualquer posicionamento político moderno, senão aos sentidos dominantes da época, humanistas e liberais. São direitos dos homens, com esse sentido humanista de priorizar a essência dos seres humanos concebendo a existência de valores “naturais”. Associado com a virada epistêmica que substitui como centralidade do mundo o espiritual pelo humano – que implica essa passagem da compreensão como critério de verdade que muda a divindade de Deus pela racionalidade da ciência –, também a vida se seculariza e se prioriza a essencialidade das sensibilidades e do raciocínio dos seres humanos. Não está demais lembrar que essa ponderação da vida “humanista” implica a ressignificação do conceito de vida, e com isso a reconfiguração não só sobre desde quando existe tal coisa como “a vida” e quem outorga a condição de ser vivente, se Deus ou a biologia, a ciência, senão também qual vida merece ser vivida e quem é o proprietário dessa vida, se é o indivíduo ou a coletividade10 10 Não é menor que este posicionamento implica também a explícita colocação da mulher num lugar secundário, onde o conceito de “homem” inclui o conjunto dos seres humanos. .

Mas também é importante lembrar que, além do sentido humanista, esses princípios constitutivos da política moderna são direitos dos homens e dos cidadãos, o qual significa dizer que são direitos liberais, que claramente recuperam os sentidos dos direitos naturais, mas que incorporam um novo integrante moderno: o cidadão, o homem civil. Esse homem civil é civilizado, contraposto à barbárie, com a carga moral que isso provoca.

É importante chamar a atenção sobre isto, porque o liberalismo tem seu fundamento na construção do cidadão civil, que desenvolve as suas vidas especialmente nas cidades, nas metrópoles, por isso “cidadão”, e fundamentalmente que se sustenta na ideia de liberdade entre os indivíduos e o Estado, como regulador da coletividade. Desta maneira, para boa parte dos séculos XIX e XX, liberdade é sinônimo de individualidade. Dito de outro modo, aquele estandarte levantado pela Revolução Francesa junto com o de “fraternidade” e “igualdade” – na fórmula “Liberté, égalité e fraternité” – se desenvolveu no século XIX, e mais especialmente no século XX, como a proteção das liberdades individuais.

Para o argumento que desenvolvemos neste texto é importante destacar que essa sinonímia entre liberdade e individualidade está no fundo das reflexões do Herbert Spencer, autor de “Education: Intellectual, Moral and Physical”, publicado em 1861, um dos principais livros que argumentaram a inclusão da Educação Física nos nascentes Sistemas Educativos do século XIX. De fato, muito devemos do nome “Educação Física” as ideias de Spencer, mas também devemos à ele um duplo fundamento articulado com que se argumentou a inclusão da educação dos corpos institucionalizada como dispositivo governamental: um fundamento liberal individualista, especialmente o republicanismo liberalista individualista, que por exemplo é possível de ser lido em outro importante livro de Spencer, como foi “The Man versus the State”, de 1884, e um fundamento biologicista social, particularmente ligado à produção de Spencer da teoria do “Darwinismo Social”, que desenvolve particularmente em “Principles of Biology” (1864), e que materializa a política de pensar que melhorando o corpo individual podemos melhorar o corpo coletivo, e vice-versa. Muito deve a importância das práticas corporais institucionalizadas, como a Educação Física ou as Ciências do Esporte, como os esportes ou o lazer, a esses fundamentos liberal individualista e biologicista social11 11 Esses argumentos podem ser retomados em “Herbert Spencer y la pedagogía integralista. Influencias en los inicios de la Educación Física argentina” (Galak, 2013. .

Agora bem, como segunda consideração nodal, os direitos humanos têm nos seus fundamentos resíduos humanistas e liberais, princípios que constituem o “sujeito jurídico” caracteristicamente moderno. Como afirma o filósofo italiano Roberto Esposito, a ideia de direitos humanos está definida exclusivamente pela condição de seres viventes. Quer dizer: só pode ter direitos humanos quem é ser vivente. No seu livro “Bios. Biopolítica e filosofia”, Esposito (2011)Esposito, R. (2011). Bios. Biopolítica y filosofía. Amorrortu. desenvolve a ideia de que os direitos humanos retomam como fundamento básico da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, por um lado, aquilo que os direitos humanos têm por princípio ser universais, não podendo ser pensados para uns sim e para outros não, e, por outro, procurando constituir-se como naturais, o que implica uma constância que tem uma orientação prescritiva ao futuro: o que vem sendo com o que deve ser.

Precisamente nesse ponto que queria chegar: na ideia de que falar de “direitos humanos” implica, primeiramente, um princípio natural, que constitui que são sujeitos de direito modernos aqueles que têm por condição serem seres viventes. O que significa que na base dos direitos humanos tem uma interpretação da vida como biológica, do que os gregos chamavam de vida zoé, entendida como natural, biológica, compartilhada com os animais, mas que se apoia em uma vida bios, aquela vida qualificada, política. Quer dizer, como explica Esposito, uma biopolítica afirmada num critério zoépolitico, num critério natural.

E como complemento ao princípio natural que atinge a todo ser vivente, um princípio universal, que implica que todos temos “a mesma natureza”, então todos temos os mesmos direitos humanos. Aliás, a vontade de ter esse direito, relegamos nossas subjetividades em função de ser objetos de uma lei natural e universal, uma individualidade que nos antecede e fundamenta a nossa subjetividade12 12 Poderia se aqui incorporar a questão da segurança, que em parte foge do argumento central do texto mas, como Esposito (2011) explica, relegamos a nossa liberdade para com o Estado pela sensação de seguridade. .

Heterogeneidade e corpos diversos

Frente a diversidade dos corpos, a modernidade coloca como objeto de nossa individualidade o corpo, propriedade de nossa subjetividade. As práticas que tem como objeto o corpo exibem as tensões entre os modos de corporeidade individual frente as homogeneizações sociais, especialmente aquelas institucionalizadas. Então, a Educação Física e o desenvolvimento dos esportes ou do lazer não podem ser explicados sem o central rol articulador estatal e a utilização de práticas corporais como dispositivos governamentais.

Aquela “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” que nasceu com a Revolução Francesa em 1789 se baseia em quatro eixos, que são a liberdade, a propriedade, a seguridade e a resistência à opressão. Michel Foucault (1983, 1998) retoma precisamente as ideias modernas de liberdade, propriedade, soberania e poder para argumentar que esses são os princípios sobre os quais descansa o que chama de nascimento da biopolítica nos séculos XVIII e XIX, conceito importante para explicar o governo dos corpos por parte dos nascentes Estados-Nação13 13 Embora o conceito de biopolítica não seja estritamente foucaultiano, nem seja muito desenvolvido pelo autor francês, é um conceito fortemente ligado à Foucault e a sua tradição de pensamento. . Por sua vez, Roberto Esposito desenvolve duas ideias sobre esse assunto, as quais permitem refletir acerca da ideia de corpos diversos frente a heterogeneidade/homogeneidade, uma que apresenta o que chama de “paradigma imunológico” da biopolítica, e a segunda, como consequência disso, pensar que frente ao individualismo da liberdade, o corpo se transforma em objeto de poder e propriedade.

O conceito filosófico do “imunológico” permite a Esposito desenvolver a ideia de que existe um múnus nas sociedades, conceito latino que significa “obrigação” (ônus), “função” (officium), “dom” (donum). Daí explica primeiro a sua conceituação de “comunidade”: o comunitário como o comum, como o co-munus, e logo a noção de “imunitário”, como seu contrário, como in-munus, gérmen da ideia de imunidade. Com este conceito de imunidade Esposito define um estágio do processo biopolítico que se desenvolve mais tardiamente, no segundo quarto do século XX, e significa a elaboração e aperfeiçoamento dos critérios biológicos e jurídicos como ordenamento do mundo.

O que Esposito quer expressar com o termo imunológico é a dupla acepção da palavra imunidade. Por um lado, uma acepção jurídica da imunidade que ele interpreta como privilégio ou prerrogativa que desobriga alguém de alguma coisa que os demais estão obrigados. Essa ideia do direito mostra que a universalidade das normas tem suas exceções, o que até certo ponto é uma contradição, porque o universal é, segundo o dicionário, algo comum a todos os membros da mesma espécie, sem exceções14 14 Ainda mais, diferentemente do passado, essas exceções jurídicas imunitárias são constituídas por condições consideradas como superiores: não é qualquer um que pode acessar as exceções das leis universais, como acontece com as imunidades diplomáticas. . Em outras palavras, a universalidade dos direitos, como os direitos humanos, pode ser colocada em suspenso, em isenção para algumas pessoas.

Claramente estas ideias têm uma forte representação na experiência totalitária fascista, especialmente nazista e italiana, que são evidentes exemplos contemporâneos do nascimento do paradigma imunológico, e que mostram a suspensão de direitos universais por condições particulares, como as condições raciais, tal como explicitam as Leis de Nuremberg em 1935 na Alemanha ou Il manifesto della Razza em 1938 na Itália de Mussolini.

Precisamente isso se complementa com a outra acepção do imunitário, a acepção biológica, que o define como a propriedade dos organismos vivos de estarem isentos de uma determinada doença, a constituição dessa resistência natural ou adquirida contra agentes infecciosos. No sentido filosófico que esgrime Esposito isso significa a condição desenvolvida no início do século XX que implica uma transformação fundamental: o desenvolvimento de um posicionamento cientificista biológico que se torna nesse momento dominante, e que separa natureza de universalidade. Porque, se o cientificismo biológico prova como nem todos temos a mesma natureza, e inclusive prova como existem naturezas “melhores” ou “piores”, então, se quebra a ideia do humano como universal, e já não é mais possível sustentar o fundamento universal no fundamento natural.

E aqui podemos estabelecer uma questão que antecipa o argumento final: sem essa coesão – supostamente – natural, sem essa coesão – supostamente – universal, nem todos temos os mesmos direitos humanos. Mas aonde quero chegar por agora neste ponto é que o paradigma imunitário reconfigura a educação dos corpos institucionalizada, como os esportes, a Educação Física ou o lazer, e essa ressignificação se apoia na concepção do individualismo biológico, que num sentido jurídico permite manter as liberdades individuais próprias do liberalismo, mas ao mesmo tempo aceitar que, seguindo critérios biológicos, o Estado disponha das individualidades. Como no caso da administração de vacinas ou da legislação sobre o aborto, que têm critérios biologicisitas, mas também de um conjunto de prescrições normativas que acontecem nesse período amparadas em critérios biológicos, sociais e morais, como a prostituição, o “jogo do bicho”, a ingestão excessiva de álcool, entre outras15 15 Além disso, tal como foi desenvolvido em pesquisas anteriores (Galak, 2016), o paradigma imunológico reconfigura a Educação Física a partir de um individualismo biológico num sentido psicopedagógico, quando as principais disposições disciplinares deixam de ser transmitidas desde as instituições oficiais governamentais educacionais para passar a ser promulgados pelos organismos ligados à saúde pública. Isso acontece especialmente quando muda o velho paradigma de que a tarefa política do coletivo é a educação, reproduzindo a concepção de que a tarefa política se restringe a ensinar, retirando a responsabilidade do coletivo sobre a aprendizagem: si se aprende ou não é problema de cada um, da biologia individual de cada um. .

O que quero afirmar é que o “paradigma imunológico” da biopolítica que se desenvolve com força no segundo quarto do século XX se apoia num individualismo diferente, que aprofunda o universalismo liberal e humanista com que nasceu o sujeito moderno como “ser vivente” e leva à biologia como critério de individualidade. É precisamente esse individualismo biológico no qual se apoia o caso de Saelua, Semenya, de Millamán ou de Pistorius quando, a partir de um caso particular, a partir de uma biologia individual, se legisla esportivamente para toda universalidade. Em outras palavras, vivemos uma época no qual o individualismo já não é mais estritamente sinônimo de liberdade, como no século XIX, mas é um individualismo que sustenta sua universalidade no corpo como propriedade.

A propriedade dos corpos

Como consequência do paradigma imunitário pode se pensar que se reconfiguram os quatro eixos mencionados anteriormente, nos quais se sustenta a biopolítica: a liberdade, a propriedade, a soberania e o poder. Essa ressignificação implica conceber que, frente a liberdade como sinônimo de individualidade e a substituição da soberania por segurança, o corpo radicaliza seu território como objeto de poder e se transforma em propriedade.

Conceber o corpo como propriedade implica manter a velha dialética do corpo como objeto e sujeito, território material e simbólico das pessoas, tornando possível de ser apreendido (vendido, trocado, adornado, intercambiado etc.) como negócio além da subjetividade. Isto é, se o corpo é valorizado como propriedade, comercializa a nossa subjetividade, nos representa, fora de toda ideia que liga o corpo à natureza, se torna objeto maleável, mercadoria, território da individualidade. Mas, também causa o aprofundamento do individualismo, interpretá-lo como propriedade fecha o clássico “ter” ou “ser” corpo no individuo biológico e jurídico, no ser vivente.

Agora bem, retomando o fio argumentativo com o qual desenvolvi a primeira parte desta reflexão, isso se manifesta claramente na “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, anunciados em dezembro de 1948 como consequência da Segunda Guerra Mundial e da Shoá. Se a Déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789 tinha colocado o universal como paradigma da lei, fazendo com que todos devamos nos ajustar à norma, a chamada “Carta Internacional dos Direitos do Homem” coloca o normal como paradigma, e então os direitos são carregados de valores morais, especialmente de ideais como liberdade, justiça e paz. A modo de exemplo, nessa Declaração Universal a palavra “universal”, para além do título, aparece somente 3 vezes, mas “individuo” figura 5 vezes, “igualdade” 9 e “liberdade” 20 vezes16 16 Cabe aclarar que nem a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 mencionam o tempo livre, os esportes ou o lazer. .

Não quero chamar a atenção sobre uma questão quantitativa, pelo contrário, quero dizer que se nos primórdios da modernidade na Revolução Francesa era necessário construir a normalidade, construir o universal, na metade do século XX o universal é preexistente ao individuo, e é o indivíduo que tem que se ajustar à norma. De fato, nessa Carta Internacional assinada como resultado da constituição das Nações Unidas, não se define mais os direitos universais, senão textualmente são os “direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana”.

O que quero argumentar aqui é o seguinte: estamos em presença de um tempo no qual não é mais a procura do universal, senão do igual: não é que somos todos homogêneos, é o reconhecimento das nossas heterogeneidades, mas que também admitem que o que temos de igual é a condição, mais uma vez, de nosso caráter de ser viventes. Iguais, compartilhando a condição de ter corpos, como propriedades viventes, mas sendo individuais.

Como pode ser visto no individualismo do artigo terceiro dessa “Declaração Universal dos Direitos Humanos”: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Igualdade que implica um novo estatuto de normalidade que se refugia no falso discurso da meritocracia e na ideia de “mesmas oportunidades para todos e todas”, e que nas final das contas corre hoje o risco de cair num amor pelos iguais, e, ergo, no estabelecimento de que existem desiguais e sua consequente rejeição17 17 Sem cair em generalizações, o amor pelos iguais é um paradigma do nazismo, belissimamente trabalhado por Leni Riefenstahl especialmente em Olympia 2. Fest der Schönheit, quando a festa da beleza começa por mostrar homens nus tomando banho e se ajudando sem um apelo homossexual, senão, pelo contrário, como exibição do amor pelo igual. .

Gostaria aqui de retomar o argumento de Roberto Esposito e introduzir um exemplo relativamente atual e que permite adentrar-nos no argumento final: para significar o desenvolvimento da biopolítica na atualidade, Esposito descreve uma série de casos dos anos 2000, que inclui os problemas de segurança por parte da Rússia ou dos Estados Unidos – com os chamados “danos colaterais” na luta contra o terrorismo –, ou de controle da população – como o controle dos nascimentos na China–. Mas o caso que quero retomar é o de Nicolas Perruche, ocorrido na França, no ano 2000: afetado por graves lesões congênitas produto de uma rubéola mal diagnosticada na sua mãe gravida dele, e assistindo-lhe o direito a ela de poder abortar – lembrando que na França é possível abortar si a mãe ou a criança podem sofrer consequência de alguma doença na gravidez –, o jovem francês denunciou os médicos pelo direito de não-nascer. Não é que ele queria morrer, que queria eutanásia, ele queria a restituição do direito perdido: a possibilidade negada de ter sido abortado. Como ser vivente, ele queria o direito de não-ser.

A questão que este exemplo desperta filosoficamente, e que se pergunta agudamente Esposito, é a seguinte: como pode um indivíduo atuar juridicamente contra a única circunstância – a de sua condição de ter nascido, a sua condição de ser vivente – que lhe permite, precisamente, a sua constituição como sujeito de direito? A dissolução de sua condição de ser vivente é justamente a que lhe permite poder expressar seu direito de não-ser.

O que parece evidente aqui é a inseparável relação entre realidade biológica e personalidade jurídica, entre vida natural e forma de vida (Esposito, 2011Esposito, R. (2011). Bios. Biopolítica y filosofía. Amorrortu.). Além da jurisprudência, com as ferramentas conceituais gostaria de pensar os esportes e o lazer como direitos humanos. Porque, radicalizando o exemplo do francês Perruche e a sua vontade de ter direito a não-ser, se somos seres viventes proprietários dos corpos, como enfrentamos eticamente em nossas práticas profissionais quem quer não responder aos condicionamentos sociais? Quem quer não-ser sadio? Quem quer não-ser musculoso, vigoroso, treinado, sadio, belo, etc.? Quem quer não-fazer atividade física? Quem quer não-ser sujeito do direito universal que natural e individualmente impõe a que tenha que fazer esporte ou lazer? Se sustentamos sem criticidade homogeneizante que os esportes e o lazer são direitos humanos, podemos aceitar que alguém queira não-fazer essas atividades físicas? Decreta-los como direitos humanos não vulnerabiliza o nosso desejo, a nossa liberdade de poder escolher voluntariamente ser sedentário? Retomando o exemplo da vontade de Perruche de não-ser, a diversidade dos corpos tem o ponto comum que não podem não-ser, que tem sua ligação como seres viventes, individuais.

Reflexões finais

Pensar os esportes e o lazer como direitos humanos de corpos diversos implica partir de conceber o estatuto do corpo e sua concepção como propriedade e a questão dos direitos humanos e as políticas públicas. Partindo do reconhecimento de que a ideia de direito humano é efeito do liberalismo e do humanismo que tem no seu interior um individualismo, e partindo da compreensão que a biopolítica imunitária faz da liberdade, da individualidade ou do corpo, já não mais uma forma de ser, como afirma Esposito, senão uma propriedade, é importante dizer que frente aos universalismos da primeira metade do século XX, emerge a concepção contrária de que existe uma diversidade dos corpos.

Mas o que eu quero sustentar é que a ideia de que os “corpos diversos” mantêm o individualismo no fundo do seu argumento. Particularmente porque não consegue romper com o individualismo biológico e jurídico no qual parece estar condenado: pensar em “corpos diversos” acarreta um isolamento, pressupõe que somos indivisamente diversos, compromete a ideia de que cada um tem seu corpo18 18 Ou seja, como diria Zygmunt Bauman, nos limita ao discurso da tolerância e não alcança o discurso da solidariedade. Agradeço a Ivan Gomes pelo comentário. . Isso implica a dificuldade de, por um lado, pensar que o corpo é mais do que o objeto da política, e observar as potencialidades limitadas dos corpos plurais, e, por outro, formar identificações corporais coletivas19 19 Ou, como chamei em pesquisas anteriores (Galak, 2009), a formação de corpos plurais. que fujam do relacionamento entre corpo e indivíduo através da identidade, questão sempre ligada à essencialidade e à materialidade, permitindo formar, pelo contrário, antes que identidades, formar identificações, nunca eternas, nunca essenciais, nunca de uma vez e para sempre, nunca universais, sempre relacionais.

Assim como podemos nos perguntar “corpos diversos para quem?”, a pergunta aqui seria “esporte e lazer como direitos humanos para que e para quem?”. Parece que a contradição lógica de pensar a diversidade dos corpos frente ao universalismo das normas (como no caso dos direitos humanos) se resolve afirmando uma homogeneização dos corpos, e, com isso, mantendo sempre no fundamento primeiro que somos concebidos – e não podemos deixar de ser –, como sujeitos de direito, como seres viventes, como seres biológicos que têm uma existência: que na final das contas reproduzimos o perigo de que nosso destino seja a nossa anatomia, como denunciava com Freud no início do texto.

Vou tensionar estas questões com algumas perguntas finais: acaso as razões de porquê argumentar a prática de esportes ou de lazer como direitos humanos radicam num fundamento de corpo como biológico? Inclusive naturalizante e universalizante, herança da Déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789? Será que a procura de corpos diversos não acaba por universalizar o sujeito? Procurar converter práticas culturais em direitos humanos, não implica continuar reivindicando os valores moralistas sobre o individual e o coletivo que desde a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” de 1948 vem se reproduzindo? Não compromete replicar o sentido de que somos todos iguais, e com isso negar as nossas pluralidades? Ainda mais nessa trilha: é possível pensar os direitos humanos sem o exercício da biopolítica? De alguma maneira como síntese: é possível pensar uma política pública sobre os esportes ou sobre o lazer sem alguma dose de governo sobre a ou da vida?

Entendo que não. Entendo que pressupondo “a vida” e “os sujeitos” desses direitos acaba-se por homogeneizar os corpos dessas práticas. Mais especificamente, retomando os exemplos com que inaugurava este escrito: o que fazemos com os corpos diversos de Saelua, Semenya, de Millamán ou de Pistorius? O que fazem os profissionais da Educação Física, da educação dos corpos, do lazer ou dos esportes, com os Jaiyah, as Caster, os Oscar, as Jessica? Na verdade, o que fazemos com os corpos diversos que temos nas aulas? Pensamos em todos eles como “corpos diversos”, ou ainda seguimos definindo os que são “diversos” com quem é distinto, diferente do que arbitrariamente definimos como “normal”, como “norma”, como “universal”? Como nos casos de Saelua ou Millamán, só é diverso quem escolhe ser diferente do seu destino anatômico, heteronormativo, patriarcal? Como nos casos de Semenya ou Pistorius, só é diverso quem foge da naturalização da norma como normal?

Será que a Educação Física em suas diferentes práticas não continua reproduzindo os fundamentos com que foi pensada, com o fundamento liberalista individual e o fundamento biologicista social com que nasceu a Educação Física, com o individualismo biológico que, como apontava, tornou a disciplina em um dispositivo biopolítico? Se concebermos os esportes como direitos humanos, não deveríamos deixar todos competir universalmente? Quero dizer, se é um direito universal e se tem um corpo como propriedade do ser vivente, devemos deixar Oscar Pistorius com suas pernas ortopédicas competir nos Jogos Olímpicos “normais”, ou no caso de Semenya, competir contra pessoas com sua mesma anatomia? Não é um direito universal o que lhes assiste? Ou, como atuamos com Jaiyah Saelua como primeira jogadora transexual de futebol masculino, ou frente a Jessica Millamán e a sua identidade jurídica como mulher e a vontade de competir no hóquei feminino? Como resolvemos o nó gordiano que se atrapalha entre a identidade biológica frente a identidade jurídica que foge (em parte) do binarismo anátomo-genital?

Em sínteses, podem ser pensadas as práticas esportivas tão isoladamente das práticas sociais que se admita como valorizado ou vantajoso nos esportes alguma coisa desvalorizada ou desvantajosa nas sociedades cotidianas, ou vice-versa? O que demostra que não existe o universal, senão processos de universalização. Não existe o universal dos corpos ou dos sujeitos, mas tampouco das práticas, embora possam se experienciar questões universais para os esportes – como as regras.

Ainda mais, como mostra potencialmente o caso de Semenya, a sua recente incorporação no futebol abre à pergunta se ela deverá fazer prévia análise hormonal como no atletismo, o que significa uma abertura das perguntas a novos horizontes onde o universal, cada vez mais, se reduza a cada caso individualmente, ao “caso a caso”.

Os exemplos de Semenya, Pistorius e Millamán mostram o humanismo e o liberalismo dos direitos humanos sustentados no individualismo biológico, base de posicionamentos políticos, antes que democráticos, de posicionamentos filo-totalitários. Sua condição de seres viventes, biológicos, choca com seus corpos diversos: são casos isolados, mas que colocam em circulação, em tensão, em discussão, questões universais.

Vou finalizar com uma verdade conhecida, mas não por isso menos verdade: a ideia de esporte e lazer como direitos humanos implica necessariamente aceitar também que isso nos introduz em particulares relações de poder. Embora os direitos humanos pretendam fazer esquecer as diferenças de classe, são classistas. Embora os direitos humanos pretendam fazer esquecer as diferenças discriminatórias de gênero, são heteronormativos. Embora os direitos humanos pretendam fazer esquecer as desigualdades, as conservam e as reproduzem.

A tarefa é deixar de pensar em corpos diversos, que remetem a identidades individuais, e começar a pensar em corpos plurais, que nos levem a considerar identificações coletivas.

Isso não significa abandonar a norma, refúgio primeiro do contrato social. Deve, por sua vez, pensar-se o caráter cultural da mesma e não se interpretar como natural. Toda norma é naturalizadora, mas não tem que necessariamente conduzir a uma normalidade (nova ou conservadora). Dessa forma se estabelece o primeiro passo: romper com a (com)fusão entre norma, normalidade e natural. Um passo para isso é sustentar teórica e politicamente a distância que deve existir entre direitos e direitos humanos. Neste sentido, as diversidades não podem ser interpretadas a partir das materialidades dos corpos, mas sim das conceptualizações feitas pelas culturas. Compreendo que esse é o mecanismo para uma heterogeneidade das práticas corporais que não seja pensada como a “inclusão dos diversos”, mas sim o entendimento da aceitação de viver em comunidades organizadas complexas, integradas, empáticas.

Isso significa romper com o paradigma imunológico da biopolítica e retornar o corpo a um sentido comunitário, que não esqueça a importância de algumas práticas biopolíticas como a diminuição das mortes infantis, o combate contra a fome ou as doenças, as críticas ao sedentarismo ou mesmo a desenvolvimento dos processos de escolarização, mas que não se reduzam a isso, que não pondere as questões econômico-políticas como principal critério, nem que reifique um conceito de saúde médico biológico universal.

Isso envolve romper os essencialismos das nossas identidades e conceber que somos efeito de práticas, não universais, sempre contingentes. Isso implica romper com o sentido biopolítico dos direitos humanos que reduzem o problema ao individualismo, ao efêmero, ao niilismo, não como perda de sentido, mas como explosão de sentidos, como um “tudo vale a mesma coisa”.

Isso permitirá romper a engrenagem biopolítica atual que leva a considerar o corpo como propriedade, e voltar a pensar nas trocas, nos diálogos, nas faltas, nas confusões, nas contradições.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Carneiro da Silva Junior (Tikinet) <revisao@tikinet.com.br>
  • 3
    É interessante ver neste sentido o documentário britânico “Next Goal Wins” (2014), dirigido por Mike Brett e Steve Jamison, no qual relata a campanha da seleção de Samoa Americana durante as eliminatórias para a Copa do Mundo FIFA de 2014, no Brasil, na qual ganhou por primeira vez um jogo, 2x1 contra Tonga em 2011. O filme aborda a questão dos fa’afafine e da Jaiyah Saelua.
  • 4
    DSD: “Differences of Sexual Development”.
  • 5
    Pode-se ler uma reflexão a respeito em “Corpo feminino no esporte: entre heterossexualidade compulsória e lesbofobia” (Silveira & Vaz, 2014aSilveira, V. T., & Vaz, A. F. (2014a). Corpo feminino no esporte: entre heterossexualidade compulsória e lesbofobia. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 36(2), s212-s222.), “Doping e controle de feminilidade no esporte” (Silveira & Vaz, 2014bSilveira, V. T., & Vaz, A. F. (2014b). Doping e controle de feminilidade no esporte. Cadernos Pagu, 42, 447-475. http://dx.doi.org/10.1590/0104-8333201400420447
    https://doi.org/10.1590/0104-83332014004...
    ), “As políticas de verificação de sexo/gênero no esporte: Intersexualidade, doping, protocolos e resoluções” (Gomes Pires, 2016Gomes Pires, B. (2016). As políticas de verificação de sexo/gênero no esporte: Intersexualidade, doping, protocolos e resoluções. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, 24, 215-239.) e Zoboli, Maske & Galak (2021)Zoboli, F., Manske, G., & Galak, E. (2021). A generificação dos corpos de atletas trans e políticas de biologização do sexo. Revista Estudos Feministas, 29 (2), 1-13..
  • 6
    Claramente aqui esboço uma ironia baseada no uso do conceito que os normativismos corporais estabelecem sobre qualquer discussão que proponha romper com o binarismo e com a sinonímia entre masculino/feminino e pênis/vagina.
  • 7
    Embora o estadunidense George Eyser seja considerado o primeiro atleta olímpico deficiente a competir e a ganhar 6 medalhas nos Jogos Olímpicos de Saint-Louis em 1904, é importante destacar que somente em 1960 são criados os Jogos Paraolímpicos de Verão, e com isso se materializa a separação entre “normais” e “deficientes”.
  • 8
    A IAAF tomou a decisão baseados nos estudos fisiológicos feitos na Universität zu Köln, na Universidade Colônia, Alemanha pelo professor Gert-Peter Brüggemann, que afirmava as vantagens enquanto ao tempo de apoio no solo e as perdas de energia no processo de rebote (Norman & Moola, 2011Norman, M., & Moola, F. (2011). ‘Bladerunner or boundary runner’?: Oscar Pistorius, cyborg transgressions and strategies of containment. Sport in Society, 14(9), 1265-1279. 10.1080/17430437.2011.614783).
  • 9
    Sobre este caso e as suas derivas epistémicas, pode se ler “‘Cuéntame tus testosteronas’: Un análisis sobre las regulaciones para jugadorxs transgénero e hiperandrógenas” (Ibarra, 2020Ibarra, M. (2020). ‘Cuéntame tus testosteronas’: Un análisis sobre las regulaciones para jugadorxs transgénero e hiperandrógenas. Revista de Estudios de Género, La ventana, 6(52), 161-190.) e “Género y deporte: con la sexualidad ‘al palo’” (Scarnatto, 2017Scarnatto, M. (2017). Género y deporte: con la sexualidad ‘al palo’. Perspectivas en Educación Física: Documentos y notas de investigación, (5). http://efendocumentos.fahce.unlp.edu.ar/dynt/ PEFdynt201705.pdf
    http://efendocumentos.fahce.unlp.edu.ar/...
    ). Especialmente vale a pena revisar o livro “Transformar el deporte: relatos de deportistas trans” de Melina Maraschio (2020)Maraschio, M. (2020). Transformar el deporte: relatos de deportistas trans. Facultad de Periodismo y Comunicación Social, Universidad Nacional de La Plata., onde a autora desenvolve uma série de crónicas jornalísticas sobre a temática do esporte e o género a partir de entrevistas realizadas a esportistas trans, onde Jessica Millamán participa.
  • 10
    Não é menor que este posicionamento implica também a explícita colocação da mulher num lugar secundário, onde o conceito de “homem” inclui o conjunto dos seres humanos.
  • 11
    Esses argumentos podem ser retomados em “Herbert Spencer y la pedagogía integralista. Influencias en los inicios de la Educación Física argentina” (Galak, 2013Galak, E. (2013). Herbert Spencer y la pedagogía integralista. Influencias en los inicios de la Educación Física argentina. In V. Varea & E. Galak (Eds.), Cuerpo y Educación Física. Perspectivas latinoamericanas para pensar la educación de los cuerpos (pp. 45-66). Biblos..
  • 12
    Poderia se aqui incorporar a questão da segurança, que em parte foge do argumento central do texto mas, como Esposito (2011)Esposito, R. (2011). Bios. Biopolítica y filosofía. Amorrortu. explica, relegamos a nossa liberdade para com o Estado pela sensação de seguridade.
  • 13
    Embora o conceito de biopolítica não seja estritamente foucaultiano, nem seja muito desenvolvido pelo autor francês, é um conceito fortemente ligado à Foucault e a sua tradição de pensamento.
  • 14
    Ainda mais, diferentemente do passado, essas exceções jurídicas imunitárias são constituídas por condições consideradas como superiores: não é qualquer um que pode acessar as exceções das leis universais, como acontece com as imunidades diplomáticas.
  • 15
    Além disso, tal como foi desenvolvido em pesquisas anteriores (Galak, 2016Galak, E. (2016). Educar los cuerpos al servicio de la política. Cultura física, higienismo, raza y eugenesia en Argentina y Brasil. UNDAV Ediciones y Editorial Biblos.), o paradigma imunológico reconfigura a Educação Física a partir de um individualismo biológico num sentido psicopedagógico, quando as principais disposições disciplinares deixam de ser transmitidas desde as instituições oficiais governamentais educacionais para passar a ser promulgados pelos organismos ligados à saúde pública. Isso acontece especialmente quando muda o velho paradigma de que a tarefa política do coletivo é a educação, reproduzindo a concepção de que a tarefa política se restringe a ensinar, retirando a responsabilidade do coletivo sobre a aprendizagem: si se aprende ou não é problema de cada um, da biologia individual de cada um.
  • 16
    Cabe aclarar que nem a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 mencionam o tempo livre, os esportes ou o lazer.
  • 17
    Sem cair em generalizações, o amor pelos iguais é um paradigma do nazismo, belissimamente trabalhado por Leni Riefenstahl especialmente em Olympia 2. Fest der Schönheit, quando a festa da beleza começa por mostrar homens nus tomando banho e se ajudando sem um apelo homossexual, senão, pelo contrário, como exibição do amor pelo igual.
  • 18
    Ou seja, como diria Zygmunt Bauman, nos limita ao discurso da tolerância e não alcança o discurso da solidariedade. Agradeço a Ivan Gomes pelo comentário.
  • 19
    Ou, como chamei em pesquisas anteriores (Galak, 2009Galak, E. (2009). El cuerpo de las prácticas corporales. In R. Crisorio & M. Giles (Eds.), Educación Física. Estudios Críticos en Educación Física (pp. 271-284). Al Margen.), a formação de corpos plurais.

Referências

  • Esposito, R. (2011). Bios. Biopolítica y filosofía Amorrortu.
  • Foucault, M. (1983). Vigilar y castigar. Nacimiento de la prisión Siglo XXI Editores.
  • Foucault, M. (1998). La verdad y las formas jurídicas Gedisa.
  • Galak, E. (2009). El cuerpo de las prácticas corporales. In R. Crisorio & M. Giles (Eds.), Educación Física. Estudios Críticos en Educación Física (pp. 271-284). Al Margen.
  • Galak, E. (2013). Herbert Spencer y la pedagogía integralista. Influencias en los inicios de la Educación Física argentina. In V. Varea & E. Galak (Eds.), Cuerpo y Educación Física. Perspectivas latinoamericanas para pensar la educación de los cuerpos (pp. 45-66). Biblos.
  • Galak, E. (2016). Educar los cuerpos al servicio de la política. Cultura física, higienismo, raza y eugenesia en Argentina y Brasil UNDAV Ediciones y Editorial Biblos.
  • Gomes Pires, B. (2016). As políticas de verificação de sexo/gênero no esporte: Intersexualidade, doping, protocolos e resoluções. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, 24, 215-239.
  • Ibarra, M. (2020). ‘Cuéntame tus testosteronas’: Un análisis sobre las regulaciones para jugadorxs transgénero e hiperandrógenas. Revista de Estudios de Género, La ventana, 6(52), 161-190.
  • Maraschio, M. (2020). Transformar el deporte: relatos de deportistas trans Facultad de Periodismo y Comunicación Social, Universidad Nacional de La Plata.
  • Norman, M., & Moola, F. (2011). ‘Bladerunner or boundary runner’?: Oscar Pistorius, cyborg transgressions and strategies of containment. Sport in Society, 14(9), 1265-1279. 10.1080/17430437.2011.614783
  • Scarnatto, M. (2017). Género y deporte: con la sexualidad ‘al palo’. Perspectivas en Educación Física: Documentos y notas de investigación, (5). http://efendocumentos.fahce.unlp.edu.ar/dynt/ PEFdynt201705.pdf
    » http://efendocumentos.fahce.unlp.edu.ar/dynt/ PEFdynt201705.pdf
  • Silveira, V. T., & Vaz, A. F. (2014a). Corpo feminino no esporte: entre heterossexualidade compulsória e lesbofobia. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 36(2), s212-s222.
  • Silveira, V. T., & Vaz, A. F. (2014b). Doping e controle de feminilidade no esporte. Cadernos Pagu, 42, 447-475. http://dx.doi.org/10.1590/0104-8333201400420447
    » https://doi.org/10.1590/0104-8333201400420447
  • Zoboli, F., Manske, G., & Galak, E. (2021). A generificação dos corpos de atletas trans e políticas de biologização do sexo. Revista Estudos Feministas, 29 (2), 1-13.
1
Editor responsável: Carmen Lúcia Soares <https://orcid.org/0000-0002-4347-1924>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2021
  • Revisado
    02 Abr 2022
  • Aceito
    29 Maio 2022
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br